O itinerário rumo às medicinas alternativas: uma análise em representações
sociais de profissionais da saúde
Introdução
Este artigo focaliza representações sociais sobre o conceito de medicina
alternativa de professores universitários da Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUCCAMP) e profissionais da saúde (médicos e enfermeiros)
na rede básica de serviços de saúde de Campinas. Além de desvendar o sentido
simbólico contido no termo "medicina alternativa", suas influências
teóricas, seu sentido epistemológico, seus objetivos e estratégias, o artigo
encontra também algumas regularidades na trajetória individual assumida por
esses profissionais que, em um determinado momento de suas carreiras, optaram
por se comprometer com alguma forma de medicina alternativa, em um contexto
fortemente influenciado pela perspectiva positivista tradicional, oposta a
essas manifestações.
Para efeitos de operacionalização do estudo, definimos medicina alternativa
como uma proposta terapêutica que foge da racionalidade do modelo médico
dominante, i.e., da medicina especializada, tecnológica e mercantilizada,
enquanto adota uma postura holística e naturalística diante da saúde e da
doença. De um modo geral, as medicinas alternativas criticam na medicina
alopática o reducionismo biológico, o mecanicismo, a ênfase na estatística, o
primado do método sobre o fenômeno e da doença sobre o doente.
Um aspecto teórico fundamental que unifica essas várias medicinas e práticas é
a idéia vitalista de que a energia organiza a matéria (e as estruturas
orgânicas) e não vice-versa. A ênfase no doente, e não na doença, e a crença de
que esta provém, principalmente, de um desequilíbrio interno, ao invés de uma
invasão por um agente patogênico externo, são outros pontos comuns.
O caráter não intervencionista, no sentido de se antagonizar com a doença, é um
fator importante a ser considerado. Ao invés de intervir no sentido de impedir
certas manifestações sintomáticas, essas medicinas e práticas as percebem como
sintomas necessários de causas mais profundas, que abrangem o indivíduo e o seu
modo de vida em sua totalidade.
Em um plano mais específico, as medicinas alternativas adotadas neste artigo
consideram as terapias propostas em 1988 pela Comissão Interministerial de
Planejamento e Coordenação do governo brasileiro (CIPLAN), ou seja, homeopatia,
acupuntura, técnicas alternativas em saúde mental, termalismo e fitoterapia.
Embora haja referência a essas várias práticas, o artigo concentra-se mais
diretamente na homeopatia e fitoterapia, além de acrescentar os florais de
Bach, uma vez que estes são efetivamente levados em consideração, tanto no
ensino universitário como nas práticas terapêuticas da rede básica de serviços
de saúde de Campinas.
Os entrevistados foram escolhidos em função de seu papel de liderança
intelectual. A tradição etnográfica já demonstrou a utilidade de focalizar
agentes em posição de liderança, uma vez que isso permite a expressão do que um
conjunto maior da comunidade sente, pensa e faz, mas não se expressa dentro de
um quadro de referência formalizado e coerente, deixando esta tarefa para os
seus intelectuais (Turner, 1966).
O contexto e o momento da pesquisa, de maio de 1997 a abril de 1998, mostraram-
se bastante favoráveis a este trabalho. A reforma administrativa e a
municipalização dos serviços de saúde a partir do processo de implementação do
Sistema Único de Saúde (SUS), então em curso, implicam, necessariamente, um
momento de transição que pressupõe instabilidade em nível institucional. Nesta
condição, o universo vivido e representado perde a sua segurança sustentada
pela tradição para se colocar como objeto fragmentado, cujas partes se oferecem
às várias tentativas de reconstrução, tanto no nível concreto quanto no
simbólico. Em uma situação de transição, os valores perdem a sua condição de
absolutos, e a realidade passa a ser construída, interpretada, manipulada,
destruída e reconstruída, tendo como matéria-prima o confronto de valores
múltiplos provenientes da situação vivida individual ou coletivamente pelo ator
social. Desse modo, princípios culturais, que normalmente não vêm à tona,
tornam-se explícitos e aparentes ao investigador (Turner, 1957).
Alguns pressupostos teóricos fundamentais
O campo de estudos voltado tanto às racionalidades científicas hegemônicas e
oficiais como às racionalidades alternativas está sendo desenvolvido no Brasil
sob a liderança dos estudos de Luz (1988, 1996). Trata-se de obras fundamentais
ao desenvolvimento dessa área, que desvendam o sentido intrincado entre o
relacionamento de uma determinada racionalidade científica e os níveis sócio-
culturais e políticos mais amplos. Em outras oportunidades desenvolvemos uma
crítica teórica mais consistente (assentada em fatos históricos e etnográficos)
ao paradigma positivista mecanicista hegemônico na medicina oficial e ao
sistema de saúde brasileiro (Queiroz, 1986, 1991, 1998; Queiroz & Puntel,
1997). No presente estudo, esperamos contribuir com uma pesquisa empírica que
tem o objetivo de trazer à tona o sentido do termo "alternativo" em
saúde e doença.
O conceito de representação social, empregado intensivamente neste estudo,
aparece pela primeira vez como um conceito sociológico em Durkheim (1957), que
se opôs às concepções amplamente difundidas, tanto na psicologia (para a qual
as qualidades de definir, deduzir, induzir são consideradas como essencialmente
inatas ao indivíduo) como para a lógica (para a qual a hierarquia dos conceitos
obedece a uma ordem inata às coisas). Durkheim mostra, nesse sentido, que não
há nada no nível da percepção (que avalia e compara as coisas externas) que
seja independente da dimensão social (nem mesmo categorias elementares como o
tempo e o espaço).
Essa postura teórica dimensiona uma realidade social rígida, que deixa pouco ou
nenhum espaço para a criatividade no nível individual. O discurso, a semântica
e a lógica, no nível das representações sociais, aparecem como reflexos de uma
realidade maior. Os indivíduos agem, pensam e se expressam, nesse esquema, como
marionetes que incorporam e reproduzem percepções, valores e esquemas
classificatórios que lhes são emprestados pela realidade social mais ampla.
O conceito de representação social recebeu um refinamento considerável a partir
de Moscovici (1976), em um estudo sobre percepções sobre psicanálise em grupos
sociais franceses. Na confluência entre a psicologia e a sociologia, este autor
critica a falta de preocupação da psicologia cognitiva com as condições sociais
de produção de conhecimento, ao mesmo tempo em que estabelece uma dinâmica
entre os níveis individuais e sociais. O seu conceito de representação social
adquire, assim, uma dinâmica mais maleável e operacional do que a de Durkheim.
Ao invés de mero reflexo de uma estrutura social mais ampla, este conceito
traduz um sistema cognitivo que, ao ordenar o real, dá significado ao
relacionamento social e permite a comunicação entre membros de uma comunidade.
Outros pesquisadores contemporâneos também contribuíram significativamente na
elaboração desse conceito, com problemática principalmente voltada a questões
da saúde e doença. Claudine Herzlich (Herzlich, 1973), por exemplo, realizou um
trabalho importante sobre percepções de saúde e doença de uma população de
classe média de Paris. Este trabalho analisa a visão de mundo cotidiana e o
senso comum sobre os fatores presentes no modo de vida que promovem tanto a
saúde como a doença. As representações sociais dos atores entrevistados são
reportadas deixando transparecer tanto o sentido como as estratégias de ação.
Boltansky (1979), por sua vez, realizou um importante trabalho sobre classes
sociais e a percepção diferencial das funções corporais. Nessa obra, o autor
chama a atenção para o aspecto de que a linguagem, o conceito e o nome são
indispensáveis para a percepção de um sintoma de doença. O autor expressa
também que, entre as classes sociais mais baixas, a doença tenderia a ser
percebida somente enquanto houvesse uma incapacitação de performance social,
representada principalmente pelo trabalho, enquanto a noção de saúde envolve
necessariamente integração à sociedade através do cumprimento de tarefas
entendidas como obrigatórias.
No Brasil, a perspectiva trazida por Moscovici tem influenciado uma importante
corrente no interior da psicologia social. Várias teses têm sido produzidas a
partir de trabalhos pioneiros na divulgação desta perspectiva, a partir de
autores como Spink (1993, 1994), Sá (1993) e Jovchelovitch & Guareschi
(1994).
Schutz (1973), um outro autor importante na delimitação teórica do conceito de
representação social, ao integrar as perspectivas legadas por Weber e Husserl,
focaliza como a subjetividade, socialmente orientada, se constrói e tipifica a
realidade a partir da experiência cotidiana dos indivíduos. Focalizar as regras
de tipicidade (baseadas em experiências passadas que, subjetivamente, se abrem
em campos de significação e influenciam estratégias e ações intencionais) e o
relacionamento entre várias subjetividades (forjando o tecido social), estes
são os propósitos principais de sua postura teórica. O estudo da representação
social, nesse sentido, necessita de uma abordagem compreensiva, que percebe o
ator social como um agente que interpreta o mundo à sua volta com uma atitude
que contém intenções e, portanto, um projeto de ação.
A partir dos enfoques de Moscovici (1976) e de Schutz (1973), é possível
definir representação social como um tipo de saber, socialmente negociado,
contido no senso comum e na dimensão cotidiana, que permite ao indivíduo uma
visão de mundo e o orienta nos projetos de ação e nas estratégias que
desenvolve em seu meio social. Representações sociais são, portanto,
conhecimentos culturalmente carregados, que adquirem sentido e significado
pleno no contexto sócio-cultural e situacional em que se manifestam.
É, portanto, um pressuposto fundamental desta pesquisa em que os sujeitos
entrevistados têm representações coerentes em relação ao universo vivido e
experimentado. Como se trata de profissionais que costumam teorizar sobre a sua
prática profissional, ao lado de um conhecimento prático, de senso comum, que
forma uma concepção de vida e orienta suas ações individuais, encontramos
também conhecimentos teóricos altamente elaborados. Nesse contexto, as
representações sociais aparecem como instâncias privilegiadas de investigação
científica, uma vez que elas incluem, em menor escala, ingredientes
fundamentais do pensamento e da vida social.
Há que se destacar, ainda, o esforço de alguns autores no sentido de conciliar
o materialismo histórico com as perspectivas metodológicas de análise
sincrônica, principalmente as de pequena escala, desenvolvidas pela
antropologia social e cultural. Minayo (1992), por exemplo, ao tentar
estabelecer uma conexão teórica entre esses dois níveis de realidade, realizou
um esforço genuíno no sentido de abrir o marxismo e estabelecer uma ponte de
diálogo com outras tradições teóricas e metodológicas, principalmente aquelas
que focalizam o nível do discurso e as representações sociais.
Metodologia de pesquisa
O método da observação participante, no interior da tradição etnográfica
desenvolvida a partir de Malinowsky (1979), e as técnicas de entrevistas semi-
estruturadas (Kvale, 1996) foram os principais instrumentos utilizados.
O método qualitativo introduzido pela antropologia moderna coloca o sujeito e o
objeto em uma interação que se torna a parte central e inevitável da
investigação. Nem o outro é consumido pelo sujeito, nem vice-versa. Nesse
espaço, qualquer proposta metodológica fechada estaria fadada ao fracasso. O
método deve abrir-se em um processo de negociação perene com a realidade
estudada, que significa adotar uma postura maleável, capaz de adaptar o método
a cada oportunidade da investigação. Tal postura exige, sem se opor a um
levantamento de dados quantitativos, uma avaliação dos imponderáveis da vida
social, do colorido emocional presente nos eventos, que escapam ao controle
numérico e exige do pesquisador uma abertura emocional e intuitiva.
As entrevistas empreendidas nessa pesquisa focalizam as representações sociais
sobre o conceito de medicina alternativa de oito intelectuais, professores
universitários da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP e PUCCAMP e
profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) na rede básica de serviços de
saúde de Campinas. Estes oito indivíduos foram escolhidos em função de seu
papel de liderança intelectual aliada ao comprometimento prático e teórico na
promoção de eventos e atividades oficiais que lidam com alguma forma de
medicina alternativa. Esses agentes, cinco mulheres e três homens, sete médicos
e uma enfermeira, encontram-se na faixa etária de 36 a 54 anos.
As entrevistas com esses indivíduos foram todas gravadas e transcritas. Em
média, duraram cerca de duas horas cada uma, e cada ator foi entrevistado duas
vezes, sendo a primeira numa perspectiva mais exploratória e a segunda numa
perspectiva mais específica, tendo como base pontos levantados da primeira
entrevista. Os locais das primeiras entrevistas foram, com apenas uma exceção,
os ambientes de trabalho do ator entrevistado. As segundas entrevistas, no
entanto, ocorreram ou nas residências dos entrevistados ou na do entrevistador,
em um ambiente intencionalmente mais descontraído.
Sentido de medicina alternativa
De um modo geral, as medicinas e práticas terapêuticas abordadas neste artigo
consideram a doença não como resultante de uma intrusão de um agente externo,
mas como um conjunto de causas que culminam em desarmonia e desequilíbrio.
Curar um paciente, nesse sentido, não significa torná-lo saudável, termo este
entendido a partir de um ponto de vista da normalidade funcional. A cura
geralmente leva o indivíduo a um nível de saúde superior àquele que usufruía
antes do desafio. Isso sugere que períodos de saúde precária são estágios
naturais na interação contínua entre o indivíduo e o meio ambiente. Estar em
equilíbrio dinâmico significa passar por fases temporárias de doença, nas quais
se pode aprender e crescer. O trecho de entrevista abaixo se refere à
homeopatia, mas é compatível com as demais práticas consideradas neste artigo:
"A alopatia trata a doença como sendo a causa do problema do indivíduo; já
a homeopatia tem a visão do organismo todo em funcionamento. Se o estômago está
doente por causa de um problema emocional ou por causa de uma atitude negativa,
não é ele que tem que ser tratado, mas o aspecto emocional e mental. É por isso
que, na homeopatia, é muito importante saber como a pessoa vive, o que ela
sente e o que ela faz. Nós entendemos a pessoa num plano global e a doença é
apenas um lado desse plano. Combater o sintoma, como o faz a medicina
alopática, pode impedir o indivíduo de adquirir um equilíbrio mais amplo e um
estágio superior de saúde" (Enfermeira, professora universitária).
Embora as medicinas alternativas sejam consideradas muito mais como
redescobertas de práticas antigas do que como abordagens novas, segundo os
agentes entrevistados, elas estão fadadas, em um processo dialético, a se
tornarem hegemônicas. Isso porque elas obedecem a um princípio organizador mais
amplo e mais integrado do que a medicina alopática, o que permite uma resposta
mais apropriada com relação aos problemas gerados pela excessiva especialização
moderna que impede a apreensão de um sentido de totalidade. O paradigma
mecanicista subjacente à medicina alopática moderna, de acordo com a
argumentação de praticamente todos os entrevistados, já esgotou suas
possibilidades de ampliar a visão humana e, por isso, tende a ser superado por
uma perspectiva mais abrangente. Nesse sentido, a revitalização de propostas
antigas, como a homeopatia, a acupuntura e outras práticas alternativas,
conteria em si a possibilidade de forjar uma nova ciência no interior de um
novo paradigma científico, cujo eixo central é a capacidade de integrar e
harmonizar a realidade, ao invés de dividi-la e desintegrá-la para efeitos
analíticos e de controle operacional.
A teoria de Thomas Khun (Khun, 1975) sobre desenvolvimento da ciência a partir
de conceitos como o de paradigma científico, ciência normal e revolução
científica é amplamente conhecida pela população pesquisada e considerada um
marco de fundamental importância para a edificação de uma ciência que admita
seu caráter subjetivo e humano e, com isso, transcenda o positivismo. O ponto
chave no pensamento de Khun refere-se ao fato de que o paradigma científico é
sustentado basicamente não só por sua consistência lógica e epistemológica, nem
exclusivamente, por sua adequação aos fatos, mas, principalmente, pela
comunidade científica e pela sociedade mais ampla, em termos que incluem
necessariamente interesses sociais, econômicos e culturais.
O movimento alternativo propõe, nesse sentido, uma revolução científica que
permitiria à ciência uma maior liberdade dos interesses econômicos e sociais
que sustentam a ciência positivista, permitindo, assim, o surgimento de uma
ciência mais humana, ecológica e integradora.
O novo paradigma científico a que a população pesquisada se refere denota uma
postura que pretende superar o positivismo cartesiano e newtoniano. O termo
cartesiano passou a conotar um sentido negativo, incapaz de apreender a
complexidade do mundo real. Enquanto Descartes propunha que somente o intelecto
teria acesso às idéias claras e distintas e, conseqüentemente, ao pensamento
científico, o novo paradigma aponta que a razão é apenas um entre vários
atributos humanos que, hiperdimensionado no momento histórico presente, gera
desequilíbrio e desintegração. O novo paradigma pretende que outras dimensões,
tais como a emoção, a intuição e a sensibilidade, tenham um papel tão
importante quanto o intelecto. A harmonização dessas dimensões ampliaria o foco
científico dirigido à realidade e traria uma ciência mais harmônica. Como
exemplos empíricos e práticos dessa ciência estariam as ciências médicas de
origem oriental, a acupuntura, a fitoterapia, massagens orientais, etc. O
trecho de entrevista abaixo mostra como uma ciência holística preocupada com a
harmonia é possível.
"Eu considero a homeopatia uma ciência e uma arte, que emprega uma
observação rigorosa de fenômenos a partir de uma teoria consistente da
realidade, com o suporte da sensibilidade e da intuição. A diferença do objeto
de estudo da homeopatia e da medicina alopática é a diferença entre estudar
algo vivo e algo morto. A ciência cartesiana, que sustenta a medicina
alopática, só pode estudar a matéria morta, enquanto a homeopatia exige um
paradigma científico muito mais abrangente, capaz de incluir processos
energéticos e vitais que pressupõem diferentes qualidades de manifestação de
vida. Não há alternativa: a evolução da ciência terá que se libertar da prisão
cartesiana e caminhar em direção à vida"(Médico homeopata, professor da
UNICAMP).
Este novo paradigma científico é assumido como a base de uma nova visão de
mundo cujo principal motivo é, não mais a fragmentação da realidade e a
especialização profissional, mas a construção integradora ou holística de uma
realidade em sintonia ou em harmonia com um cosmo mais amplo. Essa visão de
totalidade encontra expressão metafórica no holograma que é a fotografia do
campo de onda luminosa emitida por um determinado objeto. Como, sob certas
condições, qualquer peça do holograma reconstitui a imagem completa, ele sugere
como equivocada a divisão entre todo e partes (Collier, 1968).
Doença e cura são, nesse sentido, considerados fenômenos complexos que, para
serem dimensionados, exigem uma perspectiva que inclua aspectos físicos,
psicológicos, sociais, culturais, ambientais e espirituais. Perceber esses
fenômenos a partir de apenas um desses componentes significa, para a população
pesquisada, uma percepção parcial e incompleta. A medicina científica ocidental
moderna, ao focalizar apenas o lado biológico, propõe uma prática parcial e
reducionista, uma perspectiva estreita que necessita ser ampliada para dar
conta dos problemas engendrados pelos fenômenos da saúde e da doença.
O ponto que merece ser destacado nesta postura é o fato de que a superação do
paradigma mecanicista não significa a sua exclusão, mas sim a sua
transcendência. O trecho de entrevista abaixo confirma esse aspecto.
"Nós precisamos de pessoas capacitadas a realizar um ato médico
especializado, mas que tenha por trás a visão integrada do todo. Não somos
contra a formação de especialistas, desde que esta pessoa saiba enxergar o
indivíduo de uma forma mais ampla, inserida num contexto social, entendendo
essa pessoa biologicamente, psiquicamente e, até mesmo, espiritualmente. O
médico precisa aprender a superar a dicotomia tradicional entre médico
especialista ou generalista, e a perspectiva holística significa exatamente
esta superação"(Médica e professora da PUCCAMP).
No novo paradigma holístico, a divisão cartesiana entre corpo e mente é
superada por uma perspectiva que integra esses dois elementos em uma dimensão
em que a mente assume importância vital. Acredita-se que o estado psicológico
do indivíduo é fundamental tanto na eclosão de uma doença como no
desenvolvimento da cura. Desse modo, reconhece-se a emoção positiva como um
sinal importante para se estabelecer a saúde e, vice-versa, o estado negativo
para estimular alguma doença. A cura não é, portanto, entendida como algo
proveniente do exterior. Fatores externos podem catalisar o processo,
contribuir para tal, mas não podem curar sem a participação de fatores
presentes no próprio indivíduo, que precisam ser por ele reconhecidos e
promovidos.
Os principais suportes científicos a essa postura, considerados relevantes por
todos os entrevistados, referem-se às idéias de Ivan Illich (Illich, 1975), às
experiências de Carl e Stephanei Simonton (Simonton et al.,1978) e à obra de
Capra (1997). Vamos olhar um pouco mais de perto o sentido do comprometimento
com as idéias desses autores.
A obra "A Expropriação da Saúde", de Ivan Illich, publicada em meados
dos anos 70, constituiu um marco de extrema importância para esse movimento.
Essa obra exprime bem a crítica contra o modo industrial de produção, que, no
caso da medicina moderna, centrada no hospital, ocorre em direção contrária à
capacidade natural do ser humano de promover o equilíbrio necessário para a
produção de sua própria saúde. Um outro aspecto relevante levantado por este
autor é a iatrogenia, ou seja, a produção significativa de doenças decorrentes
de atos médicos mal conduzidos proporcionados em escala industrial,
principalmente pela alta tecnologia hospitalar.
A postura crítica de Illich foi rebatida por Navarro (1976), a partir de um
enfoque marxista ortodoxo. O argumento básico era que Illich propunha uma
revolta no nível cultural, ou seja, no nível da superestrutura, sem considerar
a infra-estrutura econômica e as relações sociais de produção assentadas na
exploração de classe. Sem uma proposta que modificasse fundamentalmente esta
relação, os argumentos de Illich, ou mesmo as propostas da Organização Mundial
da Saúde (OMS), que focalizaremos no tópico seguinte, não passariam de reformas
burguesas sem qualquer alcance revolucionário.
Os Departamentos de Medicina Preventiva de Campinas dividiram-se com respeito a
esta questão. Enquanto a UNICAMP assumiu o ponto de vista teórico de Navarro,
mais comprometida com a extensão da medicina alopática ortodoxa às classes
sociais excluídas do que com a mudança do próprio paradigma dominante da
medicina, na PUCCAMP, prevaleceu o ponto de vista de Illich, comprometido com
uma mudança cultural na cosmovisão da medicina que possibilita, em sintonia com
uma gama de racionalidades médicas alternativas, um controle do paciente sobre
sua saúde. As partes de entrevistas abaixo exprimem esses vários pontos:
"Em 85, entrei para a pós-graduação em saúde coletiva na UNICAMP, mas
cheguei à conclusão de que o seu referencial teórico, o da determinação social
da saúde e doença não dava conta do plano individual, pelo qual eu estava mais
interessada. Ele questionava a medicina do ponto de vista de sua organização,
de sua produção e oferta à população, mas não questionava o paradigma médico e
nem admitia alternativas. Nesse tempo, comecei a ler e me interessar sobre
homeopatia e outras práticas médicas alternativas, mas esse interesse não batia
com a linha de pesquisa que o meu orientador queria pôr em prática. Fui, então,
obrigada a interromper meu mestrado, porque não sabia como prosseguir. Não me
arrependo, porque isso me permitiu estudar o que eu queria. Na PUCCAMP,
encontrei a maior força para prosseguir nesse caminho"(Médica homeopata da
rede básica).
O estudo dos Simontons (Simonton et al., 1978) sobre formas alternativas de
tratamento de câncer nos EUA foi uma outra influência das mais significativas
que, para a maioria dos entrevistados, serve como um esteio teórico em favor do
movimento alternativo. Segundo esses autores, o estresse emocional tem dois
efeitos principais: inibe o sistema imunológico e acarreta desequilíbrios
hormonais, que resultam em um aumento de produção de células anormais. Esses
dois efeitos criam condições ótimas para o desenvolvimento do câncer. É um fato
irrefutável, de acordo com esses oncologistas, que a promoção de estados
emocionais positivos leva o organismo a traduzir esses sentimentos em processos
biológicos, que começam a restaurar o equilíbrio e a revitalizar o sistema
imunológico.
Os Simontons vêem o câncer, portanto, não como um problema meramente físico,
mas como um problema da pessoa como um todo. Assim, a terapia por eles adotada
não se concentra exclusivamente na doença, mas procura intervir principalmente
na atitude subjetiva que o ser humano sustenta diante da vida e de si mesmo.
Trata-se, portanto, de uma abordagem terapêutica psicossomática que tem
resultado para os pacientes em uma sobrevida duas vezes maior do que a das
melhores instituições americanas para o tratamento de câncer e três vezes maior
do que a média americana (Simonton et al., 1978). O trecho de entrevista abaixo
exprime essa questão.
"O contato com as descobertas dos Simontons foi para mim algo fantástico,
porque vinha dar suporte a tudo o que eu estava vivendo. Nessa ocasião, eu
estava me submetendo a um tratamento de homeopatia e de massagem Shiatsu. Eu
estava percebendo que a doença vinha de dentro de mim e que eu teria que
redimensionar toda a minha vida se quisesse conseguir a cura. Foi nesse tempo
que encontrei as descobertas dos Simontons. Foi uma experiência muito positiva
porque integrou o meu aspecto sensitivo e emocional com o intelectual. Foi a
partir daí que me dei conta de que o tratamento que estava experimentando tinha
um suporte teórico que poderia revolucionar toda a medicina e, até mesmo, toda
a Ciência Ocidental Moderna"(Enfermeira e professora da UNICAMP).
Os profissionais entrevistados mencionam a influência de Capra (1997) como o
autor que sistematizou, de um modo consistente, uma dimensão teórica que
justifica a construção de um novo paradigma científico. Segundo este autor, a
física moderna e, em particular, a Teoria dos Quanta, levanta vários problemas
e desafia muitos dos princípios sacramentados pela lógica científica moderna.
Entre esses problemas, a questão da separação entre o sujeito e o objeto, que é
considerado pela ciência positiva clássica como absolutamente necessária para
se obter uma visão objetiva da realidade, é posta em questão.
Uma outra implicação significativa dessa teoria é que a natureza não pode ser
reduzida a entidades fundamentais, mas tem que ser entendida através da
autocoerência, na qual seus elementos constituintes são vistos como uma teia
dinâmica de eventos inter-relacionados em que a coerência total de suas inter-
relações determina a estrutura da teia.
Com base nesses achados, Capra mostra como a revolução científica na física
moderna prenuncia uma revolução iminente em todas as ciências e uma
transformação da nossa visão do mundo e dos nossos valores. A partir da nova
perspectiva proporcionada pela física moderna, este cientista propõe o
surgimento de um novo paradigma baseado em uma concepção sistêmica da
realidade. Capra procura mostrar ainda a compatibilidade dos achados da nova
ciência com as tradições místicas orientais, como a Ayurveda e o Taoísmo. O
trecho de entrevista abaixo mostra a importância desse autor na justificação
teórica da perspectiva alternativa:
"A obra de Capra significa para mim uma base teórica fundamental para
alguém de formação científica poder voltar-se para essas formas de medicina
alternativa sem receio de estar sendo anticientífico ou irracional. O livro
tornou-se minha Bíblia" (Enfermeira e professora da UNICAMP).
Outras influências na perspectiva alternativa
Além das perspectivas teóricas mencionadas acima, um outro ponto extremamente
importante a se destacar nas entrevistas diz respeito ao impacto proveniente
das idéias difundidas pela OMS a partir dos anos 60. Todos os entrevistados
foram, de uma maneira ou de outra, influenciados por essas idéias, que se
manifestaram como respostas positivas à frustração diante do ensino
universitário ou à prática profissional.
De acordo com a OMS, saúde resulta de um bem-estar físico, mental, social e
espiritual, revelando uma perspectiva holística e integradora. Desde 1976, ela
preconiza a utilização de práticas terapêuticas alternativas e não
institucionalizadas e estimula a integração de conhecimentos e técnicas de
eficácia comprovada existentes na medicina ocidental e nos sistemas de medicina
popular tradicional. Na Conferência de Alma-Ata, em 1978 (O'Neal, 1983), a OMS
recomendou formalmente a utilização dos recursos da medicina tradicional e
popular pelos sistemas nacionais de saúde, reconhecendo, inclusive, os
praticantes dessa medicina como importantes aliados na organização e
implementação de medidas para aprimorar a saúde da comunidade.
A palavra de ordem da OMS tem estimulado a formação de um sistema de saúde
baseado em tecnologia simplificada, porém eficaz, e resgate da responsabilidade
da saúde pelo indivíduo. Nessa perspectiva, o terapeuta assume, juntamente com
o paciente, o controle do processo de cura, sem rendição ao paradigma
científico dominante, à lógica burocrática do sistema de saúde, e à indústria
farmacêutica e hospitalar.
Essa postura focalizada em âmbito teórico por O'Neal (1983) mostra também que a
ciência médica está inevitavelmente sujeita à ingerência social, e o tratamento
médico deve ser realizado a partir de um compromisso com a população, no que
diz respeito aos seus símbolos e visões de saúde e doença. Além de reconhecer a
importância das dimensões sócio-culturais e psicológicas na produção de saúde e
doença, a OMS acabou por reconhecer também a importância da dimensão
espiritual.
Uma outra característica desse esquema é que o hospital deixa de ser o centro
do sistema de saúde e passa a exercer uma função meramente auxiliar. O eixo do
sistema passa a ser exercido por uma rede básica, que oferece uma atenção
primária de serviços e saúde, gerenciado pelo poder municipal juntamente com
representantes da comunidade.
No Brasil, no Relatório Final da 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986 (MS,
1986), aparece pela primeira vez, em documento oficial, a proposta de
introdução de práticas alternativas de assistência à saúde, no âmbito dos
serviços de saúde, possibilitando ao usuário o direito democrático de escolher
a terapêutica preferida. Há também, nesse relatório, a recomendação de inclusão
de conhecimento de práticas alternativas no currículo de ensino em saúde. Em
1988, a Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação (CIPLAN),
constituída pelos Secretários Gerais dos Ministérios da Saúde, Previdência e
Assistência Social, Educação e Trabalho, criou diretrizes, procedimentos e
rotinas para a implantação de homeopatia, acupuntura, técnicas alternativas em
saúde mental, termalismo e fitoterapia no Sistema Único de Saúde.
Essas medidas são percebidas como altamente positivas pelos entrevistados que,
no entanto, reconhecem que a sua implementação tem sido problemática. A
introdução de cursos sobre terapias alternativas em faculdades de medicina é
raríssima, enquanto a implementação de terapias alternativas na rede básica de
serviços de saúde corresponde a uma fração ínfima em relação às formas
terapêuticas dominantes da medicina alopática. O trecho de entrevista abaixo
revela esses aspectos:
"A primeira vez que entrei em contato com as idéias difundidas pela OMS
foi a partir da conexão que tive com o Departamento de Medicina Preventiva e
Social. Eu estava muito desiludida com a medicina, mas a partir desse contato,
tudo começou a fazer sentido. Compreendi que a medicina especializada
focalizava tão mal o problema da saúde e da doença, porque ela era dominada
pelo sistema capitalista. Compreendi que a verdadeira medicina teria que se
livrar do seu lado mercantilizado, se dirigir à comunidade e adotar uma postura
integradora. Foi muito frustrante reconhecer essa verdade e perceber a
dificuldade de pô-la em prática numa universidade ou num serviço da rede
pública"(Médica homeopata da rede pública).
O contexto mais amplo do surgimento de propostas alternativas pode ser traçado
a partir do movimento contracultural, tendente ao naturismo e influenciada
pelas civilizações do Oriente. Esse movimento desenvolveu uma atitude de
oposição à sociedade de consumo, à burocracia e à modernidade, em geral. No
âmbito econômico, ao invés de um programa de desenvolvimento assentado na
industrialização indiscriminada, preconizou-se o conceito de desenvolvimento
sustentado, uma forma mais ecológica de interação com o meio ambiente. Nessa
visão de mundo, pressupõe-se uma valorização do corpo, da saúde, da natureza,
do prazer e, principalmente, das emoções positivas.
O taoísmo de Lao-Tsé, o zen budismo, a filosofia mística emanada da Índia, em
um sentido mais amplo, e a acupuntura, a yoga, as técnicas de massagens
orientais e a alimentação macrobiótica, em um sentido mais específico, foram as
principais fontes que, no Brasil, influenciaram o movimento alternativo na área
da saúde. Mais modernamente, com a abertura do Ocidente à China, houve um
renovado interesse pela ciência e arte chinesas. No Brasil, a acupuntura
motivou forte interesse, com vários médicos, professores renomados das
faculdades de ciência médica indo verificar in loco ou mesmo aprender a
novidade. O segmento de entrevistas abaixo mostra esse ponto:
"Desde estudante, sempre me interessei por outros tipos de medicina.
Quando soube que o reitor, juntamente com outros médicos, estavam indo à China
para ver como a acupuntura era empregada em hospitais, fiquei ainda mais
interessada. Cheguei a fazer um tratamento com acupuntura, que resolveu um
problema de alergia que a medicina nunca chegou a curar. Foi a partir daí que
me convenci de que a medicina alopática tem a sua eficácia, mas essa eficácia
não é e nem pode ser universal. Vários problemas que ela não pode resolver
podem ser resolvidos por outros meios e outras tradições científicas ou
populares"(Médica, professora da PUCCAMP).
De um certo modo, todos os entrevistados reconhecem-se como politicamente de
esquerda, mas de uma esquerda aberta, democrática e não-autoritária. Todos são
críticos da sociedade de consumo e favoráveis ao fortalecimento do Estado no
que diz respeito à educação e à saúde. No interior de um Estado fortalecido,
espera-se a implementação de políticas públicas que estimulem o consumo de
medicinas alternativas. Alguns dos entrevistados engajaram-se em movimentos
políticos na juventude. Contudo, atualmente, todos deram evidências de estar
pouco motivados para um engajamento político maior. O trecho de entrevista
abaixo revela essa questão:
"Sempre coloquei a medicina como suprapartidária. Claro que tenho minhas
preferências, eu vou de esquerda, não tem jeito, mas acho que violência não é
solução, é repetição. A minha forma política de ação tem sido lutar pela
homeopatia no serviço público. O Estado tem obrigação de dar educação, de
cuidar da saúde, e nada disso tem sido feito. A gente tem que passar uma
consciência para que o povo possa optar pelo tipo de tratamento que ele deseja,
e não colocar goela abaixo uma verdade que apenas uma facção defende. Medicina
não deveria ser motivada pelo lucro, tem que ser uma obrigação do Estado. Todas
as práticas alternativas deveriam ser igualmente incentivadas. Hoje, os
sistemas alternativos de cura são quase inacessíveis aos pobres"(Médico
homeopata da rede pública).
Entre todos os entrevistados, observou-se uma compatibilidade consistente com o
conhecimento popular e o senso comum e uma recusa a admitir uma divisão radical
entre conhecimento científico e conhecimento popular, em que o primeiro
significa conhecimento verdadeiro e o segundo conhecimento falso. Sendo assim,
se um curandeiro for bem-sucedido na utilização de rituais e cerimônias para
influenciar a mente e as emoções do paciente, aliviando sua apreensão diante da
doença e estimulando poderes curativos naturais que todos possuem, esse
curandeiro estaria executando um papel análogo ao do médico alternativo e
partilhando com este vários pressupostos, como a unidade de mente e corpo, a
influência das emoções e do nível energético sobre a matéria. Dependendo da
crença do paciente e da comunidade que o cerca, esse tipo de enfoque pode ser
altamente eficaz como já o demonstrara Lèvi-Strauss (1970). Todos os
entrevistados consideraram, no entanto, que o grau de conhecimento sistemático
e teórico do médico alternativo é maior, mais universal e mais consistente do
que o do curandeiro.
Os medicamentos naturais de origem popular são levados bastante a sério. Todos
os entrevistados ou receitam ou utilizam ervas medicinais como auxiliares
terapêuticos no tratamento de várias doenças. Eles consideram que o princípio
ativo purificado é menos eficaz como remédio do que o extrato natural da
planta. Trata-se de uma visão oposta à da ciência médica que percebe os
elementos residuais como fatores tóxicos ou limitantes do efeito do principal
ingrediente ativo de um vegetal.
Entre essas várias influências, é importante mencionar que não foi encontrado
qualquer vínculo entre a proposta alternativa e uma proposta religiosa. Todos
os entrevistados rebateram com vigor qualquer tipo de associação mais direta
com esses campos e a mera sugestão foi considerada inoportuna. Diante da
constatação de que muitos curandeiros populares que adotam o espiritismo
kardecista ou a umbanda também adotam a homeopatia (Queiroz, 1982), esta foi
reconhecida como um vínculo que opera em um nível rudimentar, que (embora
mostre compatibilidades com a perspectiva teórica das medicinas alternativas
consideradas) não pode contribuir para o desenvolvimento de um novo paradigma
científico alternativo. Todos os entrevistados consideram a sua prática
influenciada basicamente pela ciência e não pela religião, como mostra o trecho
de entrevista abaixo:
"Essas vinculações que, muitas vezes, se faz entre a homeopatia e
espiritismo só servem para denegrir a homeopatia. Não se deve misturar
conhecimento científico com astrologia, esoterismo e, principalmente, com
religião. O homem é um ser social, é um ser que tem suas crenças, um ser
político, mas o médico, diante do paciente, não pode ter nenhum tipo de vínculo
nessa base. Diante dele, ele não tem religião, nem política, ele é um
profissional que deve estar totalmente aberto para o outro sob a influência do
método científico"(Médico homeopata, professor da UNICAMP).
A busca por uma medicina alternativa
No âmbito psicológico e subjetivo, um padrão comum de comportamento foi
observado em todos os profissionais entrevistados, já no tempo da faculdade:
uma profunda insatisfação com o programa de ensino e com o modo considerado
desumano de se tratar pacientes no hospital. Em todos os casos, constatou-se
uma frustração diante da profissão escolhida, que antecedeu à procura por
alternativas.
Junto a essa frustração que, em alguns casos, chegava a ponto de propor uma
nova profissão, vinha o conflito da exigência de renunciar à conquista de ser
estudante ou jovem profissional da prestigiosa profissão médica. O segmento de
entrevista abaixo focaliza esse ponto:
"Logo depois de entrar na faculdade, quando estava no terceiro ano, sabia
que nunca poderia aceitar tratar doentes como coisas, como acontecia no
hospital. Foi o começo de um tempo em que passei a questionar a prática médica
e, depois, a própria medicina. No início, eu sofri muito e cheguei a pensar que
não tinha vocação para ser médica" (Médica homeopata da rede pública).
O choque da transição da teoria para a prática, do período de estudante para o
de responsabilidade profissional é, particularmente, intenso entre médicos
recém-formados (Fox, 1975). Quando o jovem profissional começa a pôr em prática
o conhecimento adquirido em universidade, percebe logo que o mundo está longe
de ser compatível com a racionalidade ideal da ciência. Além disso, a prática
médica, baseada em decisões que se tomam a partir da racionalidade do sistema
médico-hospitalar, nem sempre está de acordo com o senso moral do profissional.
O tempo de consulta é limitado, os medicamentos são quase que impostos pela
indústria farmacêutica, a decisão sobre um procedimento terapêutico deve se
adaptar às condições e às prioridades existentes. O mercado de trabalho é
competitivo e, muitas vezes, exige desses profissionais vários empregos. Tudo
isso leva o profissional a situações que o predispõe ao estresse, à
insatisfação e ao questionamento.
Além desses fatores, recusar os procedimentos consagrados pela ciência e
abraçar um método alternativo significa um perigo de retrocesso em termos de
ascensão social, já que implica numa renúncia aos caminhos trilhados pela elite
intelectual e uma afirmação de uma proposta que esta elite despreza, ou seja,
uma prática considerada pré-científica. Os trechos de entrevista abaixo enfocam
esse problema:
"Foi na residência em psiquiatria que experimentei o primeiro momento de
crise pessoal em que questionei a orientação da faculdade de medicina. Foi lá
que me dei conta da influência do sistema econômico nas nossas decisões
clínicas e do fato de que os médicos receitavam muito mais de acordo com a
propaganda dos laboratórios do que pelo conhecimento científico. Foi muita
insatisfação e frustração. Quando comecei a me interessar por homeopatia, eu
hesitei muito, fiquei preocupado com o que meu pai, que também é médico, iria
pensar, porque a homeopatia é vista como um método sem base científica"
(Médico homeopata da rede pública).
"Em 1991, entrei numa crise pessoal que me obrigou a interromper meu
mestrado na UNICAMP. A crise foi tão grande que me levou à doença física. Foi
uma ruptura em minha personalidade, porque, quando fui entrando em contato com
situações espirituais, comecei a entender uma outra visão de mundo que era
antagônica a tudo que eu tinha estudado. Eu tive que jogar muita coisa fora que
antes eu considerava preciosa"(Médica, professora da PUCCAMP).
As perspectivas de solução para a crise pessoal vieram com o entendimento de
que a medicina então vigente estava subjugada aos interesses do capitalismo e
servia, antes dos propósitos ideais da ciência, à exploração do trabalho e,
conseqüentemente, à injustiça social. Todos os entrevistados perceberam que o
estudo da dimensão social da saúde e da doença poderia trazer de volta a idéia
original de ciência comprometida única e exclusivamente com a verdade. Seis dos
oito entrevistados chegaram a realizar sua residência ou pós-graduação ou em
departamentos de medicina preventiva e social ou em faculdade de saúde pública
e aprofundaram esta compreensão através do contato com as ciências sociais
aplicadas à saúde e à medicina. O trecho de entrevista abaixo mostra bem este
aspecto:
"Logo depois de formada, não demorou muito tempo para ficar completamente
desiludida com a profissão e com meu trabalho. O sofrimento da população, o mau
atendimento, a falta de recursos, a injustiça social, o tipo de atenção que não
vai às causas da doença, tudo isso foi me abalando e me fazendo buscar
alternativas de vida. O tempo passava, e após dez anos nesse tipo de trabalho,
eu não agüentava mais. Então, resolvi voltar a estudar, que significava para
mim preencher um espaço mais nobre de pensar o problema saúde em termos
sociais. Essa decisão significou para mim uma questão de sobrevivência em
termos pessoais e espirituais"(Enfermeira e professora da UNICAMP).
Todos os que perceberam uma saída para sua angústia profissional na perspectiva
acadêmica voltada para as ciências humanas viram-se em um impasse, diante da
constatação de que a perspectiva social da saúde e medicina era uma dimensão
limitada, como mostra o trecho de entrevista abaixo:
"Depois da crise que sofri a partir do terceiro ano da faculdade, acabei
fazendo residência em medicina preventiva. Embora tenha reconhecido que essa
decisão foi importante e, sem querer desmerecer a qualidade de uma medicina que
tem o social como parâmetro, ao final da residência, cheguei à conclusão que
essa experiência foi insuficiente para alimentar os meus anseios por uma
medicina mais holísica, mais próxima da experiência emocional e de vida do
paciente"(Médica homeopata da rede básica).
A opção por algum tipo de medicina alternativa não significa negar os
procedimentos da medicina oficial, mas incluí-la em uma dimensão mais
abrangente. Com respeito a doenças infecciosas agudas em organismos
fragilizados, por exemplo, nenhum dos entrevistados foi radical a ponto de
descartar totalmente o tratamento alopático. Todos os entrevistados chegaram à
conclusão de que há casos em que a prática alternativa não dá conta, sendo
necessário recorrer a um especialista. O segmento de entrevista abaixo
dimensiona esse aspecto:
"Os medicamentos alopáticos são necessários. Seria loucura lutar contra os
antibióticos. Não se luta contra a alopatia, mas a favor de algo mais sutil no
enfoque de saúde e doença. Embora a alopatia não seja dona da verdade inteira,
há momentos em que ela é fundamental. A homeopatia e a alopatia são coisas que
se somam; não se subtraem, se complementam"(Médico homeopata da rede
básica).
De todas as formas alternativas, a homeopatia foi a que mais facilmente se
relacionou com o sistema público de saúde graças a três fatores principais: o
peso de sua tradição no Brasil (Luz, 1996); o fato de já ser considerada uma
especialização médica; e, finalmente, o fato de estar experimentando uma
revitalização de suas propostas e contar com centros atuantes, principalmente
em São Paulo e Rio de Janeiro. Embora reconhecida como especialidade médica
pelo Conselho Federal de Medicina, os entrevistados nesta pesquisa se
aproximaram da homeopatia fora do ambiente universitário oficial.
Uma vez que o profissional da saúde conseguiu criar um caminho alternativo no
serviço público ou na universidade, ele revela estar plenamente realizado,
consciente da dificuldade da sua conquista em um mundo pouco tolerante com
dissidências ao paradigma positivista. Como representante de um paradigma não
hegemônico, a qualquer momento pode haver alguma forma de constrangimento, que
vai desde uma crítica tolerante até um cerceamento às suas atividades, sob a
alegação de estar exercendo uma atividade não-científica. Um projeto de
pesquisa ou um pedido de participação em congresso internacional podem ser, por
esse motivo, recusados, mesmo que sejam consistentes teoricamente.
No entanto, apesar de haver um certo perigo, principalmente em tempos em que os
setores públicos, como a universidade, estão lutando por verbas cada vez mais
escassas, há uma atmosfera de otimismo entre os profissionais que optaram por
um caminho alternativo na prática ou na teoria médica. Todos consideraram que a
crise na medicina mecanicista veio para ficar e que os paradigmas alternativos
são respostas adequadas a essa crise. Os trechos de entrevista abaixo apontam
esse aspecto:
"No começo, a terapia floral no serviço provocou um certo espanto entre os
colegas. Escutei muita coisa desagradável, mas, com o tempo, as pessoas se
acostumaram com a minha prática. A equipe de auxiliares de saúde e alguns
colegas começaram a ver o trabalho dar resultado. Eles passaram a me encaminhar
os piores casos e, principalmente os auxiliares de enfermagem, começaram a se
tratar comigo"(Médica e professora da PUCCAMP).
"A Ciência, hoje, é extremamente materialista, pesada e sem encantos. A
proposta que eu apresento é, muitas vezes, percebida como um bálsamo, um alívio
romântico, que tem a sua beleza, mas que não é prática, não é viável. Na
universidade, os professores, movidos por uma forte linha ideológica, são ainda
mais radicais e intolerantes. A influência do marxismo é muito grande, e a
minha proposta é vista como ingênua, romântica ou mesmo ridícula. Eu não ligo,
porque, sem confrontar ninguém, sem fazer muito barulho, eu contribuo para o
crescimento do movimento holístico. Um dia, eu não tenho dúvidas de que ele
será hegemônico"(Enfermeira e professora da UNICAMP).
Considerações finais
A partir da perspectiva aberta pelas representações sociais de profissionais
das duas maiores universidades e da rede básica de serviços de saúde de
Campinas, este artigo mostrou o significado simbólico relacionado ao termo
"medicina alternativa", assim como o sentido forjado pela experiência
de vida profissional desses atores sociais. Vimos que a postura de uma medicina
alternativa não se coloca em oposição diante da postura tradicional
representada pela medicina alopática, mas como uma dimensão que procura abarcá-
la e, ao mesmo tempo, transcendê-la. Vimos também que, por detrás de grande
diversidade de formas terapêuticas, provenientes de diversas tradições, há um
sentido a unificá-las.
A ênfase no indivíduo (tomado como uma totalidade que compreende, além de seu
corpo, sua interação social e familiar, suas crenças e valores, sua atitude
diante da vida e da morte, sua noção de identidade, suas emoções, sua vida
afetiva e sexual, seu trabalho e sua história pessoal) é fundamental na
perspectiva alternativa. A doença, antes de ser percebida como um mero agente
agressor externo que precisa ser combatido, é considerada como um distúrbio no
equilíbrio desses vários elementos. A terapêutica lida com um nível energético
vital que, supõe-se, antecede e determina, em última instância, as
manifestações mecânicas no nível orgânico.
O artigo mostra, também, que o médico alternativo reconhece o problema que
acomete o doente, através da sensibilidade, da intuição e do aspecto emocional
relacionado com a empatia estabelecida no relacionamento médico-paciente. Sem
excluir a razão e os princípios básicos da ciência, esses atributos são
considerados fundamentais para o exercício profissional desse tipo de medicina.
Nesse sentido, as práticas alternativas colocam-se numa posição radicalmente
contrária à da medicina científica alopática, que adota, numa postura derivada
do positivismo, uma divisão rígida entre sujeito e objeto, em que quanto maior
a distância emocional do paciente, maior a objetividade.
Ao final desse artigo, após ter dimensionado o sentido da dissidência teórica e
epistemológica de intelectuais diante do modelo científico hegemônico em
ambiente universitário e da rede pública de serviços de saúde, cabe ainda uma
palavra em favor da convivência democrática de diferentes paradigmas e
abordagens científicas. É um pressuposto teórico fundamental deste trabalho a
proposição de que um projeto teórico que dimensione uma realidade humana a
partir de vários ângulos, projetando nela aspectos objetivos e subjetivos,
sincrônicos e diacrônicos, estruturais e processuais, planos e profundos,
produziria uma realidade mais rica do que a proposta unidimensional presente no
paradigma científico hegemônico em nosso tempo.
Decorre desse pressuposto que, diante do contato com uma realidade estranha e
incompatível com seus valores e medidas, ao invés de se desintegrar na
relatividade, o pensamento científico teria exatamente, neste momento, a chance
de se renovar e de crescer, escapando do enrijecimento dogmático e carência de
vigor criativo. O verdadeiro papel da ciência humana nesse contexto seria,
portanto, encontrar perspectivas mais universais que, embora assentadas num
determinado paradigma, no interior de uma determinada cultura, teria como
horizonte transcender qualquer sociedade, cultura ou momento histórico
particular.
É nesse contexto que faz sentido desvendar sistemas de pensamentos deixados de
lado pelo desenvolvimento da história e marginalizados pelo paradigma dominante
de nosso tempo, principalmente aqueles que se preocupam com o sentido e o
significado íntimo das coisas, com o númeno, que, desde Kant, foi considerado
incognoscível e descartado pelo pensamento científico, por não poder ser medido
e submetido às leis matemáticas. A característica fundamental dessa postura é
trazer à tona, no momento mesmo da produção científica, dimensões que foram,
desde Descartes, excluídas do campo de possibilidades de geração de
conhecimento científico válido. Trata-se da sensibilidade, da intuição e da
emoção que, quando harmonizados em sintonia com o intelecto, podem gerar
estados mentais favoráveis ao dimensionamento de um mundo mais profundo e pleno
de sentido.
Contudo, o interesse renovado no interior do pensamento científico moderno de
questões relacionadas com significado, sentido e valor, apreendidas por
faculdades humanas, tais como emoção, intuição e sensibilidade, expressa o fato
de que o saber se processa dialeticamente e de que a experiência adquirida pela
humanidade não precisa ser esquecida no desenvolvimento da história. Nesse
contexto teórico, as propostas alternativas estudadas neste artigo mostram não
apenas iniciativas individuais que se posicionam em sentido contrário à
tendência dominante, mas iniciativas que, em um sentido mais amplo, exercem, em
relação ao desenvolvimento da ciência, uma influência que a induz a um
progresso qualitativo.
Agradecimentos
Agradeço à Profa. Dra. Luisa Seravalle pela contribuição para a realização de
algumas das entrevistas contidas no artigo e à FAPESP, CNPq e FAEP pelo apoio
recebido para desenvolver este trabalho.