Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto
dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde real e possível
Introdução
A Constituição Federal de 1988 (CF-1988) inaugurou um novo momento político-
institucional no Brasil ao reafirmar o Estado Democrático de Direitos e ao
definir uma política de proteção social abrangente, reconhecendo a saúde como
direito social de cidadania e inscrevendo-a no rol de um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade civil voltados para
assegurar a nova ordem social, cujos objetivos precípuos são a justiça social
distributiva e o bem-estar comum entre os sujeitos de direitos em suas
coletividades (Brasil,_2008). A partir daí, o Estado encontra-se juridicamente
responsabilizado a exercer atividades objetivando a construção dessa nova ordem
social, logo um conjunto de leis, portarias ministeriais e práticas gestoras
buscaram viabilizar o projeto democrático da Constituição Cidadã. Desde então,
com a CF-1988 instituída, tornou-se cada vez mais frequente a interferência do
Poder Judiciário em questões que são a priori de competência dos poderes
executivos e legislativos. A este novo papel exercido pelo Judiciário na
garantia do direito à saúde dos sujeitos atribui-se a concepção de
judicialização da saúde (BAPTISTA;_MACHADO;_LIMA,_2009).
No contexto democrático brasileiro contemporâneo, o fenômeno de judicialização
da saúde expressa reivindicações e modos de atuação legítimos de cidadãos e
instituições, para a garantia dos direitos de cidadania amplamente afirmados
nos tratados nacionais e internacionais. Esse fenômeno como uma expressão da
efetivação do direito social à saúde, envolve aspectos políticos, econômicos,
culturais, éticos, científicos e sanitários que vão muito além do seu
componente jurídico e da gestão dos serviços de saúde (Ventura_ET_AL.,_2010).
Isto é, de reconhecimento ético-moral dos sujeitos frente às violações e
injustiças sociais de forças neoliberais do capitalismo tardio, que obstruem o
alcance de patamares de emancipação sociopolítica entre os sujeitos da vida
coletiva, democrática e equitativa; bem como de reconhecimento sociocultural
dos direitos de titularidade coletiva que vem de encontro ao pleno
desenvolvimento do Estado Democrático de Direitos, efetivando as intervenções
sanitárias legitimadas pelos cidadãos para o desfrute do bem-comum e de uma
saúde com qualidade de vida (ARREAZA,_2014).
No âmbito da CF-1988 têm-se como princípios, além da cidadania e da dignidade
da vida humana, o pluralismo político-ideológico, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa para, a partir daí, construir uma sociedade
justa e solidária, assegurando o desenvolvimento da erradicação da pobreza e
reduzindo as iniquidades sociais, promovendo o bem comum sem excluir gêneros,
etnias, religiões, culturas e pessoas com necessidades especiais. Em que todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, igualdade, segurança e propriedade privada, cabendo ao Estado assegurar
esses direitos para que os cidadãos tenham condições dignas de vida (BRASIL,
2008).
Em decorrência do direito à vida, tem-se o direito à integridade física, moral
e psíquica dos cidadãos, e, ao enaltecer a dignidade humana no tocante ao valor
ético-social das pessoas e famílias, a proteção de sua integridade assume a
feição de direito intersubjetivo fundamental, repercutindo nos direitos de
educação, saúde, trabalho, moradia, seguridade social, de proteção à
maternidade e à infância, à saúde mental e aos desamparados em particular.
Pois, a proteção da vida e da saúde dada por meio de políticas públicas permite
o desenvolvimento de condições dignas e saudáveis de existência, visando
minimizar as situações sociais desiguais, priorizando os mais frágeis, como os
direitos emancipatórios do bom viver que buscam recriar condições mais
propícias de vida positiva e equitativa (BARRUFFINI,_2008).
Já a dignidade da vida humana, por si só, já exigiria a garantia do direito à
saúde ao lado do direito à vida, a saúde é corolário do direito à vida e da
dignidade humana, constituindo uma tríade que garante o exercício dos demais
direitos e liberdades positivas, e por gozarem de uma dimensão ética e moral,
espraiam-se por todos os setores da sociedade sob a forma de deveres sociais e
comunitários. Em que a saúde é uma das condições essenciais da liberdade e da
igualdade de todos perante a lei, e o devir do seu direito, sendo inerente ao
viver humano, constitui-se em um direito subjetivo e coletivo ao mesmo tempo.
Diz-se que a saúde tem uma dimensão que transcende a sua própria positivação no
ordenamento jurídico, por ser uma das condições relevantes para o exercício
emancipatório dos sujeitos, além de nossa Constituição ter positivado
amplamente o direito à saúde (SANTOS,_2010).
Logo, a saúde é um direito fundamental da vida garantida mediante políticas
públicas que visam à redução de riscos e danos, como o acesso universal e
igualitário aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, onde o
dever do Estado não exclui o das famílias, das empresas e sociedade em geral;
onde os níveis de saúde de uma população expressam a organização política,
social e econômica do seu país. A saúde é um estado dinâmico com seus
determinantes sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais,
desdobrando-se em corporeidade biopsíquica e subjetiva, tendo moderada
quantidade de limitações com vivências de bem-estar, e sendo tanto objeto de
desejo como uma concretude da vida social. Frente ao bem-estar social é pensada
em termos de aquisições positivas de meios para o enfrentamento de infortúnios
e privações pelos sujeitos da vida coletiva, em que a ampliação de bens
destinados a promover uma boa qualidade de vida sob o ponto de vista
biopsicossocial, é uma tarefa ao mesmo tempo individual e coletiva, tanto de
promoção quanto de prevenção e assistência (ARREAZA,_2014).
A inclusão da saúde como uma dimensão da qualidade de vida e do bem-estar
social aponta para uma visão abrangente dos determinantes sociais da saúde-
doença, como para uma orientação sistêmica das prioridades em pesquisas e do
desenvolvimento tecnológico e de suas inovações em saúde, destacando a
necessidade de critérios políticos, econômicos, epidemiológicos e estratégicos
da gestão em saúde. O setor da saúde é conformado por sistemas que incluem as
atividades de saúde pública no seu plano coletivo, e os serviços de atenção
médico-hospitalar no plano individual, em que os aspectos técnicos e de gestão
do setor são condicionados pelas políticas sociais, econômicas e sanitárias de
Estado, como pelo desenvolvimento científico e tecnológico existente e
incorporado ao setor; onde o acesso ao sistema como um todo e aos serviços
específicos em particular, como aos processos e produtos tecnológicos
disponíveis, derivam de interações complexas e dinâmicas entre todas essas
dimensões nucleares do campo da saúde pública (NOVAES;_GOLDBAUM;_CARVALHEIRO,
2001).
O campo da ciência e tecnologia em saúde pode ser apreendido articulando-se o
núcleo central do setor saúde com as inúmeras redes que se estabeleceram entre
este e as instâncias do saber científico-tecnológico, e destes com os segmentos
produtivos das indústrias de saúde. As pesquisas científico-tecnológicas se
constituem em atividades altamente competitivas, estruturadas e reguladas por
parâmetros e normas próprias, além de estarem inseridas em contextos políticos
e socioeconômicos, isso é singular para a área de inovações em saúde, de grande
importância político-econômica em países desenvolvidos. Porém, essa área vem
enfrentando questionamentos que se caracterizam, de modo geral, pela busca de
uma melhor articulação entre os processos de produção do conhecimento e das
suas condições de utilização, como do seu impacto sobre a saúde dos sujeitos e
de coletivos em geral. A insuficiência das políticas tecnológicas para dar
conta das necessidades da saúde pública permitiu o desenvolvimento de uma série
de propostas políticas, incorporando ao seu discurso a ideia de não ser uma
política apenas estatal e centralizada (NOVAES;_GOLDBAUM;_CARVALHEIRO,_2001).
Marques_(1999) já argumentava, no final do século passado, que as tendências
observadas no cenário internacional evidenciavam que a fronteira da ciência,
todavia, estava muito mais voltada para as necessidades dos mercados e empresas
de alta tecnologia do que para os desafios sociais, ambientais e da própria
saúde pública. Nelas encontravam-se as razões para o predomínio, nos países
desenvolvidos, de uma interpretação hegemônica frente ao seu domínio sobre a
Ciência e Tecnologia (C&T). Tendo a ciência se transformado no elemento
essencial das potências de primeiro mundo, razão de sua bem sucedida capacidade
de competir e de acumular riquezas, passou a constituir o seu principal
patrimônio e o seu maior negócio. Ainda nos dias de hoje, a afirmação de que os
produtos da ciência são patrimônio da humanidade torna-se uma interpretação
idealizada, que, na maioria das vezes, não encontra correspondência prática
tampouco politicidade orgânica; vem daí os conflitos de interesses que cercam a
apropriação dos resultados da C&T, como nos processos de transferência de
tecnologias e nas transações comerciais internacionais, as quais ressaltam as
divergentes visões de diferentes nações a respeito da propriedade intelectual.
Há mais de 50 anos, nos países desenvolvidos, a geração de bens e serviços para
a saúde vem representando um dos segmentos mais presentes na economia política
das inovações tecnológicas. A transição demográfica como a epidemiológica, a
implantação de políticas públicas de inovação e o fortalecimento das indústrias
da saúde são alguns dos fatores desse devir tecnológico globalizado, cujos
impactos têm sido a crescente demanda por bens de alta densidade tecnológica, a
incorporação acelerada de novas tecnologias médicas e a expressiva participação
do setor privado na oferta de produtos inovadores; e cujas repercussões
contraditórias têm sido status ou alienações, benefícios ou riscos, custos ou
danos, como valores de troca ou de uso entre sujeitos e coletividades, podendo
até gerar iniquidades sociais em saúde (GADELHA,_2003).
Ayres_(2007) defende que o ocultamento dos modos de vida e saúde historicamente
específicos decorre da colonização de práticas e experiências vivenciadas pelos
sujeitos em suas coletividades, essa colonização dar-se-ia por meio da
hegemonia das estruturas conceituais e instrumentais das ciências biomédicas
que induz a incorporação tecnológica, como pela cultura dos limites da gestão
tecnocrata que seleciona e direciona as tecnologias de saúde, suscitando
debates éticos e políticos sobre as escolhas a serem feitas frente às
prioridades de saúde pública das coletividades em geral. Apontando-se para uma
recomposição humanizadora das práticas de saúde, tornando profissionais,
serviços, programas e políticas de saúde comprometidos com os sucessos práticos
potencializados por meio e para além de qualquer êxito técnico no cuidado em
saúde dos sujeitos de direitos, compreende-se como um modo de promover à saúde
a busca socialmente compartilhada para evitar, manejar ou superar de modo mais
apropriado os processos de adoecimento, indicando os obstáculos encontrados por
sujeitos e coletividades à realização dos seus projetos de bem-estar comum no
Estado Democrático de Direitos.
Diante do cenário exposto, o presente ensaio tem por objetivo revisitar alguns
dos fundamentos sociopolíticos das tecnologias em saúde como uma construção
sociohistórica e cultural e como um bem público virtuoso potencializado,
contribuindo reflexivamente para uma gestão sociopolítica e democrática das
inovações em saúde em termos éticos, regulatórios e jurídicos, numa perspectiva
normativa dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) real e
possível.
Por uma política das tecnologias em saúde como uma construção sociohistórica e
como um bem público virtuoso potencializado
A importância estratégica das inovações indica tanto as interações entre a
pesquisa científica e as inovações tecnológicas no setor saúde, como as
múltiplas influências entre a construção de um sistema efetivo de inovação e a
economia nacional e o desenvolvimento tecnológico. No Brasil, onde o atraso
tecnológico coexiste com o do social, a superação de ambos passa pelo
fortalecimento dos sistemas de inovação, para impulsionar o desenvolvimento
industrial e tecnológico que sustenta em parte o crescimento econômico do País;
logo, o setor saúde se constitui num vínculo estrutural e operacional entre
esses dois arranjos institucionais, implicando além dos impactos econômicos
gerados por qualquer atividade inovadora, tais iniciativas nesse setor tem um
impacto direto sobre a capacidade produtiva e tecnológica do País (ALBUQUERQUE;
SOUZA;_BAESSA,_2004).
Nesse sentido, o reconhecimento da relevância das práticas de inovação na
economia já atingiu um amplo consenso entre os empresários, governantes,
gestores, formuladores de políticas, como a comunidade científica. Essa
constatação se deve, então, aos impactos positivos que os processos de inovação
e seus produtos introduziram na economia dos países desenvolvidos, e que os
emergentes também buscam, sendo responsáveis por conferir saltos de
competitividade e transformações nos seus sistemas produtivos nacionais (VIANA;
NUNES;_SILVA,_2011).
A política industrial e as inovações tecnológicas constituem os elementos
determinantes do dinamismo das economias capitalistas e de sua posição relativa
nos mercados globalizados. Todos os países que se desenvolveram e passaram a
competir em melhores condições com os países ricos e avançados, associaram um
complexo industrial sólido a uma base endógena de conhecimento, de aprendizado
e de inovação. Porém, no setor da saúde esta visão, todavia, é problemática,
uma vez que os interesses empresariais se movem pela lógica do lucro
incondicional e não para o atendimento das necessidades de saúde, onde a noção
de Complexo Industrial da Saúde (CIS) constitui uma tentativa de fornecer um
referencial teórico-operacional que permita articular duas lógicas distintas, a
sanitária e a do crescimento econômico, pois o setor saúde constitui uma frente
de inovação estratégica e de desenvolvimento na sociedade capitalista do
conhecimento (GADELHA,_2006).
Em princípio, a concepção de CIS envolve um conjunto articulado de segmentos e
atividades produtivas que mantêm relações intersetoriais de valores de trocas e
de usos de produtos e insumos, como na transferência de novos conhecimentos e
tecnologias inovadoras entre as instituições de pesquisas científicas, os
segmentos produtivos de inovações e o setor da saúde na prestação de serviços
para os usuários do sistema, como um espaço político e econômico para onde flui
toda a produção em saúde, tanto por se organizar sob as bases da lógica
industrial quanto por configurar o mercado da saúde como uma construção
sociopolítica e institucional. Isso confere uma dada organicidade ao complexo,
permitindo articular num mesmo contexto a pesquisa, a produção, a difusão e a
utilização de tecnologias em saúde, tão diversificadas como os fármacos, as
vacinas, os equipamentos e insumos biomédicos, e também produtos para
diagnóstico, tratamento e reabilitação, como os materiais médicos em geral.
O conceito de CIS privilegia, como elemento crítico desse sistema, a atividade
produtiva inovadora, considerando que o núcleo de maior vulnerabilidade
econômica do Brasil no setor da saúde, todavia, é a fragilidade do segmento
industrial e empresarial na geração de inovações na saúde. A capacidade
inovadora do País é determinada pelo potencial de transformação dos
conhecimentos científicos em bens e serviços novos ou aperfeiçoados quanto à
sua qualidade nos processos produtivos tecnológicos. Essa capacidade no País
ainda é desarticulada das bases científico-tecnológicas como das necessidades
do setor da saúde, principalmente pela incipiente capacidade empresarial de
investir e realizar pesquisas, e desenvolver tecnologias inovadoras, como de
sua dependência externa no contexto da revolução industrial e tecnológica da
globalização tardia, ainda em curso nos dias de hoje (GADELHA,_2006).
O CIS tem passado por profundas transformações em sua estrutura operacional
produtiva, nas estratégias com as organizações públicas e privadas, nas formas
de atuação entre Estado, sociedade e ciência e tecnologia, e na reestruturação
do setor saúde do País, resultando em oportunidades e desafios numa perspectiva
de economia política da inovação em saúde. A lógica capitalista penetra em
todos os seus segmentos produtivos, envolvendo tanto as indústrias que já
operavam tradicionalmente nessas bases, como a farmacêutica e a de equipamentos
médicos, quanto os segmentos onde era possível verificar a coexistência de
lógicas empresariais com outras que delas se afastavam, como o de produção de
vacinas e o de outros produtos biomédicos, e também na prestação de serviços em
saúde pública.
Gadelha_(2003) coloca que a área da saúde e o CIS com os seus setores de
atividade produtiva, aliam alto dinamismo econômico, elevado grau de inovação e
importante interesse social, sendo um lócus intersetorial para a concepção de
políticas industriais articuladas com as políticas de saúde. Isto significa que
o setor da saúde é, ao mesmo tempo, um espaço de inovação e de acumulação de
capital, constituindo um segmento de geração de renda, emprego, desenvolvimento
e oportunidades de investimento, como um setor que expressa as suas formas de
organização institucional e de regulação das atividades mercantis e produtivas,
de forma a viabilizar um padrão de incentivos e sanções que permitam a
orientação de setores empresariais para objetivos de caráter social e o
atendimento das necessidades nacionais e da população.
Reconhecer a natureza capitalista do setor da saúde, como a produção em massa,
a lógica empresarial e financeira e, sobretudo, a dinâmica das inovações e o
valor agregado é essencial para a concepção de políticas que almejem atenuar o
viés inerente do capitalismo tardio entre a busca do lucro e de mercados e o
atendimento das necessidades sociais e individuais. Não é desconsiderando ou
negando a dinâmica capitalista que se poderá conceber políticas adequadas, pelo
contrário, somente pela compreensão de sua lógica tecnooperacional é possível
buscar meios efetivos para que as finalidades sociais sejam atingidas nos
marcos deste sistema globalizado.
Logo, a política industrial e tecnológica é um problema da política de saúde,
situando o CIS como setor crítico de desenvolvimento e intervenção, para tanto,
torna-se premente a integração dos grandes segmentos do complexo, como da
produção de produtos industriais e dos bens e serviços de saúde, sob uma
perspectiva de que são, simultaneamente, espaços capitalistas de acumulação,
inovação, crescimento econômico, como de geração de bem-estar comum,
incorporando interesses sociais não subordinados à lógica dos mercados
(GADELHA,_2003).
O CIS envolve então um conjunto de indústrias que produz bens de consumo e
equipamentos especializados, como uma rede de serviços prestadores que demandam
e utilizam os produtos gerados por setores industriais, expressando uma clara
relação de intersetorialidade no âmbito do setor saúde. A princípio, destacamos
os três grupos de atividades tecnológicas no contexto do CIS: o primeiro
congrega as indústrias de base química e biotecnológica que produzem
medicamentos, vacinas, hemoderivados, kits diagnósticos etc. Como o setor de
medicamentos é liderado por um bloco de empresas farmacêuticas altamente
intensivas em tecnologias, e que dominam o mercado mundial, há uma tendência de
as mesmas ampliarem as suas fronteiras para englobar os demais setores, como já
vem ocorrendo a partir dos anos 1990 na área das vacinas biotecnológicas. Desde
então, essas multinacionais incorporam esse setor em busca de liderança,
investindo em inovação de vacinas de alto valor agregado, além de realizarem
fusões e parcerias tecnológicas no contexto do CIS; logo, seria relevante que o
governo brasileiro reforçasse os investimentos com a incorporação dessa
tecnologia pelas empresas nacionais, possibilitando a produção desses insumos
estratégicos para a saúde pública nacional (GADELHA,_2003; HOMMA_ET_AL.,_2011).
Aliás, o Ministério da Saúde coordena as atividades que visam o fortalecimento
da capacitação tecnológica nacional em imunobiológicos, pois, além de aumentar
o orçamento para vários projetos de inovação em vacinas e dos seus processos
produtivos, vem trabalhando para a modernização da infraestrutura produtiva
biotecnológica, bem como para integrar os marcos regulatórios de Estado na
obtenção de isenção fiscal pelas empresas, no uso do poder de compra do Estado
e na regulação desses produtos tecnológicos do CIS (HOMMA_ET_AL.,_2011).
Já o segundo grupo é constituído pelas indústrias que produzem equipamentos,
próteses, órteses e materiais e insumos em geral, neste grupo cabe destacar o
papel da indústria de equipamentos, tanto pelo seu potencial de inovação em
microeletrônica quanto pelo seu impacto nos serviços de saúde, ocasionando
mudanças importantes nas práticas assistenciais e explicitando a tensão entre a
lógica da indústria e a sanitária de saúde pública. Por fim, o último grupo
congrega os setores prestadores de serviços de saúde constituídos por unidades
hospitalares, ambulatoriais, de atenção básica e serviços de apoio diagnóstico
e terapêutico, esse grupo é responsável por organizar toda a cadeia de
suprimentos e produtos das indústrias farmacêuticas e de equipamentos e
materiais médicos, articulando a oferta e o consumo dessas tecnologias de saúde
nos espaços públicos e privados como todo (GADELHA,_2003).
Por um lado, sob o ponto de vista da dinâmica industrial e das suas inovações
tecnológicas, os setores prestadores de serviços se caracterizam, em parte,
como uma atividade submetida à produção e ao fornecimento de produtos de alta
densidade tecnológica e valor agregado, tais como as novas vacinas, os
medicamentos e os equipamentos. Por outro lado, sob o ponto de vista da
intersetorialidade, é o segmento dos serviços de saúde que confere organicidade
ao complexo, representando o local para onde conflui toda a produção dos demais
grupos industriais.
O CIS se insere em um contexto político e institucional mais amplo, conformando
um sistema intersetorial de inovação e proteção social, onde se desenvolve uma
dinâmica de influência recíproca entre Estado, sociedade e inovações em saúde,
que estabelece, em última instância, um vínculo sólido entre o setor
empresarial, universidades, institutos de pesquisa e a área da saúde. De um
lado, pela intensidade de saberes e tecnologias de todas as atividades
produtivas de saúde, em que as instituições de pesquisas são a fonte essencial
das inovações e representam o fator crítico de competitividade do CIS. De outro
lado, pelo caráter social da destinação tecnológica em saúde, onde a atuação da
sociedade organizada se destaca como uma prática de pactuação da gestão em
saúde, para que a política de inovação incida de modo mais acentuado.
Nesse contexto, cabe destacar o papel que o Estado cumpre na dinâmica dos
setores produtivos mediante as suas ações de promoção e regulação, que na área
da saúde adquirem uma extensão raramente vista em outro grupo ou cadeia
produtiva do CIS, como da aquisição e uso de bens e serviços, da alocação de
recursos para a saúde, dos investimentos realizados na indústria e na rede
assistencial, e de um amplo espectro de práticas regulatórias que delimitam as
estratégias dos agentes econômicos e gestores das tecnologias em saúde. O
Estado constitui assim uma instância determinante da dinâmica industrial do
CIS, graças ao seu elevado poder de compra e indução de inovações, e às suas
atividades de regulação, que desempenha através de uma forte interação com a
sociedade civil organizada (GADELHA,_2003). Pois, o mesmo tem um papel
relevante na compatibilização das políticas de inovação com as de saúde,
estabelecendo uma ampla regulação sobre os agentes econômicos, além das suas
políticas públicas para o bem-estar social das pessoas, ao mesmo tempo em que
induz o setor empresarial a adotar estratégias inovadoras com base nos
investimentos feitos em pesquisa e desenvolvimento, em que iniciativas
promissoras de inovação compartilham uma interface existente entre as políticas
de saúde e o crescimento econômico (GADELHA;_QUENTAL;_FIALHO,_2003).
Já a Política Nacional de Ciência e Tecnologia (PNCT) é considerada uma das
políticas públicas que o Estado fomenta e coordena com os produtores,
prestadores, pesquisadores e usuários, em toda a cadeia produtiva, pois para
ampliar a sua capacidade regulatória necessita de informações concretas
dirigidas à gestão dos problemas de saúde, onde o seu papel é o de formular, em
sintonia com as diretrizes do SUS, uma política tecnológica transparente, que
integre de forma equânime os seus eixos condutores, fornecendo subsídios para o
planejamento e a avaliação das tecnologias a serem utilizadas no setor saúde
para a prestação de bens seguros e eficientes no atendimento dos interesses e
das necessidades das coletividades.
Assim, a PNCT deve dirigir toda a sua cadeia produtiva de insumos estratégicos
às demandas potenciais de saúde da população em geral, pois, a política
industrial e tecnológica pensada de forma integral tende a estabelecer vínculos
com as políticas de saúde, ampliando o acesso aos seus produtos e inovações, e
a legitimar sua competitividade perante a sociedade como um todo, onde as
tensões inerentes aos objetivos de ambas encontram um terreno comum para
promover a ação social do Estado, revertendo-se mutuamente numa alavanca de
bem-estar social e de competitividade. Já a construção de uma cadeia produtiva
autossuficiente, balizada nas políticas de inovação em saúde, contribui tanto
para a produção de novas vacinas biotecnológicas quanto para a consolidação da
política dos medicamentos genéricos destinados às pessoas com menor poder
aquisitivo, e/ou fragilizadas diante das contingências da sociedade capitalista
(GADELHA,_2004).
O relevante é que a política tecnológica se efetue com evidências concretas do
mercado das inovações em saúde, dos potenciais tecnológicos das empresas e de
instituições públicas e privadas, e das prioridades de saúde da sociedade como
um todo. Para tanto, é essencial a realização de pesquisas estratégicas para
definir os alvos prioritários em situações específicas, e para avaliar a
adequação dos arranjos institucionais frente aos objetivos de autossuficiência
tecnológica e comprometimento ético-social. Já para articular a política
tecnológica com as diretrizes do SUS, é mister fortalecer a política de
inovação em saúde, conferindo um novo estatuto à dimensão social da tomada de
decisão na produção de insumos e produtos, pactuando os seus objetivos de
inserção competitiva com os de distribuição equitativa das inovações para os
problemas prioritários de saúde da sociedade em geral (CONDE;_ARAÚJO-JORGE,
2003).
Faz-se necessário, então, uma efetiva reestruturação das instituições de
ciência e tecnologia, visando a uma maior autonomia gerencial no alcance de
políticas seguras e transparentes de gestão, e na transferência democrática de
saberes e tecnologias na perspectiva das diretrizes do SUS, com a participação
da sociedade e com o envolvimento de todos os atores no processo de inovação em
saúde, direcionando a geração dos saberes bem como a utilização de seus
resultados na implementação de políticas públicas frente as reais necessidades
das coletividades locais. Ademais, compactuo com a tese de que inovações são
bens públicos essenciais, e as iniquidades ao seu acesso são relevantes fatores
das desigualdades sociais em saúde, sendo necessário para a sua superação a
integração das políticas de saúde e as tecnológicas com o fortalecimento de
prioridades de ambas, multiplicando os sujeitos envolvidos e os espaços de
interação entre eles. Isto deve viabilizar o acesso equitativo a saberes e
tecnologias pertinentes, que permitam a realização dos seus interesses e da
prestação efetiva de bens e serviços para a saúde pública (PELLEGRINI-FILHO,
2004).
Cabe mencionar que as condições de saúde da população não dependem, por si só,
do êxito das políticas de saúde, mas da combinação virtuosa entre o crescimento
econômico e o desenvolvimento social; isto é, da compatibilização entre
políticas voltadas para promover a prosperidade econômica, gerando renda,
emprego e oportunidades de investimento, e políticas públicas que protegem a
saúde e o bem-estar das pessoas. Quando existe uma clara dicotomia entre saúde
e desenvolvimento, seja porque a política econômica não busca a promoção da
equidade e da inclusão social ou porque o setor de saúde não incorpora o modelo
de proteção social, o resultado pode ser a existência de um par não virtuoso em
que as atividades produtivas do setor de saúde podem não estar direcionadas
para as necessidades reais da população (VIANA;_NUNES;_SILVA,_2011).
Esses autores lembram ainda que o Brasil foi marcado pela ausência de políticas
públicas voltadas para formar um sistema nacional de inovação no setor saúde,
fortalecer a indústria nacional e ampliar a sua capacidade instalada em
segmentos estratégicos do CIS, cuja problemática se evidencia na grande
dependência do País em novas tecnologias, fazendo com que se constitua num
modelo não virtuoso de interação entre a saúde e o desenvolvimento. No entanto,
com a adoção de políticas indutoras de desenvolvimento nacional e iniciativas
dirigidas para a área da saúde, como a implantação da PNCT em meados dos anos
de 1990, sugere-se que rumos importantes vêm sendo tomados com o objetivo de
reverter essa situação de dependência e de rupturas entre a saúde e o
desenvolvimento no contexto nacional.
Sob uma perspectiva global, os anos 1990 se caracterizaram por crises
econômicas recorrentes, e apesar dos indiscutíveis avanços científico-
tecnológicos da época, as condições de vida e saúde, para muitos, parecia estar
pior do que nas décadas anteriores, onde o campo da saúde pública se deparava
com problemas relativos à persistência da pobreza, ao recrudescimento das
iniquidades e à exclusão social, ao desemprego e ao aumento da economia
informal, ao crescimento e envelhecimento populacional, à urbanização
explosiva, à instabilidade econômica e política, ao enfraquecimento das
governanças em geral e dos sistemas de saúde nacionais, aos baixos desempenho e
resolutividade dos serviços de saúde, ao desenvolvimento científico-tecnológico
acentuado, gerando novas demandas e custos, como ao perfil epidemiológico das
coletividades com persistência dos velhos problemas e emergência de novas
doenças. Ao mesmo tempo, acreditava-se que, se o setor de saúde dos países
passasse por transformações importantes em suas características estruturais e
formas de atuação, eles poderiam contribuir em parte para a reversão ou
diminuição desses problemas, como em relação ao redirecionamento das
tecnologias frente às prioridades de saúde pública e ao impacto positivo na
prevenção e controle das doenças emergentes e reemergentes (NOVAES;
CARVALHEIRO,_2007).
Essas mudanças poderiam, então, ser efetivamente alcançadas por meio de ações
políticas e econômicas contextuais e pelo desenvolvimento de políticas
setoriais no âmbito da saúde pública, capazes de articular objetivos políticos,
sociopolíticos e econômicos com os processos de produção, difusão,
incorporação, utilização e avaliação das tecnologias de saúde. Ao longo dos
anos de 1990, políticas nessa direção foram propostas com uma maior intensidade
nos países desenvolvidos, mas também pelos emergentes, como no caso do Brasil,
e também por diferentes organizações nacionais e internacionais comprometidas
com as políticas públicas de Estado. Outra questão relevante no final do século
passado foi o reconhecimento da bioética de proteção como uma questão social e,
particularmente, enquanto ética biomédica e em pesquisas científicas com seres
humanos, dados os seus impactos sobre os processos de pesquisa experimental, e
sobre os efeitos da utilização dos seus serviços e produtos, como da efetiva
incorporação da ética enquanto dimensão transformadora das práticas científicas
e tecnológicas (NOVAES;_CARVALHEIRO,_2007).
Considera-se ainda que se deva estimular o desenvolvimento tecnológico e suas
inovações nos setores produtores de tecnologias diagnósticas, terapêuticas, de
controle e preventivas, para que sejam disponibilizados produtos prioritários
para a saúde pública nacional de forma sustentável, socioeconômica e
politicamente democrata. Para que essa política possa ser bem sucedida é
essencial a participação das coletividades brasileiras nos processos de sua
implementação, por meio das instâncias representativas hoje existentes ou das
que venham a se instituir no contexto do SUS. A implementação da política de
inovação em saúde deve ser acompanhada de uma expansão e melhoria do acesso
organizado, da avaliação tecnológica periódica e da qualidade da atenção nos
sistemas de saúde locais, para que os impactos desejados sobre a saúde e a
qualidade de vida dos sujeitos e dos grupos sociais possam ser concretamente
efetivados.
Em síntese, parafraseando Gadelha_(2006), não se pode tratar o desenvolvimento
tecnológico e suas inovações na sociedade do conhecimento de um lado, e as
políticas e práticas públicas do setor nacional da saúde de outro, como se
fossem duas instâncias independentes e/ou fragmentadas. O tratamento
reducionista, apenas sob uma lógica defensiva voltada para os interesses das
indústrias na absorção de processos e produtos pelos serviços de saúde, faz com
que as forças sociais que vinham lutando historicamente por um sistema
universal e equitativo no Brasil, acabem atuando em parte, na mesma direção do
modelo neoliberal do capitalismo tardio. Por sua vez, esse modelo tem procurado
vetar os processos de desenvolvimento, de industrialização, e de superação da
dependência externa dos países emergentes, mediante o negligenciamento de
políticas inovadoras para os segmentos de maior dinamismo sociopolítico e
econômico, como é o caso da saúde pública brasileira.
Propõe-se, pois, uma ruptura sociopolítica com as visões reducionistas que
colocam os interesses empresariais das indústrias de saúde de um lado, e as
necessidades das políticas públicas de Estado, de outro; isto é, ruptura de
ordem político-institucional e com o modelo de crescimento econômico
capitalista desarticulado da lógica sanitária das políticas sociais de saúde.
Um país que pretende alcançar uma condição de desenvolvimento socioeconômico e
independência tecnológica em saúde requer, ao mesmo tempo, indústrias
inovadoras e competitivas, como um sistema de saúde inclusivo, equitativo e
desenvolvido socioeconomicamente.
Por uma gestão democrática das inovações de saúde em termos éticos,
regulatórios e jurídicos no contexto do SUS real e possível
Sob a luz do texto de Vázquez_(2006), entendemos que há tanto uma ética
reflexiva que tenta compreender e explicar a moral realmente existente, como
uma ética normativa que postula e justifica uma nova moral possível e
necessária, fundamentada em fins e valores de equidade, dignidade humana,
justiça social e práxis emancipadora. Nesse sentido, a bioética da proteção é
uma ética normativa e aplicada, pois pretende amparar os sujeitos e as
populações vulneráveis em um contexto caracterizado, por um lado, pelos
conflitos morais em saúde pública e, por outro, pelos problemas de saúde que
poderiam ser superados com a incorporação tecnológica, mas podem não sê-lo,
seja porque tal incorporação não se dá de forma equitativa e democrática, ou
porque é realizada incorretamente implicando em novos problemas não previstos
sem a prudência necessária (SCHRAMM,_2007).
Logo, a bioética da proteção se aproxima do componente moral da prática
política, frente à qual ela se situa como uma mediadora lúcida e atuante a
despeito daquilo que se deva saber-fazer a fim de que se torne benéfico para os
sujeitos e suas coletividades, preocupando-se também com os bons argumentos
para justificar a práxis da moral inovadora e suas finalidades. Já na gestão da
saúde, o aspecto da proteção também se constitui em um compromisso ético-moral
inadiável, se apreendemos a saúde pública como um campo de saberes e práticas
que tem por objeto maior a promoção da saúde dos sujeitos no seu meio
sociocultural e biopsíquico.
Em suma, a bioética da proteção pode ser considerada um paradigma tanto para
tentar entender os conflitos na saúde e na pesquisa com seres humanos, quanto
para tentar solucioná-los adotando-se meios normativos, efetivos e legitimados
no seio de um Estado Democrático de Direitos. Logo, por bioética entendemos uma
ferramenta pública e concreta capaz de proteger contra riscos e ameaças os
possíveis vulneráveis, como em prol do desenvolvimento das potencialidades de
cada sujeito para assumir a sua vida pessoal e cidadã, para então emancipar-se
respeitando a pluralidade dos valores que perpassam toda a coletividade, não
impondo condutas que poderiam infringir os direitos fundamentais das pessoas e
de grupos particulares, a não ser que entrem em conflito com o bem-estar comum
das coletividades (SCHRAMM,_2007).
A bioética valoriza o contexto do problema e o avalia segundo características
de grupos sociais distintos, que, por vezes, estão em conflitos quanto à
autonomia e aos direitos dos seus cidadãos. Este é o seu diferencial singular
em relação à ética tradicional, a qual supunha que regras universais, abstratas
e descontextualizadas poderiam resolver todos os problemas morais relativos à
utilização de tecnologias da saúde pelos sujeitos de uma coletividade. É
necessário considerar a diversidade moral existente nas discussões éticas, pois
distintas coletividades com as suas culturas situam-se diferentemente frente a
um determinado conflito moral; a bioética ao propor analisar, refletir,
justificar e reorientar uma dada conduta moral, parte sempre de um diálogo
pluricultural, pois há diferentes visões sobre vida e morte, saúde e doença,
natureza humana e culturas sociais, direcionalidade e intencionalidade, dentre
outras (BRAZ,_2005).
Já as tecnobiociências e seu biopoder hegemônico propõem a consolidação de
progressos na faculdade genética e de potenciais fisiológicos dos sistemas e
processos vivos, como da natureza genofenótipa humana, para poderem, de modo
determinista, intervirem sobre eles a fim de transformá-los e aperfeiçoá-los
quando considerarem necessário e ou desejável, bem como legitimá-los de acordo
com alguma estrutura de poder e seus ditames sobre o mundo dos viventes e da
vida biopsicossocial humana. A bioética por sua vez propõe normatizar as
intervenções biotecnológicas, de tal modo que possam ser consideradas
moralmente corretas pelas coletividades socioculturais, no sentido dos sujeitos
e seus modos de vida historicamente específicos sentirem-se suficientemente
protegidos, inclusive, em seu cotidiano particular confrontado com seus meios
sociais, que são, ao mesmo tempo, ecossociais, tecnológicos e socioeconômicos
(SCHRAMM,_2005).
Com base nesses pressupostos, podemos dizer que, no caso das biotecnologias
inovadoras em saúde, se, por um lado, resultam da expansão dos saberes
científicos, originando novos processos e produtos tecnológicos, por outro,
abrem-se cenários desconhecidos, gerando temores, incertezas, inseguranças e
incompreensões, fazendo emergir múltiplas questões, tanto de cunho privado como
aquelas de caráter público: Deve-se ou não utilizar células-tronco ou tecidos
embrionários? Deve-se produzir e consumir alimentos transgênicos? Em que medida
a biotecnologia pode servir a projetos eugênicos? Como ou quem regula a
fertilização assistida produzida na esfera das vidas privadas, mas que ganha
hoje contornos de massificação? É lícita a utilização de células-tronco como
uma promessa de cura no próprio corpo para as diversas doenças crônicas e
degenerativas, sem garantias de que a reprogramação das células embrionárias
trará mais benefícios do que danos para os pacientes atuais e os das gerações
futuras? A biotecnologia e sua vasta utilização constituem-se assim numa
questão não apenas da esfera individual humana, mas também como uma questão
pública e de saúde coletiva.
No âmbito da sociedade tecnológica atual, a virtualização não pode ser reduzida
a um processo de desmaterialização, sendo que é a passagem de uma solução
pontual a uma problemática coletiva, no qual seus limites jamais estarão
definitivamente traçados (LÉVY,_2009). Logo, a virtualização é um processo do
devir social no qual o corpo contemporâneo sai de si mesmo e adquire novas
velocidades, espaços e tempos, isto é, um corpo desterritorializado e projetado
ao longo do tempo, em que a corporeidade individual pretende-se ao corpo
público e coletivo, para retornar em seguida a si mesmo, transformado
biossocialmente; nesse sentido, pode-se abordar a virtualização como um
processo dialético e recursivo da natureza da vida humana, com os seus devires
contraditórios de reprodução biopsicossocial.
No âmbito das práticas biotecnológicas, essas barreiras encontram-se
dialeticamente rompidas e moldadas simbioticamente, e, por isso, os princípios
de autonomia, universalidade e equidade perdem e ganham novos significados e
contornos. Se autonomia, em sentido estrito, é a faculdade de governar-se, como
isso deve ocorrer em um mundo cada vez mais virtualizado? Como governar-se sob
terapêuticas, riscos e estilos de vida? Já a despeito dos princípios de
universalidade e equidade entram nesse contexto em colapso, merecendo uma
atenção sistêmica e integralizada, pois essas práticas constituem e se realizam
em um mundo tecnológico e virtualizado, promovendo consigo, para além de sua
eficácia, a universalização dos seus efeitos deteriorantes ou benéficos nos
sujeitos e em suas coletividades, já que as mesmas só se concretizam e se
atualizam na esfera do coletivo, impactando o social (IANNI,_2007).
O caráter universal dessas práticas põe também em questão os pilares da
equidade, pois, se esta é a disponibilização justa e razoável de recursos
conforme as necessidades de cada coletividade, como implementá-la face aos
vulneráveis e às fragilidades da vida. O que é equidade quando o corpo
biossocial só se atualiza e reemerge mediante sua existência na vida coletiva e
social, sujeito a uma rede de intervenções tecnológicas em um mundo
virtualizado. Discutir o que produzir quem deve e pode fazê-lo, quem deve e
pode consumir, e quando introduzir ou erradicar novos processos e produtos, é
mais do que um direito subjetivo em nossa sociedade é uma necessidade
potencializada na vida social de todos os sujeitos coletivos (IANNI,_2007).
Outra questão concerne à avaliação daquilo que se pretende fornecer aos
sujeitos-usuários, no campo sanitário, significa verificar a efetividade das
tecnologias incorporadas pelo setor saúde, avaliando as mudanças ocorridas no
estado de saúde dos sujeitos e da qualidade da atenção prestada aos mesmos, que
depende em boa parte da eficiência de alocação de recursos frente à demanda em
potencial da saúde pública. Essa questão diz respeito, num primeiro momento, à
diretriz pragmática da melhor relação entre os custos, meios e fins, mas
refere-se também aos princípios morais de não maleficência e de beneficência,
visto que uma relação não eficaz entre os custos, meios, fins e benefícios
acaba impactando de modo negativo a saúde dos sujeitos e das suas coletividades
como um todo. De maneira geral, boa parte das tecnologias médicas tem sido útil
para a saúde pública, estando os imunobiológicos e as vacinas entre os melhores
exemplos de efetividade e de alcance das metas traçadas, porém, os interesses
das indústrias de fármacos e equipamentos direcionam, todavia, os rumos da
inovação tecnológica, como a prática médica especializada (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,
2000).
Outro aspecto moralmente relevante diz respeito à avaliação da prática de
introduzir inovações tecnológicas antes de serem efetivamente avaliadas, pois a
incorporação de novas tecnologias sem a prudência necessária, além de não
relevar os riscos em potencial para a saúde individual e coletiva, ao
sobrecarregar o setor saúde de custos moralmente contestáveis, torna mais
difícil a retirada a posteriori daquelas que não se mostrarem efetivas ou sem a
relação meios-custos-fins de forma otimizada; isto é, incorporação inapropriada
das tecnologias inovadoras, sem a devida precaução com os critérios de
eficácia, eficiência, segurança sanitária e alocação equitativa de recursos,
como com os impactos indesejáveis gerados na saúde dos sujeitos e em suas
coletividades ao longo do tempo (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,_2000).
Esses mesmos autores ressaltam ainda que a hegemonia do paradigma
tecnobiocientífico que induz à incorporação tecnológica e da cultura dos
limites da gestão tecnocrata, que seleciona e direciona as tecnologias em
saúde, vem se constituindo num grande desafio aos sistemas sanitários atuais,
suscitando debates éticos e políticos sobre as escolhas a serem feitas, em face
das prioridades de saúde pública das coletividades em geral. Já a avaliação
tecnológica, que diz respeito à análise das consequências dos cuidados em saúde
e de suas políticas públicas, vem apresentando interfaces com a bioética da
proteção que possibilita uma abordagem mais compreensiva da efetividade das
tecnologias inovadoras no âmbito da saúde pública, inclusive, porque visa
integrar o problema, moral e politicamente relevante, da equidade na alocação e
na distribuição dos recursos disponíveis, que, sem dúvida, constitui um dos
dilemas mais complexos enfrentados tanto pela bioética pública quanto pela
saúde das coletividades nos meios biotecnocientíficos e da cultura de gestão
tecnocrata com seu poder hegemônico reducionista.
As implicações éticas da avaliação tecnológica são reconhecidas e legitimadas
pelos atores sociais da saúde coletiva, incluindo aquelas relativas aos ensaios
clínicos para aferir a sua eficácia, à avaliação da boa ou da duvidosa prática
médica, à forma de incorporar as novas tecnologias e à sua efetividade, como ao
acesso e à alocação equitativa dos recursos disponíveis; logo a incorporação da
bioética da proteção na avaliação tecnológica possibilita uma melhor
compreensão das práticas de saúde e um progresso em direção ao seu
aprimoramento frente às prioridades e às necessidades reais dos sujeitos e de
suas coletividades (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,_2000).
Hoje em dia no contexto da gestão do SUS, vem se tornando cada vez mais
necessário regular a incorporação tecnológica nos serviços de saúde, tanto no
que diz respeito aos produtos e tecnologias médicas em geral, como em relação
aos protocolos, processos de trabalho e às esferas de gestão; seja para reduzir
os efeitos negativos do mercado quanto à oferta para atenção à saúde dos
sujeitos, ou seja, para orientar as prioridades tecnológicas de inovação e seus
impactos sobre a economia da saúde, ou ainda para gerenciar as implicações
éticas e sociais engendradas pelo consumo das inovações tecnológicas, e que
tais competências regulatórias exigem, por sua vez, uma tomada de decisão
colegiada.
O papel do Ministério da Saúde é central no processo de incorporação
tecnológica no SUS, na medida em que é a instância maior que possui a
atribuição de fortalecer a PNCT, e inserido nela o estabelecimento de metas,
não se atendo somente com prioridades do desenvolvimento tecnológico, mas
também aos modos como se dá a sua incorporação. Essa atuação deve abranger,
para além do SUS, os setores privados que prestam serviços no sistema supletivo
de saúde, sendo que esses prestadores exercem papel de destaque na incorporação
acrítica das inovações de alta densidade tecnológica, como o CIS influencia
intensamente toda essa incorporação nas relações que se dão entre as empresas,
os prestadores e os profissionais da saúde.
Faz-se necessário lembrar que nosso País possui ainda pouco controle sobre este
processo de destinação e utilização de novas tecnologias, mesmo considerando as
recentes iniciativas do Ministério da Saúde é relativamente improvável que elas
possam exercer, todavia, uma influência decisiva na regulação dessas atividades
que se dão no CIS, dado que a lógica da incorporação de muitos produtos de alta
complexidade não adentra pelo SUS, como se vê no caso das terapêuticas
biotecnológicas. Para os gestores, o desenvolvimento tecnológico e a
incorporação de inovações se conformam cada vez mais em uma preocupação
permanente, pois cresce a demanda por políticas de inovações e de transferência
das mesmas em sintonia com as diretrizes do SUS (VIANA;_SILVA;_ELIAS,_2007).
A incorporação de C&T regulada contribui tanto para a resolução dos
problemas de saúde e melhoria da qualidade da assistência como para a
implementação de políticas públicas intersetoriais, agregando capacidade
resolutiva ao setor da saúde. Não sendo possível desvincular a incorporação
tecnológica em saúde dos processos sociopolíticos mais amplos, onde a
complexidade da gestão em saúde refere-se, de um lado, aos aspectos
operacionais da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico, e de
outro lado, aos aspectos estruturais e fomentadores das políticas
socioeconômicas vigentes no País, sendo relevante considerar os aspectos
territoriais, epidemiológicos e culturais da área onde se atua, e,
principalmente, as condições de vida e saúde da população em geral (MONTEIRO_ET
AL.,_2007).
Já no âmbito da judicialização da saúde verificou-se a partir de 1990, um
aumento progressivo dos mandatos judiciais relativos ao direito social à saúde,
onde o Judiciário e o Ministério Público revelaram contradições no âmbito
normativo do SUS, como problemas de gestão em saúde pública, não equacionados
pelas políticas vigentes, questionando a atuação do Executivo e criando novas
demandas, visando assegurar o acesso às tecnologias inovadoras em saúde para a
recuperação e a reabilitação dos sujeitos acometidos por uma doença ou agravo
em particular; recolocando a questão do direito à saúde na pauta dos debates
para a sua efetivação na perspectiva dos princípios e diretrizes do SUS
(BAPTISTA;_MACHADO;_LIMA,_2009).
A judicialização da saúde expõe desafios e possibilidades institucionais para o
Estado e a sociedade civil organizada, induzindo a geração de respostas
efetivas pelos agentes do setor saúde e do sistema judiciário nacional, onde a
intervenção judicial no âmbito da gestão em saúde tem sido alvo de intensos
debates, ganhando destaque no Supremo Tribunal Federal por meio da realização
de audiências, possibilitando o debate intersetorial entre os atores
envolvidos. Entre os argumentos destacam-se os que defendem a necessidade de um
equilíbrio entre a salvaguarda dos indivíduos e a dos interesses coletivos, de
superar burocracias que atrasam registros de medicamentos e mantêm
desatualizadas diretrizes clínicas e consensos terapêuticos, ou ainda, a
necessidade de se pactuar a competência jurídico-regulatória entre os entes
federativos, acolhendo a participação e o controle social em todo o processo de
debate de questões tão complexas, devendo este ser retomado sempre em arena
pública sob o olhar atento da sociedade (SCHEFFER,_2009).
Há também ponderações sobre os efeitos negativos desse fenômeno sob três
principais pontos de vista: o primeiro aponta para o deferimento absoluto das
petições judiciais que, ao seu tempo, podem aprofundar as iniquidades de acesso
ao SUS, uma vez que favorece aos que têm maiores possibilidades de veicular sua
demanda judicialmente em detrimento dos que não possuem acesso viável e ágil à
justiça, colocando em risco o princípio da igualdade, em que os mesmos
recorrentes ao Judiciário podem ser mais beneficiados ainda do que os que
adentram no SUS espontaneamente, além de estar atendendo a possíveis demandas
das indústrias de medicamentos (PEPE_ET_AL.,_2010).
Já o segundo efeito negativo da judicialização da saúde refere-se às
dificuldades presentes na gestão da assistência farmacêutica, uma vez que a
ágil resposta às demandas judiciais não previstas no planejamento dos serviços
faz com que os mesmos criem uma estrutura adicional para o seu controle,
utilizando-se de procedimentos de compra não usuais na gestão pública, tendo
mais custos na aquisição de fármacos, equipamentos e materiais médicos
diversos; já o terceiro diz respeito à segurança do paciente em razão de
possíveis prescrições inadequadas de novos medicamentos ou de indicações
terapêuticas, onde as evidências científicas não foram ainda bem estabelecidas
no âmbito do SUS. Tais fatos favorecem a introdução de novas tecnologias de
forma acrítica e, por vezes, sob forte influência das indústrias farmacêuticas,
onde parte dessas inovações não representa real ganho de eficiência
terapêutica, mas podem, inclusive, causar eventos adversos à saúde, logo o uso
de medicamentos sem registro sanitário ou fora das indicações para as quais
foram registrados, pode significar também riscos e danos à saúde (PEPE_ET_AL.,
2010).
Quanto aos contornos jurídicos da integralidade da atenção à saúde deve se
pautar por normas técnico-científicas, pela adoção de condutas terapêuticas e
de protocolos farmacológicos, como por critérios epidemiológicos na definição
de políticas da saúde, e em limites para a incorporação de novas tecnologias
crescentes e onerosas, voltadas muito mais para o capital do que para o bem-
estar do cidadão, isto por si só poderá esgotar com o decorrer do tempo os
recursos da saúde pública do País; é necessário então ter critérios técnico-
científicos e epidemiológicos atualizados para embasar a incorporação dessas ou
daquela tecnologia, desses ou daquele medicamento ou tratamento.
Por sua vez, compete ao Judiciário coibir as omissões das autoridades públicas
no setor saúde, não deixando nunca de averiguar se estão sendo aplicados os
recursos financeiros de acordo com os percentuais mínimos constitucionais, se a
execução dos serviços se alicerça em critérios técnicos, científicos e
epidemiológicos, e se mantêm as unidades de saúde abastecidas de todos os
fármacos da relação nacional de medicamentos essenciais. Esses fatos qualificam
o SUS, inibindo as omissões das autoridades públicas e interesses corporativos
passíveis de implodir o sistema de saúde nacional que deve ser solidário e
cooperativo por excelência (SANTOS,_2009).
As políticas de saúde destinam-se a racionalizar as prestações coletivas do
Estado com base nas reais necessidades da população, de forma a promover a tão
aclamada justiça distributiva equitativa inerente à realidade epistêmica dos
direitos sociais. Nesse sentido, Marques_e_Dallari_(2007) sustentam que as
políticas públicas devem ser conhecidas pelo Poder Judiciário ao garantir
efetivamente o direito à saúde nos casos concretos submetidos à sua apreciação,
pois desse modo seria possível conjugar os interesses dos sujeitos com os das
coletividades, formalizados mediante políticas públicas de Estado. Como o Poder
Judiciário atua sob a perspectiva da justiça comutativa e sob o âmbito da
microjustiça do caso concreto, julgando direitos e deveres mútuos entre ambas
as partes, o desafio de incorporar a política pública de saúde em suas
decisões, revela-se proeminente compatibilizar a justiça comutativa com a
justiça distributiva equitativa, representada pela decisão colegiada,
formalizada por meio de atos normativos compondo as políticas de assistência
integral à saúde, emanados dos poderes Legislativo e Executivo do Estado.
Revela-se assim premente, como ressalta Marques_(2008), que os juízes,
promotores, gestores, sanitaristas, acadêmicos e a sociedade civil organizada,
entre outros envolvidos nessa problemática, continuem debatendo de forma
abrangente o problema em questão e proponham soluções pactuadas para minimizar
o conflito sociopolítico evidenciado. Porém, é dentro de cada instrução
processual que devem ser traçados os rumos da atuação judicial por parte dos
atores que a compõe, como é no âmbito de cada processo que devem ser postos os
meios à disposição dos juízes, capazes de balizar a sua decisão, e também, é em
cada lócus do processo judicial que o direito subjetivo à saúde deve ser
confrontado com o direto coletivo e com as políticas de saúde, por meio dos
autos processuais e dos saberes técnico-sanitários necessários para discutir
cada caso concreto.
Sendo necessário, pois, que o Poder Judiciário avance em relação à incorporação
da dimensão sociopolítica que compõe o direito à saúde, é necessário também que
os gestores públicos avancem em direção à implementação de políticas da saúde
no contexto do País como um todo, e em relação à organização gerencial e
tecnológica na prestação de serviços da saúde, que em boa parte das vezes
deixam os cidadãos sem a devida assistência integral à saúde, como sem os
espaços adequados para o controle social da gestão de saúde, sem um meio
comunicativo capaz de escutar e processar as diferentes demandas dos sujeitos e
das suas coletividades, e também sem as informações claras a todos que
necessitam de um medicamento ou tratamento; este é um cenário que
frequentemente não confere ao cidadão alternativas senão buscar a tutela
jurisdicional para ver garantido o seu direito à saúde (MARQUES,_2008).
Por sua vez, Machado_(2008) contribui para o debate a partir de uma reflexão
sobre a atuação da sociedade, buscando na justiça a concretização do seu
direito à saúde até então não garantido na prática, e o que se entende
exatamente por judicialização da saúde; o autor parte da constatação de que o
direito à saúde, embora garantido de forma universal e integral pela CF-1988 em
seu Artigo 196, não é assegurado plenamente no cotidiano dos serviços de saúde
pública do País, apontando que o SUS, apesar de ser uma política consistente,
com inegáveis avanços, não consegue ofertar a todos os cidadãos que necessitam
de assistência à saúde, o acesso igualitário e os cuidados integrais e
equitativos preconizados na Constituição. Após discorrer sobre as várias
concepções de judicialização da saúde, o autor destaca duas tendências
conceituais: uma que vê no ativismo político do Judiciário um viés
emancipatório para o exercício pleno da cidadania, e outra que atribui a este
fenômeno uma forma de ampliação e aprimoramento da própria cidadania.
O que se observa no campo da saúde pública brasileira é a coexistência dessas
duas tendências para subsidiar ambos os argumentos. O que está em jogo é
justamente o efeito dual da diversidade epistêmica do fenômeno de
judicialização da saúde, como um modo de emancipação dos sujeitos e de suas
coletividades tanto no âmbito institucional do Estado Democrático de Direitos,
quanto no contexto do cotidiano sociopolítico dos sujeitos por meio do devir de
sua cidadania plena e coletiva, de tal modo que, nas relações democráticas de
poder como uma práxis do saber agir intersubjetivo, todos tenham o mesmo
direito de ver as suas necessidades representadas, como de emanciparem-se no
contexto do Estado Democrático de Direitos (MACHADO,_2008; ARREAZA,_2014).
Todavia, como salienta Machado_(2008), o aporte teórico tem o mérito de lançar
luz sobre essas duas tendências reais e possíveis do fenômeno de judicialização
da saúde, nesse sentido, as teorias sobre a expansão do Poder Judiciário se
mostram bastantes frutíferas na geração de questões relevantes ao debate sobre
a necessidade de uma cidadania plena e coletiva no contexto do Estado
Democrático de Direitos. Lembra-se ainda que somente estudos empíricos em saúde
coletiva seriam capazes de descortinar os rumos concretos que a judicialização
da saúde tem tomado, uma vez que ela é condicionada por fatores extrajudiciais,
como o grau de desigualdades sociais e de iniquidades em saúde, o nível de
escolaridade e de recursos econômicos, e de mobilização política dos sujeitos
demandantes de ações judiciais; e do seu patamar de emancipação sociopolítica
em contextos de violações e injustiças sociais de forças neoliberais do
capitalismo tardio, que obstruem o alcance de novos patamares de reconhecimento
ético-moral entre os sujeitos da vida coletiva, democrática e equitativa
(ARREAZA,_2014).
Uma temática importante refere-se ao marketing comercial e/ou lobby exercido
pelas indústrias farmacêuticas junto a setores sociais e de governo na
incorporação dos seus produtos tecnológicos, podendo induzir a demanda judicial
para a incorporação de novas tecnologias, como pela intensiva dependência
externa das indústrias farmacêuticas nacionais, tanto no desenvolvimento de
pesquisas científico-tecnológicas, quanto em relação aos custos da incorporação
de tecnologias inovadoras no setor da saúde do País. Logo, o acesso equitativo
à saúde e os efeitos de judicialização da saúde se relacionam às questões de
alocação de recursos públicos para pesquisa e assistência, de uso das inovações
de saúde, e aos problemas relativos à propriedade intelectual e às patentes em
C&T, além da necessidade de um padrão de assistência para a incorporação
tecnológica na atenção à saúde, que conduzam à equidade e à integralidade das
ações e dos serviços, tornando a assistência farmacêutica mais efetiva e
articulada (VENTURA_ET_AL.,_2010).
Tem-se assinalado que o objeto da ação judicial por vezes inclui medicamentos
de competência obrigatória do Estado e registrados pelo Ministério da Saúde,
como os de assistência farmacêutica básica, os estratégicos no controle de
doenças e agravos, os de uso raro e de indicação terapêutica excepcional.
Mostrando que a ampliação da atuação judiciária em demandas de saúde, ao menos
em parte, decorre das insuficiências da própria gestão pública, podendo até ter
um desfecho benéfico na responsabilização do Estado em desenvolver práticas
mais adequadas de incorporação, aquisição e alocação de tecnologias
terapêuticas pela rede pública. Porém, corre-se o risco de a via judicial
tornar-se o principal meio para garantir o acesso ao medicamento demandado, e
assim causar prejuízos à efetividade do direito à saúde, com a violação dos
princípios ético-morais já legitimados, como o acesso igualitário e cuidados
equitativos, e também a integridade biopsicossocial dos sujeitos, o que é
contraditório já que a saúde é um direito social de cidadania (BAPTISTA;
MACHADO;_LIMA,_2009).
A intervenção judicial sem a devida e cuidadosa compreensão crítica das
demandas de saúde tem-se limitado a determinar o cumprimento à prestação
requerida por parte dos sujeitos de direito, respaldados por prescrição médica
e conduta terapêutica descrita conforme os saberes médicos para os casos em
particular; porém, o insumo ou procedimento requerido nem sempre é preconizado
nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas estabelecidas pelo SUS, ou
tampouco está incluído nas listas de medicamentos financiados pelos sistemas de
saúde. Tal posicionamento do Judiciário tem resultado numa forte tensão e
intensiva discussão sobre a legitimidade sociopolítica e a competência técnico-
sanitária do poder judicial para decidir sobre o conteúdo e o modo como a
prestação deve ser cumprida e exercida pelos gestores e profissionais do SUS.
Em princípio, esta deliberação é de competência das secretarias de saúde em
conjunto com as instâncias deliberativas regionalizadas do SUS, considerando
implicações orçamentárias e sanitárias que envolvem a incorporação de novas
tecnologias na assistência à saúde dos sujeitos e coletividades, no âmbito dos
princípios e diretrizes do SUS (VENTURA_ET_AL.,_2010).
Defende-se, pois, que a eficácia do direito à saúde necessita ser a mais ampla
possível, devendo o Judiciário ponderar direitos e deveres, bens e serviços,
ações e políticas, necessidades e interesses, para deliberar sobre o conteúdo e
o modo como as prestações de saúde devem ser cumpridas pelo Estado na garantia
do direito social à saúde dos sujeitos. Os juízes deveriam levar em conta, por
exemplo, se as alternativas terapêuticas fornecidas pelo SUS podem atender as
necessidades dos sujeitos sem prejuízos para o seu bem-estar, ou se a
prescrição e a conduta terapêutica requerida, em face do que há disponível no
SUS, é o único meio efetivo para garantir a saúde desses demandantes de
direitos. Essa postura deve ser um meio facilitador à própria redução da
demanda judicial, uma vez que pode ser reduzida quando protocolos clínicos e
diretrizes terapêuticas são atualizadas com maior agilidade, e quando há uma
alocação programada de dado medicamento ou procedimento terapêutico
tecnológico.
Há um descompasso entre oferta e demanda do cidadão no SUS, como um atraso na
incorporação de inovações em saúde no sistema público brasileiro, que se
expressa no contexto nacional sob uma crescente e onerosa demanda judicial para
com os governos estaduais e municipais. Uma das principais polêmicas refere-se
ao modo como uma sociedade democrática deve solucionar esse déficit entre a
demanda e a oferta de novas tecnologias, relevando a escassez dos recursos
públicos no setor saúde, as decisões contextualizadas e a sua justa alocação
distributiva das tecnologias de saúde pública para os sujeitos mais vulneráveis
frente às fragilidades da vida social (VENTURA_ET_AL.,2010).
Em relação à incorporação das inovações tecnológicas no SUS, constata-se não só
o frequente atraso, mas o fato de que se processa, por vezes, de forma
acrítica, podendo comprometer não apenas a qualidade da prestação de serviços,
como também a equidade na alocação dos recursos públicos. Destaca-se, ainda,
que a incorporação de novas tecnologias na prática médica e nos sistemas de
saúde deve levar em conta não só os objetivos pragmáticos dos gestores na
avaliação da eficácia e da eficiência das tecnologias inovadoras em saúde, mas
também os saberes ético-morais da proteção e dos cuidados em saúde, otimizando
direitos e benefícios como reduzindo iniquidades e malefícios, e preservando
também autonomias e culturas distintas, como o acesso universal e igualitário
aos bens e aos serviços públicos em potencial (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,_2000); que
os poderes públicos reestruturem instâncias institucionais no atendimento às
exigências políticas, éticas, legais, sanitárias e tecnocientíficas, como
requerendo o processo regulatório das inovações tecnológicas em saúde, com
ampla participação dos diversos atores sociais nesse processo, legitimando as
restrições inequívocas e invariavelmente necessárias (VENTURA_ET_AL.,_2010).
O direito social à saúde dos cidadãos possui dimensões éticas, políticas,
jurídicas, sócio-sanitárias, econômicas, culturais e biotecnocientíficos
indissociáveis, onde a sua efetividade se inscreve a partir de um diálogo
orientado por um enfoque hermenêutico crítico no plano da intersubjetividade,
aliado ao enfrentamento de desafios tanto teóricos como práticos, no devir de
novas instrumentalidades, para a sua concretização no cotidiano dos sujeitos da
vida coletiva (AYRES,_2007). Compreender como vêm se dando os debates dentre
essas interfaces na geração da base normativa que orienta leis, demandas,
políticas e práticas de saúde é um passo relevante em prol da efetividade do
direito social à saúde ou, pelo menos, para a ampliação do acesso à justiça e à
saúde (VENTURA_et_al.,_2010); ou de toda sorte, para alcançar novos patamares
de reconhecimento ético-moral entre esses cidadãos, e então emanciparem-se no
âmbito do nosso Estado Democrático de Direitos (ARREAZA,_2014).
Já a despeito das intenções de arbitragem de problemas coletivos e da defesa
dos interesses de sujeitos de direitos em face do poder de Estado, a
intervenção do Judiciário no âmbito do direito subjetivo acaba por atender aos
sujeitos que têm em média as melhores condições socioeconômicas de vida,
residindo em áreas urbanas com baixa ou sem nenhuma vulnerabilidade social; e
que por sua inclusão social, já se encontram em posição privilegiada,
reforçando ainda mais as iniquidades e as desigualdades no campo da saúde
pública nacional. A interpretação do direito à saúde apenas na esfera
individual, não se atendo à dimensão coletiva, não permite reconsiderar o
problema em toda a sua complexidade, resultando em medidas que, em vez de
promoverem a justiça social e o bem-estar comum, acabam por prolongar a enorme
dívida social com a parcela mais vulnerável da população brasileira frente ao
sistema de reprodução social capitalista (CHIEFFI;_BARATA,_2009).
Por fim, para efetivar progressivamente o direito social à saúde, nosso Estado
deve aumentar os subsídios para medicamentos essenciais e intensificar a
transparência e a eficiência do processo de adesão de novas condutas
terapêuticas, já as secretarias de saúde devem procurar compreender as causas e
os efeitos das demandas judiciais para remediar eventuais falhas técnico-
gerenciais. Ao invés de meramente responder a casos particulares, o Judiciário
e o Executivo devem promover a saúde como um direito coletivo e assegurar o
acesso universal a medicamentos que o Estado tem a competência legal de
registrar, incorporar e fornecer com base nas melhores evidências disponíveis
sobre a sua segurança e efetividade. Além disso, deve continuar inovando no
acesso à atenção integral da saúde como direito de cidadania, consolidando um
direito à saúde mais abrangente, que transcenda a medicamentos e demandas
interpostas pelo Judiciário (BIEHL_ET_AL.,_2009).
Enfim, o aporte sociopolítico das tecnologias em saúde, como uma construção
sociohistórica e cultural e como um bem público virtuoso potencializado,
contribui reflexivamente para uma gestão democrática e sociopolítica das
inovações tecnológicas de saúde em termos éticos, regulatórios e jurídicos, sob
uma perspectiva normativa dos princípios e diretrizes do SUS real e possível.
Suporte financeiro: não houve