Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores
associados e padrões de renda per capita para redução das iniquidades
Introdução
A Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito ao acesso regular
e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem o
comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais. Sua realização
plena é estratégica para o desenvolvimento e deve ser embasada em práticas
alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e a
sustentabilidade social, econômica e ambiental 1 , 2 , 3 , 4.
Embora a segurança alimentar constitua um direito fundamental, amplamente
reconhecido 5, o número de pessoas com fome no mundo permanece inaceitavelmente
alto. Estima-se que a escassez crônica de alimentos afete aproximadamente 15%
da população mundial 6. Considerada o maior problema solucionável do mundo 7, a
fome lidera a lista dos dez maiores riscos à saúde, matando mais pessoas todos
os anos que doenças como AIDS, malária e tuberculose combinadas 6 , 8. Agravado
pela crise financeira mundial, o contingente de aproximadamente 870 milhões de
pessoas vulneráveis à fome em todo o mundo não deverá apresentar redução
expressiva na próxima década, conforme projeções do Programa Mundial de
Alimentos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/
ONU) 7. O número de famintos poderá se agravar em algumas regiões do mundo,
como por exemplo, na África (regiões norte e abaixo do Saara) e no oeste da
Ásia, possivelmente porque as políticas direcionadas à solução do problema não
estão surtindo os efeitos esperados 6. O destaque positivo na redução da fome e
da miséria extrema na última década foram os países da América Latina, em
especial o Brasil 1 , 7. Políticas bem-sucedidas de inclusão social e de
ampliação da renda dos mais pobres continuarão críticas para a plena efetivação
do direito à segurança alimentar no país e no mundo 9 , 10.
A relevância social do problema e a necessidade de entender seus riscos e de
subsidiar a tomada de decisão mobilizaram a realização de estudos em diversos
países, estimulando o desenvolvimento de instrumentos e escalas de avaliação da
segurança alimentar 4 , 11 , 12 , 13 , 14 , 15 , 16 , 17. A medida direta da
segurança alimentar é um indicador essencial na avaliação de iniquidade social,
delimitando com propriedade os grupos com vulnerabilidade social 18. A Escala
Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), adaptada da versão produzida pelo
Departamento de Agricultura dos Estados Unidos 12 , 19, engloba questões que
identificam desde a angústia com a incerteza de dispor regularmente de comida
(insegurança leve), até a vivência de não ter o que comer por todo um dia
(insegurança grave) 20 , 21.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), em 2004,
33% das famílias residindo na zona urbana do Brasil estavam em insegurança
alimentar e 6% apresentavam a forma grave. A prevalência de insegurança
alimentar grave foi maior no Nordeste (13,2%) e menor no Sul (3,9%) 22. Em
2006, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) identificou uma
prevalência de 32% de insegurança alimentar em domicílios com mulheres de 15 a
49 anos de idade 23. Estudo realizado em Campinas (São Paulo) em 2003
identificou a prevalência de insegurança moderada ou grave de 20,4%,
enfatizando a utilidade da medida combinada para a análise e, principalmente,
para identificar indivíduos em situações de falta quantitativa e/ou qualitativa
de alimentos 18.
Apesar dos avanços das políticas de inclusão social do país nos últimos anos, a
insegurança alimentar ainda é um grave problema, especialmente entre os 16
milhões de brasileiros vivendo na pobreza extrema 9. Além disso, o país
apresenta grandes variações inter e intrarregionais na ocorrência de
insegurança alimentar, sendo importante realçá-las e analisá-las
criteriosamente para subsidiar as políticas públicas.
Nesse contexto, o artigo examina a insegurança alimentar em domicílios urbanos
com crianças menores de sete anos de idade das áreas de abrangência de unidades
básicas de saúde (UBS) do Nordeste e do Sul, regiões de maior contraste do
problema no país, além de identificar diferenças na ocorrência da forma
moderada ou grave e fatores associados. O artigo também estima a iniquidade na
ocorrência da insegurança alimentar e discute esforços no enfrentamento do
problema, avaliando as contribuições de diferentes padrões de renda per capita
mínima na redução proporcional da magnitude do problema.
Metodologia
Estudo transversal, de base comunitária, em setores censitários urbanos da área
de abrangência de UBS tradicionais e de saúde da família, buscou domicílios nas
regiões Nordeste e Sul, nos quais residissem crianças menores de sete anos e
suas famílias. O estudo da segurança alimentar integra o projeto Perfil
Epidemiológico dos Beneficiários do Programa Bolsa Família e Desempenho dos
Serviços Básicos de Saúde , com o objetivo de avaliar a situação de saúde, de
utilização de serviços e de qualidade da atenção básica à saúde entre
beneficiários do Programa Bolsa Família e não beneficiários com e sem perfil de
elegibilidade.
Os domicílios estudados nas regiões Nordeste e Sul foram selecionados por meio
de amostras independentes. O ponto de partida do plano amostral foi o cálculo
do tamanho de amostra necessário ao exame dos objetivos do projeto em cada
região. Com nível de 95% de confiança e poder estatístico de 80%, uma amostra
de cerca de 5 mil domicílios localizados em cada região, incluindo o acréscimo
de 10% para compensar perdas e recusas e de 50% para minimizar o efeito de
delineamento, seria suficiente para examinar diferenças nas prevalências de
insegurança alimentar moderada ou grave a partir de 2% em não expostos e 4% em
expostos.
A amostra foi localizada em municípios cuja cobertura da Estratégia Saúde da
Família (ESF) variava entre 30% e 70%. Essa opção decorrente do Projeto maior
buscou viabilizar a identificação de UBS de saúde da família e tradicionais, em
municípios de diferentes portes populacionais. Com base nos dados
disponibilizados pelo Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde
(DAB/MS) e atualizados para setembro de 2009, entre os 1.794 municípios da
Região Nordeste, 124 (6,9%) foram classificados nessa faixa de cobertura. Entre
os 1.188 municípios da Região Sul, 120 (10,1%) estavam na mesma faixa de
cobertura.
Para a seleção aleatória, os municípios foram estratificados em quatro portes
de população, de 10 mil a menos de 20 mil habitantes; de 20 mil a menos de 50
mil; de 50 mil a menos de 100 mil; e de 100 mil a um milhão de habitantes.
Somando-se as populações urbanas desses municípios foi possível calcular uma
distribuição porcentual da população urbana em cada porte dos municípios
elegíveis. A amostra foi alocada proporcionalmente à distribuição da população
urbana em cada porte. Os municípios selecionados aleatoriamente na Região Sul
foram: no Rio Grande do Sul – Candelária, Ijuí, São Francisco de Assis, São
José do Norte, São Lourenço do Sul, Sarandi, Serafina Corrêa e Soledade; em
Santa Catarina – Blumenau, Brusque, Criciúma, Curitibanos e Itajaí; no Paraná –
Araucária, Cianorte, Guaíra, Mandaguari e Palmas. Na Região Nordeste, a seleção
aleatória incluiu os seguintes municípios: na Bahia – Camaçari, Ipiaú, Maracás,
Miguel Calmon, Santo Amaro, Senhor do Bonfim, Una e Vitória da Conquista; em
Pernambuco – Barreiros, Bom Conselho, Cabo de Santo Agostinho, Cabrobó,
Jaboatão dos Guararapes e São José do Belmonte; no Ceará – Boa Viagem, Caucaia
e Independência.
Estimando-se em 1.000 pessoas por setor censitário, obteve-se o número de
setores por porte populacional. Objetivando a dispersão da amostra, optou-se
por localizar uma cota de 27 crianças em cada setor. As UBS urbanas de cada
município foram selecionadas aleatoriamente, com base em lista com
identificação do endereço, do modelo de atenção (saúde da família ou
tradicional) e dos setores censitários em sua área de abrangência. Por
conveniência foram selecionados dois setores censitários para cada UBS
amostrada, um incluindo o serviço e outro contíguo. Em cada domicílio foram
entrevistadas todas as crianças da faixa etária.
A coleta dos dados foi realizada entre agosto e outubro de 2010, por 32
entrevistadores treinados divididos em 16 equipes. Metade dos entrevistadores
foi alocada em trajeto na Região Nordeste e a outra em trajeto no Sul. Em cada
trajeto foi utilizado no mínimo um supervisor de campo por município, além do
acompanhamento presencial e a distância realizado por equipe de coordenação do
projeto. Utilizou-se um personal digital assistant (PDA) para a coleta
eletrônica dos dados, que dispunha de Sistema de Posicionamento Global (GPS –
Global Positioning System ). A programação eletrônica do instrumento foi
desenvolvida pela própria equipe de pesquisa. O questionário foi respondido
pela mãe biológica ou, na sua ausência, por um responsável da criança menor de
sete anos residente no domicílio. O chefe da família foi identificado pela
pessoa entrevistada. O controle de qualidade da coleta de dados foi realizado
por supervisores de campo em 5% dos domicílios estudados.
A variável dependente foi avaliada com a EBIA, que por meio de 15 questões
classifica um domicílio em segurança ou em insegurança alimentar, que pode ser
leve, moderada ou grave. O domicílio é considerado seguro quando tem acesso
regular e permanente a alimentos de qualidade em quantidade suficiente. A
insegurança alimentar leve está presente quando em um domicílio há preocupação
ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro e a qualidade é
considerada inadequada. A insegurança moderada expressa a redução da quantidade
de alimentos entre adultos e o comprometimento da qualidade da alimentação. Já
a insegurança grave é constatada com a redução quantitativa de alimentos entre
crianças e a ocorrência de fome entre pessoas adultas e/ou crianças de uma
família (quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro) 12 ,
22. Na análise de fatores associados optou-se por agregar a insegurança
moderada ou grave tanto para análise bivariada como para a multivariada. Essa
combinação evidencia a prevalência de indivíduos que vivenciavam a fome e
também aqueles que experimentavam falta regular de alimentos. Essa opção também
reforça a eficiência estatística na análise dos dados 18.
As variáveis independentes utilizadas para a análise dos fatores associados
foram: sexo do chefe da família (masculino, feminino); idade do chefe da
família em anos completos (até 29, 30 a 44, 45 a 59, 60 ou mais); cor da pele
materna autorreferida (branca, parda ou mestiça, preta, indígena), amarela);
número de moradores com menos de sete anos (um, dois, três ou mais); número de
moradores entre sete e 17 anos (nenhum, um, dois ou mais); número de moradores
entre 18 e 59 anos (até um, dois, três, quatro ou mais); número de moradores
com 60 anos ou mais (nenhum, um ou mais); trabalho atual do chefe da família
(com carteira assinada, sem carteira assinada, conta própria, não está ou nunca
trabalhou, outros); escolaridade materna em anos (≤ 4, 5 a 8, ≥ 9); renda
familiar per capita em reais – incluindo o valor do Bolsa Família (0 a 70, > 70
a 105, > 105 a 140, > 140 a 175, > 175 a 210, > 210 a 300, > 300); e
recebimento de Bolsa Família (não, sim). As variáveis maternas cor da pele e
escolaridade foram utilizadas na caracterização domiciliar por ausência desta
informação para o chefe da família. O salário mínimo à época da coleta de dados
era de R$510,00.
Os dados foram analisados no programa Stata, versão 12.0 (Stata Corp., College
Station, Estados Unidos). Realizou-se análise multivariável usando-se a
regressão de Poisson com estimativa robusta da variância, adotando o ajuste
“para trás” ( backward elimination ). Essa estratégia analítica pressupõe a
inclusão no modelo de ajuste de todas as variáveis em estudo. Após o primeiro
ajuste, identificou-se a variável com maior valor de p > 0,20, sendo excluída
do próximo ajuste. Em seguida, realizamos sucessivos ajustes, excluindo, a cada
vez, a variável com maior valor de p > 0,20. Esse processo foi repetido
enquanto restaram, no modelo, variáveis com valor de p > 0,20. Essa estratégia
analítica e a manutenção no modelo de variáveis com valor de p < 0,20 tem sido
recomendada por diversos autores 24 , 25 para o melhor ajuste de fatores de
confusão e a obtenção de um modelo sintético na explicação da variabilidade do
desfecho. Em consequência, os valores de p, as razões de prevalência e os
intervalos de confiança do modelo final refletem o ajuste para todas as
variáveis com valor de p < 0,20. Associações com valor de p ≤ 0,05 foram
consideradas estatisticamente significativas. A estratégia também é útil
considerando que as variáveis independentes examinadas são de natureza
demográfica e socioeconômica, incluídas, portanto, em um mesmo nível de
determinação, dispensando a necessidade de modelos de análise com múltiplos
níveis de determinação.
Para verificar a fração atribuível (FAP) a diferentes padrões de renda per
capita mínima (R$70,00, R$140,00 e R$175,00) na redução de insegurança
alimentar moderada ou grave na população, utilizou-se a seguinte fórmula: FAP =
(% exposição * RR bruto – 1) / [1+ (% exposição *RR bruto – 1)] 26. As
diferenças entre médias e medianas de renda familiar per capita entre as
variáveis associadas ao desfecho após ajuste foram verificadas usando-se o
valor de p.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Pelotas, conforme ofício n o 133/09, de 21 de dezembro
de 2009, e o consentimento informado foi obtido de todos os entrevistados.
Resultados
A amostra foi composta por 5.419 domicílios na Região Nordeste e por 5.081 na
Região Sul. Perdas e recusas totalizaram 2% em ambas as regiões.
A proporção de domicílios com mulheres chefe da família foi 24% maior no
Nordeste (31,5%) do que no Sul (25,5%). A média de idade dos chefes de família,
em anos, foi de 39,3 (DP = 13,4) no Nordeste e 37,5 (DP = 11,6) no Sul.
Domicílios do Nordeste e do Sul apresentaram proporções semelhantes de
moradores nos diferentes grupos etários. O porcentual de mães com até quatro
anos de estudos foi de 15,3% nos domicílios do Nordeste e 11,1% no Sul.
Diferenças marcantes foram evidenciadas em relação à cor da pele materna,
trabalho atual do chefe da família, renda per capita e recebimento do Bolsa
Família. Nos domicílios do Nordeste, a cor da pele materna predominante foi
parda/mestiça (72,6%), mais de um quarto dos chefes de família estava sem
emprego, em apenas 22,1% a renda mensal per capita era superior a R$300,00 e
47,4% recebiam Bolsa Família, sendo 85,8% há mais de seis meses. Na Região Sul,
a expressiva maioria dos domicílios apresentava mães com cor da pele branca
(70%), quase a metade dos chefes de família (48,6%) estava trabalhando com
carteira assinada, 62,8% das famílias possuíam renda per capita maior que
R$300,00 ao mês e 16,3% eram contempladas com Bolsa Família, sendo 81,4% há
mais de seis meses ( Tabela_1 ). Apenas 1,0% dos domicílios do Nordeste (n =
64) e 0,4% dos domicílios do Sul (n = 18) foram identificados na categoria sem
rendimento.
Tabela 1 Descrição das características sociodemográficas de domicílios urbanos
com crianças menores de sete anos das regiões Nordeste e Sul do Brasil, 2010.
Região Nordeste (n = Região Sul (n =
Variáveis 5.419) 5.081)
n % n %
Sexo do chefe da família
Masculino 3.500 68,5 3.699 74,5
Feminino 1.612 31,5 1.263 25,5
Idade do chefe da família (anos
completos)
Até 29 1.359 26,7 1.344 27,2
30-44 2.184 43,0 2.447 49,5
45-59 1.064 20,9 882 17,9
60 ou mais 478 9,4 267 5,4
Cor da pele materna
Branca 1.090 21,6 3.512 70,0
Parda/Mestiça 3.587 71,2 1.328 26,5
Preta 325 6,5 133 2,7
Indígena/Amarela 36 0,7 39 0,8
Moradores com menos de 7 anos
1 3.594 70,0 3.648 73,4
2 1.244 24,3 1.071 21,5
3 ou mais 290 5,7 253 5,1
Moradores entre 7 e 17 anos
Nenhum 2.640 51,5 2.693 54,1
1 1.561 30,4 1.476 29,7
2 ou mais 927 18,1 803 16,2
Moradores entre 18 e 59 anos
Até 1 561 10,9 389 7,8
2 3.178 62,0 3.298 66,3
3 697 13,6 759 15,3
4 ou mais 692 13,5 526 10,6
Moradores com 60 anos ou mais
Nenhum 4.409 86,0 4.415 88,8
1 ou mais 719 14,0 557 11,2
Situação de trabalho atual do chefe da
família
Com carteira assinada 1.628 32,0 2.402 48,6
Sem carteira assinada 933 18,3 493 10,0
Conta própria 908 17,8 960 19,4
Não está trabalhando/Nunca trabalh1.388 27,3 844 17,1
Outros 236 4,6 240 4,9
Escolaridade materna (em anos
completos)
Até 4 710 15,3 531 11,1
5-8 1.540 33,2 1.690 35,3
9 ou mais 2.392 51,5 2.570 53,6
Renda familiar per capita (em R$)
0-70 666 14,5 110 2,5
> 70-105 505 11,1 136 3,0
> 105-140 623 13,6 205 4,5
> 140-175 617 13,4 264 5,8
> 175-210 465 10,1 273 6,0
> 210-300 695 15,2 699 15,4
> 300 1.017 22,1 2.844 62,8
Bolsa Família
Não 2.685 52,6 4.148 83,7
Sim 2.418 47,4 806 16,3
As estimativas sociodemográficas da Tabela_1 apresentaram padrões variáveis de
perda de informação. De modo sistemático, a perda de informação foi maior no
Nordeste (média 7,4%) do que no Sul (média 3,4%), e para as variáveis
socioeconômicas (média 7,9%) do que as demográficas (média 4,0%). Escolaridade
materna (média 10,0%) e renda familiar per capita (média 13,1%) apresentaram as
maiores perdas.
A insegurança alimentar foi observada em 54,2% dos domicílios do Nordeste e em
27,3% dos domicílios do Sul. Na Região Nordeste as prevalências de insegurança
alimentar leve (31,3%), moderada (13,4%) e grave (9,5%) foram
significativamente maiores quando comparadas às respectivas prevalências de
19,8%, 4,7% e 2,8% na Região Sul. A insegurança alimentar moderada ou grave
alcançou 22,9% (IC95%: 21,7%-24,1%) dos domicílios do Nordeste e 7,5% (IC95%:
6,7%-8,2%) dos domicílios da Região Sul ( Figura_1 ).
Figura 1 Prevalência (%) de segurança e insegurança alimentar de domicílios
urbanos com crianças menores de sete anos das regiões Nordeste e Sul do Brasil,
2010.
Em ambas as regiões, maiores prevalências de insegurança alimentar moderada ou
grave foram evidenciadas em domicílios nos quais a mulher era a chefe da
família, a cor da pele materna era preta ou parda, havia maior número de
moradores com até sete anos, entre 7 e 17 anos e no máximo um entre 18 e 59, o
chefe da família trabalhava sem carteira assinada ou não estava trabalhando/
nunca havia trabalhado, a escolaridade materna e a renda per capita eram
menores e recebiam o Bolsa Família (Tabela_2).
Tabela 2 Prevalência (%) de insegurança alimentar segundo as características
sociodemográficas de domicílios urbanos com crianças menores de sete anos das
regiões Nordeste e Sul do Brasil, 2010.
Região Nordeste (n = Região Sul (n =
Variáveis 5.419) 5.081)
Leve Moderada Grave Leve Moderada Grave
Sexo do chefe da família
Masculino 31,6 11,8 7,6 18,3 3,7 1,9
Feminino 30,8 16,8 13,7 24,3 7,5 5,5
Idade do chefe da família (anos
completos)
Até 29 32,8 15,3 9,7 20,8 5,3 2,2
30-44 30,8 11,7 9,2 18,3 4,7 3,1
45-59 31,8 15,0 10,1 21,9 3,8 3,1
60 ou mais 28,6 12,2 8,3 22,7 4,7 2,7
Cor da pele materna
Branca 30,1 10,2 6,7 18,5 3,8 2,0
Parda/Mestiça 31,4 14,2 9,7 22,3 7,2 4,4
Preta 34,3 12,6 14,8 28,1 4,7 7,0
Indígena/Amarela 26,5 14,7 14,7 25,0 0,0 8,3
Moradores com menos de 7 anos
1 32,0 11,8 7,0 18,4 3,9 2,2
2 30,2 15,9 14,0 22,5 6,6 3,7
3 ou mais 28,1 21,2 21,6 28,8 8,0 7,6
Moradores entre 7 e 17 anos
Nenhum 31,4 11,8 6,0 17,7 3,4 1,5
1 30,0 13,8 9,4 20,3 4,9 2,5
2 ou mais 33,1 17,1 19,8 26,0 8,6 7,7
Moradores entre 18 e 59 anos
Até 1 29,4 18,3 15,1 24,5 8,4 7,1
2 31,4 12,4 8,1 18,9 4,5 2,2
3 33,7 12,8 11,3 21,1 4,5 3,1
4 ou mais 30,2 14,4 10,0 20,2 3,4 3,2
Moradores com 60 anos ou mais
Nenhum 31,6 13,7 9,9 19,5 4,6 2,8
1 ou mais 29,4 11,4 7,3 22,4 5,1 2,6
Situação de trabalho atual do chefe da
família
Com carteira assinada 31,6 9,3 4,5 18,3 3,5 1,5
Sem carteira assinada 33,6 16,4 11,8 22,5 5,6 5,6
Conta própria 29,0 12,1 9,1 20,0 3,6 2,4
Não está trabalhando/Nunca trabalh31,8 17,2 14,4 25,4 9,2 6,1
Outros 25,6 12,6 8,4 8,8 2,6 0,9
Escolaridade materna (em anos
completos)
Até 4 30,1 18,0 18,0 27,3 9,8 7,0
5-8 33,9 15,8 11,1 24,0 6,1 4,1
9 ou mais 30,4 9,9 4,0 15,2 2,3 0,8
Renda familiar per capita (em Reais)
0-70 30,6 23,0 27,0 26,9 18,5 21,3
> 70-105 33,9 20,0 18,8 35,1 17,2 18,7
> 105-140 38,7 17,8 12,6 35,0 14,8 8,4
> 140-175 37,9 15,8 7,5 31,2 10,4 6,9
> 175-210 35,3 13,4 4,2 32,2 9,9 2,7
> 210-300 32,8 8,4 3,1 24,9 5,7 2,9
> 300 20,7 3,5 0,8 14,6 1,8 0,5
Bolsa Família
Não 28,9 9,4 5,5 17,1 3,2 1,7
Sim 34,0 17,7 14,0 33,5 12,2 8,4
Na Região Nordeste, a análise bruta evidenciou associações significativas (p <
0,05) entre insegurança alimentar moderada ou grave e todas as variáveis
independentes. Na Região Sul, as exceções foram idade do chefe da família e
moradores na casa com 60 anos ou mais. Na análise ajustada perderam
significância estatística, em ambas as regiões, as associações com moradores
entre 7 e 17 anos, entre 18 e 59 e trabalho atual do chefe da família. Ainda
perdeu associação o número de moradores até sete anos, na Região Sul, e a idade
do chefe da família e moradores com 60 anos ou mais, na Região Nordeste. Assim,
após ajustes, domicílios chefiados por mulheres apresentaram 1,32 e 1,42 vezes
mais probabilidade de insegurança moderada ou grave quando comparados aos
domicílios chefiados por homens, nas regiões Nordeste e Sul, respectivamente.
No Nordeste, domicílios cujas mães referiram cor da pele parda/mestiça e preta
apresentaram 1,18 e 1,50 vezes mais insegurança moderada ou grave do que os com
mães de cor da pele branca, respectivamente. Já na Região Sul, essas razões
foram de 1,37 para a cor da pele parda/mestiça e 1,69 para a cor da pele preta
(Tabela_3).
Tabela 3 Razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas de insegurança alimentar
moderada ou grave, segundo características sociodemográficas de domicílios
urbanos com crianças menores de sete anos das regiões Nordeste e Sul do Brasil,
2010.
Região Nordeste (n = Região Sul (n =
5.419) 5.081)
Variáveis RP RP RP RP
% bruta ajustada % bruta ajustada
(IC95%) * (IC95%) *
(IC95%) (IC95%)
Sexo do chefe da família p < p < p < p =
0,001 0,001 0,001 0,004
Masculino 19,4 1,00 1,00 5,6 1,00 1,00
1,58 1,32 2,31 1,42
Feminino 30,5 (1,42; (1,18; 13,0 (1,89; (1,12;
1,75) 1,47) 2,81) 1,80)
Idade do chefe da família (anos completos) p = p = p = p =
0,007 0,580 0,842 0,422
Até 29 25,0 1,00 1,00 7,5 1,00 1,00
0,84 0,92 1,04 0,95
30-44 20,9 (0,74; (0,80; 7,8 (0,82; (0,74;
0,95) 1,05) 1,32) 1,21)
1,00 0,95 0,91 0,76
45-59 25,1 (0,87; (0,80; 6,8 (0,67; (0,54;
1,16) 1,14) 1,25) 1,07)
0,82 1,06 1,00 0,85
60 ou mais 20,5 (0,67; (0,74; 7,4 (0,62; (0,52;
1,01) 1,51) 1,60) 1,42)
Cor da pele materna p < p = p < p =
0,001 0,012 0,001 0,011
Branca 16,9 1,00 1,00 5,8 1,00 1,00
1,41 1,18 2,02 1,37
Parda/Mestiça 24,0 (1,22; (1,01; 11,6 (1,65; (1,11;
1,64) 1,38) 2,48) 1,70)
1,62 1,50 2,04 1,69
Preta 27,4 (1,28; (1,18; 11,7 (1,24; (1,04;
2,05) 1,90) 3,34) 2,75)
1,74 1,04 1,45 1,09
Indígena/Amarela 29,4 (1,01; (0,58; 8,3 (0,49; (0,43;
2,97) 1,85) 4,32) 2,79)
p < p = p < p =
Moradores com menos de 7 anos 0,001 0,006 0,001 0,698
** **
1 18,8 1,00 1,00 6,1 1,00 1,00
1,58 1,14 1,69 1,11
2 29,9 (1,42; (1,02; 10,3 (1,36; (0,88;
1,77) 1,29) 2,12) 1,40)
2,27 1,28 2,56 1,04
3 ou mais 42,8 (1,95; (1,08; 15,6 (1,87; (0,74;
2,65) 1,51) 3,51) 1,47)
p < p = p < p =
Moradores entre 7 e 17 anos 0,001 0,290 0,001 0,468
** **
Nenhum 17,7 1,00 1,00 4,9 1,00 1,00
1,31 1,05 1,52 1,14
1 23,2 (1,15; (0,91; 7,4 (1,18; (0,88;
1,48) 1,20) 1,95) 1,48)
2,08 1,12 3,35 1,17
2 ou mais 36,9 (1,84; (0,97; 16,3 (2,65; (0,89;
2,35) 1,28) 4,22) 1,54)
Moradores entre 18 e 59 anos p < p = p < p =
0,001 0,509 0,001 0,933
Até 1 33,4 1,00 1,00 15,5 1,00 1,00
0,61 0,92 0,43 0,98
2 20,5 (0,53; (0,77; 6,7 (0,33; (0,73;
0,71) 1,09) 0,57) 1,33)
0,72 1,02 0,49 1,07
3 24,0 (0,60; (0,84; 7,6 (0,35; (0,73;
0,86) 1,25) 0,70) 1,56)
0,73 0,93 0,43 0,95
4 ou mais 24,4 (0,61; (0,76; 6,6 (0,28; (0,60;
0,88) 1,14) 0,64) 1,51)
Moradores com 60 anos ou mais p = p = p = p =
0,006 0,360 0,841 0,710
Nenhum 23,6 1,00 1,00 7,5 1,00 1,00
0,79 0,92 1,03 1,09
1 ou mais 18,7 (0,67; (0,77; 7,7 (0,76; (0,69;
0,94) 1,10) 1,41) 1,73)
Situação de trabalho atual do chefe da p < p = p < p =
família 0,001 0,256 0,001 0,127
Com carteira assinada 13,8 1,00 1,00 5,0 1,00 1,00
2,05 1,11 2,22 1,15
Sem carteira assinada 28,2 (1,74; (0,93; 11,2 (1,63; (0,84;
2,41) 1,33) 3,03) 1,60)
1,54 1,03 1,19 0,87
Conta própria 21,2 (1,29; (0,85; 6,0 (0,87; (0,63;
1,84) 1,25) 1,62) 1,19)
2,29 1,16 3,05 1,34
Não está trabalhando/Nunca trabalhou 31,5 (1,98; (0,97; 15,3 (2,40; (1,01;
2,66) 1,39) 3,87) 1,78)
1,52 1,30 0,70 0,91
Outros 20,9 (1,14; (0,97; 3,5 (0,35; (0,44;
2,03) 1,73) 1,42) 1,91)
p < p < p < p <
Escolaridade materna (em anos completos) 0,001 0,001 ** 0,001 0,001 **
** **
2,59 1,43 5,40 1,87
Até 4 35,9 (2,24; (1,23; 16,8 (4,03; (1,36;
2,99) 1,66) 7,24) 2,58)
1,94 1,25 3,28 1,65
5-8 27,0 (1,70; (1,09; 10,2 (2,52; (1,25;
2,22) 1,43) 4,28) 2,19)
9 ou mais 13,9 1,00 1,00 3,1 1,00 1,00
p < p < p < p <
Renda familiar per capita (em reais) 0,001 0,001 ** 0,001 8 0,001 **
** **
11,73 8,38 17,48 7,78
0-70 50,1 (8,64; (5,87; 39,8 (12,50; (5,03;
15,93) 11,96) 24,44) 12,04)
9,09 6,85 15,72 8,10
> 70-105 38,8 (6,63; (4,77; 35,8 (11,28; (5,36;
12,46) 9,83) 21,91) 12,25)
7,11 5,69 10,16 5,84
> 105-140 30,3 (5,17; (3,97; 23,2 (7,17; (3,87;
9,78) 8,16) 14,40) 8,80)
5,45 4,77 7,60 4,76
> 140-175 23,3 (3,92; (3,31; 17,3 (5,30; (3,21;
7,58) 6,86) 10,88) 7,06)
4,11 3,88 5,49 3,56
> 175-210 17,5 (2,88; (2,63; 12,5 (3,68; (2,32;
5,87) 5,73) 8,19) 5,47)
2,69 2,57 3,77 2,74
> 210-300 11,5 (1,87; (1,73; 8,6 (2,67; (1,89;
3,86) 3,80) 5,32) 3,98)
> 300 4,3 1,00 1,00 2,3 1,00 1,00
Bolsa Família p < p < p < p =
0,001 0,001 0,001 0,001
Não 14,9 1,00 1,00 4,9 1,00 1,00
2,13 1,26 4,17 1,48
Sim 31,7 (1,91; (1,11; 20,5 (3,43; (1,17;
2,38) 1,42) 5,05) 1,87)
Nota: valor de p: teste de Wald de heterogeneidade.
* Análise de regressão de Poisson “para trás” excluindo sucessivamente no
modelo ajustado as variáveis com valor de p > 0,20;
** Valor de p: teste de Wald de tendência linear.
Na Região Nordeste, o aumento do número de moradores na casa com até sete anos
implicou o crescimento linear do desfecho, sendo a probabilidade de insegurança
moderada ou grave 1,28 vez maior em domicílios com três ou mais crianças. Em
ambas as regiões, a prevalência de insegurança moderada ou grave cresceu
linearmente com a diminuição da escolaridade materna, sendo 43% maior no
Nordeste e 87% maior no Sul em domicílios com mães de até quatro anos de
estudos, em comparação àqueles com maior escolaridade materna (nove anos ou
mais). Famílias com renda per capita de até R$70,00 apresentaram 8,38 e 7,78
vezes mais insegurança moderada ou grave quando comparadas às famílias com
renda maior que R$300,00 per capita nas regiões Nordeste e Sul,
respectivamente. No Nordeste, o recebimento do Bolsa Família se associou com um
incremento do desfecho de 26%, em comparação às famílias que não recebiam o
benefício, enquanto no Sul, esse aumento foi de 48% ( Tabela_3 ).
O cálculo da fração atribuível a diferentes padrões de renda per capita mínima
na redução da insegurança alimentar na população, indica que um padrão mínimo
de renda familiar per capita mensal de R$70,00 reduziria a insegurança
alimentar moderada ou grave em 19,5% no Nordeste e 10,5% no Sul. Caso a renda
familiar per capita mensal fosse, no mínimo, de R$140,00 a redução seria de
46,4% no Nordeste e 34,1% no Sul. Projetando uma renda familiar per capita
mínima de R$175,00 ao mês, a redução seria de 59,5% no Nordeste e 45,4% no Sul.
A Tabela_4 mostra a média e a mediana de renda familiar per capita segundo as
variáveis que apresentaram associação com a insegurança alimentar moderada ou
grave, na análise ajustada. Em ambas as regiões, a média e a mediana da renda
familiar foram menores em domicílios nos quais: o sexo do chefe da família era
feminino; a cor da pele materna era preta, parda/mestiça e indígena/amarela;
havia mais de dois moradores com menos de sete anos; a escolaridade materna era
menor que nove anos e recebiam Bolsa Família.
Tabela 4 Média e mediana de renda familiar per capita (R$) segundo variáveis
sociodemográficas escolhidas * de domicílios urbanos com crianças menores de
sete anos das regiões Nordeste e Sul do Brasil, 2010.
Região Nordeste (n = Região Sul (n = 5.081)
Variáveis associadas com o 5.419)
desfecho Média (DP) Mediana Média (DP) Mediana
(Q25; Q75) (Q25; Q75)
Sexo do chefe da família p < 0,001 ** p < 0,001 p < 0,001 ** p < 0,001
*** ***
Masculino 255 (304) 179 (119; 518 (439) 408 (250;
300) 633)
Feminino 197 (211) 145 (83; 403 (350) 326 (197;
253) 503)
Cor da pele materna p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001
Branca 300 (379) 200 (124; 526 (442) 420 (255;
353) 660)
Parda/Mestiça 221 (249) 167 (102; 404 (363) 315 (195;
266) 500)
Preta 246 (208) 197 (110; 414 (278) 337 (221;
315) 483)
Indígena/Amarela 194 (179) 150 (100; 411 (412) 261 (191;
220) 555)
Moradores com menos de 7 p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001
anos
1 264 (278) 200 (123; 535 (439) 428 (267;
320) 667)
2 189 (297) 140 (89; 387 (347) 300 (181;
206) 475)
3 ou mais 120 (110) 100 (57; 273 (295) 211 (129;
149) 323)
Escolaridade materna (em p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001
anos completos)
Até 4 151 (220) 120 (66; 310 (294) 243 (147;
178) 400)
5-8 176 (143) 150 (93; 360 (253) 300 (193;
217) 467)
9 ou mais 316 (350) 225 (150; 621 (493) 500 (328;
375) 750)
Renda familiar per capita p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001 p < 0,001
(em R$)
0-70 39 (20) 40 (25; 57) 35 (25) 40 (11; 59)
> 70-105 89 (11) 89 (80; 100) 91 (10) 93 (83; 100)
> 105-140 124 (10) 127 (117; 125 (9) 128 (118;
131) 133)
> 140-175 160 (10) 160 (150; 162 (10) 163 (153;
170) 170)
> 175-210 195 (9) 200 (188; 196 (9) 200 (189;
200) 200)
> 210-300 253 (25) 255 (231; 259 (27) 260 (236;
270) 281)
> 300 564 (442) 440 (360; 667 (441) 525 (402;
613) 750)
Bolsa Família p < 0,001 ** p < 0,001 p < 0,001 ** p < 0,001
*** ***
Não 316 (354) 233 (140; 541 (434) 433 (276;
383) 667)
Sim 151 (108) 130 (80; 223 (201) 189 (124;
198) 289)
DP: desvio-padrão; Q25: percentil 25; Q75: percentil 75.
* Associadas com a insegurança alimentar moderada ou grave;
** Valores de p: teste t de student;
*** Valores de p: teste Ranksum;
Valores de p: ANOVA de uma entrada;
Valores de p: Kruska-Wallis.
Discussão
A prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave foi alta em ambas as
regiões estudadas (Nordeste = 22,9%, Sul = 7,5%), sendo três vezes maior no
Nordeste, onde alcança praticamente um em cada quatro domicílios com crianças
menores de sete anos. Condição humana inaceitável, a insegurança alimentar
moderada ou grave confirma sua utilidade enquanto indicador de iniquidades em
saúde, cuja avaliação criteriosa contribui para o dimensionamento de
investimentos e esforços dirigidos à sua solução 18.
As prevalências identificadas são menores do que as observadas na PNAD, em
2004, cujo somatório das prevalências de insegurança alimentar moderada ou
grave foi de 34%, no Nordeste, e 10,8%, no Sul, respectivamente 22. Estudo
realizado em Campinas encontrou 60,5% das famílias vivendo com algum grau de
insegurança alimentar, sendo 40,1% em condição leve e 20,4% em insegurança
moderada ou grave 18. Comparações internacionais mostram que os nossos
resultados são menores do que os encontrados na Nigéria 27, porém maiores do
que os evidenciados no Canadá 3, em 1998/1999, e em domicílios de baixa renda
em Los Angeles, Estados Unidos, em 1999/2000 28, mesmo que estas duas últimas
pesquisas tenham verificado a insegurança alimentar nos últimos 12 meses.
Em comparação com estudos nacionais anteriores, é plausível supor que as
menores prevalências encontradas neste inquérito decorram da redução da pobreza
extrema ocorrida no Brasil no intervalo entre as pesquisas. A redução observada
tem sido atribuída ao crescimento da cobertura de benefícios sociais (Bolsa
Família, Benefício de Prestação Continuada), do emprego formal e, também, ao
aumento real do salário mínimo 18 , 22.
Em relação aos fatores associados, o estudo confirmou as evidências de
publicações internacionais 27 e nacionais 18 , 20 , 29 , 30, que destacam o
papel fundamental da renda na determinação da insegurança alimentar e de
iniquidades em sua ocorrência. Portanto, as estratégias de incremento de renda
em populações vulneráveis por meio do Bolsa Família e de outros benefícios
sociais são essenciais e precisam ser mais efetivas e equânimes.
Considera-se um cenário ideal a garantia de uma renda mínima per capita capaz
de zerar o problema da insegurança alimentar moderada ou grave no país, mas a
redução do problema à metade pode ser mais factível em um contexto de crise
financeira internacional. Assim, projetando uma renda familiar per capita de,
no mínimo, R$175,00, a insegurança alimentar moderada ou grave seria reduzida
em 59,5% no Nordeste e 45,4% no Sul. O resultado expressa a fração atribuível
bruta na população em estudo 26, pois a renda per capita é o maior determinante
da insegurança alimentar 30 e está fortemente associada com as outras variáveis
que aumentaram a probabilidade de insegurança alimentar moderada ou grave
( Tabela_4 ).
Após ajuste, baixa escolaridade materna, cor da pele materna parda e/ou preta,
maior número de crianças com menos de sete anos e famílias chefiadas por
mulheres também aumentaram significativamente as prevalências, evidenciando a
complexidade contextual que marca a ocorrência de desigualdades e iniquidades
na insegurança alimentar moderada ou grave 31.
As análises evidenciaram um padrão de renda familiar per capita (tanto de média
como de mediana) inferior para os domicílios da Região Nordeste e para todas as
associações listadas anteriormente. A probabilidade aumentada de insegurança
alimentar em domicílios chefiados por mulheres também foi observada em outros
estudos 20 , 22 , 23 e necessita de aprofundamento 30. Em ambas as regiões, a
renda média per capita em domicílios com mulheres chefes de família foi cerca
de 30% menor do que em domicílios chefiados por homens. Além disso, a
prevalência de mulheres chefes de família é de, aproximadamente, 75% em
domicílios com apenas um morador com idade entre 18 e 59 anos, passando para
25% quando duas ou mais pessoas do domicílio apresentam esta faixa etária.
Portanto, a maioria das mulheres chefes de famílias vive em domicílios com
menor renda e monoparentais, o que dificulta a dupla atividade do cuidado dos
filhos e da obtenção de alimentos de qualidade em quantidade suficiente.
As maiores probabilidades de insegurança alimentar moderada ou grave observadas
em domicílios onde a cor da pele materna era preta ou parda e naqueles com
menor escolaridade materna, foram marcantes em ambas as regiões e refletem a
situação econômica diferenciada destes domicílios. Em ambas as regiões, a renda
média per capita foi no mínimo 20% menor em domicílios cujas mães referem a cor
da pele preta ou parda/mestiça, em comparação aos domicílios onde a cor da pele
materna é branca, sendo duas vezes menor se a escolaridade materna era de até
quatro anos, comparada com a escolaridade materna de nove anos e mais. Essas
associações ratificam ainda mais as raízes de iniquidades étnicas e sociais na
ocorrência da insegurança alimentar 32 , 33.
Quanto maior o número de crianças menores de sete anos na casa, maior foi a
prevalência de insegurança alimentar, achado semelhante ao encontrado nos
Estados Unidos 28 e no Brasil 22, em 2004. A renda média per capita foi cerca
de duas vezes menor em domicílios com três e mais moradores com até sete anos
de idade, comparados com domicílios com apenas um morador nesta faixa etária. O
resultado indica especificidades na contribuição da aglomeração domiciliar no
aumento da insegurança alimentar, aprofundando os resultados de outros estudos
20 , 22. Considerando que apenas o número de crianças menores de sete anos se
manteve associado ao desfecho, recomenda-se a utilização de variáveis
desagregadas por faixa etária para melhor entendimento da aglomeração
domiciliar na ocorrência de insegurança moderada ou grave.
Domicílios beneficiados com o Bolsa Família apresentaram uma probabilidade
maior de insegurança alimentar moderada ou grave, em comparação com os sem o
benefício. Os domicílios com o Bolsa Família apresentavam renda média per
capita duas vezes menor do que os sem o benefício, justificando sua maior
vulnerabilidade à insegurança alimentar. O achado é indicativo da necessidade
de aumento dos valores pagos pelo benefício para se obter uma redução
expressiva da insegurança alimentar moderada ou grave.
Entre as limitações do estudo, destaca-se que embora a insegurança alimentar
seja estudada desde 1989 e exista uma guia para mensuração da insegurança
alimentar 19, cada país tem realizado adaptações no instrumento ou construído
novos questionários 3 , 11 , 20 , 27 , 28, dificultando a comparação dos níveis
de insegurança. Não obstante, essa limitação não inviabiliza a comparação da
presença ou não de segurança alimentar. Outra limitação, diz respeito à
impossibilidade de analisar as variáveis de cor da pele e escolaridade do chefe
da família. Para minimizar esse problema, utilizaram-se variáveis maternas que
mostraram diferenças significativas na probabilidade de insegurança alimentar
moderada ou grave, mesmo após ajuste.
O estabelecimento de grupos de comparação, a composição de uma amostra de
múltiplos níveis, a coleta de dados primários usando-se instrumento eletrônico
padronizado, a realização de análise estatística estratificada e a utilização
de critérios bem definidos para julgar os achados reforçam a adequação do
estudo 34, cuja abrangência permitiu avaliar de forma detalhada a insegurança
alimentar em duas regiões díspares do Brasil.
A insegurança alimentar moderada ou grave foi maior no Nordeste, mas foi
associada à pobreza extrema em ambas as regiões. A falta de poder aquisitivo,
agravada pela volatilidade e alta dos preços dos alimentos, pode ser mais
relevante do que a disponibilidade de alimentos para a permanência do problema.
Além disso, outros fatores estiveram associados à insegurança alimentar
moderada ou grave, e precisam ser considerados no delineamento de políticas
sociais para identificação das famílias mais vulneráveis. A expansão de
cobertura, a focalização criteriosa e o incremento dos valores pagos por
benefícios sociais, como, por exemplo, o Bolsa Família, combinados com as
demais estratégias de aumento de emprego, renda e escolaridade das famílias,
poderão maximizar as contribuições na redução da insegurança alimentar no país.
Agradecimentos
Os autores agradecem o apoio na realização do trabalho à população estudada, ao
Ministério da Saúde, à Organização Pan-Americana da Saúde, aos gestores
municipais do SUS, aos trabalhadores das unidades básicas de saúde, aos
entrevistadores e ao Departamento de Medicina Social da UFPel.