Drogas: famílias que protegem e que expõem adolescentes ao risco
Introdução
Novos tempos trazem novas configurações familiares e a transformação no
exercício dos papéis familiares. Mulheres e homens disputam o mercado de
trabalho e estereotipias e papéis definidos em outros tempos perdem espaço
(Grzybowski, 2003; Hennigen e Guareschi, 2002; IBGE, 2002). Novas dinâmicas e
novos papéis acarretam temores específicos, como ocorreu, por exemplo, com as
crianças nascidas de casais que se divorciaram nos primeiros anos de vigência
da Lei do Divórcio (Wagner, 2002).
As redes de distribuição de substâncias psicoativas (SPAs), sejam lícitas ou
ilícitas, ocupam os espaços de difusão da oferta e da sedução ao consumo e
estão atentas aos movimentos sociais, como os fenômenos da inclusão das
mulheres no mercado de trabalho e/ou o da expansão da mídia eletrônica (Costa e
Silva e Koifman, 1998).
A população adolescente merece ser acompanhada com especial atenção por
representar o grupo populacional mais vulnerável à experimentação de álcool,
tabaco e outras drogas (Carlini et al., 2002; Giusti et al., 2002; Silva et
al., 2003; Soldera et al., 2004).
Parece importante que se identifiquem fatores de proteção e de risco, ou seja,
fenômenos que se associam ao do uso de SPA, facilitando ou dificultando sua
expansão. Isso pode melhor orientar ações nos campos da prevenção e do
tratamento dos problemas decorrentes do uso de SPA, hoje largamente deficientes
(Dalgalarrondo et al., 2004; Dalgalarrondo et al., 2005; El-Guebaly, 2005;
Selby e Vaccarino, 2005; Uchtenhagen, 2005).
Este artigo pretende avaliar a associação entre o consumo de substâncias
psicoativas (bebidas alcoólicas, tabaco e drogas ilícitas) por adolescentes do
município de Pelotas (RS), segundo a presença de pai e/ou mãe no domicílio, bem
como o hábito de fumar dos pais.
Métodos
Em estudo realizado em Pelotas (RS), em 2002, a equipe de pesquisas do Programa
de Pós-Graduação em Saúde e Comportamento da Universidade Católica de Pelotas
(UCPel) entrevistou 960 adolescentes, entre 15 e 18 anos de idade, residentes
na zona urbana do município. A amostragem foi realizada, em múltiplos estágios,
a partir dos 448 setores censitários da zona urbana. Desses setores, 90 foram
sorteados sistematicamente para inclusão no estudo. A seguir selecionou-se,
aleatoriamente, um quarteirão de cada setor e sorteou-se uma esquina desse
quarteirão para ser o ponto inicial, a partir do qual 86 residências foram
visitadas de forma sistemática. Quando necessário, casas de outros quarteirões
foram incluídas, escolhidas de forma padronizada, a fim de completar o número
de 86 residências. No total, 7.740 domicílios foram visitados pela equipe de
pesquisa. Em cada lar sorteado foram entrevistados todos os adolescentes com
idades entre 15 e 18 anos completos, depois de obtido o consentimento por
escrito dos pais ou de outra pessoa adulta responsável (Horta, 2002).
Os adolescentes responderam a um questionário auto-aplicado, no qual se
buscavam informações sobre comportamentos em saúde. Foram selecionados para o
exame neste artigo os desfechos:
uso de tabaco em um período da vida (experimentação) e uso recente de tabaco
(pelo menos uma vez por semana no mês que antecedeu as entrevistas);
consumo de bebidas alcoólicas: foi solicitado que se informasse ter ou não
havido consumo de bebidas alcoólicas no mês que antecedeu as entrevistas;
uso de drogas ilícitas: investigou-se o consumo de qualquer das seguintes
drogas na vida: maconha, cocaína e solventes.
Foram tomadas como variáveis independentes coabitação do(a) adolescente com pai
e/ou mãe e hábito de fumar de um ou do outro.
Realizaram-se análises univariada e bivariada (teste qui-quadrado [c2]) e, a
seguir, foram calculadas as razões de chances (odds ratio [OR]), com intervalo
de confiança (IC) de 95% para cada um dos desfechos examinados em relação a
cada uma das variáveis independentes. Foram consideradas estatisticamente
significativas as associações cujo valor de p foi < 0,05. Essa análise foi
ajustada para os seguintes possíveis fatores de confusão: idade, nível
socioeconômico e escolaridade materna.
Considerações éticas
O questionário era auto-aplicado, sem dados de identificação pessoal, e era
depositado por quem o respondera, logo após a entrevista, em uma urna lacrada,
o que garantia o sigilo das informações. O projeto foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa.
Resultados
Na amostra estudada, identificaram-se uso continuado de cigarros em 157
sujeitos (16,6%); uso num período da vida entre 408 pessoas (43%); uso recente
de álcool para 410 indivíduos (43,3%); uso recente de maconha, cocaína ou
solventes entre 86 adolescentes (9%); e uso na vida de maconha, cocaína ou
solventes entre 127 adolescentes (13,8%).
A razão entre uso num período da vida e uso continuado de cigarros é de 2,6:1,
indicando que de cada 2,6 jovens que experimentam cigarros, um permanece em uso
continuado, pelo menos na faixa etária estudada.
A análise dos desfechosuso de bebidas alcoólicas, uso de cigarros e consumo de
qualquer das drogas ilícitas, todos no mês que antecedeu à entrevista, segundo
a coabitação ou não com pai e/ou mãe, leva aos dados apresentados na Tabela_1.
O comportamento dos desfechos não foi homogêneo entre as substâncias em estudo.
O risco de consumo de bebidas alcoólicas parece não estar associado à presença
ou não de pai e/ou mãe nos domicílios. Ao considerar como referência a
coabitação do(a) adolescente, tanto com o pai quanto com a mãe, a OR para
coabitação com apenas pai ou mãe é de 1,23 (IC 95%: 0,83 a 1,83), e para não-
coabitação com nenhum deles é de 1,11 (IC 95%: 0,65 a 1,87).
A OR de uso de cigarros parece aumentar quando pai e/ou mãe não estão presentes
nos domicílios. Ao adotar como referência a coabitação do(a) adolescente, tanto
com o pai quanto com a mãe, a OR para coabitação com apenas pai ou mãe é de
2,17 (IC 95%: 1,38 a 3,4), e para não-coabitação é de 2,52 (IC 95%: 1,3 a
4,88).
A chance de surgir o relato de consumo de maconha, cocaína ou solventes parece
não apresentar variação quanto à presença de pai e mãe nos domicílios, ou de
apenas um dos dois. A diferença mais significativa se expressou quando o(a)
adolescente não coabitava com nenhum dos dois. Tendo como referência a
coabitação do(a) adolescente, tanto com o pai quanto a com mãe, a OR para
coabitação com apenas pai ou mãe é de 1,06 (IC: 0,63 a 1,79), e para não-
coabitação é de 2,01 (IC: 0,99 a 4,11).
A análise dos mesmos desfechos, segundo o hábito de fumar ou não de pai e/ou
mãe do(a) adolescente, leva aos dados apresentados na Tabela_2.
Para bebidas alcoólicas parece não ter havido associação significativa entre o
consumo da população investigada e o tabagismo paterno ou materno. Há maior
risco de ocorrência do comportamento consumo de substâncias ilícitas quando os
sujeitos têm pais e mães fumantes, e aumento mais discreto quando apenas o pai
ou a mãe são fumantes. O efeito mais significativo se apresenta quando se
analisa o risco de ocorrência de tabagismo em relação ao hábito de fumar de
pais ou mães.
Ao considerar como referência a condição de pai e mãe não-fumantes, a chance de
ocorrência de tabagismo entre adolescentes com pai ou mãe fumantes é de 1,99
(IC 95%: 1,28 a 3,09), e para ambos fumantes é de 3,92 (IC 95%: 2,29 a 6,71)
vezes maior em relação ao grupo de comparação.
A chance de surgir o relato de consumo de maconha, cocaína ou solventes parece
acompanhar a variação do risco de ocorrência de tabagismo, porém com menor
amplitude. Tendo como referência a condição de pai e mãe não-fumantes, a chance
de ocorrência de consumo de qualquer das drogas ilícitas estudadas, quando pai
ou mãe são fumantes, é de 1,87 (IC 95%: 1,15 a 3,05), e para ambos fumantes é
de 2,04 (IC 95%: 0,97 a 4,29) (Tabela_2).
Não foi observada interação entre o hábito de fumar de pais e/ou mães e
coabitação com pais e/ou mães.
Discussão
Neste estudo verificou-se que a presença de pai, mãe ou ambos no domicílio
parece ter efeito protetor contra o uso de tabaco e, possivelmente, tenha o
mesmo efeito quanto às drogas ilícitas, conquanto não houve associação com o
uso de álcool. A baixa ocorrência do desfecho uso de drogas ilícitas faz com
que o estudo apresente menor poder estatístico na avaliação dos fatores
associados a esse desfecho.
No tocante ao tabagismo dos pais, percebe-se um risco significativamente
elevado de tabagismo e de uso de drogas ilícitas por adolescentes quando tanto
o pai quanto a mãe são fumantes. O risco se reduz quando apenas o pai ou a mãe
fumam. O hábito de fumar de pais e mães parece não ter tido qualquer relação
com o uso de álcool por adolescentes neste estudo.
A família e a cultura transmitem sistemas de crenças e expectativas sobre os
papéis sociais, sobre o modo de vida de homens e mulheres, sobre as relações
entre os seres humanos e também sobre usos e costumes, como em relação às SPAs.
Ao analisarmos o papel da família na transmissão de pautas de comportamento,
devemos considerar o permanente atravessamento da cultura contemporânea e seus
valores oscilantes. Parece que estamos vivendo o início de uma nova era, com
sua dinâmica de mutações globais, que fragmenta os vínculos de identidade e
gera isolamentos (Morin, 1997). Constatar o efeito protetor da presença
parental pode servir para reduzir os temores ligados a idéias de fragmentação
ou desconstituição dos grupos familiares.
Até algumas décadas atrás, a família poderia ser facilmente compreendida como
um grupo de pessoas que interagem em um todo funcional, um sistema que
consistia em uma rede completa de parentesco de pelo menos três gerações, em
que as interações tendiam a ser recíprocas e padronizadas. Na
contemporaneidade, esse conceito de família precisa ser ampliado para incluir
as novas constelações familiares como casamentos sem filhos, casamentos que
agrupam crianças de diferentes famílias, lares uniparentais, entre outros. Já
se identifica na literatura número expressivo de produções em torno do tema
"famílias reconstituídas", definidas pela sobreposição de constituições e
rupturas de uniões conjugais entre seus membros (Minuchin, 1982; Falicov, 1991;
Gonzáles, 1994; Feres-Carneiro, 1999; Wagner, 2002).
A família contemporânea está imersa nas revoluções da informação e da
tecnologia, que afetam diariamente a vida dos indivíduos e dos grupos, por meio
da televisão e do computador, e invadem o mundo perceptivo e os sistemas de
crenças, com padrões de comportamento e apelo ao consumo (Horta, 2003).
Sabemos que a admiração filial induz a criança a imitar suas figuras parentais.
Num espectro ampliado de estímulos e referências, poder-se-ia esperar que a
presença física de pais e mães no domicílio tivesse menor efeito. Este estudo
evidencia o efeito protetor que se exerce no presente.
A correlação estabelecida entre o hábito de fumar de adolescentes e o de pais
e/ou mães incrementa a expectativa de que esse comportamento possa ser
aprendido em casa, mais do que no espaço público. Seria, pelo menos em parte,
uma tendência à repetição de comportamentos ou vivências. Faz parte dos ciclos
da aprendizagem informal. Por isso mesmo a formação de consumidores e
consumidoras de SPAs representa a formação de algumas gerações de consumidoras
e consumidores desse produto. A indústria tabagista sabe disso (Costa e Silva e
Koifman, 1998).
Os dados apresentados nas Tabelas_1 e 2 não permitem sustentar ou propor
hipóteses de esvaziamento das funções parentais na pós-modernidade, nem idéias
de culpabilização de mães e pais pelo uso de SPAs que seus filhos ou filhas
venham a fazer. O padrão de interação entre as variáveis estudadas e os
desfechos escolhidos em relação ao consumo de SPAs pelos adolescentes não é
uniforme entre os grupos de substâncias. As famílias parecem manter, na
atualidade, suas funções e as dificuldades inerentes aos papéis de proteção,
preparo e iniciação das populações mais jovens em suas diversas configurações e
com seus hábitos e costumes (Horta, 2003; Wagner, 2002).
Considerou-se a importância do hábito de fumar de modo independente da
configuração familiar no domicílio para que se contemplasse também o exemplo e
outros meios pelos quais os hábitos de pais e mães venham a ser reproduzidos ou
evitados por filhas e filhos, sejam eles avaliados como negativos ou positivos.
Assim, a influência de pai e/ou mãe não se restringe necessariamente à moradia
conjunta.
Ao considerar a moradia conjunta, a exposição ambiental ao fumo sem que a
própria pessoa exerça a atitude de fumar deve ser lembrada aqui. O fumo passivo
seria uma forma adicional de reprodução do comportamento entre gerações.
Carvalho e Pereira (2002) estudaram 1.104 crianças menores de 5 anos de idade.
A morbidade respiratória foi maior entre aquelas expostas ao fumo ambiental do
que entre as não-expostas (82% vs. 74%). A análise de regressão logística
mostrou que as queixas referentes ao trato respiratório inferior se associaram
com maior probabilidade a tabagismos materno e paterno, com chances quase
iguais e, só depois, ao mofo e aos antecedentes de doenças respiratórias. Isso
corresponde a dizer que crianças expostas ao hábito de fumar de pessoas adultas
já são fumantes na modalidade passiva. Aqui se trata não apenas da transmissão
de pauta de comportamentos, mas da iniciação propriamente dita no consumo de
tabaco.
Os dados deste estudo permitem descortinar a complexidade da determinação de
comportamentos relacionados às SPAs por adolescentes, não se podendo
estabelecer uma linearidade causal. Os efeitos do comportamento e da presença
de pais e mães sobre o desenvolvimento e o comportamento de suas proles também
parecem relacionados a uma trama complexa de variáveis, em sua maioria não
examinada neste artigo. Essa complexidade pode estar associada à flexibilidade
dos sistemas familiares.
Conclusão
A primeira das considerações finais deste estudo é ressaltar a importância de
estarmos atentos para que dados semelhantes não ganhem significado distorcido.
Os estudos apresentados mostram a força que o padrão familiar de consumo de
substâncias possui na perpetuação do uso de tabaco e de drogas, mas também
aponta a família em seu poder como transmissora de comportamentos, quer isso
contribua para a redução e/ou para a expansão do hábito de fumar.
Os estudos mostram a necessidade de estarmos, como profissionais, com a atenção
voltada para as mudanças sócio-históricas nas quais estamos inseridos, sempre
dedicados ao exame de aspectos qualitativos e subjetivos dos fenômenos, para
que possamos nos deparar com contradições, como as que colocam pais e mães,
simultaneamente, nos dois pólos da proteção e da exposição ao risco de consumo
de SPAs por suas proles.
A constatação de que o tabagismo paterno ou materno aumenta a chance de a sua
prole desenvolver o hábito de fumar se agrega ao conjunto de investigações que
buscam demonstrar o fenômeno do "fumo passivo".
Padrões de configurações familiar e dos domicílios parecem variáveis relevantes
no planejamento de ações de prevenção ao uso de droga, incentivo à vida
saudável e, também, para a clínica dos problemas eventualmente decorrentes do
uso de SPAs.