Saúde mental e automação: a propósito de um estudo de caso no setor ferroviário
A área de saúde mental no trabalho (SMT) em um mundo em transformação
As transformações organizacionais e técnicas do trabalho vêm se acelerando e
assumindo configurações novas não apenas em decorrência do progresso científico
e dos avanços tecnológicos. No bojo da globalização intensificada nas últimas
décadas, poderosas forças econômicas e políticas presidem a estas
transformações e ao modo diferenciado pelo qual estão tendo lugar nas várias
regiões e países do mundo. A inter-relação trabalho/saúde acompanha estas
mudanças, transformando-se também. Os processos que atingem a saúde mental
ocupam um importante espaço dentro desta dinâmica.
As repercussões do trabalho na vida mental, embora estudadas há muito tempo,
apenas em época relativamente recente passaram a receber alguma atenção na
formação dos profissionais de saúde e nas reuniões científicas. Pesquisas sobre
o assunto chegaram a ter resultados que foram considerados propriedade e
segredo de empresas que as encomendaram nas primeiras décadas deste século.
Nunca foram publicadas, talvez pelo temor dos reflexos sociais destas
descobertas (Collins, 1969).
A importância das interações entre os processos de transformação técnica e os
processos sociais foi objeto de um dos últimos escritos do filósofo, médico e
sociólogo Norbert Elias, um importante pensador do nosso tempo (Elias, l995). O
autor destaca a imprevisibilidade das dinâmicas sociais mediadas pelas
descobertas científicas que geram as tecnologias incorporadas à indústria, aos
transportes, às comunicações, aos serviços em geral e ao cotidiano humano. Na
análise de Elias, a tecnização (technization) repercute na civilização,
atingindo de modo especial também os diferentes territórios e padrões da vida
relacional. Os modos de viver e todas as interações humanas são atingidos por
estas transformações. Incluem-se, neste caso, desde as formas de produção de
bens materiais e de serviços, até as relações humanas nos mais diferentes
âmbitos - do internacional ao comunitário -, alcançando os ambientes de
trabalho e a família. Os indivíduos e os vínculos afetivos também estão
envolvidos neste processo de mudanças profundas. O modo como indivíduos e
mentalidades se alteram nestes processos nem sempre corresponde a avanços de
civilização. Para Elias (Elias, 1995), o conceito de civilização é tomado como
equivalente a processo social direcionado para o pólo do bem e da vida, e o
movimento das transformações pode conduzir tanto a aperfeiçoamentos de
civilização, quanto aos retrocessos que o autor denomina descivilização
(decivilization).
O trabalho tem sido identificado como um importante mediador entre diferentes
instâncias sociais e a saúde humana, em processos que podem repercutir
favorecendo ou prejudicando coletividades e os atores individuais de quaisquer
tipos de atividade produtiva. O trabalho, portanto, pode ser fonte de
fortalecimento ou de desgaste para a saúde geral.
Refletindo em correlação ao pensamento de Elias (1995), poderíamos dizer que,
no conjunto das transformações materiais e sociais que envolvem os seres
humanos, a partir do mundo do trabalho, é possível encontrar tendências ora
civilizatórias, ora descivilizatórias. Utilizamos aqui a expressão "a
partir do mundo do trabalho" porque, além do que ocorre no ambiente onde
se realizam as atividades, é necessário considerar a vida laboral em seus
reflexos e desdobramentos no cotidiano extratrabalho, desdobramentos estes que
apresentam características especiais quando o trabalho é efetivado dentro dos
novos paradigmas organizacionais que prevalecem na atualidade.
A análise das situações de trabalho constitui o foco central nas pesquisas de
campo em SMT. A organização do trabalho, que inclui, em seus múltiplos
aspectos, desde as formas de gestão até a organização temporal do trabalho e as
relações inter-hierárquicas e interpessoais, vem ocupando um lugar central nos
estudos em que se busca entender as vinculações entre saúde mental e trabalho,
para, assim, identificar perspectivas preventivas. As situações de trabalho,
compreendem, além dos aspectos organizacionais, os aspectos do ambiente físico,
químico e biológico, que tradicionalmente eram os únicos estudados em Medicina
do Trabalho; analisam ainda as múltiplas interações existentes, por um lado,
entre os componentes internos destas situações de trabalho e, pelo outro, as
conexões destes componentes ao contexto sócio-político e econômico. A dimensão
cultural vem recebendo grande atenção nestes estudos, nos quais a antropologia
do trabalho examina valores, atitudes, crenças e hábitos, que permitem
compreender, muitas vezes, o sentido assumido pelo trabalho para aqueles que o
realizam.Este sentido é a chave para um outro entendimento, que interessa
simultaneamente aos especialistas da saúde mental e aos administradores, pois
tanto a qualidade da vida mental, quanto a adesão criativa ao trabalho irão
depender do mesmo.
Os estudos referentes à Saúde Mental no Trabalho exigem sempre que se considere
o contexto político e sócio-econômico. Por conseguinte, nas pesquisas de campo,
torna-se imprescindível investigar as interações entre as condições gerais de
vida e as situações de trabalho.
Correntes teóricas
As repercussões do trabalho sobre a saúde mental têm sido estudadas em
diferentes abordagens, com base em correntes teóricas originadas em diferentes
disciplinas. Podemos, então, distinguir três correntes:
a) A que se fundamentou em estudos psicofisiológicos, centralizando-se no
conceito de estresse (work-stress). Sob esta perspectiva, foram realizadas
múltiplas pesquisas pioneiras dentro da temática, a qual, até hoje, continua
oferecendo embasamentos para estudos epidemiológicos.
b) A corrente dos pesquisadores que integraram o referencial psicanalítico à
análise das vivências humanas conectadas ao trabalho. No Brasil, os estudos
mais divulgados desta corrente são os do grupo francês, que desenvolve
atualmente o campo teórico que seus integrantes denominaram Psicodinâmica do
Trabalho, o qual emergiu de estudos anteriores de Psicopatologia do Trabalho,
realizados por esta mesma equipe, para a qual o conceito de sofrimento mental
havia sido formulado por Dejours, desde 1980 (Dejours, 1993).
c) As Ciências Sociais assumem centralidade nos enfoques de outros
pesquisadores, para os quais os agravos mentais originados pelo trabalho passam
pela dinâmica da dominação, precisando ser analisados sob a ótica das relações
de poder. Tais agravos seriam, portanto, o resultado de perdas, que
configurariam um desgaste mental. Estas perdas podem ser concretas, potenciais
ou simbólicas. Podem ser de natureza biológica, psíquica, ou social, e
geralmente abrangem articuladamente estas três instâncias, mesmo que a
repercussão orgânica seja menos visível a curto prazo.
Tomemos o efeito causado à identidade social e pessoal decorrente de um
acidente ou patologia originada no trabalho para exemplificar a complexidade do
desgaste, que é ao mesmo tempo psicológico, físico e social. Por outro lado,
existe a constatação de que os processos em que se constroem os danos mentais
muitas vezes abrangem as três instâncias. Por exemplo, a fisiologia e o
psiquismo são concomitantemente envolvidos por experiências em que se acumula a
fadiga ou em que surgem emoções penosas, desdobrando-se estas alterações em
repercussões sociais - retraimento social, conflito ou alienação sócio-
política, por exemplo. Deste modo, o conceito de desgaste pode assumir o
caráter de uma opção conceitual integradora (Seligmann-Silva, 1994).
Vale mencionar que as três correntes citadas têm apresentado diferentes
desdobramentos. Não obstante, podem ser estabelecidas convergências entre as
mesmas, especialmente na medida em que podem ser percebidas correspondências
entre suas descobertas de pesquisa. É o que acontece à identificação não só da
importância psicopatogênica de certas constelações situacionais e interações,
como também das repercussões clínicas e sociais das mesmas. Encontramos, assim,
a descrição de agravos cujas características clínicas são iguais ou muito
semelhantes, embora venham recebendo denominações distintas e aderidas aos
respectivos quadros teóricos de referência (Seligmann-Silva, 1995a).
Na transição entre saúde e doença, pode-se reconhecer um estágio de mal-estar e
de tensão que ainda não pode ser considerado patologia, mas que, não sendo
encontradas alternativas para superar a dinâmica biopsicossocial que origina
tal perturbação, poderá vir a assumir configuração de quadro mórbido. Este
estágio, nos estudos iniciais da psicofisiologia do trabalho, era simplesmente
englobado pela temática referente à fadiga. A complexidade desta etapa,
entretanto, segundo estudos posteriores, transcende os fenômenos da fadiga e
ela tem sido estudada por diferentes pesquisadores, que lhe têm conferido
denominações diversas: sofrimento, estresse leve ou simplesmente estresse. Em
Saúde Coletiva, o conhecimento deste estágio de transição assume,
evidentemente, enorme importância para as práticas preventivas. O desafio
preventivo torna-se tanto maior à proporção que passa a exigir um diálogo cada
vez mais permanente entre os profissionais da área de saúde e os responsáveis
pelo planejamento e pela administração no mundo do trabalho.
É interessante assinalar a aproximação que vem se fazendo entre a Sociologia do
Trabalho e a SMT, observando que essa aproximação parece carregar consigo um
importante estímulo para aumentar a interlocução entre as três correntes
mencionadas. Isto porque os estudos da Sociologia do Trabalho vêm tomando rumos
que integram:
a) aspectos de psicologia cognitiva - presentes também nos estudos mais atuais
da "corrente do estresse";
b) preocupações com o papel da dimensão psicoafetiva e da intersubjetividade na
mobilização subjetiva da inteligência e da cooperação criativa nas equipes de
trabalho, enfocando assim processos anteriormente analisados principalmente
pela corrente psicodinâmica;
c) análises da dominação nos contextos de trabalho e das formas sutis que esta
dominação assume na modernidade dos sistemas computadorizados e automatizados.
Tais estudos articulam-se, evidentemente, com a corrente que encontrou no
materialismo histórico o referencial teórico para o estudo do desgaste.
Outras convergências podem ser assinaladas atualmente. Assim, a Antropologia do
Trabalho, a Psicologia Social e a Lingüística trazem riquíssimas contribuições
à SMT, especialmente na medida em que permitem ampliar o entendimento de
aspectos tais como a formação de valores e significados relativos ao trabalho,
nas várias culturas e subculturas. Da mesma forma, determinados estudos de
Ética e de Filosofia Política se aproximam da SMT ao analisarem as tendências
atuais da ética no trabalho. Por outro lado, na área da Educação, estudos que
também examinam os riscos e equívocos do reducionismo tecnicista observado no
ensino formal passam a dialogar com a SMT (Ferretti et al., 1994; Bruno, 1996).
O desafio epistemológico que nasce destas novas aproximações nos conduz a
identificar a necessidade de um campo transdisciplinar para o prosseguimento
destes estudos. Acreditamos, entretanto, que a construção deste campo já foi
iniciada e pode ser reconhecida quando examinamos o modo como investigadores de
diferentes áreas do conhecimento começam a construir uma linguagem comum em
atividades de pesquisa e em reuniões científicas voltadas para a temática
(Matrajt, l994; Dejours, 1995; Seligmann-Silva, 1994).
Algumas descobertas a considerar em saúde mental e no trabalho sofisticado
O trabalho diante de telas de vídeo tem sido amplamente estudado, bem como as
atividades em sistemas automatizados tradicionais - aqueles em que o empregado
é levado a assumir uma posição de mero vigilante do sistema, sem interação
inteligente com o mesmo. Seria impossível discorrer aqui sobre tudo o que já
foi estudado a respeito do cansaço mental, das vivências de monotonia, da
sonolência e de tantos outros aspectos bastante divulgados em relação a estas
ocupações. O esvaziamento de conteúdo é sempre vivenciado como empobrecedor e
desqualificante nesta modalidade de automatização. Contudo, quanto maior o grau
de controle sobre o operador - derivado, às vezes, de dispositivos inseridos no
próprio sistema técnico -, maior o mal-estar, que pode assumir a configuração
de vivências de insegurança ou mesmo de perseguição.
Procuraremos a seguir, examinar sinteticamente algumas das descobertas
relevantes que, na atualidade, configuram novos desafios aos pesquisadores da
SMT e de áreas correlatas. Algumas delas apontam para novos enfoques do
trabalho computadorizado e da automação.
As_defesas_psicológicas_socialmente_articuladas
O estudo destas defesas foi consideravelmente desenvolvido por Dejours e outros
pesquisadores do grupo francês da Psicopatologia do Trabalho, desdobrando-se
atualmente nas pesquisas que eles desenvolvem na área que passaram a denominar
Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1993).
Os pactos e modos coletivos de negar, reprimir ou deslocar sentimentos, tais
como medo e repugnância, situam-se nesta abordagem.
As implicações que emergem destes estudos para a saúde geral, para a saúde
mental e para a própria segurança do trabalho foram bastante analisadas pelo
grupo francês e por pesquisadores de outros países, que assumiram as propostas
conceituais de tais abordagens. Assim, os poderosos mecanismos defensivos
coletivos - que, segundo Dejours, assumem o feitio de uma verdadeira ideologia
- atuam ao lado das defesas psicológicas individuais, para tornar suportável o
trabalho perigoso e, de maneira mais geral, o trabalho gerador de sofrimento
psíquico. Ao bloquearem a percepção crítica dos aspectos potencialmente
agressivos da situação de trabalho, estes mecanismos colocam também obstáculos
nos caminhos para a organização de enfrentamentos conscientes.
Fenômenos_estudados_nas_dinâmicas_intersubjetivas_e_interativas_das_situações
de_trabalho_sofisticado
Trata-se aqui de descobertas decorrentes da convergência de estudos de
sociologia, assim como de psicologia social e do trabalho, as quais estão
revelando o profundo inter-relacionamento de questões que passaram a interessar
concomitantemente cientistas sociais, profissionais de saúde e administradores
de empresas. Estas questões dizem respeito à qualificação e à construção de
competências para o trabalho variado e complexo, em formas nas quais se
desenvolva cooperação e criatividade. Trata-se, portanto, de saber como o
trabalho pode ser feito de um modo ao mesmo tempo inteligente e harmonicamente
interativo. Envolve, por um lado a dimensão subjetiva,na qual sentimentos e
inteligência de cada indivíduo interatuam, e, por outro, as comunicações e
interações entre sujeitos.
Zuboff (1988) coloca a comunicação interpessoal como aspecto fundamental para a
construção de um sentido que será percebido pelo conjunto e por cada um dos
integrantes do grupo de trabalho. A autora considera a importância da dinâmica
do reconhecimento e da dimensão ética dentro deste processo. O objeto destas
pesquisas de Zuboff não é a saúde mental, mas, sim, a informatização em
vinculação a um conjunto de questões referentes à gestão, à sociabilidade e à
qualidade da comunicação existentes em empresas que haviam implantado sistemas
informatizados, alguns dos quais acompanhados por automação industrial. As
colocações desta autora coincidem, entretanto, com as que Dejours veio a
publicar nos anos seguintes (Dejours, 1993, 1995; Dejours et al., 1994), em
estudos que não estavam centrados na questão da informatização, e, sim, na da
mobilização subjetiva nas situações de trabalho.
Conteúdos_psicossociais_da_qualificação
A idéia de que a qualificação desejável para a atividade em sistemas
informatizados depende apenas de ampliação de conhecimentos teóricos e de
formação técnica está ultrapassada. Sabemos hoje que as habilidades
intelectuais necessárias para que a informatização seja utilizada em todos os
seus potenciais exige não apenas aprendizagem de teorias e de técnicas, mas
está vinculada a uma sociabilidade na qual se elaborem comunicações
significativas. A qualificação em sua articulação à construção do sentido só é
possível em contextos de trabalho nos quais a dimensão ética esteja assegurada
simultaneamente à preservação dos espaços de relacionamento significativo e de
autonomia do pensamento (Zuboff, l988; Böhle & Milkau, 1988; Lojkine,
1995).
A tese de que elevação dos níveis de qualificação corresponderia a menor
desgaste e, portanto, a melhores condições de saúde mental prevaleceu por
bastante tempo, tendo, no entanto, passado a ser contestada com base em
pesquisas realizadas na Alemanha. Marstedt (1994) realiza a revisão dos estudos
que descrevem distúrbios psicológicos e relacionais em áreas automatizadas. O
autor analisa os aspectos organizacionais existentes nas empresas estudadas e
identifica conceitos e práticas de racionalização que são responsáveis pelo
aumento das cargas mentais de trabalho, condicionando riscos para a saúde. Tais
sobrecargas diriam respeito principalmente à complexidade das atividades, à
exigência de polivalência, a elevadíssimas cargas psicoafetivas (autocontrole
emocional exacerbado; exigências de perfeição no desempenho; alto nível de
responsabilidade; insegurança quanto à manutenção do emprego e às perspectivas
de carreira), e, a múltiplos tipos de pressão temporal (prazos, ritmos, etc.).
Marstedt demonstra, ainda, que a política de saúde ocupacional precisa estar
atenta para as implicações perversas dos novos conceitos de racionalização
adotados pelas empresas. Além de mostrar outros aspectos relevantes,o autor
examina as tensões resultantes da percepção, pelos assalariados qualificados,
das incertezas presentes no âmbito macroeconômico e nas competições entre
empresas. No que se refere a esta incerteza, Mattoso (1995) realizou análise
semelhante na realidade brasileira.
Identidade_no_"trabalho_moderno"._O_estudo_da_identidade_em_suas
vinculações_ao_trabalho_integra_diferentes_perspectivas
Em primeiro lugar, deve ser lembrado que o trabalho é um contexto formador da
identidade em processo. É o reconhecimento que faz a articulação entre a
construção da identidade e os processos sociais (Sainsaulieu, 1988), sendo
também aspecto essencial na construção da identidade social e, ao mesmo tempo,
nos processos de saúde mental. A conexão entre identidade e reconhecimento tem
proporcionado o entendimento de importantes aspectos da psicopatogênese em
situações de trabalho, quando a falta de reconhecimento deflagra frustrações ou
vivências de autodesvalorização, podendo ainda mobilizar sentimentos como raiva
ou o medo de perder o emprego.
Em segundo lugar, devemos considerar certos fenômenos enfocados pela
antropologia do trabalho - como o da antropomorfização do computador, dos robôs
e de outros equipamentos sofisticados, que apresentam impactos para a
identidade e, por conseguinte, para o psiquismo. Trata-se de repercussões que
geralmente atingem a sociabilidade. A situação mais freqüente é aquela em que o
sistema - ou mesmo o computador - passa a ser percebido como um "ser"
perfeito e poderoso. Um ser que pode despertar vivências de inferiorização e
dependência, levando à passividade. Em outros casos, a máquina inteligente pode
tornar-se modelo de comportamento racional, em que os sentimentos passam a ser
vistos como "erros". Isolamento social ou conflitos interpessoais -
freqüentemente na família - podem ser originados pela irritação com a
"lentidão" ou "ineficácia" das pessoas, comparativamente à
máquina ou ao sistema "perfeitos" (Rebecchi, 1990; Rocha, 1996).
Em terceiro lugar, vale assinalar, ainda, a íntima e complexa conexão existente
entre identidade, subjetividade e as dinâmicas que atuam nos processos
psicossomáticos e psicopatológicos. Tendo sido bem analisada em diferentes
perspectivas por vários autores, dentre os quais podemos destacar Marty (1976,
l980), esta conexão abre-se atualmente à investigações em SMT, no momento em
que as transformações no mundo do trabalho derivam para intensas repercussões
nas identidades. Especialmente os estudos que estão revelando e esclarecendo
mediações antes desconhecidas na inter-relação trabalho/saúde mental - como a
aceleração mental, as atividades subjetivantes, a alexitimia, emergentes nos
modernos contextos de trabalho - trazem novas perspectivas para a compreensão
da gênese de problemas do âmbito da saúde coletiva, como a escalada de mal-
estares e de transformações da sociabilidade que atingem o cotidiano daqueles
que exercem suas ocupações em contextos computadorizados.
As_pressões_organizacionais_voltadas_para_a excelência_e_seus_impactos_na
subjetividade_e_nas_relações_interpessoais
Estas pressões estão geralmente associadas ao processo de modernização em que
vêm sendo implantadas as novas tecnologias de base microeletrônica. As
repercussões das mesmas em termos de desestruturação subjetiva e risco para a
saúde mental são de tal monta e complexidade, que não será possível tratar do
assunto aqui, o qual já mereceu amplos estudos de outros autores e também da
nossa parte (Aubert & Gaulejac, 1991; Marstedt, 1994; Medeiros, 1995;
Seligmann-Silva, 1995b).
A automação ferroviária: observações a partir de um estudo de caso
Os estudos brasileiros que dizem respeito à Saúde Mental no Trabalho em áreas
onde os computadores e a automação estão penetrando começaram a desenvolver-se
nos últimos anos, especialmente em atividades de processamento de dados e de
automação industrial (Fernandes, 1992; Rocha, l989, l996; Fischer, l990;
Tittoni, 1994). Estudos centrados no trabalho bancário também enfocaram o
assunto (Silva Filho, 1994; Jinkings, 1995; Seligmann-Silva et al., 1985), mas
existe uma outra área onde a automação está avançando - a dos transportes.
A modernização técnica dos serviços de transporte coletivo suscita uma premente
necessidade de obter maior conhecimento sobre as repercussões da introdução de
mudanças tecnológicas e organizacionais para a saúde mental dos operadores
destes sistemas. Tal assunto incorpora a confiabilidade em um sistema cuja
segurança diz respeito à vida das extensas populações que são usuárias destes
transportes.
Estudos referidos a sistemas de transporte coletivo que estão absorvendo novas
tecnologias também passaram a ocorrer no Brasil ao longo da última década.
Podem ser assinalados, por exemplo, diferentes pesquisas voltadas para
operadores de trem metroviário nos Estados de S. Paulo e Rio de Janeiro
(Seligmann-Silva et al., 1986; Jardim, 1994).
Com base em uma pesquisa realizada em uma empresa ferroviária brasileira, a
qual havia passado recentemente pela implantação de um sistema operacional
automatizado, apresentaremos a seguir algumas observações concernentes ao tema
da inter-relação automação/saúde mental.
A_pesquisa
A investigação foi em grande parte estimulada pela atual problematização da
escalada de tecnologias avançadas em contextos sócio-políticos e empresariais,
marcados por dependência econômica e por culturas políticas vinculadas a
experiências históricas de dominação prolongada.
Ao formularmos o projeto da pesquisa, em 1988, alguns pesquisadores de outros
países apontavam para os riscos humanos envolvidos nas transferências
tecnológicas que se faziam de nações de economia central para a Índia e países
da América Latina. Nestes, as condições gerais de vida ainda fragilizavam o
tecido social, e, ao mesmo tempo, as práticas de gestão e organização do
trabalho adotadas pelas empresas não haviam ainda superado o autoritarismo e o
taylorismo.
Por outro lado, Foret, em l987, havia publicado uma ampla revisão a respeito
dos transtornos psicológicos e psicofisiológicos verificados em condutores de
trem de diferentes países do mundo, identificando a importância dos prejuízos à
saúde decorrentes da estrutura temporal das atividades nesta ocupação - regime
de turnos alternados, trabalho noturno, jornadas prolongadas, entre outros
aspectos examinados por ele. O autor, entre outras conclusões formuladas
valendo-se desta revisão, assinalava a constatação da ausência de estudos
referentes à psicopatologia conectada a estas stiuações de trabalho na condução
de trens.
Deste modo, nosso projeto surgiu motivado pelo interesse em investigar de que
modo, no Brasil, a modernização do sistema ferroviário estaria repercutindo
sobre a saúde mental dos operadores deste sistema, pretendendo detectar,
conjuntamente, repercussões psicossociais articuladas a outros aspectos da
situação de trabalho - como o trabalho em turnos alternados -, e também
identificar eventuais implicações das situações estudadas para a segurança do
sistema ferroviário. Consideramos, ainda, o interesse em verificar em que
medida os problemas de saúde mental eram percebidos e alvo de atenção por parte
do serviço de saúde da própria empresa. Neste artigo, procuraremos nos centrar
nas repercussões do tipo de modernização que foi implantado.
Escolhemos duas categorias de profissionais para o estudo:
a) Os controladores, que são os técnicos que trabalham em sala do centro de
controle operacional (CCO), acionando, acompanhando e orientando a circulação
dos trens através do sistema computadorizado que conecta e integra o complexo
ferroviário (linhas, trens, estações e energização), e que simultaneamente
comunicam-se por meio de rádio, telefone, ou até mesmo - para algumas estações
- por telecomandos. A escolha de tais profissionais ocorreu por sabermos de sua
posição no coração do sistema operativo, tendo responsabilidades imensas com os
equipamentos e com as vidas de passageiros e de outros funcionários, inclusive
dos maquinistas, associando-se a isso tudo um trabalho dominantemente mental,
realizado em regime de turnos alternados.
b) Os operadores de trem (maquinistas), que, estando em interação direta com os
novos dispositivos técnicos, também tiveram, segundo nossa suposição inicial,
confirmada pelo estudo bibliográfico (Bouvier, 1985), aumentadas suas cargas
mentais de trabalho, além de, com a instalação dos novos equipamentos, terem
passado a ter a estruturação de suas atividades profundamente alterada. Por
outro lado, sabíamos que enfrentavam jornadas de trabalho nem sempre regulares,
trabalhando também em turnos alternados.
As atividades desenvolvidas ao longo da pesquisa
Optamos por uma metodologia qualitativa. A pesquisa de campo desenvolveu-se ao
longo de três etapas. Apresentamos a seguir sucintamente as principais
atividades e procedimentos adotados:
a) Primeira etapa: exploração do campo e construção dos roteiros de entrevista
para maquinistas e controladores. Nesta fase, foram realizadas também
entrevistas com especialistas que haviam participado do planejamento e
implantação do sistema automatizado.
b) Segunda etapa: período do trabalho de campo, quando foram registradas as
observações realizadas em sala do CCO (Centro de Controle Operacional) e feitas
entrevistas semi-estruturadas, grupais e individuais. Foram ainda realizadas
observações durante viagens em cabines de trem, em diferentes percursos,
ocasiões durante as quais ocorreram também entrevistas informais.
Além das entrevistas com controladores e maquinistas, também foram realizadas
entrevistas individuais com gerentes de diferentes posições na hierarquia da
área operacional, com um inspetor da área operativa e, também, entrevistas
informais no Serviço Especial de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), com
diferentes profissionais. Destacamos a importância de três entrevistas feitas
com supervisores do CCO.
Utilizamos um caderno de campo para registro de observações e contatos
informais durante nossa permanência nos vários ambientes da empresa em que a
pesquisa de campo se desenvolveu.
c) Terceira etapa: organização do material levantado, seguido de análise do
mesmo.
Deixou de ocorrer a quarta etapa, que deveria consistir na devolução dos
resultados aos pesquisados, em reuniões destinadas também à validação final dos
achados e posterior incorporação ao relatório final dos comentários e adendos
resultantes. A reestruturação e desmembramento da empresa, que coincidiram com
o final da pesquisa, foi uma das principais razões. Assim, apenas foi possível
apresentar resultados a alguns dos entrevistados, antes da elaboração do
relatório final.
No conjunto, a segunda e a terceira etapa se desenvolveram a partir do segundo
semestre de 1990 até o final de 1993, o que permitiu acompanhar diferentes
mudanças organizacionais.
A ótica da empresa diante do desgaste humano
As entrevistas que realizamos com especialistas e técnicos que haviam
participado do planejamento e execução das inovações revelaram que a questão da
segurança sempre foi uma preocupação importante. Entretanto, a vinculação da
segurança a aspectos de saúde psicossocial não transpareceu em nenhum dos
depoimentos registrados.
As respostas de três gerentes (engenheiros) abordaram aspectos de
"capacidade mental", em termos psicológicos, mas sem considerar que
exigências elevadas colocadas ao trabalho mental poderiam conduzir a distúrbios
da saúde, que, por sua vez, teriam repercussão negativa para a segurança. Ficou
evidente que estes planejadores do trabalho não haviam recebido informações
sobre os riscos mentais neste tipo de atividades; eles consideravam segurança
uma questão de enorme importância, mas viam-na como algo totalmente separado da
questão do desgaste humano.
Em primeiro lugar, parecem não ser percebidos aqui os riscos de infligir danos
aos próprios portadores da "capacidade humana", porque a imposição de
novas exigências baseadas em visões cujos fundamentos são apenas de ordem
econômica e técnica implica deixar de lado a necessária análise da complexidade
biopsicossocial desta "capacidade humana". E tal equívoco em verdade
traz ameaças de deterioração a esta mesma capacidade, reduzindo-a à condição
simplificada de "fator humano".
Em segundo lugar, as entrevistas apontam para o desconhecimento, por parte dos
entrevistados, de que uma planejada intensificação das atividades poderá
superar as possibilidades psicofisiológicas humanas de manter a atenção
vigilante, a agilidade de raciocínios e a prontidão para respostas rápidas,
necessárias para a segurança do sistema ferroviário.
Discutimos essa questão da "invisibilidade" da inter-relação
trabalho/saúde com um técnico da empresa que trabalhara na sala de controle e
depois ascendeu funcionalmente, tendo deixado a empresa durante o período em
que realizamos a pesquisa. Ele nos ofereceu uma explicação importante, baseado
em sua experiência:
"O que acontece é que esperam que quem está diretamente na chefia do CCO
se responsabilize pelos problemas de "fator humano" que aconteçam lá,
e, inclusive, se um chefe vai levar para o gerente do escalão superior um
problema desse tipo, vai ficar mal visto. Vão considerar que ele não está sendo
capaz de resolver problemas que são da alçada dele. Daí, até pra não ser
prejudicado na própria carreira, não costuma levar o problema lá para cima
(para escalões superiores). Às vezes, é claro, isso fica impossível: por
exemplo, já aconteceu uma morte em serviço, parece que foi uma espécie de
enfarte fulminante que o controlador teve. Morreu em cima da mesa do console!
Aí, não dá pra deixar de pensar se esse problema foi ou não de estafa".
A negação de vinculações entre a situação de trabalho e os danos sofridos pela
saúde dos controladores aparece, portanto, integrando a cultura da empresa.
Quanto aos controladores, constatamos ainda a existência de uma "cultura
do controle", em que o autocontrole é erigido em valor essencial pelos
próprios controladores, passando a assumir importante papel em sua identidade.
Eles são aqueles que têm o dever e a responsabilidade permamente de tudo
controlar no sistema. A auto-exigência é continuamente realimentada formal e
informalmente, a partir de ordens recebidas e dos imprevistos do cotidiano. Os
intensos níveis de auto-exigência contribuem de modo importante para que os
próprios controladores participem na invisibilização mais prolongada do próprio
mal-estar e do desgaste acarretados pelas atividades no CCO. Deste modo, só ao
longo do tempo, seus agravos irão eclodir, e, mais freqüentemente, sob
expressão somática - como exemplificado possivelmente pelos freqüentes
distúrbios digestivos relatados e pela ocorrência de hipertensão arterial em
vários dos controladores entrevistados.
No que diz respeito aos maquinistas, a questão se apresenta de maneira
diferente. Seria impossível negar a existência de problemas, havendo - conforme
as informações obtidas no SESMT - elevada prevalência de alcoolismo entre
maquinistas. Entretanto, embora a dependência de bebidas alcoólicas seja
reconhecida, a vinculação entre a mesma e a situação de trabalho do maquinista
não o é.
Não obstante a falta de dados estatísticos exatos por parte da empresa, o
alcoolismo é um dos distúrbios de saúde de maior freqüência nos maquinistas,
segundo os entrevistados no SESMT, que desenvolvia atividades terapêuticas,
porém não medidas preventivas, que fossem voltadas para modificação de situação
de trabalho em relação ao problema.
A existência, na cultura hierárquica, de uma desvalorização marcada por
desconfiança por parte dos subordinados - aquilo que Dejours denomina
"psicologia pejorativa" - parece bastante evidente. Tal fato, em
nossa interpretação, possivelmente desempenha importante papel para explicar a
extensão do próprio alcoolismo, que em outras pesquisas referentes ao desgaste
mental no trabalho surgiu freqüentemente associado a situações em que a
dignidade havia sido alvo de agressões (Seligmann-Silva, 1994; Matrajt, 1994).
Tivemos informação de que a rejeição para absorver em outras funções os
maquinistas afastados de suas funções, não ocorria apenas nos casos de
alcoolismo, porém mesmo para portadores de outros problemas, como de
hipertensão arterial. A explicação que nos foi dada foi bastante esclarecedora:
"É que, mesmo se ele não beber, vão achar que o problema é esse ou, então,
que, de qualquer modo, ele deve ser malandro".
Portanto, de uma forma diferente da verificada em relação aos controladores,
constatamos existir também, no caso dos maquinistas, uma negação ocultadora da
inter-relação trabalho/saúde. Só que, neste caso, ela é mediada por um
preconceito possivelmente relacionado com a desqualificação associada às
transformações do sistema, contrastando com outros tempos, em que, portando
grande orgulho da profissão, o maquinista era figura socialmente prestigiada.
O_conflito_entre_segurança_e_velocidade
O confronto entre as metas segurança e velocidade se estabelece freqüentemente
nas situações concretas e assume evidente papel na gênese de altos níveis de
tensão emocional. Vale examinar os componentes deste conflito.
a) Em primeiro lugar, identificamos novamente um componente de ordem cultural,
vinculado à imagem de modernidade que a empresa almeja conquistar. Na
representação da modernidade, a velocidade é elemento altamente valorizado,
especialmente em se tratando de um sistema de transportes.
b) Ainda fortalecendo a idéia de velocidade, ocorrem as pressões cotidianas dos
usuários. As expectativas de um sistema cuja eficácia transpareça através da
velocidade de seus trens pertencem não só à empresa, mas também aos
passageiros. A figura do usuário passa, assim, a suscitar duas questões de peso
considerável nas decisões e ações da empresa, por um lado, e nas atitudes e
emoções dos maquinistas, por outro. Resultam daí, favorecendo a meta da
velocidade, três aspectos distintos:
b.1) Passa a existir um interesse político, por parte da empresa - que é
estatal -, de que a população usuária seja satisfeita em suas expectativas e de
que, a todo custo, sejam evitados atrasos.
b.2) Manter a velocidade e, muito essencialmente, evitar atraso são
preocupações presentes nos maquinistas, não só por este conhecer a posição da
empresa sobre a questão, mas também por um motivo que, em nossa pesquisa,
emergiu como fundamental: o temor dos tumultos e agressões de que ele
pessoalmente possa ser vítima, causados por usuários que exigem mais velocidade
ou que se revoltam diante de atrasos.
b.3) Por parte do maquinista, pode existir ainda algo que foi expresso por
vários entrevistados: a legítima preocupação de que os passageiros não sejam
prejudicados, em seus empregos, pelos atrasos. Deve aqui ser lembrado que
muitas vezes tal situação ocorreu por razões as mais variadas e que a
velocidade maior, nestes casos, visa compensar tais demoras.
Vejamos agora os aspectos que favorecem a segurança:
a) Em primeiro lugar, a consciência da responsabilidade com vidas humanas será
fator de peso dentro do conflito estabelecido na mente do maquinista.
b) As normas técnicas e os regulamentos, por outro lado, pressionam o
maquinista a seguir o que neles está prescrito em relação aos limites de
velocidade determinados para os diferentes trechos e situações. Infringindo
tais regras, o maquinista correrá o risco de ser submetido a sindicância e
responsabilizado por qualquer prejuízo - humano ou material - advindo da quebra
destas prescrições formais. Em síntese, poderá receber sanções por quebra da
disciplina e ser considerado irresponsável, com risco de suspensão ou mesmo
demissão, dependendo da gravidade das conseqüências da infração.
Deste modo, envolvido em tal malha de pressões contraditórias, não é de
surpreender que as opções do maquinista em relação ao dilema acima considerado
- infringir ou não as determinações atinentes à velocidade - não se façam sem
tensão e sofrimento psíquico.
Vale mencionar algumas constatações a respeito das "manhas" que
desfazem controles automatizados:
"Existem jeitos de enganar o sistema e andar dando mais velocidade do que
a que é comandada por ele" (maquinista).
Outro funcionário nos explicou que estes "jeitos" são denominados
"gambiarras" e se constituem segredo profissional dos maquinistas,
que ao longo do tempo aprenderam manhas pelas quais podem burlar os controles
automatizados embutidos no sistema. Conhecem técnicas pelas quais desativam,
por exemplo, o funcionamento do dispositivo que faz parar o trem quando a
velocidade prescrita é ultrapassada. Deste modo, nas ocasiões de fortes
pressões dos usuários em trens atrasados, a velocidade é aumentada. Como a
satisfação dos usuários e a imagem construída a partir desta satisfação se
constitui interesse relevante para a direção da empresa, nenhuma punição ocorre
para o maquinista "se tudo correr bem". Isto é, se a infração não
ocasionar nenhum acidente, mesmo sendo descoberta pelos superiores
hierárquicos, nenhuma censura costuma ser feita ao maquinista responsável.
Funcionários de diferentes categorias - e não apenas os maquinistas - falaram-
nos desta situação dúbia, de "gambiarras consentidas". Tivemos,
entretanto, oportunidade de acompanhar um acidente - um choque de trens, com
feridos mas sem vítimas fatais -, em que o rumo dos acontecimentos foi outro.
Nesse caso, a sindicância efetuada detectou que o choque havia sido provocado
porque o maquinista do trem que vinha atrás fizera uma "gambiarra",
de modo que um trem que, por motivos técnicos, havia sofrido atraso e vinha à
frente, na mesma linha, sofreu o choque. No processo instaurado, o maquinista
estava sendo acusado e existiam altas probabilidades de que seria condenado.
As "gambiarras" relacionadas à burla das velocidades prescritas são
de prática bastante comuns, dada a freqüência e intensidade das pressões dos
usuários, que, como já foi dito, podem inclusive se tornar violentas. O
maquinista, sozinho em sua cabine, pode recorrer apenas ao controlador pelo
rádio, para pedir orientação e apoio. A precariedade deste tipo de comunicação,
como verificamos in loco, prejudica a clareza da mensagem e agrava a ansiedade.
É possível compreender, então, por que o maquinista tantas vezes utiliza seu
conhecimento prático, acionando a "gambiarra". Em verdade, ele sabe
que, de modo mais geral, tal artifício é encarado de forma condescendente pelas
chefias, contanto que "nada aconteça", pois, se "acontecer"
(incidente ou acidente), a "gambiarra" será constatada pela perícia.
O aspecto mais grave deste tipo de infração decorre não somente do excesso de
velocidade, mas, especialmente, do fato de que o mais importante fator de
proteção do ATC (Automatic Train Control) - a parada automática do trem em
situação de risco - é desativado pela "gambiarra".
É possível que o que acontece nestas situações fique mais claro se utilizarmos
alguns trechos da entrevista com um dos técnicos da empresa que nos expôs o
problema:
Ferroviário - Por exemplo, se a velocidade deve ser, em determinado trecho, de
20 ou 25 e com a "gambiarra" o trem estiver andando a 40, o sistema
não "penaliza"! Isto quer dizer: o trem não pára. No modo normal do
sistema funcionar, se a velocidade imposta não for seguida, for ultrapassada,
e, em determinado tempo, o maquinista não reconhecer isto e reduzir a
velocidade, o próprio trem vai aplicar emergência e parar! Já com a
"gambiarra", o trem continua andando - o sistema avisa, sinalizando
(alerta para o excesso de velocidade) mas não penaliza -, quer dizer, o trem
não pára.
Entrevistadora - Mas por que será que fazem estas "gambiarras" para o
trem correr mais?
Ferroviário - Fazem isso pra colaborar, na verdade. Colaborar com os
passageiros e com a Companhia. Mas o dia em que acontece alguma coisa, quem fez
a "gambiarra" é responsável porque fugiu das diretrizes da empresa.
Fica evidente a complexidade da questão e o aguçado dilema que traz para o
maquinista, que se encontra pressionado por forças tão contraditórias.
O conhecimento da existência de "gambiarras" é difundido nos vários
escalões da hierarquia técnica, apesar de ser, como nos disse um supervisor do
CCO, "um segredo" sobre o qual os maquinistas evitam geralmente falar
com quem não seja de sua estrita confiança. Nunca se estabeleceu um trabalho
participativo voltado para discutir a questão e tomar decisões a respeito,
embora o problema seja reconhecido como importante fator de quebra da segurança
do sistema.
O assunto atinente às infrações de procedimentos prescritos tem estado muito
presente nos estudos da Psicodinâmica do Trabalho, tendo sido analisado
inclusive nas atividades de uma usina nuclear, em diferentes textos produzidos
por Dejours e pesquisadores que com ele trabalharam.
Estes autores analisam de que modo o problema colocado pela distância existente
entre o trabalho prescrito e as atividades concretamente desenvolvidas, além de
constituir fonte de tensão e sofrimento mental para os trabalhadores, também
configura, neste caso, um gravíssimo risco de catástrofe - acidente nuclear. No
caso do setor de transportes coletivos, parece-nos que o presente estudo das
atividades ferroviárias conduz a conclusões que, de alguma forma aproximam-se
das de Dejours. Gera-se um conflito intrapsíquico causado pela neutralização
deliberada de um dispositivo de segurança fundamental, e por outro lado, gera-
se também um real risco de acidente de grandes proporções.
O fato de acidentes ferroviários graves serem bastante raros no histórico
recente da empresa, durante a fase de automatização, certamente tende a
fortalecer a crença onipotente de que "nada de ruim vai acontecer".
A inquietação despertada por este assunto pode, entretanto, se fazer maior, se
voltarmos a atenção para grandes acidentes ferroviários que têm acontecido em
outros países que importaram tecnologia, sem que a "modernização"
fosse acompanhada de transformações sociais de trabalho e da organização do
mesmo.
Como a empresa, valorizando a preservação de sua "imagem veloz",
muitas vezes também está submetida a pressões de natureza política que tomam a
mesma direção, o desígnio de garantir tal imagem pode ser o escolhido em casos
nos quais se coloque para o maquinista o dilema velocidade X maximização de
segurança. Tal dilema passa a ser conflito no interior da mente do maquinista,
porque o acidente é ainda uma probabilidade, enquanto a rapidez é um fato
visível.
Mas quando o acidente ocorre, a situação se transforma subitamente, e então
trata-se de apurar responsabilidades: quem optou pela velocidade em detrimento
da segurança? Diante de graves prejuízos materiais e, muito especialmente, de
vítimas fatais, a análise do acidente apontará os funcionários que, embora
sempre tendo feito a escolha da velocidade sem que isto despertasse, pelo menos
de modo incisivo, resposta crítica da empresa, defrontar-se-ão agora, pela
primeira vez, com os regulamentos e com a apuração dos fatos, em inquéritos
formalizados.
A_identidade_social_ante_as_transformações do_trabalho
A identidade social tem um de seus núcleos na identidade profissional. A
profissão exercida é fonte de significados, alimentando os processos de
reconhecimento que fundamentam o evolver desta identidade social. Sainsaulieu
(1988) assinala e esclarece os processos em que a identidade se transforma,
articulada a mudanças tecnológicas e organizacionais. Analisa o quanto as
expectativas de mobilidade social ascendente, apoiadas em perspectivas de
carreira, podem ser brutalmente estranguladas por transformações técnicas e
organizacionais, perante as quais, de modo repentino, determinados grupos
profissionais se sentem subitamente marginalizados em face de uma nova onda de
progresso para a qual sua formação não os preparou. Diz o citado autor:
"Uma tal situação de marginalidade é fonte de angústia profunda, pois o
futuro se torna incerto e o presente totalmente hostil"(p. 193. Tradução
nossa).
A questão da identidade também foi estudada nas pesquisas realizadas com
ferroviários franceses por Bouvier (1985) e por De la Cruz & Roche (1990),
cujos textos abrem possibilidades para interessantes estudos comparativos que o
espaço deste artigo não possibilita discutir.
O estudo brasileiro de Guarido (1981) já havia revelado o quanto a identidade
dos maquinistas havia sofrido com impactos negativos ao longo de transformações
ocorridas na história da mesma empresa. Guarido constatou que algumas
transformações de ordem técnica e, principalmente, as de ordem organizacional,
acompanhadas por modificações de valores culturais e da sociabilidade, abalaram
mais intensamente a auto-imagem e os projetos de vida. Neste aspecto, as
constatações de Guarido confluem bastante com as de De la Cruz & Roche
(1990), que estudaram itinerários de vida e trabalho em maquinistas franceses.
A implantação de equipamentos automatizados, nestes casos, como naquele por nós
estudado, foi sentida como perda de prestígio e de poder, transformando
profundamente o significado do trabalho, pois diminuiu de modo importante a
autonomia do maquinista, que, antes de ser submetido ao controle do sistema
técnico sofisticado, vivia mais intensamente também o prazer de controlar
plenamente seu trem.
Além do orgulho profissional atingido pela nova tecnologia, os maquinistas da
empresa estudada também se sentiram alvo de um aumento de controle e de
diferentes tipos de repressão. A mágoa pela percepção de falta de
reconhecimento por parte das chefias e da empresa foi um sentimento geralmente
muito visível nas entrevistas, sendo particularmente intenso nos maquinistas
mais antigos da empresa. Por outro lado, além das tensões já mencionadas,
vinculadas ao ATC, sentiam-se irritados e fisicamente agredidos pela
estridência de um certo dispositivo de alarme que soava com freqüência na
cabine do trem.
Nas observações que realizamos em cabine, foi possível perceber a magnitude das
exigências de atenção simultânea para diferentes dispositivos técnicos, para a
via férrea, para as comunicações via rádio com a sala do CCO, e, às vezes,
ainda, para os usuários e portas travadas pelos mesmos.
A má qualidade e a insuficiência do sono foram mencionadas pelos maquinistas
entrevistados. Além disso, vários mencionaram o receio de adormecer durante os
percursos, considerando que o dispositivo destinado a impedir isto, o famoso
"homem morto" - pedal que, se não acionado continuamente, determina
alarme seguido por parada do trem -, era de pouca eficácia para impedir o sono.
Na expressão dos entrevistados, entretanto, os problemas decorrentes dos novos
dispositivos técnicos e dos horários de trabalho apenas exacerbavam um mal-
estar, cuja fonte mais aguda provinha do sentimento de se sentirem
injustiçados, e pelo não reconhecimento de seu valor humano e profissional.
Implicações_para_o_estudo_e_prevenção_dos_acidentes_ferroviários
O avanço tecnológico tem suscitado a difusão de uma imensa idealização, na qual
surge a imagem do sistema computadorizado onisciente e perfeito. A imagem é tão
poderosa e ao mesmo tempo tão fascinante, que conduz facilmente à ilusão de que
a reflexão crítica não pode ser exercida, como se o poder do sistema tivesse
ofuscado, reduzido à insignificância o potencial humano de julgamento.
Já mencionamos como se gera, assim, uma dependência do sistema técnico, o que
pode conduzir à passividade. Não é mais necessário pensar, abstrações não são
valorizadas, uma vez que o sistema tudo pensa, prevê e controla.
Se tal situação é atingida numa fábrica, numa empresa bancária ou em um grande
escritório, conforme os estudos de Zuboff (1988), os riscos são, a médio ou
longo prazo, para a qualidade e para a competividade. Mas estes riscos se fazem
concomitantemente, como já vimos, para a saúde mental.
Nosso estudo leva a refletir que, quando se trata de uma área em que a
atividade está voltada para o transporte de massa, algumas outras questões
tornam a problemática mais complexa. As questões de segurança, que também
existem, por exemplo, na fábrica, tornam-se, entretanto, especialmente aguçadas
e visíveis numa atividade em que a responsabilidade referida a milhares de
vidas humanas está presente de maneira continuada. A magnitude do cuidado
exigido à proteção destas vidas recebe, contudo, uma importante contraposição -
a das pressões dirigidas à maximização de velocidade. Tais pressões têm dupla
origem, por um lado derivando do interesse da empresa em manter sua imagem de
modernidade e eficácia; pelo outro, resultando de exigências dos usuários - que
podem inclusive assumir forma de ameaça ou agressão explícita.
A complexidade das contradições emerge, apontando, portanto, em primeiro lugar
para uma contradição originada na própria empresa, cujas diretrizes de
segurança podem conflitar com as de maximização de rapidez.
Verificamos que as inovações tecnológicas implantadas tinham também por
objetivo as duas metas - segurança e rapidez. Diferentes fatores, entretanto,
têm conduzido a situações concretas, nas quais é exigida uma opção - segurança
ou velocidade. Temendo enfurecer os usuários, os funcionários muitas vezes
utilizam habilidades e manhas especiais para favorecer a velocidade.
Acreditamos ser esta uma situação que merece ponderação nas ações voltadas para
a prevenção de acidentes ferroviários. Nesta ponderação, merecem ser
consideradas as conclusões de pesquisas realizadas principalmente em indústrias
que já demonstraram a vantagem existente na implantação de sistemas automáticos
flexíveis, nos quais a participação humana é valorizada e a inteligência
estimulada, em contraste com os sistemas que conduzem os assalariados à
passividade e à dependência (Dina, 1987; Zuboff, l988).
Uma questão primordial, em nosso meio, certamente é a seguinte: existe, no
contexto brasileiro, um problema de falta de confiança entre o topo e a base da
pirâmide hierárquica, explicativo para a dificuldade em implantar sistemas nos
quais os empregados possuam maior espaço para utilização de sua capacidade de
diagnosticar situações e escolher alternativas de ação? Diferentes estudos,
especialmente no âmbito da produção brasileira em sociologia do trabalho,
parecem indicar uma resposta afirmativa a esta questão. Por outro lado, os
fluxos de confiança são também fortemente afetados, em face das incertezas
sobre as perspectivas da economia, para o capital e para os assalariados,
referentes à continuidade no emprego, e perspectivas quanto a manter ou
conquistar qualificação (Hirata, 1993; Mattoso, 1995; Bruno, 1996).
Outra verificação desta pesquisa tem a ver com a constatação de que tanto
controladores quanto maquinistas trabalham em condições nas quais a tendência é
o acúmulo da fadiga. A introdução dos equipamentos automatizados não foi
acompanhada por transformações da organização do trabalho, que protegendo
controladores e maquinistas da sobrecarga, da tensão e fadiga excessivas,
garantissem melhor a continuidade da manutenção da atenção vigilante.
O "fator humano" tem sido responsabilizado, em geral, no caso dos
acidentes ferroviários noticiados pela imprensa. Caberia, portanto, aplicar uma
consideração melhor às questões que dizem respeito a esse "fator",
que, como este estudo procurou mostrar, possui, em verdade, uma complexidade
não redutível a essa expressão tão utilizada - "fator humano".
No entanto, não pode ser esquecido que os dispositivos técnicos, quando
implantados em condições sócio-políticas, econômicas e administrativas
desfavoráveis, estão longe da perfeição sonhada.
Considerações finais
O conhecimento técnico foi posto ao alcance dos controladores, mas as
informações do projeto organizacional sempre foram colocadas distantes do
acesso destes profissionais. Assim, os projetos sobre suas próprias carreiras
ficaram obscurecidos. A participação em decisões administrativas ficou sempre
restrita aos altos escalões.
Para que a inteligência possa manter-se ativa e criativa são necessárias
condições psicoafetivas que, por sua vez, fundamentem a "liberdade do
pensar" em um clima também propício à geração do comprometimento e do
interesse pela atividade desenvolvida e pelas metas da empresa.
Portanto, além do treinamento e da socialização de todas as informações
referentes ao processo tecnológico e ao próprio plano de atividades da empresa,
cabe cultivar um clima propício à confiança. Para que esta seja obtida, é
essencial que também os planos da política de pessoal da empresa tenham
transparência.
A confiança será também o solo fértil necessário ao crescimento do interesse e
da adesão às atividades. Uma nova dinâmica, entretanto, precisa ser analisada,
valendo-se dessa premissa representada pela confiança depositada pelo
assalariado sobre a organização. Em primeiro lugar, ele espera uma
reciprocidade em termos não só de confiança, mas também em forma de respeito
humano. Evidentemente, atuará para favorecer e fortalecer essa confiança, ao
mesmo tempo que terá a expectativa de que o respeito por sua essência humana
também possa voltar-se para a singularidade do seu ser e de suas aptidões e
esforços. Em síntese, o empregado espera ser o alvo de reconhecimento.
Zuboff contrapõe a organização em que a opção foi tornar-se uma instituição de
aprendizado continuado com aquelas em que são gastos milhões na compra e
instalação de novas tecnologias sem que "nem o mais rudimentar
treinamento" esteja presente no orçamento anual (p. 89).
"O significado que as pessoas atribuem a seu trabalho, seus níveis de
motivação e envolvimento e o tipo de qualificação que possuem vão mediar a
relação entre a interface da informação e o observador humano."
Como já mencionamos, a compreensão da dinâmica em que a transformação do
trabalho e a identidade se inter-relacionam constitui um alvo central de
atenção neste tipo de pesquisa.
Alguns dos trabalhadores entrevistados nos forneceram importantes elementos
para analisar tais aspectos.
Um maquinista que trabalhava há 17 anos na empresa expressou como o significado
do trabalho foi atingido pelas transformações "modernizadoras", em
sua percepção:
"Aqui todo mundo tinha carinho pelo serviço, desde o ajudante até o
inspetor de condução, quando eu entrei aqui. Mas isso mudou radicalmente. Não
sei exatamente por que. Talvez seja pela modernização. No caso do ATC, por
exemplo: ele tirou mais ou menos 50% da responsabilidade do maquinista. E junto
com a responsabilidade tirou a valorização profissional".
Esta fala revela, de modo sintético:
a) a percepção de que algo muito valioso, o "carinho pelo serviço",
existia e foi perdido; b) a dificuldade de compreender "exatamente por
que"; c) a suposição de que a modernização seja a responsável pela perda;
d) a idéia de que a modernização se consubstancia na implantação de novos
equipamentos (exemplifica com o ATC); e) a percepção de que o equipamento
automatizado diminui a "responsabilidade do maquinista". Em outras
palavras, diz que o controle (antes exercido pelo maquinista) foi transferido
ao equipamento; f) a interpretação de que esta perda de responsabilidade
acarretou perda da "valorização profissional"; g) a subtração da
responsabilidade se dá conjuntamente à da valorização.
Como pode ser constatado na análise desta fala, não encontramos nenhuma
referência à administração deste trabalho. A interpretação do entrevistado é a
de uma relação direta e inexorável estabelecida entre uma modernização - que é
representada, aqui, tão somente pela implantação de equipamento automatizador -
e a perda conjunta de responsabilidade e valor.
Por um lado, é compreensível que o papel da administração, ou mais
especificamente, o planejamento do trabalho e a forma pelo qual ele é
controlado/avaliado, esteja ausente da fala, muito embora o maquinista deixe
esboçada a percepção de um mistério, de algo não inteiramente inteligível
("Não sei exatamente por que.Talvez seja pela modernização.").
Acreditamos que a não-alusão aos responsáveis pela direção e administração da
empresa por ocasião das pesquisas se deve essencialmente a dois aspectos:
1) A clivagem verificada, nesta empresa, entre planejamento/execução é de tal
modo absoluta que resulta na invisibilização, para o executante do trabalho (o
maquinista, no caso), de que o "esvaziamento", percebido no valor de
sua atividade, faz parte de uma opção organizacional.
2) De fato, com a introdução do novo equipamento, nada foi acrescentado ao
maquinista que o fizesse sentir que seu valor profissional foi preservado ou
acrescentado. Em suma: não houve manifestação perceptível de que existisse uma
instância (de gestão e organização do trabalho) onde ele, maquinista, tivesse
sido considerado sujeito no processo de trabalho, ser pensante e que precisaria
manter uma interlocução com os planejadores do trabalho para definir seu novo
papel e suas próprias observações e sugestões de ação, perante a implantação
dos equipamentos de tecnologia avançada.
Feitas estas considerações, resta ainda a seguinte: o maquinista estabeleceu
uma relação entre o "carinho pelo serviço" e a "valorização
profissional", que é de plena identidade. Ou melhor - no encadeamento de
sua reflexão, ele toma o carinho como ponto de partida, representando o que
havia de precioso e foi perdido; fala a seguir da modernização e do novo
equipamento, para dizer que pensa que a perda se fez em termos de
responsabilidade e valorização profissional. Então, responsabilidade e
valorização profissional se constituem componentes essenciais daquilo que
constrói o carinho pelo serviço. E acreditamos que este carinho pelo serviço
seja exatamente aquilo que a administração voltada para a busca da qualidade
tanto procura - adesão e compromisso -, em que o significado e o afeto estão
envolvidos intimamente.
O que o maquinista nos disse foi que sentiu que algo precioso lhe foi
subtraído. Não visualizou que poderia não ter sido assim, que ele e seu carinho
pelo serviço poderiam ter sido enriquecidos, ao invés de desvalorizados, se lhe
tivesse sido dado o acesso a participar da "modernização" como
sujeito ativo e não como profissional que vê sua experiência prática ser
substituída por equipamentos e, assim, menosprezada.
Concluímos aqui, constatando que a desvalorização que fez este entrevistado
sentir-se desqualificado é a mesma que atinge a identidade de tantos outros em
nosso tempo, acionando sofrimentos e patologias para os trabalhadores, ao mesmo
tempo que retardando, para empresas e para países, a mudança modernizadora real
e significativa - só alcançável se, além da implantação de novos equipamentos,
for implantada uma nova forma de integrar o ser humano ao trabalho, nele
podendo cultivar seu prazer e seus valores essenciais.