Empreendedorismo feminino e o conflito trabalho-família: estudo de multicasos
no setor de comércio de material de construção da cidade de Curitiba
1. INTRODUÇÃO
No Brasil, as micro e pequenas empresas representam 99% das empresas existentes
e 51,63% da geração de postos de trabalho (Sebrae & Dieese, 2011). Vale
destacar a relevância dos estudos voltados para o aprimoramento dessas
empresas, que ajudam a torná-las profissionais e formais, resultando em
negócios atrativos e com longevidade premeditada (Drucker, 1987; Filion, 1999b;
Thornton, 1999).
Motivadas por vislumbrarem alguma oportunidade ou impulsionadas pelas
necessidades, as mulheres empreendedoras escrevem atualmente um novo capítulo
na história do empreendedorismo mundial. O Relatório sobre Mulheres e
Empreendedorismo do Global Entrepreneurship Monitor [GEM] (2007) assevera que
as mulheres representam mais de um terço das pessoas envolvidas em atividades
empreendedoras formais e que a participação é ainda maior se a informalidade
for também considerada. Esse relatório coloca o Brasil como o quarto país em
que o empreendedorismo feminino é mais atuante. O GEM (2011) destacou que
apesar de a taxa de empreendedorismo feminino no Brasil ser um pouco inferior à
do masculino, o Brasil tem uma das mais altas taxas de empreendedorismo
feminino entre os países participantes da pesquisa GEM, sendo considerada a
quarta maior proporção entre os 54 países pesquisados.
Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas [Sebrae]
(2005), o empreendedorismo feminino do Brasil pode ser observado em alguns
segmentos de forma destacada. A indústria de alimentos, o comércio de
confecções e a prestação de serviços educacionais são os segmentos com maior
participação de mulheres empreendedoras. Em áreas consideradas tipicamente
masculinas, como a de comércio de material de construção, só nas duas últimas
décadas o empreendedorismo feminino começou a destacar-se, principalmente no
setor do comércio, em que já alcança uma fatia de 10% no mercado formal e 37%
no mercado informal.
Uma das principais razões para que a mulher venha a ter o próprio negócio é a
flexibilidade de horários, pois ela acredita que, sendo dona da própria
empresa, poderá compatibilizar trabalho e família (Gomes & Santana, 2004,
p. 5). O que ocorre, porém, é que são raras as empreendedoras, em particular as
pequenas empreendedoras, que têm a fronteira entre o trabalho e a vida pessoal,
ou a vida em família, bem-definida. Essa situação geralmente leva essas
pequenas empresárias a defrontarem-se com conflitos entre o trabalho e a
família.
Outros fatores como expectativas frustradas de divisão das tarefas domésticas
com o cônjuge ou com os demais membros da família, a necessidade de maior
dedicação de horas às atividades relativas ao trabalho e a ambiguidade entre a
objetividade profissional e a ternura familiar também contribuem para a
incompatibilidade de pressões entre o trabalho e a família, gerando custos
sociais não quantificáveis, como o estresse, o afastamento do trabalho por
doenças físicas e emocionais, a falta de acompanhamento dos dependentes e até
mesmo o divórcio (Pleck, Staines, & Lang, 1980).
Neste artigo, por meio de estudo de casos múltiplos, aborda-se o conflito
trabalho-família enfrentado por uma empreendedora curitibana do setor de
comércio de material de construção. O objetivo é contribuir com as mulheres
donas de pequenos negócios na identificação dos conflitos existentes na relação
trabalho-família e descrever as ações adotadas pela empreendedora para atenuá-
los ou até mesmo eliminá-los. Apresenta-se, a seguir, na revisão teórica,
estudos realizados sobre empreendedorismo, empreendedorismo feminino e o
conflito trabalho-família. Logo após, descrevem-se a metodologia adotada, a
análise comparativa dos casos estudados, as conclusões e, por fim, algumas
considerações finais e sugestões para futuros estudos.
2. EMPREENDEDORISMO FEMININO
Os primeiros conceitos de empreendedorismo tiveram embasamento nas teorias do
desenvolvimento econômico, que o definiam como decorrente de mudanças
promovidas de forma ativa por agentes que participavam da estrutura, deixando
de ser interpretado como um evento econômico e passando a ocorrer na esfera
social. Dessa forma, podia-se entender que aqueles indivíduos que utilizavam os
recursos disponíveis de maneira diferenciada eram os agentes de transformação
que rompiam com a estabilidade existente e obrigavam os demais agentes a se
reorganizarem e se adaptarem às mudanças. Esse agente transformador, que
promovia inovações, era chamado por Schumpeter (1934) de empreendedor.
Dentre os autores contemporâneos, Carland, Hoy e Boulton (1984) e Filion
(1999a) compartilham de conceituações semelhantes para o emprego do termo
empreendedorismo que, para eles, designa principalmente as atividades de
indivíduos que se prestam à geração de competências e de riquezas, seja pela
aquisição e transformação de conhecimentos em produtos ou serviços, na geração
do próprio conhecimento, seja pela inovação. Para o Global Entrepreneurship
Monitor (GEM, 2007), empreendedorismo é qualquer tentativa de criação de um
novo negócio ou novo empreendimento, como uma atividade autônoma, uma nova
empresa ou a expansão de um empreendimento existente, por um indivíduo, grupos
de indivíduos ou por empresas já estabelecidas.
Os diversos conceitos de empreendedorismo existentes não fazem distinção de
gênero, visto que as características empreendedoras podem ser encontradas tanto
em homens quanto em mulheres, ainda que suas primeiras definições contemplassem
quase exclusivamente o público masculino. No entanto, nos dias atuais, é
inegável o peso feminino crescente na população economicamente ativa (PEA) e na
atividade econômica, não só no Brasil, mas também em diversos países do mundo
todo. De acordo com as estatísticas, 67% das mulheres que trabalham no Brasil
estão na economia informal e representam 42% de um total de 14 milhões de
empreendedores brasileiros, colocando o Brasil em quarto lugar entre os países
com maior número de empreendedoras no mundo (GEM, 2007).
Estudos têm demonstrado que as mulheres abrem empresas por diferentes motivos:
desejo de realização e independência, percepção de oportunidade de mercado,
dificuldades em ascender na carreira profissional em outras empresas,
necessidade de sobrevivência e como maneira de conciliar trabalho e família
(Machado, St-Cyr, Mione, & Alves, 2003, p. 4), além do fato de muitas
empreendedoras pertencerem a famílias de empreendedores (Buttner & Moore,
1997), o que as direciona automaticamente ao empreendedorismo, como se fosse
uma predisposição genética.
Birley, Harris e Harris (1988) pesquisaram sobre as motivações que levavam
homens e mulheres a abrirem suas empresas e puderam concluir que, de fato, não
havia diferenças motivacionais entre homens e mulheres. O que ocorria eram
diferenças na maneira como eles e elas entravam no negócio. Nos achados da
pesquisa, as mulheres optavam por ocupar o espaço que tradicionalmente não era
dominado pelos homens e preferiam o uso do capital próprio para a abertura de
suas empresas, pois mostravam-se mais conservadoras quanto ao quesito risco,
ainda que não encontrassem mais obstáculos do que os homens na tentativa de
aquisição de crédito. Outras diferenças apareceram com relação ao
reconhecimento. Atingir uma posição mais alta na sociedade e aumentar o
prestígio e o status da própria família foram as razões mais importantes para
começar um negócio na percepção dos homens do que na das mulheres (Shane,
Kolvereid, & Westhead, 1991, p. 438).
Stokes, Riger e Sullivan (1995) descobriram que as mulheres viam o ambiente de
trabalho em grandes organizações como hostil, levando esse dado a ser também
considerado como um dos fatores motivadores para a abertura de suas empresas. A
consideração das características psicológicas e sociais das mulheres
empreendedoras para mapear as experiências femininas de inovação ao criarem e
assumirem seus próprios negócios, transpondo o chamado teto de vidro, foi o
foco de pesquisas diversas que consideraram a barreira que impedia essas
mulheres de saírem dos cargos gerenciais medianos para assumirem posições
executivas dentro da organização (Lawlor, 1994; Walbert, 1995; Buttner &
Moore, 1997; Jonathan & Silva, 2007).
No entanto, Eagly e Carli (2007, p. 1) comentam que a metáfora do teto de vidro
ilustra uma rígida e impenetrável barreira, que hoje pode ser considerada já
bem mais permeável. As autoras afirmam que "apesar do longo tempo de
monopolização dos cargos de liderança pelos homens, essa condição está mudando.
Nos Estados Unidos e em muitas outras nações, as mulheres vêm ganhando acesso
aos papéis de liderança". O Relatório GEM (2011) também chama atenção para o
teto de vidro no Brasil, onde mulheres não conseguem atingir as posições mais
altas da hierarquia de uma empresa.
Embora tal cenário venha se transformando, é fato que no Brasil as mulheres
ainda recebem um salário menor do que os homens e ainda são poucas as que
ocupam cargos de direção. Levantamentos realizados anualmente pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base na Pesquisa Mensal de
Emprego, constatam que as mulheres recebem em média 30% menos do que os homens.
Isso, aliado ao fato de que as mulheres possuem mais anos de estudo do que os
homens, acaba refletindo-se no aumento do índice do empreendedorismo feminino e
na percepção, por parte da mulher, de que o empreendedorismo pode ser uma opção
de carreira interessante para elas (GEM, 2011).
Questões relativas ao equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal das
empreendedoras brasileiras foram a motivação de pesquisa de Quental e Wetzel em
2002. As autoras justificaram a importância do estudo no aumento de formação de
novos negócios por mulheres a uma taxa duas vezes maior do que a dos homens na
última década. Ter o próprio negócio foi percebido pelas mulheres como uma
opção de carreira que conduzia a um maior equilíbrio entre os papéis no
trabalho e na família; o empreendedorismo poderia oferecer certas
características de trabalho, como autonomia e horário flexível, que, na
percepção feminina, deveriam conduzir a esse equilíbrio (Quental & Wetzel,
2002).
No entanto, as conclusões da pesquisa apontaram um aumento significativo de
conflitos entre trabalho e família, justamente devido à liberdade e à
flexibilidade encontradas pelas mulheres empreendedoras. Por terem um horário
flexível de trabalho, essas mulheres misturaram horários de atividades
domésticas com profissionais; por serem donas dos próprios negócios,
envolveram-se intensamente com o trabalho, dedicando-lhe muitas horas, pois se
sentiam responsáveis pelo sucesso ou fracasso do empreendimento. Nem por isso
as mulheres se disseram insatisfeitas com seus trabalhos. Todas as sete
participantes da pesquisa relataram satisfação com o que faziam e que não
desejavam outra profissão naquele momento, demonstrando, segundo palavras das
autoras, um profundo amor por seus negócios (Quental & Wetzel, 2002, p.
13).
Para analisar a interface entre o mundo da família e o do trabalho, na próxima
seção é feita uma revisão teórica do conflito trabalho-família, apresentando a
constante busca das mulheres pelo equilíbrio entre as demandas profissionais e
familiares.
3. CONFLITO TRABALHO-FAMÍLIA
Data de 1964 um dos primeiros estudos sobre o conflito trabalho-família,
realizado por Robert L. Kahn, que lançou em Nova Iorque o livro Organizational
Stress, escrito em coautoria com Wolf, Quinn, Snoek e Rosenthal. A obra tratava
do comportamento humano nas organizações, conflitos dentro e fora do trabalho e
o estresse causado pela "vida moderna" (Kahn et al., 1964, citado por Greenhaus
& Beutell, 1985). Os autores definiram o conflito trabalho-família como a
forma de conflito em que as pressões dominantes do trabalho e da família são
mutuamente incompatíveis.
Na década de 1970, Hall (1972) e mais tarde Hall e Gordon (1973) apresentaram
estudos importantes sobre o conflito trabalho-família. Esses autores
preocuparam-se com os conflitos enfrentados pelas mulheres casadas e sugeriram
ações para que elas pudessem lidar com os conflitos e tentar atenuá-los, como
questionar se o que era tido como o comportamento ideal esperado de uma mulher
era, de fato, ideal; ou descobrir o real valor das funções que exerciam. Hall
(1972) e Hall e Gordon (1973) foram também citados no trabalho de Herman e
Gyllstrom (1977), que realizaram estudo para determinar se os homens e as
mulheres que viviam múltiplos papéis sociais, percebiam níveis diferentes de
conflito inter e intrapapéis, como, por exemplo, os papéis de pai/mãe, de
esposo/esposa, de trabalhador/trabalhadora.
Nessa mesma década, as pesquisadoras Holahan e Gilbert (1979a) descobriram
haver crescentes conflitos trabalho-família entre casais que exerciam
profissões distintas, principalmente se aspirações pelo sucesso profissional
eram percebidas pelos homens em suas esposas. O fato de o casal ter ou não
filhos também diferenciava os conflitos relatados pelos participantes da
pesquisa. Casais com filhos enfrentavam um maior número de conflitos dentro de
casa do que os casais sem filhos. A pesquisa teve como respondentes de
questionários enviados por correio 28 casais norte-americanos, sendo 10 sem
filhos e 18 com filhos.
No mesmo ano, Holahan e Gilbert (1979b) apresentaram estudo que visava comparar
os conflitos de papéis vividos por mulheres que trabalhavam fora de casa em
período integral, graduadas e não graduadas. As 26 participantes da pesquisa
que compuseram a amostra responderam a um questionário anônimo com escalas de
mensuração dos possíveis conflitos entre os diversos papéis que exerciam como
trabalhadoras, esposas, mães e as expectativas de realizações pessoais e
profissionais. Todas as respondentes eram casadas, tinham filhos e trabalhavam
em uma grande universidade norte-americana. Ao contrário do que esperavam, as
pesquisadoras constataram maior percepção de conflitos entre os papéis
exercidos pelas trabalhadoras não graduadas, pois elas possuíam menor suporte
marital e mais expectativas de alcançar um melhor nível profissional, levando,
por isso, para dentro de casa a frustração por não atingirem esse objetivo.
O interesse pelo tema conflito trabalho-família continuou por toda a década de
1980, com a apresentação de inúmeros trabalhos sobre o assunto. Destaque para a
pesquisa de Keith e Schafer (1980), que estudaram 135 famílias norte-americanas
em que pai e mãe trabalhavam fora. Os resultados mostraram que, tanto para os
homens quanto para as mulheres, o tempo despendido no trabalho e nas tarefas
domésticas foi um fator que elevou os níveis de depressão e o conflito
trabalho-família. O envolvimento masculino nas atividades do lar foi o
principal fator considerado na percepção dos conflitos pelos homens, enquanto
as mulheres apontaram os problemas financeiros como o fator causal mais
importante no surgimento dos conflitos entre o trabalho e a família.
Pleck et al. (1980) observaram que grande parte dos conflitos trabalho-família
estava relacionada ao tempo excessivo dedicado ao trabalho, o que implicava
menor tempo ocupado com a família. O mesmo resultado observou Kahn (1984) em
sua pesquisa sobre a relação entre produtividade e qualidade de vida. O tempo
excessivo dedicado ao trabalho foi considerado o principal fator gerador de
conflitos trabalho-família.
Em 1985, Greenhaus e Beutell publicaram, na Academy of Management Review, o
artigo"Sources of conflict between work and family roles", que traz uma revisão
teórica sobre o tema até meados da década de 1980. Os autores apresentaram o
conflito trabalho-família em três dimensões: a dimensão tempo, ou o conflito
baseado no tempo, que se apoia no tempo excessivo gasto no trabalho,
identificado por Pleck et al. (1980) e Kahn (1984); a dimensão tensão, ou o
conflito baseado em tensão, que leva em consideração fatores de estresse, como
a ansiedade, a fadiga, a depressão e a irritabilidade causada pelo trabalho; e
a dimensão comportamento, que leva em consideração a autoconfiança, a
estabilidade emocional, a agressividade e a objetividade, tanto no trabalho
quanto na família. Após identificar as três dimensões, Greenhaus e Beutell
(1985) sugeriram a sobreposição das dimensões, para que se pudesse visualizar a
incompatibilidade de pressões entre o trabalho e a família (Quadro_1).
Enquanto na década de 1990 deu-se pouca ênfase aos estudos sobre o conflito
trabalho-família, a chegada do novo século colocou novamente em pauta a
preocupação com o assunto. Em 2001, Friedman e Greenhaus lançaram o livro Work
and family: allies or enemies?, escrito após a realização de pesquisa empírica
com mais de 800 trabalhadores, entre homens e mulheres (citado por Pajo, 2001).
Em 2002, Martins, Eddleston e Veiga publicaram, na Academy of Management
Journal, estudo em que examinaram os fatores determinantes da relação negativa
entre os conflitos trabalho-família e a satisfação com o trabalho. A amostra
com 975 gerentes indicou que a relação entre o conflito trabalho-família e a
satisfação com a profissão era de fato negativa para mulheres de todas as
idades, independentemente de serem ou não casadas e terem filhos. Para os
homens, essa relação mostrou-se negativa somente para profissionais em fim de
carreira (Martinset al., 2002).
Lo, Stone e W.Ng (2003) realizaram pesquisa com 50 mães trabalhadoras de Hong
Kong para verificar se as empresas em que essas mulheres trabalhavam
proporcionavam o suporte familiar que elas esperavam. Como resultado, as
pesquisadoras constataram que nenhuma das empresas dava às trabalhadoras o
suporte esperado.
Pesquisa sobre a satisfação das mulheres com o suporte marital, tanto doméstico
quanto profissional, foi realizada por Gordon e Whelan-Berry (2004). As
pesquisadoras enviaram 3.870 questionários para funcionárias de um hospital de
subúrbio de uma localidade do nordeste norte-americano, por meio do sistema de
correspondência interno do hospital. Dos questionários enviados, 1.022 foram
respondidos. Das respondentes, 744 eram casadas ou viviam com o parceiro. A
expressiva maioria afirmou que obtinha suporte financeiro de seus maridos ou
parceiros, mas que não podiam contar com eles na realização das atividades
domésticas e no trato com os filhos.
A exaustão emocional relacionada à diferença de gênero na percepção dos
conflitos trabalho-família foi motivação para a pesquisa de Posig e Kickul
(2004). Questionários foram pessoalmente entregues a 153 trabalhadores, entre
homens e mulheres, casados ou vivendo com parceiros, de companhias do centro-
oeste norte-americano. Como resultado, as pesquisadoras puderam observar que
houve, de fato, a relação da exaustão emocional com os conflitos trabalho-
família, mas com diferentes percepções por parte dos homens e das mulheres.
Enquanto os homens relataram sentir maior estresse emocional com a
interferência das obrigações domésticas no trabalho, as mulheres reportaram
justamente o contrário. Elas sentiam que o trabalho gerava conflitos com a
família, principalmente pelo tempo que essas trabalhadoras alegavam não ter
para estar com suas famílias.
A tendência dos homens em dedicar mais horas à carreira do que as mulheres foi
confirmada pelo estudo de DeMartino, Barbato e Jacques (2006). Os resultados da
pesquisa relataram o fato de as mulheres dedicarem mais tempo às famílias do
que os homens. Relação de gêneros também foi realizada na pesquisa de Lilly,
Duffy e Virick (2006), que também confirmaram que as mulheres são mais afetadas
com as obrigações familiares do que os homens. O mesmo resultado foi mostrado
na pesquisa de Marcinkus, Whelan-Berry e Gordon (2006).
Em 2006, Greenhaus retomou os estudos sobre o conflito trabalho-família e
apresentou dois novos artigos, ambos em parceria com Powell. No primeiro, os
autores referiram-se à complexidade entre o enriquecimento e o conflito
trabalho-família, estando o processo de enriquecimento negativamente
relacionado aos conflitos gerados pela interface trabalho-família, ou seja, o
fato de enriquecer com o trabalho não é um atenuante dos conflitos trabalho-
família (Powell & Greenhaus, 2006a). No segundo, os autores trataram da
gestão de incidentes provocados pelos conflitos trabalho-família segundo a
perspectiva da tomada de decisão, prevalecendo a influência do que cada um tem
por prioridade (Powell & Greenhaus, 2006b).
Ações para mitigar ou até mesmo eliminar os conflitos trabalho-família foram
apresentadas por Shelton (2006) como condição importante para o crescimento e o
desenvolvimento da atividade empreendedora. A autora destaca que tanto a
saliência da família quanto os recursos internos para atender às demandas da
empresa interferem na estratégia de gestão da interface trabalho-família.
Afirma ainda que, quanto menor o número de conflitos, maior o bem-estar da
empreendedora e, quanto maior o bem-estar da empreendedora, maior o desempenho
do negócio.
Para a estratégia de gestão trabalho-família, Shelton (2006) sugeriu as ações
possíveis, apresentadas no Quadro_2. Segundo a autora, as empreendedoras podem
tentar eliminar o conflito trabalho-família, optando por não ter filho e não
formar família, ou por não abrir uma empresa. Para a opção de reduzir
conflitos, pode-se planejar uma família pequena e/ou terceirizar as demandas da
família mediante profissionais capacitados para tais demandas. Como uma última
opção, a empresária pode tentar compartilhar o conflito, delegando atividades
do trabalho a pessoas competentes, por meio da gestão compartilhada e/ou
delegar as atividades domésticas a outros membros da família que sejam de sua
confiança.
Para Shelton (2006), empreendedoras bem-sucedidas são mais propensas a
gerenciar seus negócios de maneira que eles não requeiram muito envolvimento
empreendedor, delegando boa parte de suas tarefas a membros da organização,
assim como sugerem Hornsby e Kuratko (1990). Shelton (2006) destaca, como
consta no Quadro_2, que as empreendedoras preferem compartilhar suas funções,
tanto profissionais quanto domésticas, a eliminar ou reduzir seus encargos.
As funções domésticas são normalmente compartilhadas com o cônjuge, com
parentes próximos ou babás nos cuidados com crianças pequenas, e com empregados
domésticos para as tarefas da casa. Já as funções profissionais normalmente são
compartilhadas com membros de confiança na empresa, pessoas a quem as
empreendedoras que responderam à pesquisa consideram como o braço direito
dentro da empresa.
Muitas mulheres, porém, ainda pensam estar no empreendedorismo a oportunidade
para conciliar trabalho e família devido à flexibilidade de horários que elas
mesmas organizam (Gomes & Santana, 2004; DeMartino et al., 2006). A questão
da flexibilidade, previamente vista nas dimensões tempo e tensão do conflito
trabalho-família, provou não satisfazer as expectativas dessas mulheres com
relação à possibilidade de atender às demandas tanto do trabalho quanto da
família, provando ser esse um fator mais agravante do que atenuante do conflito
trabalho-família.
No Brasil, merecem destaque os trabalhos de Quental e Wetzel (2002) e de Lindo,
Cardoso, Rodrigues e Wetzel (2007). Quental e Wetzel (2002) observaram que ter
o próprio negócio foi percebido pelas mulheres como uma opção de carreira, que
conduz a um maior equilíbrio entre os papéis do trabalho e da família. A
segunda pesquisa, de Lindo et al. (2007), teve por objetivo analisar as
questões relativas ao equilíbrio entre vida pessoal e vida profissional para
empreendedoras de dois diferentes ramos de atividades: creches e bufês.
Para a pesquisa aqui apresentada, adaptaram-se as dimensões tempo, tensão e
comportamento, apresentadas tanto no ambiente de trabalho quanto no ambiente
familiar, considerando a área das incompatibilidades justamente o espaço em que
se aplicam as ações atenuantes do conflito trabalho-família. As dimensões
apresentadas no modelo serviram como base para identificação dos conflitos
observados pelas empreendedoras dos dois casos estudados na pesquisa.
A dimensão tempo contempla aspectos gerais do trabalho como o número de horas
trabalhadas, a flexibilidade de horários e o grau de envolvimento e
responsabilidade e da família como a dedicação aos filhos, a inter-relação
com o trabalho do cônjuge e o compartilhamento das tarefas domésticas. A
dimensão tensão prevê, entre outros aspectos, a rotina, a baixa valorização das
atividades, novamente o envolvimento e a responsabilidade, e os fatores
estressantes comuns do trabalho. Na família, a dimensão tensão considera as
expectativas de sucesso pessoal, o sucesso do cônjuge e dos demais membros; as
cobranças de participação nas atividades domésticas; o apoio do cônjuge; e os
fatores estressantes comuns do ambiente familiar. A dimensão comportamento
refere-se às atuações pessoais esperadas tanto no ambiente do trabalho como no
ambiente familiar, quando expectativas distintas requerem atuações distintas.
Em outras palavras, enquanto no trabalho é esperado um comportamento
profissional com objetividade e discrição, na família espera-se que esse mesmo
indivíduo, que atendeu às expectativas do trabalho, se comporte com
sensibilidade, transmitindo aos membros da família calor humano e honestidade.
Como tentativa de diminuir a incompatibilidade ou o conflito, foi elaborado
modelo conceitual, apresentado no Quadro_3, que sugere a aplicação das ações
para lidar com o conflito trabalho-família na interface do trabalho com a
família. Esse modelo conceitual foi baseado na adaptação das dimensões do
conflito trabalho-família apresentadas por Greenhaus e Beutell (1985) e das
ações para atenuar o conflito apresentadas por Hall (1972) e Shelton (2006).
4. ENFOQUE METODOLÓGICO
Esta pesquisa é qualitativa, do tipo estudo de multicasos. Eisenhardt (1989) vê
o estudo de caso como uma estratégia com foco no entendimento da dinâmica
presente no fenômeno estudado.
Para a realização deste estudo de casos múltiplos, foi elaborado um roteiro
semiestruturado de entrevista, visando à obtenção de informações a partir do
ponto de vista dos entrevistados, que permite ao pesquisador excluir ou incluir
questões ou ainda efetuar alterações na ordem das questões em virtude das
respostas obtidas. Foram entrevistadas duas empreendedoras do setor de comércio
de material de construção de Curitiba e seus parceiros. As empresas foram:
Uniportas, que fabrica portas e janelas de madeira, e a MRC, que elabora
projetos arquitetônicos.
Foram escolhidas, para este estudo, duas organizações do setor de comércio de
material de construção localizadas na cidade de Curitiba, Paraná, que têm
mulheres como fundadoras e atuais administradoras. Os critérios para a escolha
dos casos foram:
* acessibilidade ' encontrar empreendedoras que aceitassem participar da
pesquisa;
* prazo ' maior número possível de casos viáveis dentro do prazo disponível
para a etapa empírica, que neste estudo foram apenas dois;
* empresas que atendessem aos requisitos de terem mulheres como fundadoras,
atuais proprietárias e administradoras;
* empresas que pertencessem ao setor de comércio de materiais de
construção;
* empresas que fossem de micro ou pequeno porte.
Como fonte complementar de coleta de dados, foi usada a observação direta,
considerada essencial num estudo de caso qualitativo. Na observação direta,
procuram-se apreender aparências, eventos e/ou comportamentos (Godoy, 2007, p.
133). As provas observacionais são, em geral, úteis para fornecer informações
adicionais sobre o tópico que está sendo estudado (Yin, 2001, p. 115). O que
foi observado neste estudo de casos foram momentos específicos da rotina das
empreendedoras, como a aproximação do horário de buscar os filhos na escola; a
reação diante de eventos como reuniões extraordinárias sem agendamento prévio;
a reação a incidentes ou acidentes durante a realização dos serviços já
contratados; a receptividade a telefonemas familiares recebidos durante o
expediente; as ações para completar a agenda doméstica, como compras no
supermercado, conciliando essa agenda com os compromissos profissionais; e
outras ações relevantes para a compreensão do fenômeno estudado.
Após a descrição e a análise individual de cada caso, foi realizada a cross-
case analysis. De acordo com Eisenhardt (1989), essa técnica de análise busca
descobrir padrões entre os casos, possibilitando que sejam enfatizadas as
semelhanças e diferenças entre os casos, bem como comparar os resultados
obtidos com os estudos apresentados na revisão teórica. A descrição individual
dos casos não será apresentada neste artigo, pois a riqueza dos depoimentos e a
dificuldade de sua redução leva a perda de conteúdo, dificultando sua
compreensão. Em função desse fato, optou-se pela apresentação da análise
comparativa dos casos, seguindo a técnica de Eisenhardt (1989).
5. ANÁLISE COMPARATIVA DOS CASOS
Para a análise comparativa dos casos, inicialmente é destacado o perfil das
empreendedoras entrevistadas. Depois, são identificados comparativamente os
conflitos percebidos pelas empreendedoras de cada caso, separando-os nas
dimensões tempo, tensão e comportamento. A seguir, são também analisadas
comparativamente as ações tomadas pelas empreendedoras para lidar com os
conflitos identificados e se essas ações têm gerado resultado positivo.
Dados do GEM (2011) apontam que são vários os fatores explicativos do aumento
da participação feminina no mercado de trabalho. Esses fatores vão desde o
maior nível de escolaridade em relação aos homens, até as mudanças na estrutura
familiar, com o menor número de filhos e novos valores relativos à inserção da
mulher na sociedade brasileira. No entanto, o aumento da participação da mulher
no mercado de trabalho não foi acompanhado pela diminuição das desigualdades
profissionais e de rendimentos entre os sexos. Pode-se perceber que tanto a
proprietária da Uniportas quanto a proprietária da MRC alegam ainda não possuir
autonomia financeira suficiente para dar sustento com suas empresas às despesas
da casa. O Quadro_4 apresenta os principais dados que descrevem o perfil de
cada empreendedora entrevistada.
Tanto a empreendedora da Uniportas quanto a empreendedora da MRC estavam na
faixa etária de 25 a 34 anos quando abriram suas empresas. A empreendedora da
MRC afirma ter aberto a empresa por uma questão de oportunidade e a da
Uniportas alega ter ajudado a realizar um sonho do marido, o que poderia também
ser entendido mais como oportunidade do que necessidade. Ambas possuem mais de
11 anos de estudo. As empreendedoras desta pesquisa não possuíam experiência
anterior como empresárias, mas a proprietária da MRC já havia atuado na área da
empresa em empregos anteriores. A empreendedora da Uniportas, por sua vez,
contou apenas com a experiência do marido no ramo de negócios. Os pais da
empreendedora da MCR eram ambos comerciantes empreendedores, enquanto os pais
da empreendedora da Uniportas nunca abriram empresa. Contudo, os pais do marido
da empreendedora da Uniportas também eram empreendedores, o que corrobora
pesquisas diversas sobre empreendedorismo feminino que atestam o fato de muitas
empreendedoras pertencerem a famílias de empreendedores (Buttner & Moore,
1997; Machado et al., 2003).
Uma das empreendedoras entrevistadas neste estudo é casada e a outra mora com o
companheiro numa relação estável. Ambas iniciaram suas empresas com capital
próprio, ainda que escasso, corroborando as demais pesquisas sobre o perfil das
mulheres empreendedoras (Jonathan, 2003). As duas empresas pesquisadas têm como
constituição jurídica a sociedade limitada, como os achados da pesquisa de
Machado et al. (2003), e ambas possuem como sócias formais suas mães, que não
participam ativamente das empresas.
A preocupação de ambas as empreendedoras é manter a qualidade dos serviços e
produtos de suas empresas e nenhuma delas mostrou preocupação com o crescimento
do negócio e, sim, com a qualidade de vida pessoal que gostariam de ter por
meio da abertura das firmas, corroborando a pesquisa de Machado (1999). As duas
empreendedoras relatam estar satisfeitas com seu trabalho, ainda que a
compensação financeira não seja a esperada, o que comprova os achados da
pesquisa de Quental e Wetzel (2002).
Após a descrição do perfil das empreendedoras, apresenta-se a análise
comparativa da percepção da existência de conflitos trabalho-família pelas
respondentes. Para esta pesquisa, foram adaptadas as dimensões tempo, tensão e
comportamento, encontradas tanto no ambiente de trabalho quanto no ambiente
família, considerando a área das incompatibilidades justamente o espaço em que
se podem aplicar as ações atenuantes do conflito trabalho-família. A partir das
informações coletadas no caso Uniportas, elaborou-se o Quadro_5, que agrupa os
dados de acordo com o modelo teórico adotado.
O Quadro_6 apresenta as informações coletadas no caso MRC, aplicadas dentro do
mesmo modelo de pesquisa.
As dimensões apresentadas no modelo serviram como base na identificação dos
conflitos observados pelas empreendedoras dos dois casos estudados nesta
pesquisa. O espaço destinado às incompatibilidades é onde se faz necessária a
intervenção das empreendedoras por meio de ações para eliminar ou atenuar os
conflitos percebidos nas três dimensões do modelo. As incompatibilidades são
geradas pelas pressões que as empreendedoras sofrem durante o desempenho de
seus papéis profissionais e familiares.
Aplicados ao modelo de pesquisa, pode ser novamente observado que os fatores
geradores de conflitos percebidos pelas empreendedoras dos dois casos desta
pesquisa assemelham-se nos principais aspectos, em todas as dimensões de
conflitos. Na dimensão tempo, do lado profissional, a indefinição do horário, a
excessiva dedicação de tempo, o altíssimo grau de envolvimento e a
flexibilidade de horários foram fatores geradores de conflitos para as duas
empresárias. Já no lado familiar, coincide a reclamação de poucas horas
existentes para se dedicarem a suas famílias. No entanto, enquanto a
empreendedora da Uniportas critica seu marido pelo pouco apoio dado a ela para
com as atividades familiares, a da MRC sente haver pouco tempo para cuidar dela
mesma.
Na dimensão tensão, o destaque no lado profissional é para os problemas
financeiros. A proprietária da Uniportas tem problemas com o fluxo de caixa da
empresa, enquanto a empresária da MRC se aborrece ao ter de cobrar seus
clientes pelos serviços prestados. O lado familiar traz tensões para ambas,
quando há ocorrência de brigas entre os membros da família. A empreendedora da
Uniportas volta a destacar a falta de suporte marital como fator gerador de
conflitos também na dimensão tensão.
A falta de ânimo para assuntos administrativos é apontada pela empreendedora da
Uniportas como o fator gerador de conflitos na dimensão comportamento do lado
profissional. A da MCR, por sua vez, observa que a rotina de altos e baixos a
deixa desmotivada para seu trabalho. Ambas alegam que problemas profissionais
na dimensão comportamento geram mau humor no trato com os familiares.
Pela observação do modelo de pesquisa, pode-se também identificar que as ações
para lidar com os conflitos que ambas as empresárias aplicam são, em sua
maioria, semelhantes. As duas empreendedoras buscam controlar suas emoções,
tentando mudanças na maneira de agir, para não levar problemas do trabalho para
casa. As duas empresárias procuram o bom convívio com seus parceiros, tendo
deles o apoio instrumental e emocional, quando necessário. A empreendedora da
Uniportas prioriza o trabalho, tenta compartilhar as atividades familiares com
os demais membros da família e pensa em não deixar a empresa como herança para
as filhas. Já a da MCR busca o equilíbrio do tempo dedicado ao trabalho e aos
assuntos familiares. A seguir os dois casos serão analisados comparativamente
em função de cada uma das dimensões.
5.1. Dimensão tempo
O conflito baseado na dimensão tempo contempla aspectos gerais do trabalho,
como o número de horas trabalhadas, a flexibilidade de horários e o grau de
envolvimento e responsabilidade, tanto com a empresa quanto com a família, bem
como a inter-relação com o trabalho do cônjuge e o compartilhamento das tarefas
domésticas. Conflitos baseados no tempo com ênfase na organização estão
relacionados à excessiva dedicação ao trabalho, o que resulta em menor tempo
ocupado com a família (Pleck et al., 1980). As pressões do tempo do trabalho,
associadas ao papel social, tornam fisicamente impossível satisfazer as
expectativas de um sem frustrar as expectativas do outro (Khan, 1964, citado
por Greenhaus & Beutell, 1985).
Resultados das pesquisas quantitativas demonstraram que há relação de
crescimento do conflito trabalho-família com o tempo de ocupação do indivíduo
com seu trabalho (Burke, Weir, & Duwors Jr., 1980; Pleck et al., 1980;
Greenhaus & Beutell, 1985). O conflito trabalho-família foi também
associado à quantidade e frequência de períodos irregulares de trabalho, ou
fora do tempo estipulado para início e fim das atividades (Pleck et al., 1980).
No Quadro_7 apresentam-se os principais conflitos trabalho-família dentro da
dimensão tempo, percebidos pelas respondentes desta pesquisa.
As empreendedoras não fogem às características apresentadas pelo relatório GEM
(2011). Ambas exercem múltiplos papéis e cobram-se por isso. Ambas valorizam
tanto a realização profissional quanto o relacionamento afetivo e o tempo
dedicado a si mesmas. Por isso, a percepção dos conflitos assemelha-se nas três
dimensões propostas por Greenhaus e Beutell (1985): tempo, tensão e
comportamento. As duas empreendedoras reclamam da má distribuição do tempo e do
excesso de horas despendidas no trabalho em detrimento do tempo ocupado com a
família e com o parceiro. Ambas tiveram a ideia de que a flexibilidade de
horários favoreceria o equilíbrio entre as tarefas do trabalho e da família e
alegam que se decepcionaram com o resultado, mas, ainda assim, não trocariam a
flexibilidade por um trabalho com horário preestabelecido.
5.2. Dimensão tensão
A dimensão tensão contempla aspectos como a rotina, a baixa valorização das
atividades, novamente o envolvimento e a responsabilidade com a empresa e com a
família, e os fatores estressantes comuns do trabalho. Conflitos baseados em
tensão ocorrem quando a fadiga e a irritabilidade pelas pressões decorrentes do
trabalho coexistem com as pressões externas ao trabalho, as primeiras
concorrendo com as segundas (Pleck et al., 1980). Os conflitos surgem, porque
as pressões criadas pelo papel profissional são incompatíveis com as pressões
criadas pelos demais papéis sociais, incluindo os compromissos familiares.
Pleck et al. (1980) relataram também que demandas físicas e psicológicas
incrementam os níveis de diversos tipos de conflitos de trabalho-família,
especialmente na dimensão tensão.
Jones e Butler (1980) indicam que níveis de autonomia não necessariamente
contribuem para atenuar o conflito trabalho-família. Pelo contrário, a
autonomia traz consigo mais responsabilidades, produzindo sobrecarga
qualitativa na realização das tarefas relacionadas ao trabalho e,
consequentemente, conflito. Os autores revelaram também que as tensões do
trabalho são menores, quando as atividades são bem conduzidas e plenamente
conhecidas pelo trabalhador. Da mesma forma, há menos tensão no trabalho cujas
atividades são bem remuneradas ou gratificadas (Jones & Butler, 1980).
As cobranças pela presença e pela participação do cônjuge nas atividades
familiares são as mais comumente relatadas por Beutell e Greenhaus (1983,
citados por Greenhaus, & Beutell, 1985). Além disso, mulheres com
profissões diferentes das de seus maridos apresentam conflito entre os papéis
de casa e do trabalho em níveis muito mais intensos. As tensões familiares
também aumentam, quando há desentendimentos entre marido e mulher sobre seus
papéis dentro da família (Chadwick et al., 1976 e Eiswirth-Neems & Handal,
1978, citados por Greenhaus & Beutell, 1985). No Quadro_8, são apresentados
os principais conflitos trabalho-família dentro da dimensão tensão, percebidos
pelas respondentes desta pesquisa.
Tanto a proprietária da Uniportas quanto a da MRC apontam problemas financeiros
com suas empresas: a primeira, com a falta de equilíbrio do fluxo de caixa; a
segunda, com o recebimento dos honorários por serviços prestados. Ambas também
confirmaram que problemas familiares afetam negativamente seu desempenho no
trabalho. Há maior predisposição por parte das duas empreendedoras de deixar os
problemas do trabalho no trabalho, mas carregam os problemas familiares junto
com elas para o trabalho.
5.3. Dimensão comportamento
Conflitos baseados no comportamento ocorrem quando padrões específicos de
comportamento no trabalho podem ser incompatíveis com os padrões de
comportamento esperados na família. Enquanto no trabalho se espera a
impessoalidade, o raciocínio lógico, o poder e a autoridade, a família, por sua
vez, espera de seus membros calor humano, docilidade, compreensão, carisma e
até mesmo vulnerabilidade na interação dentro do lar. Se uma pessoa é incapaz
de adaptar seu comportamento para atender às demandas de ambos os papéis,
trabalho e família, está fortemente sujeita a enfrentar os conflitos trabalho-
família (Greenhaus & Beutell, 1985). No Quadro_9, são apresentados os
principais conflitos trabalho-família dentro da dimensão comportamento,
percebidos pelas respondentes desta pesquisa.
Com relação ao fato de trabalharem no setor da construção civil, um ramo
tipicamente masculino, as duas empreendedoras alegaram já ter passado por
constrangimentos devido à discriminação de gênero. A empreendedora da Uniportas
por ter de provar sua capacidade técnica e a qualidade de seus produtos, que
foram colocadas em dúvida por serem vendidos por uma mulher; e a empreendedora
da MCR por problemas com a hierarquia em seu primeiro emprego, no qual os
cargos de gerência pertenciam apenas aos homens. Com base nos relatos das
respondentes da pesquisa, passa-se agora à apresentação e à análise das ações
das empreendedoras para lidar com os conflitos por elas identificados.
5.4. Ações das empreendedoras para lidar com os conflitos
Shelton (2006) apresentou em sua pesquisa o fluxo de demandas que pode levar a
uma estratégia para diminuir os conflitos trabalho-família provocados pelas
atividades no trabalho e na família. Quanto menor o número de conflitos, maior
o bem-estar da empreendedora. Quanto maior o bem-estar da empreendedora, maior
o desempenho de seu negócio. As empreendedoras tentam ações alternativas para
lidar com os conflitos por elas percebidos, assim, para vencer os problemas
relativos ao tempo, ambas buscam compartilhar as atividades domésticas com os
membros da família. A empreendedora da Uniportas compartilha o trato da casa
com as filhas e a da MCR compartilha as tarefas do lar com seu parceiro, meio a
meio, segundo suas próprias palavras. Alguns critérios foram estabelecidos pela
empreendedora da Uniportas, que definiu ante todos os que com ela convivem que
o trabalho é prioridade na questão tempo. As demais atividades são encaixadas
nas possíveis frestas de seu horário de trabalho.
Ambas procuram mudar a maneira de agir, controlando as emoções e tentando não
levar os problemas do trabalho para casa, evitando com isso as alterações de
humor no trato com a família. O bom convívio com o parceiro é esperado pelas
duas empreendedoras, mas a proprietária da MRC deu destaque especial ao apoio,
tanto instrumental quanto emocional, que recebe de seu noivo, com quem vive. No
quesito comportamento, também afirmou ser uma pessoa questionadora dos padrões
de comportamento ditos comuns ou impostos pela sociedade. A empresária alega
não conseguir enquadrar-se em um perfil que a sociedade impõe, pois crê em sua
autenticidade. Para completar a descrição das ações tomadas pelas
empreendedoras desta pesquisa, a da Uniportas acredita que evitará problemas
futuros se não deixar a empresa como herança para suas filhas. No Quadro_10,
apresentam-se as principais ações das empreendedoras para lidar com os
conflitos trabalho-família.
Após a análise comparativa dos dois casos, pode-se, por fim, chegar às
conclusões da pesquisa.
6. CONCLUSÕES
Os conflitos trabalho-família identificados pelas empreendedoras entrevistadas
corroboram as pesquisas apresentadas na fundamentação teórica desta pesquisa.
Indefinição do horário de trabalho, poucas horas dedicadas à família, devido à
excessiva dedicação de tempo aos assuntos profissionais e ao alto grau de
envolvimento na empresa, além de dificuldades encontradas para o perfeito
compartilhamento das atividades familiares com os demais membros da família,
muitas vezes acrescidas do pouco apoio marital, foram os conflitos trabalho-
família relacionados pelas empreendedoras que podem ser classificados dentro da
dimensão tempo.
Dentro da dimensão tensão, os relatos das empresárias incluíram o estresse
devido aos problemas financeiros de suas empresas, ou à cobrança dos honorários
pelos serviços prestados, muitas vezes ignorados por seus clientes, os
transtornos emocionais causados por brigas familiares e, novamente, o pouco
apoio marital. A falta de ânimo para administrarem suas empresas, o mau humor
no trato com a família como consequência dos problemas no trabalho e a falta de
motivação constante causada pela rotina estressante ou pelo retorno financeiro
abaixo do esperado foram os conflitos trabalho-família relatados pelas
empresárias que podem ser classificados dentro da dimensão comportamento.
No Quadro_11, são apresentados resumidamente os conflitos trabalho-família
percebidos pelas empreendedoras do setor da construção civil da cidade de
Curitiba, com base nas dimensões tempo, tensão e comportamento.
As ações para lidar com os conflitos trabalho-família relatadas pelas
empreendedoras da pesquisa foram: a tentativa de mudança na maneira de agir,
buscando o controle das emoções para que não levem problemas oriundos do
trabalho para dentro de suas casas; o controle do tempo dedicado ao trabalho e
à família, priorizando o primeiro sem detrimento do segundo; a busca do
compartilhamento das atividades domésticas com os demais membros da família,
mesmo que para isso precisem estipular e impor regras a todos os que moram com
elas; o bom convívio com seus parceiros, buscando diálogo e apoio instrumental
e emocional. A empreendedora da Uniportas menciona ainda a intenção de não
deixar a empresa como herança para suas filhas, enquanto a da MRC questiona-se
constantemente sobre o comportamento que esperam dela, tanto no trabalho como
na família. Sucintamente, essas ações são apresentadas no Quadro_12.
![](/img/revistas/rausp/v49n1/a06qdr12.jpg)
A busca pelo controle emocional é a ação de resultado mais imediato e positivo
citada pelas duas empresárias. Ambas expressam sentimentos confortáveis com
relação à aquisição de maturidade como base para o controle emocional. O
sucesso no equilíbrio emocional é percebido principalmente pelos parceiros das
empreendedoras, que confirmam que o passar do tempo e a aquisição de
experiência auxiliaram para atenuar os conflitos, tanto no trabalho quanto na
presença da família.
A tentativa de equilibrar horários também tem surtido bons resultados tanto
para a empreendedora da Uniportas como para a da MRC. A primeira por meio da
tentativa de priorizar seu trabalho, uma vez que percebe que sua família já não
depende tanto dela, pois as filhas cresceram e são, agora, mais independentes,
fazendo com que as interferências do trabalho na família, e vice-versa, não
sejam tão significativas. A segunda, por sua vez, tenta estabelecer limites
para sua ocupação com o trabalho, alimentando, dessa forma, o bom
relacionamento com seu parceiro.
Compartilhar as atividades domésticas é algo natural para a empreendedora da
MRC, mas ainda gera conflitos para a outra empreendedora, que não tem de seu
marido o apoio por ela esperado. A divisão das atividades domésticas ainda não
é vista pela empresária da Uniportas como satisfatória, ainda que ela reconheça
que tenha melhorado com o passar dos anos de existência da empresa. Diálogo e
apoios emocional e instrumental por meio do bom convívio com seus parceiros são
tidos por ambas como um resultado positivo de suas ações atenuadoras de
conflitos. As duas relatam ter bom relacionamento com seus parceiros, ainda que
a empreendedora da Uniportas se sinta insatisfeita com o apoio marital.
A empresária da MRC expõe também seus questionamentos sobre os comportamentos
padronizados pela sociedade para as mulheres trabalhadoras. Suas tentativas de
sair do padrão esperado são também narradas pela empreendedora como ações para
lidar com os conflitos trabalho-família, já que para ela essas ações evitam que
seja alvo de críticas comuns às demais trabalhadoras, algo que a faz sentir-se
pouco valorizada, tanto no trabalho quanto em casa. As duas empreendedoras
desejam o reconhecimento profissional e pessoal, fator que contraria as
principais pesquisas apresentadas no referencial teórico desta pesquisa, que
atestam que a busca pelo reconhecimento profissional não é uma das
características marcantes no perfil das empreendedoras.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS E SUGESTÕES PARA FUTUROS ESTUDOS
Na presente pesquisa, buscou-se compreender, a partir de dois estudos de casos,
as ações das empreendedoras do setor de material de construção na cidade de
Curitiba para lidarem com os conflitos trabalho-família por elas identificados
e quais ações essas mulheres adotam para atenuar ou eliminar tais conflitos.
Conflitos estão presentes na vida desde o momento em que se nasce e acompanham
o ser humano até o final de sua existência. Cabe a ele desenvolver a habilidade
de ter nos conflitos uma visão e uma compreensão construtivas, o que equivale a
transformá-los em oportunidades e desafios diante da dinâmica da vida, já que,
quanto mais intensamente se vive, mais conflitos precisam ser administrados,
entre eles os conflitos que surgem da interface trabalho-família.
As linhas teóricas que abordam o conflito trabalho-família seguem perspectivas
semelhantes. Os autores concordam que as escolhas realizadas pelos indivíduos
na gestão entre funções familiares e laborais são marcadas por pressões, na
maioria das vezes devido ao compartilhamento do tempo entre as atividades do
trabalho e da família. Os longos horários de trabalho foram apontados como
fator de estresse e principal elemento para a explicação da existência desses
conflitos.
Contudo, é preciso lembrar que o gênero feminino ainda é associado ao trabalho
doméstico e é perceptível que as mulheres continuam a desempenhar a maior parte
desse trabalho, em particular as tarefas tidas como tipicamente femininas. Os
homens continuam a guardar para si o primado das responsabilidades
profissionais e continuam a ser socialmente autorizados a afastar-se de tarefas
legitimadas como femininas. Essa situação de reprodução da dominação masculina
coloca as mulheres numa posição desfavorável do ponto de vista de seu
reconhecimento social, além de contribuir para a divisão injusta de tarefas,
tanto no trabalho como dentro de casa.
O crescimento do número de empreendimentos conduzidos por mulheres justifica a
tendência de os estudos das Ciências Sociais dedicarem-se aos assuntos
derivados do conflito trabalho-família dentro do contexto feminino de
realização pessoal. O fato de as mulheres estarem cada vez mais presentes no
mercado de trabalho, tanto na condição de funcionárias como na de
empreendedoras, inevitavelmente acarreta impactos de toda ordem. O acréscimo
dos conflitos trabalho-família para essas mulheres é inevitável.
O que se percebe com a pesquisa é que, na tentativa de conciliar casa-família-
trabalho, as empresárias participantes da pesquisa agem muito mais para atenuar
os conflitos por elas identificados do que para os eliminar. Ações como o
controle das emoções, por exemplo, diminuem a frequência da ocorrência de
conflitos, tanto em casa quanto no trabalho. Mas isso não significa que tais
conflitos foram eliminados, pois as empreendedoras da pesquisa continuam a
perceber que podem ocorrer a qualquer momento, bastando para isso que elas,
momentaneamente, percam o autocontrole.
Diante do exposto, ficam como sugestão os assuntos relacionados a seguir, que
podem ser tratados em pesquisas futuras.
* Realizar pesquisa quantitativa sobre o tema com o objetivo de verificar
quais conflitos trabalho-família são mais frequentemente percebidos pelas
empreendedoras, tanto da construção civil, quanto dos demais setores de
atividade, e quais ações são usualmente empregadas por elas para lidar
com os conflitos identificados. A pesquisa quantitativa possibilita a
generalização dos dados, o que poderia fornecer aos pesquisadores o
ranking dos conflitos mais frequentemente percebidos pelas empreendedoras
brasileiras.
* Realizar pesquisa qualitativa com o mesmo tema em outros setores, que não
o da construção civil, a fim de que se possam constatar diferentes
percepções de conflitos trabalho-família.
* Comparar a percepção de conflitos entre homens e mulheres e suas ações
para lidar com os conflitos observados, independentemente do setor em que
empreendem, com o objetivo de descobrir as igualdades e diferenças dos
pontos de vista de cada gênero sobre o assunto.