O imaginário dos mascates e caixeiros-viajantes de Minas Gerais na formação do
lugar, do não lugar e do entrelugar
1. Introdução
O trabalho e a natureza humana são elementos indissociáveis, aquele ontologia
dela, de forma que o homem possa imprimir sua capacidade criativa e produtiva.
Todavia, essa relação tem se distanciado, não apenas metaforicamente, mas no
âmago das relações mediadas pelo capital. Na materialização desse
distanciamento reside a alienação do homem em relação ao trabalho e,
consequentemente, à própria ontologia.
Embora os arquétipos contemporâneos conduzam a esse tipo de análise, olhar o
passadopermite compreender formas distintas dessa dominação, particularmente
quando sobre o trabalhador em questão recai um nível elevado de autonomia, como
é possível constatar nas atividades dos mascates e caixeiros-viajantes do
século XX. Se em meados do século XX o trabalhador fabril no estado de São
Paulo estava sujeito aos primeiros rudimentos das modernas técnicas de gestão,
os praticantes de comércio volante, mascates e representantes comerciais ainda
dispunham de relativo controle sobre suas atividades.
Nesse sentido, os sujeitos aproximavam-se de uma apropriação de sua ontologia
com relativa liberdade para constituir seu campo de trabalho, não se sentindo
fora de si. Essa liberdade se fez presente não apenas em questões do trabalho,
mas também em outras dimensões. Se as formas contemporâneas de produção do
capital transcendem a empresa para fora de seus muros, modificando o espaço,
mascates e caixeiros-viajantes mineiros exteriorizavam-se, em sentido oposto ao
do capital.
Remetendo-se mais uma vez ao passado, parece cabível uma aproximação,
respeitando o recorte temporal existente, entre o lugar e o trabalho. Os
sujeitos que aqui se configuram como elementos centrais, no caso os mascates e
caixeiros-viajantes, apresentaram no século passado um movimento inverso na
díade trabalho-espaço. O que se denomina aqui por inversão caracteriza-se pela
externalidade do capital na vida do trabalhador, reconfigurando o espaço via
apreensões simbólicas também fora das organizações, em substituição à
autoconstituição do espaço pelos mascates e caixeiros por meio do trabalho.
Essa substituição em termos de espaço possui diversos pontos de intersecção na
vida dos trabalhadores, tanto os contemporâneos quanto os mascates e caixeiros.
Nesse bojo, as interações sombreiam diversas relações sociais. A atual
externalidade das organizações sobre o trabalhador mostra-se cada vez mais
controladora de sua vida social, desde o lugar a ser habitado - construção de
vilas operárias - à dominação com nuanças mais simbólicas, como é o sentimento
de pertencimento e gratidão do sujeito e de sua família para com as
organizações. Por outro lado, a autonomia presente nas atividades dos mascates
e caixeiros verifica-se não apenas na autodeterminação da própria ontologia - o
trabalho -, mas também na reconfiguração do aspecto simbólico do espaço -
particularmente o lugar, o não lugar e o entrelugar - e das relações sociais
dadas as constantes viagens.
São essas reconfigurações a respeito do espaço simbólico, manifestadas no
lugar, no não lugar e no entrelugar, que se acredita possível acessar a partir
do imaginário dos mascates e caixeiros-viajantes, fundamentalmente pelo fato de
a memória desses sujeitos constituir-se como fonte unívoca das representações
acerca das relações sociais e espaciais. Dessa forma, essa possível conexão
constitui-se aqui como objetivo de pesquisa, de maneira que se pretenda
compreender a constituição do imaginário dos mascates e caixeiros-viajantes
acerca do lugar, do não lugar e do entrelugar.
Além desta introdução, a sequência deste trabalho se apresenta em mais seis
seções, três delas destinadas ao arcabouço teórico. A seção 2 versa a respeito
da formação dos lugares, não lugares e entrelugares. Em seguida, recorre-se ao
aporte teórico sobre o imaginário, com pontos de intersecção a respeito da
constituição espacial. Na seção 4, que tem também um caráter metodológico, são
trazidos elementos acerca de história, memória e cotidiano. Na sequência, são
apresentados os aspectos metodológicos, as análises e as considerações finais.
2. O espaço simbólico: lugar, não lugar e entrelugar
Lançar olhares sobre a cultura como formação social permite compreender a
dinâmica da sociedade, por meio de suas significações condicionais da prática
social (PEREIRA e CARRIERI, 2005), por contemplar em seu locus tradições,
símbolos, signos e outros, que caracterizam uma sociedade. Em uma perspectiva
antropológica, as representações simbólicas influenciam as relações sociais e
os comportamentos individuais e de grupos, via componentes verbais e não
verbais.
Inerente, portanto, a toda constituição da sociedade, a cultura tem se
construído não necessariamente a partir da formação na sociedade, mas para a
sociedade, engenhosamente pensada para fins de dominação. Os símbolos, valores
e signos fabricados contemplam a afirmação acerca de um universo superior,
deslocado por sua magnitude e grandeza do mundo cotidiano (MARCUSE, 2004).
Esses elementos simbólicos são intrínsecos à constituição do espaço. Para
Santos (1979), repousar essa constituição mais na forma do que na formação
representa isentar as dinâmicas sociais que criam e transformam as formas,
deslocando assim o foco unidirecional para a cristalização das coisas. Ainda,
representa abrir mão da constituição histórica do espaço e seus significados
para sua sociedade ou, no caso de ver a cidade sob a lente dos projetos
culturais do ideal industrial, renegar a cidade do citadino.
Com base em Santos (2008), é possível afirmar que a discussão sobre território
ganha contornos mais abstratos se elevada à categoria de espaço. Para o autor,
o espaço é uma realidade relacional em que coisas e imbricações coexistem. O
espaço pode ser conceitualizado de três modos. O primeiro retrata o sentido
absoluto, como algo em si, com existência específica, única. Há, também, o
espaço relativo, que ressalta as interações entre objetos. Todavia, essas
interações ocorrem apenas pelo fato de os objetos existirem e comporem esse
espaço. Por fim, há o espaço relacional, no qual o espaço é tido como um
conteúdo que abriga congruências existentes entre objetos (SANTOS, 1979).
Santos (2008) resgata, fundamentalmente, a concepção de espaço habitado que,
para o autor, pode ser trabalhado sob duas perspectivas. A primeira, biológica,
diz respeito à adaptabilidade do ser humano, como a capacidade deste de
conviver com as mais diversas condições climáticas. O segundo foco vê o ser
humano como algo não isolado, mas como um ser social, e permite compreender o
comportamento demográfico de um país. É nesse sentido mais amplo que o espaço
se constitui de toda realidade concreta da história, mantendo incólumes as
relações entre o natural e o artificial, o natural e o político (SANTOS, 1996).
Parte das considerações sobre espaço traz consigo a discussão sobre lugar. De
acordo com Castrogiovanni (2007),
o lugar é uma parcela do espaço apropriada de vida, possuin-
do identidade, sendo produto humano produzido e reproduzido na relação entre
espaço e sociedade, entre o indivíduo e o coletivo. Essas relações configuram-
se não apenas entre os sujeitos, mas também na forma de eles se relacionarem
com a natureza, de maneira que esse processo interativo forme uma rede de
significados e sentidos.
O lugar é uma parte que forma um todo. Apesar de constituir-se apenas como
parte, sua densidade e interatividade social são representativas no todo,
podendo ser, inclusive, mais importantes que ele (SANTOS, 2008). É nesse
sentido que o caráter simbólico e identitário ganha corpo quando a análise
recai sobre o lugar, uma vez que ele pode superar o todo, quiçá, ser o próprio
todo figurativo.
É justamente a condição de apreender o lugar que pode distinguir o sujeito do
cotidiano espacial, do sujeito visitante no espaço em questão. É essa percepção
que delineia o lugar. Segundo Augè (1994), entre o lugar e o visitante produz-
se uma ruptura que impede a este de apreender o lugar. Analisando a situação do
turista, Augè (1994) destaca que a carga denominativa do lugar, aquilo que se
fala de lá, impõe-se em alguma medida ao turista (possivelmente ao visitante
também), de forma que as significações atribuídas pelo sujeito não interfiram
em seu significado constituinte. Assim, os significados já dados, por si sós,
seriam suficientes para produzir no lugar o não lugar ou o entrelugar, uma vez
que transformam os lugares em passagens simbólicas.
No que diz respeito ao não lugar, Castrogiovanni (2007) assevera ser o oposto
ao lugar. Este não se acaba completamente e aquele não se realiza totalmente.
* "El No-Lugar se diferencia del Lugar no sólo por su forma en su
proceso de constitución. Ambos son fruto de construcciones sociales,
mientras que el No-Lugar está hecho a medida de la época"
(Castrogiovanni, 2007, p.18).
Para Augè (1994), o espaço é um lugar onde se cruzam forças motrizes, de forma
que os sujeitos circunscrevam tudo aquilo que transforma o espaço em sua
constituição urbana proposta no lugar. Dessa forma, ressalta Castrogiovanni
(2007), o não lugar é a ausência do lugar em si mesmo, uma vez que os sujeitos
(visitantes) não detêm a prerrogativa de circunscrever e constituir os
elementos do lugar. Para Castrogiovanni (2007), essa mesma formalização do
lugar cria o entrelugar. Enquanto o não lugar tem sua lógica em algo que não
pertence aos sujeitos, o entrelugar parece ser o lugar visitado pelo sujeito em
certo tempo, de forma que haja uma apropriação parcial.
A adoção do entrelugar como categoria é, segundo Castrogiovanni (2007), uma
readequação da ideia de inter, ponto comum entre a interpretação e a
negociação, traçada por Bhabha (1998) ao analisar a forte influência
colonizadora sobre a cultura dos povos colonizados, sendo esse inter uma
espécie de terceiro espaço, como entreposto entre as polaridades do lugar e do
não lugar. Apesar de funcionar como mecanismo de aproximação com o significante
do lugar, esse terceiro espaço parece ser temporal e sua representação ocorre a
partir da capacidade de os sujeitos estabelecerem relações entre seu lugar e o
lugar do outro. Dessa forma, o entrelugar configura-se como um espaço entre
lugares, ponto comum no qual
* "se reúnem conjuntos de relações significativas para uma sociedade
em certo momento histórico" (CASTROGIOVANNI, 2007, p.19).
3. Formação do Imaginário
O imaginário está presente na organização de nosso cotidiano, seja em elementos
linguísticos, seja em aspectos simbólicos, que estão em toda vida social.
Apesar de não abarcar todas as experiências sociais, os aspectos simbólicos e
significantes estão presentes nas ações cotidianas (LAPLANTINE e TRINDADE,
2003). Para Rodrigues (2000), o imaginário permite compreender a si mesmo e ao
mundo no qual se vive antes mesmo de ser apreendido e formulado. Indo além do
produto da imaginação, o termo imaginário diz respeito também a uma dimensão
cognitiva, como ideias, pensamentos, concepções etc. (LAPIERRE, 1989, p.7).
De acordo com Durand (1997), o imaginário é o conjunto de imagens que concentra
e fomenta todas as criações do pensamento humano. Durand (1993, p.7) ressalta
que a consciência humana representa o mundo de duas maneiras, uma direta e
outra indireta. Na indireta, o objeto não se apresenta em aspectos físicos à
sensibilidade; naquela, o próprio objeto
* "parece estar presente no espírito, como na percepção ou na simples
sensação".
Por esses aspectos, os objetos ausentes na consciência indireta são
representados por uma imagem. Para Durand (1993, p.10), esse elemento
imagético, seja representado, seja em sua presença singela, proporciona a
representação simbólica,
* "quando o significado não é de modo algum apresentável e o signo só
pode referir-se a um sentido e não a uma coisa sensível".
Laplantine e Trindade (2003) asseveram que a concepção dos símbolos em Durand
se faz a partir de forte influência jungiana. Nesse sentido, a imagem para
Durand está contida no inconsciente do qual se origina o sentido, de forma que
o símbolo seja constituído a partir de pares opostos (consciente e
inconsciente, sentido e imagem). Quanto ao imaginário, utiliza o simbólico para
manifestar-se, todavia, esse mesmo simbólico pressupõe a capacidade imaginária
(Laplantine e Trindade, 2003). Segundo Lapierre (1989), o imaginário constitui-
se de imagens significativas passadas que se guardam de lembranças ou
informações existentes na memória.
Para Castoriadis (1982, p.142-143), tudo que se apresenta no social é
indissociável do simbólico, mesmo que não se esgote neles. Todavia, esse autor
destaca as armadilhas do uso do aspecto simbólico em função de certa pretensão
interpretativis-
ta do funcionalismo.
* "Ou o simbolismo é visto como simples revestimento neutro, como
instrumento perfeitamente adequado à expressão de um conteúdo
preexistente, da 'verdadeira substância' de relações sociais, que nem
acrescenta nem diminui nada. Ou então a existência de uma lógica própria
do simbolismo é reconhecida, mas esta lógica é vista exclusivamente como
a inserção do simbólico em uma ordem racional, que impõe suas
consequências, quer as desejemos ou não. Finalmente, dentro dessa visão,
a forma está sempre a serviço do fundo, e o fundo é real-racional"
(CASTORIADIS, 1982, p.142-143).
Castoriadis (1982) ainda ressalta que a ideia de simbolismo neutro ou adequado
ao funcionamento dos processos reais é inaceitável, pois os signos desse
simbolismo não podem ser tomados em qualquer lugar. Nesse caso, os significados
a partir de um elemento simbólico estão ancorados em sentidos, de alguma forma
já existentes, mesmo que ressignificados para um sujeito específico.
* "A sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma
liberdade total. O simbolismo se crava no natural e se crava no histórico
(ao que já estava lá); participa, enfim, do racional" (CASTORIADIS,
1982, p.152).
Todavia, para Castoriadis (1982), a determinação não está presa ao simbólico,
mesmo assumindo a interpenetração dele na via social. Semelhante ao simbolismo,
o imaginário é precedido - mas não determinado - por uma rede de significados
socialmente construídos, uma vez que se constitui e se exprime pelo simbólico.
A aproximação do espaço e do imaginário parece perfeitamente cabível e demanda
uma divisão temporal necessária, no caso, o tempo vivido e o tempo revivido. O
primeiro caracteriza-se pela construção do imaginário concomitantemente à
própria formação do espaço. O segundo diz respeito à elaboração do imaginário
pela
* "presentificação do real, das reminiscências e também com base na
transmissão oral das experiências vividas da geometria dos espaços
sociais que passaram a ser testemunhos de uma história social"
(MELLO, 2002, p.120).
Particularmente no que diz respeito ao tempo revivido, Mello (2002) ressalta a
reinvenção do espaço, uma vez que este não existe em sua totalidade material,
mas sim no imaginário. Nesse caso, ressalta o autor, as manifestações da
memória permitem compreender que suas origens remontam a um "instinto de
sobrevivência que busca reagir às adversidades ambientais", como a
inexistência de espaços, ou funcionais, como a inoperância das atividades. Há
um estímulo à memória e à imaginação para construir, reparar e completar
lacunas, que permitam a manutenção de um imaginário em que os sujeitos possam
situar-se ou recontextualizar-se. Rodrigues (2000) ressalta que a supremacia do
indivíduo, no que diz respeito a seu imaginário, fará com que mitos e criações
diversas possam ocorrer, e eles estarão sempre distantes das ideias de ilusão
ou engano que o senso comum possa atribuir-lhes.
De acordo com Mello (2002), o elo entre os indivíduos e um lugar origina-se em
sentimentos de vivência, influenciados pela cultura e pelas experiências
pessoais, e mediados por percepções, atitudes e valores que se têm acerca do
espaço físico. Ademais, essa rede de significados do lugar é formada em função
de sua identidade, de sua diferenciação física, de sua personalidade e
individualidade (TUAN, 1980).
Cânter (1980, apud Mello, 2002) ressalta que o sentido atribuído ao lugar é
gerado pela sobreposição de três instâncias: a atividade de uso, que remete ao
caráter funcional do lugar; os atributos físicos, que caracterizam aspectos
naturais que o diferenciam, podendo também serem elementos adquiridos, como é o
caso da arquitetura; e as concepções de imagens e significados socialmente
construídos que o lugar traz. A partir da interação desses três elementos e da
suscetibilidade individual que se alinha com o que é significativo, os sujeitos
tendem a perceber lugares familiares que estejam carregados de memórias
significativas (MELLO, 2002).
4. História, cotidiano e memória
A escolha do referencial teórico e metodológico sucede algumas reflexões de
ordem ontológica. Recorrer à história requer abrir a lente para as narrativas
e/ou perspectivas dos sujeitos envolvidos em sua construção. Nesse caso, as
narrativas de mascates e caixeiros-viajantes são fonte do resgate das
atividades comerciais e das construções imaginárias sobre o lugar, o não lugar
e o entrelugar.
Em virtude dessa reflexão de ordem ontológica, a história que se utiliza como
referencial teórico-metológico não tem como pano de fundo narrativas
fantásticas ou legitimadas por eventuais papéis do narrador ou fonte, mas, sim,
a história contada a partir do cotidiano daqueles que não têm papéis de
destaque nas narrativas. Essa escolha alinha-se com a perspectiva da história
nova, na qual a existência de uma única história dá lugar à existência de
várias histórias (CARDOSO, 1997), de forma que a macro-história seja
substituída pela história da vida cotidiana ou, como ressalta Burke (1997), a
"história vista de baixo", numa realidade social ou culturalmente
constituída.
Le Goff (2003) ressalta que o termo história nova já era empregado em 1930 por
Henri Berr, caracterizado pela aproximação das ciências humanas, como é o caso
de Geografia Humana, Sociologia, Antropologia e Economia. Essa aproximação
permitiu o emprego dos métodos utilizados nas ciências sociais em estudos
historiográficos, além de mudanças na perspectiva fragmentada da história.
Dentre essas mudanças, a ideia de história econômica e história social desfaz-
se, havendo, para Bloch (1953), a história pura e simples, social por definição
(LE GOFF, 2003). Todas as mudanças constituem parte de um movimento denominado
escola dos annales, que em sua terceira geração consolida a história nova, de
forma que toda atividade humana seja considerada história e o conhecimento do
homem cotidiano possa ser alcançado (LE GOFF, 2003).
Para Del Priori (1997, p.259-260), uma análise imediata do termo cotidiano
remete
* "à vida privada e familiar, às atividades ligadas à manutenção dos
laços sociais, ao trabalho doméstico e às práticas de consumo",
excluindo-se, portanto, do campo econômico, do político e do cultural. Para a
autora, essas distinções criam áreas dicotômicas, na medida em que uma - na
qual estão os campos econômico, político e cultural - se caracteriza por
apresentar atividades produtivas, e a outra, por apresentar atividades de
reprodução,
* "um espaço de práticas que regeneram formas, sem, contudo, modificá-
las nem individualizá-las".
De um lado, há o campo em que o futuro de uma formação social é articulado,
onde se concentra tudo que faz a história; de outro, um lugar de conservação,
tanto ritual quanto cultural, "um lugar privado da história". Para
Del Priori (1997), os dois campos são compostos, de um lado, por aqueles atores
potenciais da história; de outro, por aquelas que se encontram à margem do
controle sobre as mudanças sociais e do movimento da própria história,
configurando a oposição entre os detentores e os excluídos da história.
Rompendo com o exposto, o estudo do cotidiano é incorporado pela história nova
ou, como assevera Le Goff (2003), passa a situar-se no cruzamento dos novos
interesses da história.
Del Priori (1997) ressalta que essa inclusão foi incentivada por Lucien Febvre,
um dos líderes da primeira geração da escola dos annales. A partir dessa
inclusão, deflagra-se certa democratização da história, de forma que se
configure como uma aplicação prática de dar voz aos supracitados excluídos.
Essa perspectiva reforça o sujeito como agente da história, mesmo quando da
tentativa de reificar-se seu papel, tornando-o passivo. Nesse caso, a assunção
da história como social corrobora a perspectiva da sociedade como produção
humana e o homem como produção social (BERGER e LUCKMANN, 1973).
A incorporação do cotidiano representa, antes de tudo, uma inflexão ontológica
e epistemológica. Nessa inflexão, vale recorrer a Certeau (2008, p.152), para
quem o fato é, em primeiro lugar, um indicativo.
* "As maneiras de fazer não designam somente atividades que uma teoria
tomaria como objetos. Essas maneiras organizam também a sua
construção"
nesse caso, permitindo também desvelar o que há de subjacente (socialmente
construído) aos fatos. Para Certeau (2008), esse desvelar ocorre,
fundamentalmente, a partir dos relatos. Ademais, o relato contém também desvios
por um passado (no outro dia, em outro instante) ou por uma citação
(provérbios, um dito), modificando o que seria uma situação de equilíbrio. Em
parte, essa quebra de equilíbrio é causada pelo fato de o discurso ser uma
narração, em vez de uma descrição. Mais que o papel funcional do discurso,
regozija-se com a forma com que ele se mostra.
Essas narrativas são particularmente apreendidas da memória. Assim como na
história, está presente na memória o caráter ideológico e legitimador, de forma
que uma narrativa coletiva possa reforçar um mito ou uma ideologia subjacente,
servindo ao poder que a transmite (Bosi, 2004). Todavia, grupos identitários
específicos podem apresentar apreensões distintas daqueles que têm um duplo
poder de legitimação - não apenas pela comunhão com suas identidades, mas por
possuírem canais que as tornem atrativas a outros. Essa possibilidade ocorre
pelas imagens, sentimentos, ideia e valores que dão identidade àquela classe.
No caso da legitimação de determinado valor cultural, tem-se a fetichização no
uso da memória, transformando-a em mercadoria. Por outro lado, o uso da memória
como forma para o resgate de momentos, práticas, histórias e saberes representa
a construção identitária de um grupo, fundamentalmente, quando utilizada como
elemento reconstituinte de algo que já não faz mais parte do presente (MENEZES,
1992).
5. Considerações Metodológicas
No presente trabalho, visa-se compreender a constituição do imaginário dos
mascates e caixeiros-viajantes acerca do lugar, do não lugar, e do entrelugar.
Com base no objetivo explicitado, realizou-se aqui um estudo de natureza
qualitativa, no qual se recorreu ao aporte teórico-metodológico da história
oral como fonte de resgate das atividades dos entrevistados, sem que se
pretendesse assumir o papel de historiador. A partir de roteiros
semiestruturados, realizaram-se entrevistas com 32 caixeiros-viajantes e
mascates, das quais sete compõem o recorte do material analisado neste
trabalho, devido à saturação das ocorrências de eventos para as categorias
predeterminadas.
Subjaz ao trabalho uma tentativa de percurso alternativo à grande parte dos
estudos em gestão. Primeiramente, pela escolha do sujeito de pesquisa, em que
as atividades dos managers são preteridas em função das dos mascates e
caixeiros-viajantes. Em seguida, pela concepção de lugar aqui lançada, em que
se migrou do perímetro organizacional e alguns produtos de suas externalidades
- que se apropriam cada vez mais do lugar do trabalhador fora dos muros da
empresa - para a amplitude do lugar do trabalhador, em termos ontológicos.
Essa opção é naturalmente permeada por escolhas ontológicas e epistemológicas,
de forma que se dispense o caráter funcional preponderante nos estudos em
Administração, bem como os recortes contemporâneos que estão em função do
estado da arte desses estudos. Ao contrário, traz-se à luz o caráter histórico,
não apenas pela natureza dos sujeitos da pesquisa, mas também pela
possibilidade de o método histórico permitir compreender as construções sociais
dos sujeitos estudados.
Para a análise das entrevistas, utilizou-se a técnica da análise de conteúdo
(AC). Com essa técnica, visa-se denotar de maneira plausível elementos ocultos
da linguagem humana, além de organizar e possibilitar a descoberta de
significados originais de seus elementos manifestos (BARDIN, 1977; TRIVIÑOS,
1987). Com a utilização da AC, pretende-se identificar variáveis, restrições,
motivações, atitudes, crenças e tendências explícitas, implícitas e silenciadas
que circundam aspectos da constituição do lugar, do não lugar e do entrelugar
no imaginário dos caixeiros-viajantes e mascates.
A técnica de AC a ser empregada neste estudo é a referenciada por Bardin
(1977), composta de três fases: pré-análise, exploração do material e
tratamento, e interpretação dos resultados. A pré-análise consiste em refletir
sobre um determinado conteúdo a fim de clarear o que há de operacional,
sistematizar as ideias iniciais e direcionar as atividades posteriores.
Essa fase inclui cinco atividades. A primeira delas é a leitura flutuante, que
visa clarear ideias acerca do conteúdo. A segunda atividade, desconsiderada no
início das análises deste trabalho, é a elaboração de hipósteses. A terceira é
a escolha dos documentos a serem submetidos à análise - neste trabalho, as
entrevistas com caixeiros-viajantes e mascates - considerando também o corpus
gerador desse material, ambos dependentes do objetivo do estudo. Bardin (1977)
elenca para essa atividade algumas regras utilizadas no estudo, como a exaustão
de elementos referentes à constituição dos lugares, a representatividade do
corpus, a pertinência do conteúdo e, por fim, a homogeneidade dos temas e
técnicas utilizadas. Outra atividade é a referenciação dos índices, na qual há
um recorte do conteúdo das entrevistas para se estabelecerem unidades
comparáveis de categorização para a análise temática e codificação para o
registro de dados. Em seguida, tem-se a preparação do material, no caso as
entrevistas, para que as análises ocorram corretamente.
A segunda fase referenciada por Bardin (1977) é a exploração do material. Nessa
fase dá-se fim à preparação do material, considerando as operações de
codificação e numeração com base nas regras previamente formuladas. A terceira
e última fase é o tratamento dos resultados obtidos, os quais podem ser
agrupados em quadros, diagramas, figuras dentre outras formas de apresentação,
que viabilizem interpretações conforme os objetivos previstos ou referentes a
novos achados na pesquisa.
Além das três fases apresentadas, Bardin (1977) apresenta operações pertinentes
ao método da análise de conteúdo. A primeira operação é a codificação, que diz
respeito
* "a uma transformação do material em uma representação do conteúdo,
de forma a oferecer ao analista informações sobre as características
gerais do material, a fim de subsidiar o estabelecimento dos índices e do
agregado de unidades" (RODRIGUES e LEOPARDI, 1999, p.31).
Outra operação é o estabelecimento de unidades de registro e de contexto a
partir de elementos das entrevistas analisadas. Unidade de registro é a unidade
de significação; podem se distinguir umas das outras com base em níveis
semânticos que dão origem ao tema utilizado na análise temática. Esta, por sua
vez, evidencia os núcleos de sentido de um conteúdo, trazendo significado para
um determinado objetivo analítico. Quanto à unidade de contexto, codifica a
unidade de registro, a fim de torná-la compreensível a partir da presença de
determinado tema. Vale ressaltar que maior é a presença de valores e atitudes à
medida que a unidade de contexto se expande.
No que diz respeito à categorização, que tem por objetivo gerar uma
representação simplificada dos dados a partir da condensação, neste trabalho
foi utilizada a categorização semântica, com categorias nas quais os
agrupamentos são realizados conforme o significado atribuídos aos lugares nos
eixos do trabalhoe da família e afetividades, categorias econtradas nas
entrevistas. As duas categorias - trabalho, e família e afetividades -
emergiram das entrevistas, sendo centrais na significação dada por caixeiros-
viajantes e mascates aos lugares, não lugares e entrelugares. As categorias são
acompanhadas de suas unidades de registro, que trazem significações a respeito
dos lugares. Uma síntese das unidades de registro aqui utilizadas pode ser
observada no quadro da página 44.
Para a apreensão das categorias e unidades de registro, utilizou-se neste
trabalho a análise de conteúdo pela enunciação, a partir de elementos
implícitos, explícitos e silenciados nas falas dos entrevistados. Esse tipo de
análise apoia-se na concepção da comunicação como processo em vez de algo dado.
Nessa análise, o discurso é um produto não acabado, ainda em elaboração, com
cargas de incoerências, contradições e imperfeições, providas de desejos e
motivações. Para que esses elementos quase latentes possam ser desvelados, o
pesquisador deve ater-se às representações reais do discurso em um processo
reflexivo, dentro de uma triangulação com o locutor e seu objeto de estudo.
Bardin (1977) ressalta que na análise da enunciação pode haver três níveis de
aproximação. O primeiro deles é a análise sintática e paralinguística, que
trabalha as estruturas e formas gramaticais. O segundo nível é a análise
lógica, que se apoia em aspectos de conhecimento para a construção do discurso.
Já o terceiro nível diz respeito à análise dos elementos formais atípicos, como
omissões, ilogismos, silêncios e outros. Cabe ressaltar que os trechos mais
importantes de cada framento das entrevistas estão em destaque, bem como sua
configuração como algo silenciado, implícito ou explícito.
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6. Um breve resgate teórico das atividades dos mascates e caixeiros-viajantes
Caixeiros-viajantes eram mediadores de vendas entre o fabricante e/ou
distribuidor de produtos e o consumidor/comerciante. Eles diferenciavam-se dos
mascates por não conduzir consigo suas mercadorias, levando em vez disso um
talão de pedidos e catálogos (parecidos com uma lista de preços atual) com
descrições de mercadorias. Para Cabreira (2001), apesar da confusão existente
no Brasil entre as atividades do mascate e do caixeiro-viajante, elas são
atividades distintas. O primeiro vai desfazendo-se das mercadorias próprias ao
longo de seu trajeto, enquanto o segundo é um empregado comissionado, que tira
pedidos a serem entregues posteriormente.
Já em relação aos mascates, grande parte caracterizava-se por ser imigrante.
Esses imigrantes, uma vez que vieram solteiros e quase sempre com a
determinação de retornar à terra de origem depois de acumular algum capital,
optaram por uma atividade que os mantivesse na condição de trabalhar para si
próprios e que dispensava qualquer habilidade muito refinada (inclusive de
falar a língua do país) ou soma de recursos significativa (TRUZZI, 1992).
Dieguez (2000) comenta que o mascate habita o entrelugar e assume um papel de
fazedor de trocas. Praticante do comércio, que impulsionou as descobertas
marítimas da era mercantil, ele era também parte do mundo burguês.
Uma comparação com atividades mais contemporâneas permite clarificar as
distinções das atividades de mascates e caixeiros-viajantes. Os mascates
aproximam-se dos ambulantes que, segundo Dantas (2005), têm, em geral, a
perspectiva de iniciar um comércio fixo, sustentado pela busca de ascensão
social. Além disso, é cabível comparar as atividades dos mascates com a dos
vendedores que realizam vendas diretas para grandes empresas, uma vez que os
mascates se dirigiam às casas dos clientes para oferecer-lhes seus produtos
(CASTILHO, 2005).
Em relação ao caixeiro-viajante, Silva (2006) o define como funcionário de um
comércio estabelecido que distribui as mercadorias em regiões diferentes das
quais a empresa para a qual trabalha está estabelecida. Contudo, além disso, a
autora aponta a importância dos caixeiros-viajantes como transportadores de
cartas e de outras encomendas, o que os fazia importantes na integração das
regiões do estado. No caso de Minas Gerais, o comércio volante entre vilas e
lugarejos serviu aos propósitos de povoamento e as atividades de comércio e
troca de mercadorias em lojas ou vendas (que favoreciam a fixação dos
negociantes) possibilitaram, com o fim do ciclo do ouro, que o estado não
entrasse em decadência, permanecendo econômica e socialmente viável (CHAVES,
1999). Isso aconteceria pela oportunidade de manter perene a arrecadação de
impostos, recolhidos de comerciantes e seus fornecedores.
As atividades comerciais dos mascates e dos caixeiros-viajantes foram
fundamentais para o desenvolvimento do interior do País. As cidades nas quais
havia esse tipo de comércio não contavam, em geral, com boa infraestrutura -
mesmo se comparado a outras cidades da época - e com comércio desenvolvido.
Assim, as atividades desempenhadas representavam não só uma forma de atender a
uma demanda ainda carente de oferta, mas também a mola propulsora de certo
desenvolvimento daquelas localidades, além de influenciar positivamente a
urbanização. Ser caixeiro-viajante guardava outras vantagens. Além de, como foi
dito, não ser necessário o investimento de capitais próprios, é possível
aprender no cotidiano, com outros caixeiros-viajantes, as práticas que
possibilitariam adquirir conhecimentos úteis, tanto para a atividade de
caixeiro-viajante como para o estabelecimento de um comércio fixo.
Ainda há que se dizer que, no que tange aos caixeiros-viajantes - e parece ter
sido estendido aos representantes comerciais -, essa identidade é construída
também em torno de mitos e estigmas sobre esses profissionais. O espírito de
aventura e o instinto comercial desses atores surgem como construção
identitária adequada à exaltação de seus sacrifícios e proezas. O mito
materializa-se, invocando autenticidade no papel de difusor das novidades das
capitais - grandes polos - pelo interior. Fala-se que é um profissional que
aprendeu muita coisa de ouvido, aprendeu aritmética pelo cálculo mental,
estudou história escutando as narrativas dos saraus. Os que prosperaram
(ficaram ricos), entretanto, sentiam-se pouco à vontade com a imagem dos
caixeiros-viajantes ignorantes e analfabetos e tentaram evitar essa imagem
(DANTAS, 2005).
6.1. O lugar, o trabalho e os significados
As atividades de mascate e caixeiro-viajante foram particularmente intensas no
século XX. Em desuso, essas profissões foram substituídas pelos representantes
comerciais, promotores de vendas e outros profissionais, fortemente amparados
por recursos tecnológicos. Portanto, se pensarem-se as possibilidades de
construção do espaço histórico no tempo vivido e no tempo revivido, seria
razoável supor que os relatos fossem concentrados no segundo.
Todavia a memória dos entrevistados segue uma trajetória de idas e vindas na
linha do tempo, remodelando também a concepção de espaço a partir da
contemporaneidade, sendo os resultados extraídos da comparação entre o que foi
e o que é, entre o ontem e o hoje, quando o entrevistado ainda se encontra
trabalhando. A concepção de espaço e lugar, em diversas nuanças, se vê
entrelaçada pelas práticas comerciais dos entrevistados, reforçando ainda mais
a ideia de aproximação trabalho-espaço, sendo marcante a sobreposição desses
dois elementos.
Nesse balanço encontrado nos relatos, vale ressaltar o imagético acerca de
novas tecnologias, como é o caso do computador. O uso da nova máquina tem como
balizador a relação espaço-tempo entre o funcionário e a empresa.
* "Ele dizia (o conferencista) que nossa_classe era uma classe em
extinção, há dez anos atrás [...] E hoje eu vejo que não adianta nada a
máquina. A_firma_está_interligada_direto._A_empresa_ligada_na_fábrica,
pela..._o_computador_hoje,_é_tudo_ligado_e_a_gente... No final, em uma
negociação, nós é que temos que fazer. É muito mais tempo que nós
gastamos hoje do que nós gastávamos antigamente para concretizar um
negócio. É muito bonito, você puxa lá o fim do dia" (E1).
Nesse caso, o imaginário a respeito do uso do computador pressupõe, vejam-se
elementos implícitos da fala do entrevistado, que a máquina serviria para
reduzir o volume de trabalho em suas atividades. Entretanto, o que se verifica
é uma nova configuração do espaço da organização, penetrando o fora dos muros,
e conectando todas as partes externas. Não apenas o volume de trabalho se
eleva, mas também o espaço do trabalhador se reduz à medida que se intensificam
as apropriações da organização sobre o indivíduo, mesmo que por meios
supostamente virtuais.
Todavia, outra nuança pode ser observada quando da menção do elemento
computador, também modificando a relação tempo-espaço. Nesse caso, a premissa
de contribuição da tecnologia confirma-se, mas ela se dá num plano temporal
revivido (E3).
* "[...] hoje_está_bem_diferente. Hoje tem computador,_muito_acesso_à
comunicação,_então_é_um_trabalho_que_diminuiu_muito_as_vendas_diretas.
Hoje está mais através de computação e coisa, regiões mais distantes. Não
é o mesmo trabalho da minha época não" (E3).
O uso do computador é tido como uma evolução se comparado à época de trabalho
do entrevistado. O imaginário a respeito das facilidades encontradas nos dias
de hoje também trazem consigo o reviver das piores condições de trabalho no
passado. Essa inserção também permite à empresa ampliar o espaço de atuação, o
que por vezes, anteriormente, não seria possível mesmo com um volume de
trabalho maior.
A respeito do lugar e do não lugar, ambos constituintes da dimensão espacial,
eles fazem-se notar em momentos bastante peculiares, mas todos sombreados por
intermédios, causas ou resultados das relações de trabalho. Essas relações
configuram-se desde o deslocamento dos trabalhadores e as subsequentes
ressignificações do lugar, como pode ser observado na fala de E1.
* "Eu_sou_mineiro. Eu sou de São João Nepomuceno, Minas Gerais. [...]
Fui_para_o_Rio_sem_emprego,_sem_nada,_viu? Eu morava em uma república lá
em Caratinga e um carioca lá falou: você fica na minha casa lá. Tive_a
coragem_de_ir_para_lá,_sem_emprego. Fiquei procurando emprego. Batia de
porta em porta lá, fábrica, loja grande, até que comecei a trabalhar.
Andava uns 15 (quinze) quarteirões a pé, porque eu não tinha dinheiro nem
para o bonde. Na_hora_do_almoço_eu_ia_ver_vitrine (risos). Não_tinha
dinheiro_para_almoçar. Não tinha ganhado o primeiro salário ainda"
(E1).
A primeira demarcação clara de lugar e não lugar dá-se quando o entrevistado
relata a mudança de uma cidade de seu estado, no caso Minas Gerais, para o Rio
de Janeiro. O elemento explícito, coragem, deixa claro o imaginário em função
de uma carga simbólica que grandes cidades representam diante de sujeitos que
têm seu lugar constituído em cidades interioranas. Outro ponto que salta aos
olhos é a busca por um entrelugar relatado por Castrogiovanni (2007). Para o
autor, o entrelugar é uma tentativa de aproximação entre o indivíduo e aquilo -
dentro do espaço - que não lhe é familiar, mas que, de uma forma ou de outra,
requer certa aproximação. Nesse caso, o entrevistado ressalta a procura por
vitrines a fim de suprir um dos vértices deteriorados do trabalho. Pode-se
constatar, partindo de princípios que o trabalho e seus aspectos mais diversos
constituem um novo locus, que existe certo silenciamento sobre a produção de
significados sobre as condições de trabalho. Nesse caso, verifica-se a fuga de
tais relações, numa tentativa de constituir-se o entrelugar, de forma que o
sujeito, aparentemente não possuindo apreensões simbólicas anteriores, recorre
a vitrines como mediador àquilo de que é privado.
As características dos lugares são fortemente imbricadas com a capacidade de
exprimir quão positivas ou negativas são suas apreensões. É recorrente o uso de
situações revividas como significante para um lugar, seja revivido, seja
revisitado. Além disso, a fixação dos entrevistados também se mostrou
dependente dessa relação. Num primeiro momento, a migração torna-se dependente
da disposição do empregador; nesse caso, o deslocamento para outras localidades
em função do trabalho e a fixação em um lugar quando da não necessidade de
trabalhar, como a aposentadoria em questão do entrevistado E2. Na fala do
entrevistado, é possível encontrar elementos explícitos de identificação do
lugar e a construção do imaginário a seu respeito por meio de suas atividades
de uso, como Muzambinho, cidade reconhecida pela produção de leite e café.
* "[...] o_papai,_quando_teve_esse_problema_de_remoção_para_cá,_achou
ruim. No começo, achou ruim. Depois acostumou aqui. Foi_muito_boa_a_vinda
do_papai_pra_cá. É_melhor_que_lá._Porque_lá..._ele_é_de_lá...mas a
verdade é a seguinte: lá [Muzambinho] é_a_terra_do_café_e_a_terra_do
leite. Removeram ele para Rio_Preto. Se eu fosse lhe falar, lugar_ruim. O
papai foi para lá. O_lugar_só_tinha_uma_ponte_e_ele_ficava_vigiando_a
ponte,_mas_o_lugar_não_tinha_nada._Tinha_uma_venda_de_vender_cachaça._O
papai_chegou_lá_nem_lugar_para_comer_não_tinha. Ele depois escreveu para
nós aqui, mas ele nunca falava a verdade. Era muito pior do que ele
contava. Ele não falava para não dar preocupação [...]. Cheguei lá e
falei: 'Olha,_meu_pai_não_vai_ficar_mais._Se_vocês_mandarem_ele_para_lá
de_volta,_vocês_podem_dar_demissão_para_ele'. Aí eles falaram: 'Vocês_vão
para_Araguari,_que_possivelmente_nós_vamos_arrumar_a_aposentadoria_do_seu
pai'. Aí a gente veio para cá e um mês depois veio a aposentadoria. Aí o
papai quietou aqui" (E2).
O sentido do trabalho e suas características marcam a formação do não lugar
para o entrevistado. No caso, os arredores de Rio Preto, onde o pai do
entrevistado viveu, eram ruins, uma vez que não tinha nada, apenas a venda de
cachaça, elemento simbólico presente em qualquer localidade. É possível
apreender da fala a externalização do lugar para a família, fundamentalmente
pela preocupação que o emissor possa nutrir. Dessa forma, as características
permaneceram veladas, a fim de não permitir a construção de um imaginário
negativo do lugar. Sem esses elementos de referência, o imaginário acerca do
(não) lugar formou-se a partir do contato com o real, num movimento recursivo
de comparação com o que antes havia se estabelecido como balizador para as
condições de moradia.
As características dos indivíduos dos lugares também são representativas no
imaginário dos entrevistados para caracterizar o espaço. Essa concepção mostra
a fluidez com que Santos (2008) destaca ser a constituição espacial. De um
lado, foram encontradas distinções de sujeitos como clientes, reforçando a
importância do trabalho como determinante do lugar.
* "Vez por outra levava um cano, mas eu não tive esse problema no Rio
Grande não. Rio_Grande_sempre_foi_um_estado_muito_bom_de_pagamento, em
termos de pagamento no ramo agropecuário. [...] Em nível de pagamento era
mais sério. Triângulo [mineiro] hoje_é_terrível. Hoje é terrível. Não é
muito fácil trabalhar, não. Tem que conhecer a clientela" (E4).
Na fala acima, o entrevistado E4 deixa clara a caracterização das pessoas dos
lugares a partir dos papéis como clientes, sendo o compromisso com os
pagamentos representativo de um lugar de confiança. Além disso, o sentido do
trabalho na identificação com o lugar faz-se presente na potencialidade para as
vendas, sendo mais um ícone ligado à questão do trabalho, como é o caso de
Goiás, tido pelo entrevistado 4 como "terra muito boa, boa de
vendas".
6.2. O lugar, a família e os laços afetivos
Às atividades dos mascates e dos caixeiros-viajantes era intrínseca a
necessidade de deslocar-se, particularmente pelas condições de urbanização da
época, concentrando as práticas comerciais fixas em lugares e regiões
extremamente específicas. No entanto, o deslocamento característico dessa
profissão não esteve presente só nas configurações do trabalho, mas também nas
configurações das relações familiares e afetivas desses trabalhadores.
Essas relações podem ser encontradas em dois momentos distintos. Primeiro,
durante a profissão, em que o sentido do lugar se torna turbulento,
aproximando-se de um conjunto de entrelugares, na concepção de Castrogiovanni
(2007), numa tentativa de os profissionais aproximarem-se do espaço visitado,
sem, contudo, constituirem lugares.
Essa aproximação deu-se, obviamente, por necessidade de conhecerem-se
características específicas de cliente do lugar, como pode ser observado na
fala de E5.
* "Ali_era_uma_preferência_assim. Vendi muito perfume. Perfume... Vêm
muitas pessoas, olham aquele perfume pendurado ali, vêm e olham, e você
tinha que saber vender. [...] Tudo_que_me_pedia_eu_anotava._Eu_andava_com
um_papelzinho_no_bolso._Tudo_que_pedia_eu_punha_o_nome_e_via. Guardava
aquilo tudo, pra da próxima vez eu chegar preparado" (E5).
Os trechos em destaque permitem apreender a necessidade de conhecer as pessoas
dos lugares e suas características. Essa aproximação momentânea que caracteriza
o entrelugar do viajante suscita o que Mello (2002) denomina como reinvenção do
espaço. Essa reinvenção não se dá, pelo entrevistado, via atributos físicos e
concepções de imagens do lugar, mas sim pelas atividades de uso, aspecto
motivador que fazia os entrevistados deslocarem-se.
Além da aproximação com as pessoas dos lugares - dos outros - por necessidade
profissional, as viagens caracterizavam-se por terem sido fonte de construção
de laços efetivos que, apesar de raramente se constituírem como algo fixo,
denotam o caráter espacial dos lugares. Admitido por quase todos os
entrevistados, as viagens eram marcadas por romances momentâneos em que o
distanciamento da família descolava o viajante de seu lugar de origem.
No imaginário dos entrevistados era enraizada a ideia de ter uma namorada em
cada lugar ou, como destaca o entrevistado E4, "duas, ou mais de
duas". Todavia, verificou-se que, mesmo diante de tal narrativa, a
preocupação em cercar o espaço familiar e o espaço distante da família existia.
Para os entrevistados, o imaginário acerca das relações afetivas e familiares
era preservado mesmo quando da existência de outras relações afetivas, desde
que em lugares que não os da residência familiar. O trecho a seguir reproduz a
narrativa do entrevistado E2 sobre o pensamento da esposa diante da questão.
* "[...] olha, meu_marido_viaja,_mas_aqui_dentro_da_cidade_eu_tenho
certeza_que_eu_não_tenho_problema. Agora, o_que_fizer_lá_fora...
atravessou_o_rio,_eu_não_posso_acompanhar_ele" (E2).
O que se verifica é o imaginário compartilhado sobre o tema das relações
afetivas, em que o lugar da família devia ser preservado, sendo preponderante o
respeito. Esse lugar desfazia-se em outras regiões, de forma que o viajante não
carrega consigo o papel de esposo, assumido, inclusive, como possível pela
própria esposa, o que reforça a existência, para ela, do lugar, no seio da
família, e do não lugar, desprovido de qualquer significado fixo ou recursivo.
Por fim, as relações familiares foram identificadas como principal causa para
fixação dos viajantes em um determinado lugar. Apesar de assumido o desfrute
pelas viagens, a necessidade de aproximação com a família preponderou em quase
todos os casos.
* "Eu casei, morei aqui. Morei com a Dirce aqui 52 anos, o tempo que
eu fui casado com ela" (E3).
* "[...] A mamãe tá querendo que eu vá embora, eles [a família] estão
com dificuldade financeira, e eu preciso ir embora pra ajudar. [...] Eu
voltei por causa da mamãe. A nossa casa era uns esteios escorados no chão
com pau pra não cair. Vinham aquelas chuvas, a mamãe pegava aquela água
benta pra rezar, por causa daquela chuva. Pois eu vim pra cá e Deus
ajudou que eu ganhei dinheiro e fiz uma casa pra nós morarmos,
venci!" (E6).
As falas deixam claro que a fixação dos viajantes se deu tanto pelos laços
conjugais, como é o caso do entrevistado E3, quanto pelos laços familiares,
ressaltados pelo entrevistado E6. Em ambos, a instituição familiar representa
as redes simbólicas que preenchem os lugares, que lhe dão vida, que são
providos de um significado de maior densidade. O lugar e o fora do lugar eram
construídos a partir dessas referências familiares.
* "Tinha que comer e lavar. Eles faziam aquilo com aquele sebo,
antigamente era aquele panelão. Meu Deus do céu, eu custava. Lá_em_casa_a
mamãe_era_muito_caprichosa. Chegou lá, aqueles trem de qualquer maneira,
aquele sebo. Mas tinha que comer, eu não tinha nenhum tostão" (E6).
* "Minha filha, ela esteve aqui hoje. Ela quer porque quer que eu vá
para a casa dela em Uberlândia. E_eu_vou_te_falar,_eu_não_gosto_de
Uberlândia. [...] Eu_vou_lá,_eu_vou_dormir_na_casa_dela [...]. Só_é_bom
para_passear" (E3).
Mesmo residindo fora de casa, viajando, o entrevistado E6 deixa clara a
existência do lugar e do não lugar, sem identificação, mantendo como referência
a casa de origem. De outra maneira, o entrevistado E3 ressalta que o vínculo
com a filha é motivador para a constituição imaginária do entrelugar, numa
tentativa clara de apropriação do lugar em função de uma motivação específica,
no caso, atender a um pedido da filha, mesmo que assumidamente passageiro. Na
verbalização do entrevistado E6 está presente o aspecto relativo do espaço,
particularmente em função da família, do lar. Esse mesmo aspecto está presente
na fala de E3 em função da filha, que prepondera em conjunto com o aspecto
negativo do espaço absoluto de Uberlândia. Contudo, em ambos está presente o
caráter relacional (SANTOS, 1996), somatório dos aspectos relativos e absolutos
dos espaços, que traz toda carga simbólica acerca do lugar, permitindo as
aproximações e fixações, que constituem os lugares de cada um.
7. Considerações Finais
No trabalho aqui relatado teve-se como objetivo compreender a reconfiguração do
espaço, particularmente do lugar, do não lugar e do entrelugar dos mascates e
caixeiros-viajantes. Para isso, recorreu-se a elementos da memória oral e das
formações imaginárias entrelaçadas no universo simbólico. Pretendeu-se, além da
reflexão sobre os mascates e caixeiros-viajantes, contribuir para colocar em
relevo as discussões acerca da importância do espaço no campo da Administração
em geral e nos estudos organizacionais especificamente.
Procedeu-se às análises aqui realizadas em dois eixos, o trabalho e a família.
O percurso trilhado recaiu, em grande parte das entrevistas, sobre o tempo
revivido, uma vez que a maioria dos entrevistados já não exercia a profissão à
época das entrevistas. Apesar desse enfoque já presumido, verificou-se a
recursividade como forma de retorno aos aspectos simbólicos, tanto do presente
quanto do passado. Em um desses movimentos pendulares, a ressignificação do
trabalho dá-se pela adoção dos computadores, remodelando a relação espaço-
temporal, uma vez que aumenta as amarras da organização sobre o trabalhador,
sendo sensível também a redução do espaço privado, uma vez que o controle tende
a fazer a empresa onipresente.
Em face dos desafios da profissão, caixeiros-viajantes e mascates defrontaram-
se com a necessidade de ressignificação constante de seus lugares e não
lugares, por ora, caminhando ao encontro do entrelugar, dada a importância de
uma absorção do lugar e de seus significados para seus pertencentes, ainda que
momentâneo. Esse movimento permitiu uma aproximação dos sujeitos que compunham
aquele espaço, tornando a prática das vendas menos transgressora (em termos
espaciais), quiçá, permitindo algum tipo de fixação no lugar.
Grande parte dos significantes presentes no imaginário e sua rede simbólica diz
respeito aos lugares e suas atividades de uso, uma vez que essa aproximação se
dava pelo caráter profissional dos sujeitos, no caso, as vendas. Dessa forma,
tanto os aspectos positivos quanto os negativos estão intimamente ligados às
experiências vividas durante as atividades comerciais, seja em relação ao
lugar, seja em relação às pessoas que o compõem, em sentido pleno do espaço.
Outro foco de análise recaiu sobre as relações afetivas e familiares. A partir
do estereótipo formado em redes simbólicas, os caixeiros-viajantes e mascates
construíam (aqui se descarta o aspecto estritamente funcionalista) a base de
relacionamento com os pertencentes aos lugares. Além disso, os lugares e não
lugares configuravam-se como nuança de relações afetivas em seu sentido lato.
O lugar da família era reconhecido e devia ser respeitado, carregado de
significados consolidados. No entanto, além do perímetro simbólico que no
imaginário delimitava o lugar, abria-se a possibilidade de novos
relacionamentos, com consentimento implícito dos cônjuges, mas que eram
desprovidos de uma rede simbólica, variando do não lugar ao entrelugar, em
alguns casos. As relações familiares caracterizavam-se como ímpares também na
fixação dos caixeiros-viajantes e mascates, uma vez que o significado de lugar
estava no lar da família, mesmo quando os profissionais estavam fora dele,
indicando que a presença e a ausência de significados configuravam o relacional
socialmente construído do lugar.
Há ainda indícios de que a reconfiguração do espaço também acontece pelo papel
que as empresas desempenham no cotidiano dos sujeitos. Quando a organização
exerce papel central na vida do sujeito, a relação de trabalho desenvolvida
tende a definir os contornos de lugar, não lugar e entrelugar. Em decorrência
dessa tentativa, as relações de dominação e alienação impõem aspectos
simbólicos e relacionais que pretendem considerar como parte do lugar apenas
aquilo que condiz com os objetivos organizacionais e discriminar (delimitar o
não lugar) qualquer contradição a isso. Entretanto, apenas uma análise mais
aprofundada de entrevistas com esse enfoque pode revelar elementos dessa
configuração.
Com esse enfoque, mas também em vista de outras profissões e momentos
históricos, fica indicada, portanto, como agenda de pesquisa, a avaliação de
outras questões de trabalho que tomam parte na formação do espaço e sua
apropriação de vida e identidade no cotidiano dos trabalhadores empregados nas
indústrias.u