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BrBRHUAp0080-21072012000100002

BrBRHUAp0080-21072012000100002

variedadeBr
ano2012
fonteScielo

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Reconhecimento e construção da competência da pessoa com deficiência na organização em debate

1. Introdução Progressivamente, a exclusão e a segregação de pessoas com deficiência (PcDs) cederam espaço à ideia de integração e, atualmente, à de inclusão social. Nesse novo cenário, a capacidade laborativa desse grupo começa a ser considerada. O enfoque caminha do modelo médico, em que a deficiência é considerada uma doença e seu portador deve ser cuidado como um dependente, para o modelo social (CARVALHO-FREITAS et al., 2005), situação em que se prioriza o olhar sobre a contribuição que a pessoa pode dar à sociedade, a qual será, por sua vez, corresponsável por seu desenvolvimento.

Contudo, o direito a uma vida tão plena quanto possível para esses indivíduos ainda depende da implementação de políticas afirmativas que busquem assegurar os direitos fundamentais dessas pessoas, dentre eles o direito ao trabalho. A implementação de tais políticas vem gerando alguns movimentos positivos, seja no aumento do número de empregos formais, seja pelo fato de levar a sociedade a debater e posicionar-se sobre o tema. As discussões dividem opiniões: aqueles que são favoráveis argumentam sobre oportunidades únicas para que as pessoas com deficiência demonstrem sua real competência; os que são contrários falam de discriminação reversa e de contratação de profissionais menos qualificados.

Tal debate é acirrado pelo grande número de pessoas que possui alguma deficiência e por suas dificuldades de inclusão nas organizações, a despeito do aumento do número de ações afirmativas que amparam esse grupo. No Brasil, segundo dados do Censo Demográfico realizado em 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 24,5 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência. Isso representa 14,5% da população brasileira (NERI et al., 2003). A maioria dessas pessoas, contudo, permanece como um contingente pouco aproveitado, cenário que vem sendo justificado, sobretudo, pela falta de escolaridade e qualificação profissional das PcDs.

O acesso à educação representa, portanto, uma das principais iniciativas para a inclusão e um grande desafio a ser superado. Desafio porque, no Brasil, as PcDs sempre estiveram em posição de desvantagem em relação ao restante da população, que as oportunidades educacionais ainda estão relacionadas à igualdade social e à renda. Adicionalmente, existem outras barreiras, como dificuldades de acessibilidade, severidade da deficiência, protecionismo da família, além dos aspectos de preconceito, discriminação e estigma, que fazem parte do cotidiano dessas pessoas e podem influenciar o interesse e a disposição para a escolarização (SASSAKI, 2006).

Considerando o déficit no nível de educação formal, as principais demandas hoje estão relacionadas a desenvolver capacidades laborativas básicas da PcD e a proporcionar vivência e experiência profissionais. No contexto dessas exigências mínimas, torna-se relevante pensar o desenvolvimento da PcD a partir da noção de competências que, sob a ótica de Le Boterf (2003), trata da combinação e mobilização dos recursos existentes para a ação e o alcance dos resultados esperados pela organização. Nesse debate, encerra-se a principal contribuição que se pretende dar neste estudo.

O movimento da inclusão social indica que a responsabilidade por esse desenvolvimento da PcD deve ser assumida por toda a sociedade. Figuram entre os principais atores as próprias pessoas com deficiência, empresas, governos, instituições de formação profissional, associações de classe, universidades, sindicatos e família. A mobilização da sociedade representa o engajamento desses atores, por meio da demonstração de uma postura ética e de um compromisso social que implique o sucesso da PcD no mercado de trabalho, o que significa não que se garanta a contratação desse profissional, mas também as condições para seu desenvolvimento profissional e ascensão na carreira. O desenvolvimento das pessoas com deficiência depende da ação conjunta de múltiplos atores, daí a importância de considerá-los nos estudos que analisam o tema.

Diante desse grande desafio, é preciso mudar a forma com que comumente se olha para a PcD no contexto das relações de trabalho, indo além da caridade ou do cumprimento das cotas. O ponto de partida é a oferta de emprego; entretanto, as maiores contribuições para seu crescimento surgem à medida que se concretiza o círculo virtuoso no trabalho (GIL, 2002), representado pelas possibilidades de genuíno desenvolvimento pessoal e profissional dessa parcela da população.

Trata-se de um novo olhar sobre a deficiência, que destaca o valor da PcD para a organização.

Isso posto, neste trabalho tem-se a intenção de analisar experiências de desenvolvimento de competências e reconhecimento profissional da pessoa com deficiência inserida no contexto organizacional, considerando os principais atores envolvidos nesse processo. Assim, na problemática da pesquisa questionam-se quais experiências podem ser significativas ou não para a construção de competências e reconhecimento profissional das pessoas com deficiência inseridas no contexto organizacional e quem são os principais atores que contribuem para esse processo.

O artigo está dividido em cinco seções, além desta introdução: as competências da PcD e as iniciativas de desenvolvimento profissional; a deficiência, a inclusão e o desenvolvimento da competência das PcDs; a metodologia de pesquisa; a análise e a interpretação dos dados; as considerações finais.

2. Competências da PcD e iniciativas de desenvolvimento profissional Analisar as PcDs nas organizações sob a lente da competência tem por intenção colocar em debate se os programas formais de desenvolvimento, ou mesmo as experiências informais a que esses novos atores corporativos estão sendo expostos no universo empresarial, vêm potencializando a construção de autonomia e a mobilização de saberes que os habilitem a assumir tarefas cada mais complexas, a participar em uma rede de atores na empresa, enfim, se esses programas têm dado força à ação que agregue valor social para as PcDs e valor econômico para a organização (ZARIFIAN, 2001; LE BOTERF, 2003; FLEURY e FLEURY, 2004). Ao mesmo tempo, significa posicionar o debate da competência em sua acepção mais política, que entende que as desenvolver, sob a ótica da corporação, é decidir quem será atendido, como se dará esse processo e quão ricas e potencializadoras serão essas experiências.

Em relação aos aspectos estruturais que a literatura enfatiza como fundamentais para a construção da capacidade humana no trabalho, Le Boterf (2003) enfatiza a disposição de agir de modo pertinente em relação a uma situação específica e a relevância dos saberes em sua concepção de competências. Em decorrência do aumento da complexidade das situações de trabalho, espera-se que o profissional saiba administrar situações como panes, contingências, falhas e mudanças. A competência pode ser demonstrada a partir da articulação de três eixos: biografia e socialização do indivíduo; formação profissional (situações da formação); contexto profissional (experiências e situações profissionais). O profissionalismo seria representado pela intersecção desses eixos, como resultado da articulação dos três domínios distintos. Por não estar restrito à esfera profissional, o modelo de mobilização profissional introduzido pelo autor representa uma preocupação com a formação integral do indivíduo. Os eixos fazem parte do repertório de recursos do indivíduo, mas eles, por si sós, não constituem a competência: "A competência profissional não reside nos recursos a mobilizar, mas na própria mobilização desses recursos" (LE BOTERF, 2003, p.50). Trata-se, portanto, de olhar para a experiência em análise neste estudo a partir dessas considerações.

Zarifian (2001), por sua vez, propõe uma definição de competências fundamentada na mudança de comportamento social dos indivíduos em relação ao trabalho e da dinâmica da organização do trabalho, definindo competência a partir de três dimensões complementares.

* "A competência é o tomar iniciativa, o assumir responsabilidade do indivíduo diante de situações profissionais com as quais se depara" (LE BOTERF, 2003, p.68).

* "A competência é um entendimento prático de situações que se apoia em conhecimentos adquiridos e os transforma à medida que aumenta a diversidade das situações" (LE BOTERF, 2003, p.72).

* "A competência é a faculdade de mobilizar redes de atores em torno das mesmas situações, é a faculdade de fazer com que esses atores compartilhem as implicações de suas ações, é fazê-los assumir áreas de corresponsabilidade" (LE BOTERF, 2003, p.74).

Ao introduzir esses elementos em sua definição de competências, Zarifian (2001) faz alusão à importância da autonomia, da formação de redes e de um ambiente de trabalho que permita que o profissional assuma responsabilidades por problemas mais complexos e inéditos. Outro ponto importante que precisa ser evidenciado é a questão da automobilização das competências: não se pode obrigar um indivíduo a ser competente; a organização pode solicitar a competência e criar condições favoráveis para sua manifestação (recursos do meio); entretanto, a manifestação das competências sempre dependerá da motivação do indivíduo em acioná-las. Aqui se enfatiza a necessidade de olhar tanto para o ambiente profissional no qual os indivíduos - no caso, as PcDs - estão inseridos, que pode favorecer, ou não, a emergência da competência, como a predisposição interna desses sujeitos em situação de trabalho.

Fleury e Fleury (2004) abordam a questão da competência a partir da noção de valor agregado, indicando que a articulação entre as competências individuais e a estratégia do negócio devem gerar valor social para o indivíduo e valor econômico para a organização, isto é, ambos têm de ser beneficiados no processo. Apoiados em Le Boterf (2003), Fleury e Fleury (2004, p.30) indicam que a geração de valor estaria relacionada à mobilização dos múltiplos saberes, como saber agir, mobilizar, comunicar, aprender, comprometer-se, assumir responsabilidades e ter visão estratégica. Propõem, então, a seguinte definição para competência: * "Um saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agreguem valor econômico à organização e valor social ao indivíduo" (FLEURY e FLEURY, 2004, p.30).

Cheetham e Chivers (1996) e Le Deist e Winterton (2005) propõem uma abordagem de competências cujo objetivo é integrar diferentes elementos em um modelo de competências holístico, influenciado pelo contexto e pelo ambiente de trabalho.

Apresentam ainda elementos importantes que até então não estavam sendo discutidos nos modelos de competência, como ética, valores, responsabilidade social e cidadania. Ampliam, assim, os aspectos comumente observados nos estudos na área, motivo pelo qual este modelo serviu de base para o presente estudo, que se está tratando do desenvolvimento da competência das PcDs.

Mais especificamente, o modelo de Cheetham e Chivers (1996) inclui quatro competências-chave inter-relacionadas: conhecimento e competências cognitivas; competência funcional; competência comportamental e pessoal; competências éticas e valores. Adicionalmente, fazem parte do modelo as competências profissionais e algumas competências-chave mais genéricas e que possuem a capacidade de gerar outras competências, as metacompetências. Por fim, os autores integram em sua proposta os elementos personalidade e motivação. O modelo holístico de competência profissional apresentado pelos autores surge a partir das limitações das abordagens que consideram somente as competências da pessoa trabalhador - ou da função - trabalho.

Do ponto de vista da discussão sobre competências como movimento político a serviço de um determinado grupo de interesses, Burgoyne (1993) questiona a que agendas ele se presta, se é capaz de reformular a ordem social e política existente, ou simplesmente mantém os padrões estabelecidos sem os questionar. O objetivo final de um programa de competências pode reduzir-se à padronização e ao controle, no caso da presente pesquisa, à manutenção das PcDs em posições que não desafiem o status quo. Nesse mesmo sentido, Graham e Tarbell (2006) analisam o conteúdo dos programas de competências questionando se o ponto de vista dos stakeholders, especialmente de profissionais que não estão em posições de destaque na hierarquia, está sendo contemplado.

O ponto para o qual tanto Burgoyne (1993) como Graham e Tarbell (2006) estão chamando a atenção é o seguinte: o que ou quem está presente (ou não) nos modelos de competência e programas de desenvolvimento empresariais reflete muito mais do que uma decisão técnica. Trata-se também de um posicionamento político e, portanto, de poder. No âmbito do presente estudo, isso significa olhar para as experiências das PcDs indo além de uma perspectiva meramente instrumental, que se limita, por exemplo, a uma descrição de saberes. Cabe também observar as tensões que favorecem ou impedem o desenvolvimento do potencial da PcD e seu crescimento na hierarquia da organização. É com esse olhar crítico que a experiência em questão também tem de ser observada.

3. Deficiência, inclusão e desenvolvimento da competência das PcDs Historicamente, a deficiência foi definida a partir do modelo médico que enfatiza as características biológicas do indivíduo e sua incapacidade de exercer um conjunto de funções e tarefas. Nesse contexto, a escolha daqueles que podem participar de maneira plena da sociedade é tomada a partir desses atributos biológicos. Abordagens mais atuais conceituam deficiência como uma construção social; isso significa que o conceito de deficiência e o lugar do deficiente na sociedade refletem a forma como determinado grupo social interpreta o termo (WOODHAMS e DANIELI, 2000). Embora o modelo social seja hoje amplamente aceito, predominam ainda as definições e os comportamentos que enfatizam características biológicas dos indivíduos, típicas do modelo médico.

Conceber a deficiência somente como uma característica biológica é desconsiderar os determinantes sociais que dificultam a inclusão. De acordo com Omote (1994, p.67), * "a deficiência não pode ser vista como uma qualidade presente no organismo da pessoa ou em seu comportamento. Em vez de circunscrever a deficiência aos limites corporais das pessoas com deficiência, é necessário incluir as reações de outras pessoas como parte integrante e crucial do fenômeno, pois são essas reações que, em última instância, definem alguém como deficiente ou não deficiente. As reações apresentadas por pessoas comuns em face das deficientes ou das deficiências não são determinadas única nem necessariamente por características objetivamente presentes num dado quadro de deficiência, mas dependem bastante da interpretação, fundamentada em crenças científicas ou não, que se faz desse quadro".

Omote (1994) alerta para o fato de que uma teoria sobre a deficiência deve ir além dos aspectos funcionais, buscando entender como as pessoas em geral trabalham com essas diferenças, que muitas vezes é o próprio grupo social que trata como desvantagens algumas diferenças apresentadas por seus integrantes (SAETA, 2006). Daí a importância de estudar a deficiência a partir da construção social, considerando as condições sociais que surgem à medida que esses indivíduos ocupam seu lugar na sociedade, bem como as relações entre as PcDs e outros membros do grupo social, que os reconhecem e os tratam como deficientes.

Em um modelo social, entende-se que os problemas daqueles que possuem necessidades específicas não seriam somente responsabilidade deles próprios, mas de toda a sociedade. A sociedade, como causadora de desvantagens, é convidada a eliminar as barreiras que prejudicam o desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional desses indivíduos (SASSAKI, 2006).

Na percepção de Woodhams e Danieli (2000), o modelo social encara a deficiência como um construto social que existe em ambientes nos quais as diferenças são desvalorizadas. O parâmetro de comparação é a relação entre as pessoas com e sem deficiência, que deve ser equilibrada. Enquanto no modelo médico somente as experiências negativas da deficiência eram vislumbradas, o modelo social procura destacar os aspectos positivos na vida de uma pessoa com deficiência.

Adicionalmente, este modelo evidencia a importância das relações sociais, aspecto que Saeta (2006, p.65) destaca ao apresentar o conceito de construção social da deficiência: * "Conjunto de expectativas dirigidas aos grupos e aos indivíduos com deficiência, expectativas estas que funcionarão como determinantes de inter-relações estabelecidas e que, com todos os elementos, constituem o grupo social".

Em outras palavras, em um modelo social, a ênfase está nas interações entre os diferentes grupos.

A inclusão, um dos elementos do modelo social da deficiência, pode ser descrita de várias maneiras. Mor Barak (2005, p.149), por exemplo, refere-se à inclusão como o senso de pertencimento do indivíduo ao grupo: * "O conceito de inclusão-exclusão no ambiente de trabalho refere-se ao senso individual de fazer parte do sistema organizacional tanto nos processos formais, como acesso a informações e canais de tomada de decisão, quanto aos processos informais, como a parada para o cafezinho e encontros no almoço em que informações e decisões acontecem informalmente".

Para Mor Barak (2005), a inclusão reflete a contribuição completa e efetiva da pessoa com a organização, tendo acesso a todos os canais de informação, assim como acontece com os indivíduos que pertencem aos grupos majoritários. Esses conceitos evidenciam a preocupação com práticas existentes em ambientes não inclusivos, como a não participação de membros dos grupos minoritários em processos e eventos decisivos para a organização, tais como oportunidades de trabalho e ascensão de carreira, redes de informação, investimentos em recursos humanos e tomada de decisão.

Muitos pesquisadores referem-se à inclusão como o processo mais indicado para atender à necessidade de desenvolvimento das PcDs (GIL, 2002; CARVALHO-FREITAS, MARQUES e SCHERER,2004; SASSAKI, 2006) e para a construção de uma sociedade para todos (FOREST e PEARPOINT, 1997; SASSAKI, 2006). Todavia, que se tomar cuidado para que esse discurso não se limite a uma perspectiva reducionista, em que basta ensinar às PcDs habilidades e comportamentos produtivo-adaptativos, por um lado, e garantir o acesso a serviços e recursos comunitários, por outro, para que o processo automaticamente ocorra.

Considerando que o discurso da deficiência e inclusão pode enfatizar aspectos diversos, a tônica deste estudo está na deficiência como construção social e na inclusão a partir de interações sociais e possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos na corporação. Isso significa que a inclusão plena é caracterizada por um conjunto de ações e processos que precisam ser legitimados e aceitos por toda a organização. Nesse sentido, Gil (2002) defende a construção do que chama de "círculo virtuoso da inclusão das pessoas com deficiência", que engloba a contratação de mais PcDs, segundo seu potencial de trabalho e a integração delas com os demais empregados e outros stakeholders da empresa, bem como o investimento em sua formação e qualificação.

Essa nova abordagem traria uma série de consequências positivas, dentre as quais Gil (2002) destaca os benefícios específicos para as pessoas com deficiência, como melhor formação e maior empregabilidade e remuneração, e os benefícios para as empresas, como ganhos comerciais, melhoria na imagem e capacidade para o desenvolvimento de novos produtos e processos. Trata-se de um círculo virtuoso porque todos ganham e todos trabalham para aumentar esses benefícios. Contudo, até que ponto podem ser observadas experiências empresariais que caminhem nessa direção?

4. Metodologia de pesquisa A estratégia metodológica deste trabalho foi o estudo de caso qualitativo, que se procurou analisar um fenômeno em profundidade, recorrendo a múltiplas fontes de evidências (entrevistas, observação participante e análise documental), construídas no contato direto e intensivo dos pesquisadores no ambiente em estudo. É importante pontuar o cuidado e considerar as críticas usuais ao uso do estudo de caso (GODOY, 2006), especialmente no que se refere a tomá-lo como mera ilustração, ou reduzi-lo a si mesmo, o que não permitiria traçar implicações teóricas de maior alcance.

O objeto de estudo neste trabalho são as experiências de desenvolvimento de competência e reconhecimento profissional de um grupo de pessoas com deficiência inserido em uma indústria farmacêutica, aqui identificada como Farma, considerando-se os atores envolvidos nesse processo (gestor, área de recursos humanos, sindicato e organização não governamental - ONG). A Farma é uma empresa multinacional de grande porte, com sede no estado de São Paulo, que desenvolveu um programa para inclusão e desenvolvimento pessoal e profissional desses colaboradores. Esse programa possui um escopo bastante amplo, pois inclui desde o processo de escolha desses profissionais, avaliação de desempenho, elaboração de planos de desenvolvimento individual e atividades contínuas de qualificação, até reuniões individuais e periódicas de acompanhamento. Os critérios de seleção da organização foram: a maturidade do programa de desenvolvimento de competências das PcDs; o estreito relacionamento que a organização mantém com atores externos (ONG, sindicato) para inclusão de PcDs; o fato de a indústria farmacêutica ser uma das que mais vêm cumprindo as cotas exigidas por lei; o amplo acesso dos pesquisadores ao campo de pesquisa.

Embora a pesquisa tenha sido conduzida em uma única organização, foram entrevistadas PcDs de diferentes áreas da Farma e também atores externos à empresa que colaboram com o processo de desenvolvimento de competências dos profissionais com deficiência que nela atuam. No total, foram realizadas 17 entrevistas semiestruturadas, com roteiro aberto, elaborado a partir do referencial teórico. A seguir, apresenta-se uma breve descrição dos atores e os critérios de seleção dos entrevistados.

* Pessoas com deficiência- foram entrevistadas dez PcDs que atuam na organização objeto de estudo. O critério de seleção dos sujeitos foi a participação nos cursos de qualificação promovidos pela empresa a partir de outubro de 2008. A idade das PcDs entrevistadas variava entre 18 e 39 anos, com média de 27,8 anos. Em relação à deficiência, dos dez entrevistados, oito possuem deficiências congênitas e, dois, deficiências adquiridas ao longo da vida. Predomina a deficiência física, seguida da visual e auditiva. Todas as PcDs que participaram do estudo cursaram a educação fundamental regular e concluíram o ensino médio na rede pública de ensino.

* Recursos humanos (RH) - foi entrevistada a gerente responsável pelo programa de inclusão de pessoas com deficiência. Atuando na área de Recursos Humanos, a psicóloga é a principal responsável no RH por recrutamento, seleção, treinamento e acompanhamento dos profissionais com deficiência que atuam na Farma.

* Gestores - foram selecionados para entrevista gestores que atuam em diferentes áreas da empresa e que estavam pelo menos um ano gerenciando uma das PcDs que participou do estudo. Trata-se de um quadro de gestores relativamente jovem, com idade entre 29 e 35 anos. Enquanto a área de Recursos Humanos trabalha com a definição e a implantação dos processos e ferramentas de desenvolvimento, os gestores avaliam o reflexo das experiências de desenvolvimento para o dia a dia dos profissionais.

* Associação parceira - entrevistou-se o representante da Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais (Avape), principal entidade parceira da Farma na implantação de programas de qualificação para as PcDs inseridas na organização. Essa profissional, formada em Psicologia, com especialização em desenvolvimento organizacional, atua na Associação 14 anos, sendo uma das responsáveis pelos programas de qualificação da Associação.

* Sindicato - foi um ator considerado em virtude dos inúmeros trabalhos desenvolvidos em parceria com indústrias do segmento farmacêutico.

Entrevistou-se o responsável pelo programa de inclusão no sindicado da indústria farmacêutica, Sindusfarma. Esse profissional é a principal interface da indústria com a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Estado de São Paulo, atuando em etapas importantes do processo, como negociações estratégicas e controle do preenchimento das cotas na indústria.

Em relação à estratégia de observação participante, acompanhou-se a dinâmica das atividades de desenvolvimento destinadas às PcDs. Na terceira e última fonte de investigação, a análise documental, consideraram-se as avaliações dos treinamentos oferecidos pela Avape realizadas ao fim de cada módulo e as apostilas de todos os treinamentos ministrados pela Associação. Também foram analisados os documentos produzidos e publicados pelo Sindicato que detalham aspectos importantes sobre a inclusão de PcDs na indústria farmacêutica e o acordo que originou o programa de inclusão da indústria.

Considerando a quantidade de fontes utilizadas neste estudo, a natureza verbal de grande parte do material coletado e o volume de textos obtidos durante o projeto para a análise dos dados, recorreu-se à proposta de interpretação de dados qualitativos de Flores (1994). Para tanto, estabeleceu-se um conjunto de metacategorias, categorias e subcategorias, que foram analisadas, primeiramente, de maneira isolada, para, em seguida, serem cruzadas, tendo em vista que cinco diferentes atores compõem o estudo (PcD, Gestor, RH, Avape e Sindicato). As metacategorias foram agrupadas de acordo com a similaridade dos temas, conforme se observa na figura_1.

5. Análise e interpretação dos dados A seção de análise e interpretação dos dados foi didaticamente estruturada de acordo com a figura_1, para facilitar a compreensão dos achados de pesquisa.

Assim, parte-se da trajetória profissional das PcDs e finaliza-se com a contribuição dos atores externos.

5.1. Trajetória de formação das PcDs antes da Farma No que tange à trajetória de formação das PcDs, as narrativas indicam que os entrevistados possuem percursos de vida sofridos, repletos de barreiras e dificuldades pessoais e profissionais. No grupo de entrevistados, todos são oriundos de classe social menos favorecida, dado que confirma a informação de Neri et al. (2003) sobre a menor renda média das PcDs em comparação às das pessoas que não possuem deficiência. Tal fato influenciou negativamente o processo de desenvolvimento desses profissionais, pois muitos precisaram lançar-se no mercado de trabalho de forma prematura para contribuir com a renda familiar. Em consequência, menos tempo do que o necessário foi dedicado aos estudos, além do fato de que as PcDs dispunham de pouco ou nenhum recurso para investimento em qualificação. Uma das soluções encontradas por aqueles profissionais com interesse em seu autodesenvolvimento foi realizar cursos de curta duração oferecidos por organizações não governamentais. Os cursos normalmente são gratuitos ou têm custo simbólico, para que as limitações financeiras não sejam empecilho para sua realização.

Com algumas desistências ao longo do percurso, todas as PcDs que participaram da pesquisa aqui relatada concluíram o ensino médio em escolas públicas e regulares de ensino. Esse feito é motivo de orgulho para a maioria dos entrevistados, uma vez que lhes permitiu a participação em atividades regulares de ensino, sem lançar mão de estigma de invalidez ou isolamento que permeia o tratamento da deficiência ao longo da história, embora, nos relatos, se pôde constatar que não houve adequação por parte das escolas quanto à forma de atendimento em decorrência do tipo da deficiência, o que prejudicou, muitas vezes, o aproveitamento escolar, conforme indica o relato das PcDs abaixo.

* " [na escola pública] eu não tinha suporte nenhum, todas as matérias eram passadas na lousa e eu tinha dificuldades de escrever, perdia matéria" (PcD9 - deficiente física - paralisia cerebral).

* "Estudei em uma escola normal, fiz, concluí o ensino médio em escola normal. Tanto é que eu repeti várias vezes. Muitas vezes foi porque eu não acompanhava a aula. Eu tenho dificuldades para ver a uma certa distância, um certo tamanho de fonte, o que está escrito ou ler livros, essas coisas. E eu ia repetindo, às vezes eu repetia, às vezes eu ficava de recuperação" (PcD2 - deficiente visual - baixa visão).

As experiências de trabalho anteriores à Farma também apresentam, de maneira geral, baixo grau de complexidade. Muitos dos entrevistados trabalharam na informalidade ou exerceram atividades operacionais em empresas, com pouca ou nenhuma margem de escolha do tipo de trabalho exercido, como observado no relato a seguir.

* "Sempre trabalhei em produção [...] mas era muito barulhento, eu tive que sair. E eu vi que eu não queria mais trabalhar com produção" (PcD5 - deficiente auditiva - bilateral parcial).

Mesmo as PcDs que tiveram a oportunidade de trabalhar em grandes organizações não destacaram esses ambientes como locais que desenvolviam plenamente sua capacidade de trabalho. Nesse sentido, nem sempre a vivência em uma grande corporação significa que esse profissional, pelo simples fato de estar inserido nesse contexto, terá oportunidade de desenvolver suas potencialidades. Ao contrário, os relatos indicam que situações fora do contexto organizacional foram as mais enriquecedoras nessa trajetória, a exemplo de experiências como dar aulas ou atuar como voluntário em organizações não governamentais.

5.2. O significado do desenvolvimento profissional Não existe consenso entre os entrevistados sobre o conceito de desenvolvimento profissional. De certa forma, todos atrelam o tema à aquisição de algum tipo de atributo, evolução profissional ou melhoria do desempenho. Mesmo assim, abordam questões importantes que remetem ao conceito de desenvolvimento proposto por Dutra (2001, p.46): "[...] a capacidade de assumir atribuições e responsabilidades em níveis crescentes de complexidade". Cada ator entrevistado apresenta elementos que considera significativos para que um indivíduo demonstre tal evolução. As PcDs definem desenvolvimento como a aquisição de atributos; os gestores relacionam o termo à superação das barreiras da deficiência. A representante do RH, por sua vez, entende que o desenvolvimento é representado pela ascensão profissional da pessoa, enquanto o sindicato atrela o desenvolvimento à capacitação profissional. Por fim, a representante da Avape define o desenvolvimento como a capacidade de adquirir habilidades e competências, independentemente de se possuir ou não algum tipo de deficiência.

A compreensão sobre o significado de desenvolvimento é fundamental, que embute o movimento que se fará em direção à sua promoção. O contexto que permeia a contratação de PcDs e a adoção de práticas de desenvolvimento é a necessidade do cumprimento das exigências legais. As cotas passam a ser a porta de entrada das pessoas com deficiência na organização, sem as quais dificilmente existiriam tantas oportunidades profissionais.

5.3. Práticas formais de desenvolvimento da Farma A obrigatoriedade imposta pelo governo quanto ao preenchimento de vagas para as PcDs desencadeou, por outro lado, um problema estrutural de falta de profissionais qualificados para ocupar os postos de trabalho. Como essas pessoas foram excluídas durante muito tempo do sistema produtivo, não houve ações institucionais coletivas para a capacitação des- se grupo, tampouco condições sociais que motivassem a PcD para um projeto de autodesenvolvimento. Os prejuízos não tar- daram a surgir: as empresas começaram a fazer contratações desesperadas e malfeitas pela insuficiência de profissionais que possuem competências para o trabalho. Essa também foi a experiência da Farma que, ao contratar PcDs sem a qua- lificação mínima exigida pela empresa, optou por adotar algumas práticas de desenvolvimento formais e informais pa- ra esse público.

Entre as práticas formais, destaca-se o programa de aperfeiçoamento de cinco módulos com cursos de curta duração, incluindo: desenvolvimento pessoal e profissional; comunicação e expressão; informática básica; rotinas administrativas; e atendimento ao cliente. Adicionalmente, existem reuniões de acompanhamento com PcDs e gestores, promovidas pela área de Recursos Humanos a cada três meses. Primeiramente, são realizadas conversas individuais com cada gestor responsável pelo profissional com deficiência, para, depois, serem feitas as reuniões com cada PcD, trabalho considerado importante pelos gestores, de acordo com o relato: * "Mas eu acho que o RH tem que atuar mesmo, porque às vezes eles têm dificuldade, como qualquer profissional, às vezes, têm dificuldade de conversar com a sua gestão, com o seu superior, e o RH é essa porta aberta mesmo" (Gestor 4 - líder da PcD1).

Por último, as PcDs participam do processo regular de avaliação de competências e desempenho promovido pela Farma. Esse processo faz parte dos pilares de desenvolvimento de pessoas da organização e contempla o processo de avaliação de competências, elaboração de um plano de desenvolvimento individual e estabelecimento de metas individuais. O gestor comenta sobre a imparcialidade nesse processo de avaliação: * "Você tem que pensar em um todo, na pessoa como profissional, verificar quais são as suas limitações profissionais, e não limitações físicas ou qual for ela. Ela é importante, ela tem que ser levada em conta, mas não é isso. Uma pessoa [com deficiência] tem um objetivo como qualquer outra pessoa tem" (Gestor 3 - líder da PcD10 - deficiente físico - membros com deformidade congênita).

Ainda em relação às práticas, a experiência de trabalho na Farma despertou nas PcDs sujeitos desta pesquisa o interesse pela continuidade dos estudos. Cinco dos dez profissionais pesquisados iniciaram cursos de ensino superior após a entrada na Farma, alguns deles com bolsas subsidiadas pela empresa. Nesse caso, houve uma contribuição da empresa para o desenvolvimento desses profissionais, uma vez que, tal qual afirma Saeta (2006, p.63): * "É frequentando o curso na universidade que as pessoas com deficiência, em sua maioria, começam a formular sua consciência de cidadãos e a exercê-la".

O ponto de atenção é observar se a empresa terá condições de suprir as expectativas de evolução profissional despertada nesses profissionais. Após a conclusão do curso, as PcDs seguramente almejam uma ascensão profissional. Até o momento, nenhuma delas avançou significativamente na hierarquia da empresa depois de formadas.

O principal parâmetro utilizado pela empresa para definir grande parte das práticas formais foi a deficiência. A empresa partiu do pressuposto de que todas as PcDs contratadas necessitavam da qualificação básica, fato que não era aplicável à totalidade dos profissionais, visto que alguns haviam cursado o ensino superior e/ou adquirido experiência de trabalho em grandes organizações.

PcDs com ensino superior completo foram obrigadas a cursar programas de computação básica, que o critério para participar do treinamento era a deficiência e não a formação. A análise dos documentos de avaliação dos treinamentos confirma esse comportamento. Os índices de satisfação com as atividades realizadas foram positivos e as PcDs relatam ter adquirido uma série de saberes teóricos, operacionais e do meio. Entretanto, os comentários gerais acerca das atividades sugerem que haveria maior aproveitamento dos treinamentos caso houvesse um nivelamento das turmas a partir da etapa de conhecimento e da área de atuação de cada profissional: * "O que é bom para o pessoal do marketing, talvez não seja bom para a gente, entendeu?" (PcD10 - deficiente físico - membros com deformidade congênita).

Adicionalmente, algumas PcDs indicaram nessas avaliações que o grupo não deveria participar de atividades específicas para profissionais com deficiência e, sim, dos treinamentos regulares dos quais participam os demais funcionários: * "Às vezes parece que está sendo dado um tratamento muito diferenciado para este público [PcDs], quando, na verdade, eles deveriam estar cada vez mais inseridos na organização como qualquer outro funcionário" (Gestor 2 - líder da PcD9 - deficiente física - paralisia cerebral).

Quando se trata de treinamentos relativos à qualificação técnica ou à preparação para o trabalho, é preciso escolher ações baseadas no estágio de qualificação de cada pessoa, que pode ser adaptado de acordo com a função.

Nesse caso, os programas formais estavam a serviço da manutenção do status quo da PcD, bem distante da busca por reconhecimento e da construção da competência desses profissionais.

5.4. Experiências informais de aprendizagem e o papel do gestor nesse processo Por um lado, as experiências informais foram repetidamente citadas como formas efetivas para construção e desenvolvimento de competências, tanto por parte das PcDs como da responsável pelo RH e dos gestores, o que era de se esperar, dado que a literatura sobre aprendizagem e competências, nos últimos anos, enfatiza sumariamente o valor das ações não formais (BITENCOURT, 2004; ANTONELLO, 2006). Por outro lado, a análise das experiências informais vivenciadas pelas PcDs que fizeram parte deste estudo revela a dicotomia entre avanços e retrocessos na construção e no desenvolvimento de competências desses indivíduos a partir dessas práticas informais. Ao mesmo tempo em que são oferecidas oportunidades diversificadas de aprendizado que acontecem em diferentes esferas da organização e contam com o suporte, ainda que não estruturado, do gestor, tais experiências por si não têm sido suficientes para garantir o reconhecimento da competência, seja por uma questão da empresa, que ainda não as PcDs como candidatas a posições de maior prestígio e complexidade na organização, seja por falhas da própria PcD que, em algumas situações, inclusive, demonstra pouca iniciativa para o autodesenvolvimento.

Dentre as vivências mais valorizadas pelas PcDs e pelos gestores, destacam-se: * Aprendizagem na ação - apresentações em público; participação em comitês (Cipa, grêmios recreativos, comitê de ergonomia, voluntariado); participação em projetos específicos complementares à sua área tradicional de atuação/função.

* Aprendizagem baseada no trabalho - assumir novas atividades; atender a clientes e fornecedores; cobrir férias; contatar outros setores; utilizar sistemas de tecnologia da informação.

* Aprendizagem com pessoas- relacionar-se com profissionais além daqueles diretamente vinculados a sua função; observar outras pessoas trabalhando; coaching.

* Aprendizagem com os erros - aprender com os próprios erros e receber feedback.

* Aprendizagem fortuita - atuar em uma grande empresa e interagir informalmente com colegas e superiores.

Embora tais vivências tenham sido consideradas importantes para o desenvolvimento de competências no trabalho, os aprendizados apresentados não vão muito além dos requisitos básicos solicitados aos profissionais nos estágios iniciais de carreira: comunicar-se, agir segundo as regras sociais do espaço organizacional, relacionamento interpessoal e, mais do que tudo, compreender o universo corporativo: * "Eu acho que o grande aprendizado que ele teve foi de entender este universo da grande empresa, como funciona esta máquina, como as pessoas trabalham aqui, como as coisas se relacionam para que nós possamos entregar o nosso produto" (Gestor 1 - líder da PcD6 - deficiente física - monoparesia).

Dentre os membros da organização, o gestor da PcD é a pessoa que mais a auxilia naquilo que diz respeito às experiências informais, seja proporcionando a oportunidade para que tal experiência aconteça, seja orientando os subordinados sobre as aprendizagens decorrentes dessas experiências. A despeito de seu papel de orientar o desenvolvimento intelectual da PcD, facilitar a inclusão e promover a capacidade laborativa desses profissionais, o que se observa é, por vezes, uma discriminação reversa. Os relatos indicam demasiada atenção e zelo dedicados à PcD em comparação aos profissionais que não possuem deficiência. Os gestores afirmam que, muito embora cobrem igualmente a entrega por resultados, oferecem um suporte diferenciado para aqueles que possuem deficiência, conforme fala do Gestor 1: * "Os portadores do meu time sempre foram tratados e cobrados da mesma maneira, como qualquer outro colaborador".

É importante que os responsáveis pela inclusão e pelo desenvolvimento profissional da PcD olhem com reservas essas condutas e orientem os gestores, que elas podem ter o efeito contrário ao que se pretende, despertando, inclusive, animosidades ou problemas de relacionamento na equipe.

5.5. Os saberes que sustentam a construção das competências Com base nas práticas de desenvolvimento formal e experiências informais de aprendizagem, foram levantados os saberes que sustentam a construção das competências das PcDs ao longo da trajetória de desenvolvimento. Enquanto a metacategoria anterior abordou como as PcDs aprenderam, esta procurou entender o que foi aprendido. Para fins de metodologia, os resultados foram categorizados utilizando-se como referência a definição dos saberes proposta por Le Boterf (2003), que inclui: saberes teóricos, saberes do meio, saberes procedurais, saber fazer operacionais, saber fazer experienciais, saber fazer sociais ou relacionais, saber fazer cognitivos e aptidões ou qualidades. A separação por saberes é puramente didática.

Os relatos dos entrevistados sugerem que houve a aquisição de uma grande variedade de saberes, com destaque para os do meio, procedurais, operacionais e saber fazer sociais e relacionais.

Os saberes do meio ajudam o profissional a entender o ambiente onde está inserido e adaptar-se a ele. Referem-se a códigos da grande empresa, postura profissional, estrutura, processos organizacionais e vestimenta adequada.

* "Como a gente se vestir, aos poucos a gente está pegando alguma coisa, que [na empresa anterior] você trabalhava de uniforme, aqui não. Então tem muitas coisas que você tem que ir aos poucos encaixando" (PcD4 - deficiente física - nanismo).

* "É bonito ser assim. É melhor se vestir assim. É bonito você falar baixo, é bonito você falar com mais educação, falar devagar. você vai tomando isso para você, sozinha. Ninguém precisa te forçar, entendeu? É assim, eu fui vendo mesmo. Mas eu ainda estou aprendendo. Tenho que mudar muito ainda" (PcD5 - deficiente auditiva - bilateral parcial).

O grupo de saberes procedurais, por sua vez, está relacionado ao entendimento de métodos, técnicas e procedimentos da organização. Quanto ao grupo de PcDs entrevistado, destacam-se saberes relativos a procedimentos departamentais, financeiros, interdepartamentais e rotinas administrativas. No que se refere aos saberes operacionais, o que emerge das entrevistas são os aprendizados relativos a como proceder ou operar, tais como: atividades administrativas do departamento, condutas para atendimento de clientes, como executar as tarefas específicas da função, como elaborar relatórios e documentos, como implantar sistemas de qualidade, como usar terminais informatizados e organização.

Tratam-se de componentes importantes para a demonstração da capacidade de entrega do profissional, conforme indica o relato: * "Como eu tenho dificuldades de escrever, eu tento fazer muitas coisas com o computador, pois eu sou mais rápida, achei o curso [de informática] muito bom e estou fazendo o meu trabalho mais rápido" (PcD9 - deficiente física - paralisia cerebral).

As reflexões sobre os saberes adquiridos indicam que não adianta o sujeito aprender os conhecimentos básicos para sua rotina de trabalho sem compreender como suas atividades estão interconectadas com a cadeia produtiva. Entender a complexidade da função, assim como o universo da indústria farmacêutica, é importante para que as PcDs desenvolvam uma visão holística de seu trabalho. As análises do grupo estudado não sinalizam um grande avanço nesse sentido, que não houve movimento algum da organização que apontasse para um projeto de desenvolvimento que incorporasse preocupações dessa ordem. Os relatos do grupo que participou deste estudo revelam que existe dificuldade de ultrapassar a barreira dos saberes teóricos e operacionais. Pouco foi observada a aquisição dos saberes cognitivos e/ou outros saberes que indiquem maior grau de autonomia e facilidade para resolução de problemas e tomada de decisão, o que compromete sobremaneira as possibilidades de desenvolvimento de competências. Entre as poucas evidências de desenvolvimento, tem-se o relato do Gestor 4: * "Ela está criando mais segurança de interagir com as pessoas e resolver os problemas, e depois ela vem e reporta. Então, assim, aquela maior confiança, confiança em si e trabalhar bem com o time, eu acho que ela tem desenvolvido bem isso nos últimos tempos" (Gestor 4 - líder da PcD1 - deficiente física - nanismo).

5.6. A participação de atores externos à organização A inclusão das pessoas com deficiência nas organizações e o seu desenvolvimento profissional são apoiados por atores externos representados por organizações não governamentais e pelo sindicato das indústrias farmacêuticas. De maneira geral, esses atores propõem-se a auxiliar a entrada e a permanência de PcDs no mercado de trabalho. A partir da análise documental e das entrevistas realizadas com os participantes deste estudo, verificou-se que a contribuição desses atores acontece de quatro diferentes formas: pactos coletivos que apoiam a inclusão de PcDs; reabilitação profissional; auxílio para recrutamento e seleção de profissionais com deficiência; desenvolvimento e aplicação de programas de qualificação profissional.

Alguns pontos de atenção devem ser traçados em relação à participação desses atores no processo de desenvolvimento das pessoas com deficiência. Entidades tidas como especialistas no trato da PcD ainda não possuem alto grau de especialidade para as ações que facilitam a inclusão dessas pessoas no contexto organizacional, segundo relato dos entrevistados. De acordo com a responsável pelo programa de inclusão na Farma, algumas empresas de recrutamento e seleção especialistas no trabalho com PcDs deixaram de levantar questões que podem ser consideradas simples antes de enviar candidatos à Farma, como descrever o que a pessoa consegue ou não fazer, quais adaptações precisam ser feitas no ambiente de trabalho, ou mesmo avaliar se a empresa contratante tem condições e interesse de realizar tais adaptações. O critério para envio ou não de um candidato era puramente ter alguma deficiência.

Segundo a associação parceira nos programas de qualificação, os instrutores dos treinamentos são selecionados a partir de seu conhecimento técnico na disciplina que será ministrada, conforme relata a representante da Avape: * "Porque na verdade você não encontra esse público, esta mão de obra preparada no mercado. Você encontra um bom professor de informática, você encontra um bom professor na área de call center".

Todos os instrutores da entidade passam por um treinamento prévio; contudo, muitas vezes essa preparação não é suficiente para que aprenda a lidar com alunos de todos os tipos de deficiência. No fim das contas, a capacidade para conduzir a turma será adquirida com a experiência prática, por tentativa e erro.

Um ponto adicional de atenção são as ações de comunicação dessas organizações.

Como muitas não profissionalizaram sua forma de gestão ou não dispõem de recursos financeiros para investir em divulgação, a oferta de serviços não chega às PcDs e suas famílias. Algumas das PcDs entrevistadas relataram tomar conhecimento dessas ONGs somente na fase adulta, quando, por iniciativa própria, decidiram procurar ajuda para tratamento da deficiência ou inserção no mercado de trabalho.

Em relação à defesa dos direitos da PcD, o Sindicato das Indústrias Farmacêuticas desempenhou um papel importante no novo cenário, por desenhar um programa que favorece a contratação e o desenvolvimento profissional das PcDs entre as empresas da indústria, além de aprovar pactos coletivos que incentivam e regulam a inclusão das PcDs nas organizações e controlar o número de contratações na indústria.

A partir da análise dos dados deste trabalho, pode-se dizer que a associação parceira para os programas de qualificação e o sindicato, dois importantes atores do programa de inclusão da Farma, não mantêm tipo algum de diálogo. A Farma atua, de certo modo, como intermediária desses atores, o que não representa uma construção coletiva de conhecimento em que todos estão na mesa discutindo os dilemas e as possibilidades para a inclusão das PcDs. Essa situação contrasta com a ideia de Neri et al.(2003), que acreditam que um movimento de ação social deva acontecer por meio da pressão, da negociação e do engajamento de todos os atores da sociedade. Os planos, programas e projetos que defendem os interesses das PcDs deveriam ser apresentados de forma integrada por esses agentes.

Essas dificuldades não significam, contudo, que o trabalho desenvolvido por esse grupo de atores não seja importante. As dificuldades existem, falta articulação entre eles e o serviço oferecido está longe do ideal. Entretanto, tem-se uma oportunidade que pode ser potencializada a favor da PcD. Um diálogo reflexivo, conjunto, pode ser um caminho para o reconhecimento e a construção da competência dos indivíduos inseridos na indústria farmacêutica.

6. Considerações finais Para responder à temática que desencadeou a pesquisa - que experiências são significativas para o desenvolvimento da competência das PcDs - e discutir possíveis implicações para organizações que almejam incluir e promover o desenvolvimento de pessoas com deficiência, procurou-se representar graficamente, na figura_2, os elementos centrais que emergiram a partir do estudo do caso da Farma. Os elementos apresentados surgiram a partir da análise dos dados da pesquisa e de sua correlação com a literatura apresentada. De forma alguma deve-se tomar essa figura como modelo ou como tentativa de prescrição, mas como um corpo de elementos que podem servir para reflexão na configuração de experiências de desenvolvimento de PcDs.

A partir da análise dos dados do estudo de caso, podem-se destacar três pilares significativos para a construção da competência da PcD: as iniciativas do ambiente de desenvolvimento organizacional; a trajetória individual da PcD; as ações de agentes externos à organização. Cada um desses pilares é suportado por elementos específicos que favorecem a construção da competência, alguns deles presentes na experiência da Farma, outros identificados como oportunidades de melhoria no processo dessa organização.

Considerando que as competências não podem ser desenvolvidas independentemente do contexto (SANDBERG, 2000), lançou-se mão do conceito de contexto de trabalho, por entender-se que o ambiente em que a pessoa trabalha pode influenciar a segurança do indivíduo e suas competências (CHEETHAM e CHIVERS, 1996). De forma complementar à importância do contexto de trabalho, tem-se o contexto social que está relacionado à construção social da deficiência (OMOTE, 1994), a qual, conforme apontado neste artigo, exerce particular importância para a pessoa com deficiência à medida que ela ocupa diferentes papéis na sociedade.

Em relação aos elementos que fazem parte do ambiente de desenvolvimento organizacional, foram identificados como importantes práticas formais e informais, aquisição de saberes, relações de trabalho, cuidado com a deficiência, socialização, preparação dos gestores, incentivo ao autodesenvolvimento e quebra de barreiras atitudinais e arquitetônicas. A maioria das práticas seguirá o processo comum válido para todos os profissionais da organização; outras demandarão algumas ações pontuais que atendam às necessidades das PcDs. A atenção às especificidades da deficiência deve ser observada pela empresa, pois o desenvolvimento de competências pode ser alavancado com o cuidado aos aspectos que representam uma limitação para a PcD inserida na organização. No caso da Farma houve, dentre as principais ações, a recomendação para a utilização dos benefícios do plano de saúde, especialmente fonoaudiólogos, fisioterapeutas e psicólogos, bem como o financiamento de equipamentos para a compra de próteses e aparelhos auditivos.

Ainda em relação ao ambiente de desenvolvimento organizacional, a atenção às relações no ambiente de trabalho, às experiências de socialização, ao processo de preparação dos gestores e à quebra de barreiras atitudinais e arquitetônicas é importante para a inclusão na empresa e depende do conjunto de profissionais que convive com as PcDs. O preconceito e as diferenças existem, a organização precisa reconhecê-los e minimizá-los tanto quanto possível para avançar no processo de inclusão e reconhecimento dos profissionais com deficiência. A sensibilização do conjunto de membros da organização poderia ser um primeiro passo para facilitar esse processo, pois não o gestor que atua com a PcD em sua equipe tem de ser objeto de atenção. O segundo pilar da figura representa a trajetória individual da pessoa com deficiência. Seus elementos incluem as características individuais do sujeito e tratam de questões como autoestima, motivação, personalidade e tipo de deficiência, aspectos importantes para o desenvolvimento de competências (CHEETHAM e CHIVERS, 1996). Em alguns casos, a PcD precisa quebrar os preconceitos e estereótipos que cria sobre si mesma a partir de suas características individuais para aumentar sua empregabilidade (FREEDMAN e KELLER, 1981). A trajetória de vida dessas pessoas deve ser considerada, uma vez que o histórico educacional, familiar e profissional exerce influência na forma como os indivíduos entendem seu processo de desenvolvimento e exercem suas potencialidades. Para competir em condições de igualdade com aqueles que não possuem deficiência, a PcD precisará incrementar seu histórico educacional e profissional. Não menos importante é o histórico familiar, no sentido de como a família convive com a deficiência e incentiva a PcD. Situações de protecionismo exagerado podem gerar dependência, insegurança e até configurar-se como uma barreira para a evolução profissional: * "Então uma coisa que eu sempre cobro da minha mãe é que a minha mãe nunca deixou eu ir em um zoológico, nunca tive uma bicicleta [...] porque a minha mãe achava que se eu andasse de bicicleta ia quebrar a perna, se eu fosse no zoológico alguém ia me empurrar e me machucar. Para o parquinho, educação física eu não fazia, que a minha mãe ia na escola para eu não fazer. [...] Então eu acho que essa insegurança veio um pouco da infância, não de agora, mas da infância" (PcD4 - deficiente física - nanismo).

O último pilar está relacionado ao papel exercido pelos agentes externos à organização na construção e no desenvolvimento da PcD. Atualmente, esses agentes possuem um papel de suporte que contribui com o propósito de criar meios para o cumprimento de ações afirmativas, como a lei das cotas.

Entretanto, para que a participação desses agentes agregue valor às PcDs e às empresas, é necessário que haja maior profissionalização dos serviços oferecidos e melhor entendimento das especificidades das PcDs. Adicionalmente, para que tanto as PcDs quanto as empresas possam usufruir dos serviços oferecidos por esses agentes no momento adequado, é necessário aprimorar o marketing institucional de tais organizações. Por último, os resultados dos esforços dos agentes externos na inclusão da pessoa com deficiência no contexto organizacional podem ganhar maior relevância à medida que acontecem a articulação e o diálogo competente entre todos os envolvidos com a inclusão.

A partir da análise integrada dos elementos apresentados na figura_2, verifica- se que a construção da competência depende, sobretudo, da qualidade da interação entre os vários elementos de cada um dos pilares de desenvolvimento e da diversidade de experiências a que as PcDs serão expostas na organização. A reflexão das PcDs e dos diferentes atores organizacionais que fazem parte do processo de inclusão acerca dessas experiências impulsionará o desenvolvimento de competências. A partir do momento em que a pessoa entrega resultados, começa a constituir-se um ambiente favorável ao reconhecimento desse profissional, por meio da percepção de valor social e econômico agregado (FLEURY e FLEURY, 2004), pela ampliação do escopo de atuação na organização (DUTRA, 2001), pela demonstração de autonomia para realização das atividades (ZARIFIAN, 2001) ou pela ascensão profissional.

Tomando-se agora a experiência em estudo do ponto de vista das críticas estabelecidas por Burgoyne (1993) e Graham e Tarbell (2006), que entendem o movimento de competências na dimensão do poder, cabe ainda um questionamento: até que ponto o processo de desenvolvimento das PcDs tem de se dar por uma via diferenciada daquela que atende aos demais profissionais da empresa? Não uma resposta simples aqui. Se, de um lado, corre-se o risco de produzir um efeito contrário ao que se deseja, segregando e isolando ainda mais esse grupo de profissionais, por outro, introduzi-las em uma grande organização, com toda sua complexidade - especialmente no caso das PcDs advindas de classes sociais menos favorecidas, que tiveram acesso limitado a educação, cultura e tecnologia, isto é, sem preparo mínimo - pode ser tão devastador quanto as isolar em programas à parte do conjunto de ações de desenvolvimento da organização. Nesse caso, talvez se possa encontrar alguma justificativa de iniciativas específicas para PcDs em uma fase bem inicial ou quando a preocupação está voltada para questões muito básicas (computação, etiqueta, vestimenta etc.).

Observando as iniciativas de desenvolvimento da Farma (treinamento, coaching, participação em projetos, suporte financeiro para tratamento da deficiência, custeio de cursos de graduação etc.), pode-se dizer que, por um lado, foram promovidas ações diversificadas e específicas para garantir a inclusão adequada da PcD no contexto organizacional. Os programas foram em parte convenientes para o momento de sua implementação, sobretudo por permitir o nivelamento conceitual básico dos participantes dos processos de inclusão da Farma. Por outro lado, PcDs que tinham um alto grau de qualificação foram submetidas a treinamentos básicos pelo simples fato de serem deficientes. A continuidade das ações exige um enfoque nos déficits e nos potenciais de cada PcD. Se a inclusão e a proposta de desenvolvimento de competências tiverem sucesso, com o tempo essa diferenciação tende a desaparecer.

Competência depende de reconhecimento, pelo próprio indivíduo e pelos outros (LE BOTERF, 2003); cabe perguntar, no entanto, o que está sendo reconhecido: a capacidade das PcDs de adaptarem-se às regras sociais do ambiente empresarial e às funções mais operacionais da empresa? Da mesma forma, pode-se perguntar de que construção de competências se está tratando. Os programas empresariais não podem furtar-se a esses questionamentos.


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