Do "beija e deixa" ao "membro virtual": os vários usos do sagrado na Feira do
Jubileu de Congonhas
1. INTRODUÇÃO
Neste estudo, o objetivo é compreender o papel do sagrado no dia a dia de uma
organização, destacando como ele pode ser (re)modelado em função dos objetivos
de quem tem poder de decisão. Para tanto, assume-se o conceito metafísico do
sagrado proposto por Eliade (1970), segundo o qual sua irrupção na vida comum
ocasiona sua legitimação social sem, no entanto, extrair-lhe o caráter abstrato
e simbólico. A normatização e a categorização ritualística do sagrado propiciam
um terreno objetivo e factível que permite ao sujeito significar o universo
objetivo, desde que ele assuma sua condição de incompleto ou desvinculado, o
que o identifica com os demais sujeitos em uma coletividade de seres
incompletos. Então, o sagrado é investido numa instituição que o gere em
benefício de todos (Bastide, 1975). Nesse sentido, institucionalizar o sagrado
compreende o estabelecimento de dogmas, práticas e regras comuns que permitam a
repetição e a manutenção de um processo que confere segurança e estabilidade ao
ente coletivo composto por sujeitos institucionais
incompletos
(1).
Acredita-se que o sagrado se refira a conceitos abstratos e a práticas
cotidianas (Certeau, 1994) e ofereça, assim, parâmetros para que a sociedade
possa produzir-se e reproduzir, sendo, pois, compreendida e reconhecida
(principalmente por si mesma). Nesse sentido, este trabalho insere-se no âmbito
dos estudos organizacionais que tratam do simbolismo, fugindo, assim, da
tradição positivista para intentar ilustrar o comportamento dos membros de uma
organização em função da operação simbólica do sagrado. E onde o sagrado
poderia ser mais bem compreendido do que em seu papel na institucionalização de
uma vida religiosa organizada? Tomam-se, então, emprestados de Antropologia,
Sociologia, Ciências Sociais, dentre outros campos, estudos já tradicionais
relacionados à investigação da Igreja Católica. Observa-se que a organização
das pessoas que constituem a Igreja baliza-se principalmente na
institucionalização do simbólico. O foco, neste artigo, não é discutir o
simbolismo na Igreja Católica, mas fazer uma aproximação com o tema do sagrado,
investigando as inter-relações entre as práticas religiosas, econômicas e
políticas cunhadas pela Igreja Católica, especificamente por ocasião da Festa e
da Feira do Jubileu do Bom Jesus, na cidade mineira de Congonhas, Minas Gerais.
A Festa do Jubileu surgiu como construção emergente da necessidade de os
romeiros abastecerem-se, quando vinham anualmente às comemorações religiosas do
Bom Jesus (que acontecem desde 1779), em busca de graças para enfermidades e/ou
pagando promessas das graças alcançadas. Ao chegarem a Congonhas, além de
visitarem a basílica do Bom Jesus de Matosinhos, os romeiros procuravam
produtos que pudessem levar na viagem de volta para casa. A partir dessa
tradição histórica, surge a feira, espaço que até hoje se caracteriza pela
conjugação de elementos religiosos e econômicos. Durante sua ocorrência, de
aproximadamente 15 dias, as ruas de Congonhas são subdivididas em recortes de
espaço, em frente às casas, nas proximidades da basílica e nos espaços da rua,
sob tutela dos moradores, da Igreja e da prefeitura, respectivamente. Além do
aluguel dos espaços para feirantes, a Igreja empreende outras práticas, tais
como a formação de fila para beijar uma imagem e, em seguida, deixar ofertas em
dinheiro; a venda de membros de cera para pagamento de promessas; e, mais
recentemente, a instituição da venda de membros virtuais, pelos quais o fiel
somente paga o valor monetário do membro para quitar sua promessa.
Neste artigo, são analisadas tanto as práticas institucionais quanto as não
institucionais que surgem em meio à necessidade de adaptação em face das
oscilações do ambiente. Destaca-se o "fazer estratégia" como mecanismo de
compreensão do plano objetivo (Certeau, 1994). A hierofania bíblica é
acompanhada, por um lado, por um corpo burocrático litúrgico construído e, por
outro lado, por um contingente de crentes que a legitima. A instituição Igreja
é, pois, a resultante da mediação entre o universo simbólico do sagrado e o
universo objetivo do sujeito comum. Esses dois universos edificam dualidades
(sagrado/profano, detentor/depositário), as quais delimitam os sujeitos entre
portadores de um capital religioso (Bourdieu, 2002) e depositários desse
capital, dependentes do processo de mediação. O capital religioso é percebido
não só como o conjunto de serviços religiosos, como também o próprio patrimônio
material da instituição, além do aparato simbólico pertencente ao universo do
sagrado. No caso em questão, destacam-se especificamente práticas do corpo
litúrgico da basílica do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo, que
buscam, sistemática ou assistematicamente, a perpetuação do capital religioso e
a sobrevivência da organização da paróquia por meio da manipulação simbólica do
sagrado durante o Jubileu do Bom Jesus.
Autores como Burity (2001) e Chauí (2004) têm apontado para o retorno do
teológico ao domínio público, destacando a capacidade de esse processo
construir identidades coletivas religiosas que resultam na ação política(2)
organizada. É interessante destacar que o elemento inédito da volta da religião
não se refere exatamente ao aumento de fiéis e à exposição midiática do
sagrado, mas sim à reformulação dos limites entre religião e política, entre o
privado e o público. Nesse sentido, no presente trabalho, busca-se contribuir
para a compreensão da dinâmica simbólica no interior da Igreja Católica,
entendida como organização gestora da Feira do Jubileu de Congonhas. Estudos
organizacionais brasileiros que lidam com a questão religiosa ainda são
escassos, contudo as relações entre capitalismo e religião têm sido estudadas
desde Max Weber e constituem um campo de pesquisa profícuo nos dias atuais
(Pereira & Carrieri, 2005; Serafim, Martes & Rodriguez, 2012).
2. O SAGRADO NA TRADIÇÃO CRISTÃ
O termo sagrado tem herança etimológica do latim sacrare, cuja acepção tange ao
recebimento de sagração: tornou-se sacro ou santo o que pressupõe a dedicação
ao serviço de Deus, uma inteligência superior. Nas atribuições atuais do
sagrado para a investidura em dignidades religiosas, a exemplo dos bispos e
presbíteros, aponta-se para a apropriação do lexema pela Igreja Católica
moderna. O sagrado, por ela institucionalizado, instituído de uma qualidade
sacra (o serviço de Deus), condiciona a existência de um Deus e de um aparato
simbólico de mediação para o contato com Ele. Aparato que permite a construção
e a manutenção do sagrado como prerrogativa para a existência de uma genealogia
da institucionalização de um sistema prescrito para justificativa, organização
e manutenção do sagrado até a fundação do mito.
Essa relação entre subjetividade simbólica e objetividade material foi
sistematizada por Mendonça (2003; 2004), que recorreu aos estudos de Friedrich
Heiler (1862-1967). Direcionada por estudos fenomenológicos, a teoria sobre
setorização dos sagrados foi disposta em círculos concêntricos de maneira a
sugerir a inter-relação entre cada um deles, conforme pode ser observado na na
Figura_1.
Segundo Mendonça (2003; 2004), o sagrado subdivide-se em três círculos que, de
fora para dentro, representam níveis do sagrado correspondentes a seus níveis
de objetivação e subjetivação. Na circunferência mais externa, o sacro é
apresentado em sua perspectiva mais objetiva, é sua experimentação no mundo
empírico, sua materialização e percepção cognoscível por meio de templos,
ritos, cultos e objetos sagrados. É o sagrado instituído. A segunda
circunferência corresponde ao nível intermediário das concepções religiosas, em
que toda manifestação objetiva potencial pode ser filtrada. É o espaço dos
pensadores do sagrado e dos representantes do processo instituído. A terceira e
última circunferência concentra o sagrado essencial e parcialmente revelado de
Durkheim. É o cerne do processo institucionalizador sem, entretanto, significar
uma instituição, logo, representa o próprio fenômeno do caráter mítico do
sagrado.
O místico, aquele que está no círculo central, não tem religião, ele contempla
o sagrado sem intermediações. Quando sai, ou seja, pratica o movimento
centrífugo, dá origem a uma religião como vida organizada instituída. Do
contrário, o movimento centrípeto indica o afastamento da religião, mas a
aproximação ao sagrado sem intermediações. Isso porque no círculo externo o
sujeito está envolvido com os templos, os ritos, os cultos e os objetos,
portanto não com o sagrado em si, puro. Por conseguinte, ao adentrar os
círculos interiores, ele aproxima-se da experiência de vivenciar o sagrado
absoluto, de fugir das regras impostas pela religião, de aproximar-se de uma
vida mais espiritual e menos material.
3. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SAGRADO
O processo de institucionalização é objeto de estudos de diversas áreas do
conhecimento, como a Política, a Economia e a Sociologia. De acordo com
Nogueira (2000), o ambiente institucional é detentor de regras, crenças,
valores e outros elementos simbólicos responsáveis por referenciar e orientar
as práticas comuns. Justifica-se, então, a adoção do processo institucional,
considerando-se que, diferentemente do processo de administração racional,
voltado para o alcance de objetivos comuns pretendidos, a institucionalização
comporta uma variante de significações que atrela os sujeitos a uma rede de
interdependência socialmente construída.
Conceitos de institucionalização mais compatíveis com o processo de
subjetivação e objetivação descrito anteriormente seguem os predicativos de
Fonseca (2003, p. 58), segundo o qual a institucionalização é "o processo de
transformar crenças e ações em regras de conduta social". Gusmão (2002)
enfatiza que instituições são modelos destinados a satisfazer necessidades
essenciais do homem, perpetuados e tornados hábito pela lei, pelo costume e
pela educação. Ao longo da história, tais modelos orientam as ações sociais
básicas. A apreensão do universo do sagrado e sua objetivação no mundo
cognoscível são normatizadas por uma série de ritos e práticas anteriormente
condicionados ao universo simbólico.
O lexema religião pressupõe a preexistência de um vínculo com o sagrado situado
no universo subjetivo do simbólico. Ao que tudo indica, parece que, em algum
momento espaçotemporal não identificado, o universo objetivo desvinculou-se do
sagrado, encontrando no religare uma oportunidade legítima de retorno ao sacro.
O terreno objetivo para a retomada com o sagrado é constituído pela
normatização e pela categorização ritualística mítica, em que o indivíduo
assume a condição de incompleto ou desvinculado, que o identifica com os demais
sujeitos em uma coletividade de seres incompletos. Então, o sagrado seria um
investimento, em uma instituição, que visaria ao benefício de todos (Bastide,
1975), dirimindo, nesse sentido, a necessidade vital do homem pela completude
ao mesmo passo em que desempenha funções sociais de vínculos, estabelecidos
pela obediência aos costumes sagrados, institucionalizados.
Quando considerados os sujeitos organizados como aqueles que participam de
maneira efetiva dentro de uma instituição como que a constituindo, a
experiência coletiva é tratada como vida organizada, a fim de reduzir a
abstração inerente aos conceitos de organização ou instituição (Paço-Cunha,
2006). Institucionalizar o sagrado, isto é, organizar a vida coletiva,
compreende o estabelecimento de dogmas, práticas e regras comuns que permitam a
repetição e a manutenção de um processo que confere segurança e estabilidade
aos sujeitos institucionais e sua própria perpetuação. O discurso ortodoxo,
constantemente consolidado por rituais, totens, signos e artefatos simbólicos,
sustenta a estabilidade pressuposta pela institucionalização do sagrado e
também permite a homogeneidade do controle. Logo, o processo
institucionalizador é também restritivo e coercitivo na medida em que limita
outras aparições do sacro que não correspondam exatamente ao institucional. Há
de esperar-se, portanto, que, no indivíduo, aquele lugar de construção e
maturação de concepções religiosas (círculo intermediário) seja um mecanismo
direcionador (mas principalmente de controle) do sujeito; lugar que não permite
que a efervescência das reflexões o conduzam à não-religião, ou ao círculo
interno. Nesse sentido, Bastide (1975) afirma que o sagrado selvagem é
justamente a resultante do processo dialético, segundo o qual o sagrado
institucional se origina da rigidez do processo institucionalizador. Uma nova
irrupção do sacro, que remete a práticas geralmente não reconhecidas pela
instituição, manifesta a apropriação social de práticas institucionalizadas que
não são necessariamente absorvidas, mas apropriadas, (re)significadas e
popularmente legitimadas (Certeau, 1994).
De acordo com Durkheim (1994), a religião é uma forma de gestão da experiência
do sagrado de valor positivo, uma vez que permite a continuidade dessa
experiência, mas, simultaneamente, significa sua retenção, pois não permite
outro discurso que não seja o ortodoxo. Ao mesmo tempo, organiza a vida comum
ao transformar o espontâneo em algo institucional (Bastide, 1975). O sagrado
selvagem, aquilo que foge ao institucional, pode ser lido como interpretação
social que pode tanto romper com o institucionalizado quanto corroborá-lo.
Para compreender a fundação mítica dos aparatos institucionalizados, levando em
conta que o mito é uma apropriação coletiva, há as hierofanias (Eliade, 1970)
como materializações do sagrado, isto é, momento no qual o sagrado se manifesta
em caráter fenomênico e ocasiona a experiência fundadora. Dessa maneira, para o
cristianismo católico, alguns eventos (Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos,
Folia de Reis, etc.), ou seja, as epifanias, mormente relacionados com a
interação entre entidades divinas e humanas, configuram-se como justificativa
mítica. A significação do sagrado inculcada nos ritos, organizados apesar de
não instituídos, adquire representações - ainda que, para o sagrado constituir-
se como tal, sua manifestação seja sempre parcial. O caráter informe,
incomensurável e simbólico do que é sacro (Durkheim, 1994) permanece na esfera
do imaginário, enquanto os signos do sagrado, que se apresentam como expressão
material desse universo simbólico, configuram o orbe de objetivação do que é
sacro, e atuam como elementos de mediação entre a subjetividade do sagrado,
como a experiência fundadora, e a objetividade do aparato material que
representa esse sagrado.
Ruiz (2004) afirma que o imaginário preenche o sem-fundo humano, seu
inescrutável, e possibilita a dúbia tensão permanente entre imaginação e
racionalidade. Nesse direcionamento, o imaginário é responsável pela mediação
entre a racionalidade e o sagrado, fazendo-os coexistirem necessariamente na
dimensão simbólica. Castoriadis (1982) afirma que o simbólico é, então,
transportado para o racional-real, ou melhor, para uma representação do real,
ou o que é (in)dispensável para pensar ou agir. Essa perspectiva leva Ruiz
(2004) à afirmativa de que não se descobriu uma mera explicação racional do
mundo, senão um modo criativo de sentidos que se dá para as coisas que nos
insere no mundo (e em nosso próprio mundo).
Segundo Ruiz (2004), o imaginário (tele)transporta o sujeito para um mundo de
rede de significados culturais, no qual ele compreende elementos
insignificantes por meio de objetos dotados de significado. Esse deslocamento
carece de elementos mediadores, ou seja, elementos e artefatos simbólicos,
donde o imaginário não é separável ou isolável. Para Castoriadis (1982), a
síntese de elementos mediadores forma "totalidades parciais", das quais são
construídas a vida e a estrutura da sociedade, isto é, a figura em que a
sociedade se deixa ver como própria - pode-se, aqui, estabelecer a arriscada
inferência de que essa síntese, na visão de Bourdieu (2002), seria a construção
da di-visão do mundo. Castoriadis (1982) argumenta que, em torno do emaranhado
de significados e para a criação de racionais-reais, no caso do sagrado
acontece uma sedimentação incontável de regras, de atos, de ritos, de símbolos
- de elementos mágicos. Em outras palavras, de imaginários, "cuja justificação
relativamente ao núcleo funcional é cada vez mais imediata, e finalmente nula"
(Castoriadis, 1982, p.157) - é por isso que se pode vislumbrar um quadro de
diferentes religiões dogmáticas, circunscritas por crenças e devoção. As
significações imaginárias não denotam nada e conotam mais ou menos tudo; e o
imaginário, portanto, passa a ser entendido como sendo uma força criadora, que
busca preencher o sem-fundo humano, ou seja, o abismo sem fim dos desejos. Em
função dos desejos, Ruiz (2004) acredita que a psique humana projete de modo
criativo o mundo querido, por meio da instituição imaginária do mundo em que
está inserida.
4. A IGREJA INSTITUCIONALIZADA E A GESTÃO DO CAPITAL RELIGIOSO
A ordem social (imaginária) instituída em volta da Igreja pressupõe uma série
de construções sociais que, por sua vez, são expressas por meio de práticas
empregadas pelos sujeitos envolvidos no processo, sejam eles do corpo
burocrático litúrgico, sejam do contingente de fiéis. Por ser a Igreja uma
instituição milenar, a realidade empírica, historicamente situada e datada
(Bourdieu, 1997), faz emergir uma estrutura estruturante, sistema simbólico que
é objetivado pelo fazer estratégia, por meio do qual é possível compreender no
plano objetivo quais práticas o corpo litúrgico da Igreja institucionalizada
tem exercido de maneira sistemática ou assistemática para garantir a
perpetuação de seu capital religioso e a sobrevivência da instituição.
No entanto, aqui o entendimento de estratégia extrapola o viés clássico dos
estudos organizacionais, como o proposto por Chandler (1962, p. 13), para quem
"estratégia é a determinação de objetivos básicos de longo prazo de uma empresa
e a adoção de ações adequadas e afetação de recursos para atingir esses
objetivos". Nesta leitura, procura-se situar a organização/instituição em um
meio que a contém e age, modificando-a e sendo modificado por ela. Para isso,
autores como Pettigrew (1977) e Quinn (1998) apontam para a continuidade do
processo de fluidez de eventos, valores e ações, que possibilitam a dinâmica
das trocas entre organização e ambiente.
O conceito de estratégia adquire maior mobilidade dentro das diversas áreas do
conhecimento científico e, por isso mesmo, demanda uma flexibilização mais
expressiva de sua significação. À procura de uma possibilidade alternativa à
linha neoclássica da economia, Whipp (2004) sugere que a falta de suporte
teórico dos campos sociológico, legal e econômico fragiliza a utilização do
conceito. Uma resposta possível à rigidez do conceito de estratégia seria o
entendimento do processo de construção da estratégia como prática socialmente
construída, o fazer estratégia (Leite-da-Silva, 2007). Para o autor, "a análise
das representações sociais referentes a determinados sujeitos e objetos permite
evidenciar o 'fazer estratégia' por meio de estratégias e táticas cotidianas na
medida em que expõe construções sociais em torno das quais se estabelece uma
ordem social" (Leite-da-Silva, 2007, p. 19).
Na hierofania bíblica, a instituição do apóstolo Pedro (fundador de uma Igreja
institucionalizada) segue toda a criação de um corpo burocrático litúrgico por
um lado, e um contingente de crentes por outro, que garante a legitimação da
instituição. Esse corpo burocrático é muitas vezes apreendido como parte
mediadora entre o universo simbólico do sagrado e o universo objetivo do
sujeito comum, estabelecendo dessa maneira certa dualidade sagrado/profano,
detentor/depositário, que delimita os sujeitos entre portadores de um capital
religioso (Bourdieu, 1997) e depositários desse capital dependentes do processo
de mediação.
O capital religioso é percebido não só como o conjunto de serviços religiosos,
mas também do próprio patrimônio material da instituição, além do aparato
simbólico pertencente ao universo do sagrado. O corpo burocrático da
instituição é compreendido como elemento de mediação entre o subjetivo
simbólico e o objetivo da vida que pode ser apreendida pelos sentidos. Sobre
essa mediação, Bourdieu (1997, p. 39), argumenta:
Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação
por um corpo de especialistas religiosos socialmente reconhecidos
como os detentores exclusivos da competência específica necessária à
produção ou à reprodução de um corpus deliberadamente organizado de
conhecimentos secretos e, portanto, raros, a constituição de um campo
religioso acompanha a desapropriação objetiva daqueles que são dele
excluídos e que se transformam por essa razão em leigos (ou profanos
no duplo sentido do termo), destituídos de capital religioso
(enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade
desta desapropriação simplesmente pelo simples fato de que a
desconhecem enquanto tal.
Bourdieu (1997) afirma, ainda, que o aparelho burocrático é responsável pela
perpetuação do capital religioso, na medida em que a gestão do depósito desse
capital é necessária para assegurar a própria reprodução, ao reproduzir os
produtores e receptores de bens de salvação e de serviços religiosos. O corpo
de sacerdotes seria o grupo responsável pela produção desses bens e serviços,
enquanto o mercado que os consome seria composto pelos leigos (em oposição ao
infiéis e aos heréticos) como consumidores dotados de um mínimo de competência
religiosa (habitus religioso) para sentir a necessidade específica dos produtos
e serviços oferecidos pela burocracia religiosa (Bourdieu, 1997).
Nesse esteio, a vida religiosa tem, por sua vez, expandido sua atuação sobre
esferas políticas a partir da flexibilização do arcabouço simbólico que ancora
o sagrado. Paralelamente a tal processo de flexibilização simbólica proveniente
da Igreja, Motta (2001) observa que as organizações econômicas têm se tornado
uma espécie de religião laica, atualizando elementos da esfera do sagrado, tais
como valorização do esforço e do sacrifício, da perseverança e da integridade,
para mascarar relações de trabalho que objetivam maximizar o capital econômico
das organizações. Nesse sentido, no presente trabalho, parte-se do estudo das
práticas da Igreja Católica que operam no limiar simbólico entre sagrado e
profano, visando trazer insights para o campo dos estudos organizacionais como
um todo e entendendo que as organizações são espaços em que a manipulação
simbólica ocorre de forma cada vez mais intensiva, direcionando as práticas
cotidianas dos indivíduos nelas inseridos (Wood Jr., 2000).
5. CAMINHO DA PESQUISA
Este é um estudo de caso qualitativo, de cunho exploratório-descritivo. A
coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas, consideradas
por Thiollent (1987) uma estratégia eficaz para introduzir o pesquisador no
universo cultural (e discursivo) do sujeito de pesquisa, enquanto a observação
atua como metodologia de inserção no ambiente pesquisado. Foram realizadas 14
entrevistas com moradores da cidade de Congonhas, com o pároco responsável pela
igreja estudada e com comerciantes da Feira. As entrevistas aconteceram na
própria cidade, ao longo de sete dias de estada dos pesquisadores, sendo
algumas realizadas ao longo do evento.
Além de realizar as entrevistas, os pesquisadores participaram do evento. O
convívio com os sujeitos atuantes das pesquisas contribuiu para a aceitação dos
pesquisadores por eles, melhorando a fluidez do processo de pesquisa,
principalmente no tocante ao fornecimento de informações (Malinowski, 1986).
Além disso, pôde-se observar o evento, o que contribuiu para a coleta de
informações. As observações, registradas em diário de campo, foram igualmente
importantes, não apenas no sentido de aproximar os pesquisadores dos sujeitos
de pesquisa sem a intermediação do gravador, mas também por tratar-se de um
trabalho em que as ações e as reações desses sujeitos têm relevância para a
análise pretendida. Sobre o tema abordado, fala-se pouco, o que exige observar
posições discursivas e práticas subjetivas. Os ritos e as expressões corporais,
por exemplo, permitem apreender o que seria o beijar e o deixar que compõem o
título do presente artigo.
Para interpretar os dados recorreu-se à análise do discurso (Fiorin, 2003). O
discurso é a manifestação objetiva de um arcabouço histórico e ideológico, por
intermédio do qual a subjetividade inerente à ideologia pode ser apreendida
quando observados certos padrões que se repetem no discurso.
De acordo com Faria e Linhares (1993), estratégias discursivas presentes nas
narrativas podem evidenciar estratégias de persuasão que são reproduzidas no
discurso como expressão histórico-ideológica socialmente construída. Os atores
estariam, então, falando de certo lugar, socialmente permitido, o que já
aponta, por si só, para uma visão de mundo. Esses autores indicam a existência
de quatro principais estratégias de persuasão:
•construção de personagens no discurso e como elas se relacionam com
as personagens reais;
•seleção lexical, que é a escolha do léxico utilizado no discurso;
•relações entre conteúdos explícitos e implícitos, o que ocasiona a
criação de efeito ideológico de sentido no discurso;
•silenciamento, ou o que não é mencionado.
A criação de personagens no discurso, segundo defendem Faria e Linhares (1993),
não acontece impunemente, elas existem em função de uma força ideológica
espaçotemporalmente situada. Bakhtin (1999/1929) versa sobre o discurso como
representação de uma ideologia que, como toda ideologia, inculcada de símbolos,
reflete e refrata significados. A análise do discurso, doravante tratada como
AD, possibilita a apreensão e, consequentemente, a distinção entre personagens
criadas e personagens reais. A estratégia de seleção lexical diz respeito ao
uso recorrente de vocábulos e termos pouco comuns que acabam por situar o
enunciador em um plano diferente daquele do interlocutor, diferenciando-os. A
seleção lexical pode confundir e até mesmo aparvalhar o interlocutor, que acaba
por persuadir-se. Quanto à relação entre conteúdos implícitos e explícitos,
Faria e Linhares (1993) observam que o implícito pressuposto é uma brecha
deixada pelo discurso do enunciador, enquanto o implícito subentendido prevê a
interação entre enunciador e interlocutor e no qual o entendimento é uma
resultante consensualmente construída. A última estratégia de persuasão, o
silenciamento, corresponde à omissão de temáticas indesejadas pelo enunciador e
demonstra o exercício da exclusão por parte de quem detém o poder da palavra.
A construção das estratégias é delineada pelas táticas, ou práticas sociais,
desenvolvidas em certo contexto histórico e sociocultural. Os resultados dessas
táticas e práticas sintetizam as ações nos contextos social, organizacional,
grupal e individual das práticas sociais desses atores (Certeau, 1994).
6. ANÁLISE DOS DADOS: A IGREJA POLIFACES
Nos nove excertos apresentados neste artigo, a Igreja foi referenciada, no
imaginário dos sujeitos de pesquisa, com maior ou menor grau de identificação
em relação a ela e a suas práticas. Os trechos apontam para a representação da
Igreja como motivação principal para a continuidade do fluxo social em volta
dela, apesar de um dos entrevistados afirmar que as pessoas têm se afastado
dela.
[1] Olha, cada ano que passa, o pessoal tá se afastano mais,
principalmente da Igreja Católica, tá vino bem menos pessoa, né? Até
alguns anos atrás vinha muita gente, muita, agora tá vino bem menos.
Às vezes o objetivo de vim pra Igreja, né?, vê o santo, né? esqueci
até o nome do santo daqui, mas vem mais por causa da religião, né?
tem muita gente católica ainda. [E01]
O emprego do advérbio de tempo ainda explicita certa surpresa do entrevistado,
como se o fluxo de fiéis existisse apesar de uma aparente situação de
decadência experimentada pela Igreja, que, no entanto, não perdeu seu status
quo matriarcal. Como instituição, ela ainda é concentradora da fé, das
esperanças e da devoção popular, embora também seja alvo de reclamações, devido
a suas práticas durante o Jubileu do Bom Jesus. Como exemplo das práticas
rechaçadas, aparece a cobrança dos altos aluguéis, calculados por metro
quadrado; cobrança que induz fiéis, principalmente moradores de Congonhas e
comerciantes que alugam esses espaços, a questionarem a legitimidade e
sacralidade da referida instituição e de seu poder sobre os fiéis.
A Igreja, quando age como instituição, muitas vezes exerce práticas e
estratégias para preservar sua sobrevivência material, que colocam o sagrado e
o mundano em esferas intercedentes, reproduzidas nas decisões cotidianas dos
fiéis e intercessoras de um possível conflito, como o proposto no trecho [2]:
[2] Eu faço as festas da igreja católica porque eu gosto de romaria,
gosto de estar junto com os meus irmãos, batendo papo, trocando ideia
com eles. A gente vem nessas igrejas aqui, nas festas, mas não vem
através de pensar em margem de lucro. Nós trabalhamos para
sobreviver, entendeste? A gente sempre quer o melhor para os filhos
da gente, a gente quer ganhar o ganha-pão de cada dia. A gente vem...
nós somos aquelas pessoas da roça, principalmente eu, aqueles matutos
da roça. [E02]
Aparece aqui o grande percurso semântico da amizade, além do percurso semântico
da sobrevivência, respaldado pelo tema do trabalho. O gosto pela romaria, pela
festa de igreja em contraposição à luta pelo ganha-pão de cada dia começa a
explicitar um conflito entre o sagrado e o mundano, que se revela no trecho
[3], do mesmo entrevistado:
[3] Já tem muita gente. Atraiu o ponto, chegou lá por causa do
dinheiro dele, pagou o ponto lá: "Quanto que é? Eu quero 15 metros.
Quanto que é?" - "É tanto". Paga no dinheiro. Aí começa a corrupção.
Começa por aí. Aí, o pequenininho vai se perdendo dentro do mar. Ele
é um riozinho, vai se perdendo, cai tudo dentro do mar. E aquele
grande, o do mar, vai tomando conta de tudo. Entendeu, minha amiga?
Quer dizer, eu acho isso. As igrejas católicas, ela tinha que ter um
espaço, tamanho do espaço, passou, ser aquele espaço. Para não ter
[...]. Por quê? Vai pensar em usura? Eu deixo passar 5 metros, fico
com 15, eu vou ocupar atrás do emprego de um outro irmão meu? [E02]
Nesse trecho, o implícito pressuposto expresso pelo advérbio de tempo já
permite a compreensão de que, nesse momento, o Jubileu adquiriu vulto
suficiente para gerar corrupção. A Igreja é indicada como possível resposta a
esse problema, mas a presença do verbo ter no pretérito imperfeito demonstra
que a Igreja não tem esse espaço; logo, onde está sua benemerência? A Igreja,
nesse sentido, deixa explícito, pela atitude de seus representantes, que não há
necessariamente a busca por um compartilhamento do círculo intermediário e,
menos ainda, do círculo interno (remetendo-se à teoria dos círculos
concêntricos - Figura_1). A Igreja, por meio dessa atitude, deixa transparecer
a preocupação em financiar o capital religioso. Assim, nesse sentido, estaria
mais preocupada em cobrar os aluguéis, do que cobrar de seus fiéis a postura de
reflexão religiosa ou, mesmo, induzir ao atendimento e à preservação dos
dogmas. Segundo destaca E02, a instituição Igreja deve agir como tal ante as
investiduras do mercado. Em outras palavras, o sagrado contido em seu corpo
deve freá-la perante a usura? Eis o conflito estabelecido.
Se aparentemente a Igreja parece ser a depositária da descoberta, pelos
sujeitos, do conflito entre sagrado e profano, abundância e voto de pobreza,
pode-se dizer também que ela conta com o apoio de sujeitos que a apreendem como
instituição pobre por natureza, incapaz de gerar uma ocupação para seu corpo
burocrático litúrgico que caiba dentro do conceito de trabalho como atividade
passível de valoração (Bourdieu, 2002).
[4] Acho que nem deveria ter as barracas, mas de uma certa forma
ajuda a manutenção da igreja... O dinheiro que vem ajuda muito. [E03]
[5] Porque aqui nós gasta muito na cidade, dá lucro para a cidade em
geral. Porque nós deixa dinheiro para a Igreja, deixa dinheiro para a
prefeitura, deixa dinheiro também para os donos das casas que aluga
os terrenos, ainda mais gasta muito aqui nos mercado e tudo, então
acaba compensando para eles também a nossa vinda, entendeu? [E04]
[6] Beija e deixa (risos). Beijar o Bom Jesus Vai beijando o Bom
Jesus e vai deixando dinheiro Beija e deixa (risos). [E05]
No trecho [4], nota-se a necessidade que a Igreja tem de receber certa ajuda,
enquanto, no quinto e no sexto excertos, os entrevistados empregam a expressão
"deixar dinheiro", carregada de significados. O "deixar" pressupõe o não
esforço, a dádiva, a instituição frágil que conta com a compreensão ou com a
resignação de seus fiéis para sobreviver. Já o sexto trecho, particularmente,
traz implícita a ideia do condicionamento da obtenção de bênçãos sagradas
mediante o pagamento à Igreja. O tom sarcástico de E05, denotado pelas risadas
durante o processo de enunciação, coloca-o entre aqueles que questionam a
legitimidade institucional da Igreja para receber quantias de dinheiro.
Novamente, sinaliza-se a coexistência cotidiana de significados sacros e
mundanos, como se houvesse um processo de precificação de um bem oriundo do
mundo sagrado. O ápice de tal processo, identificado pelas observações
assistemáticas, talvez seja a prática estabelecida de forma estratégica pela
Igreja de venda dos membros virtuais. O fiel que desejar pagar uma promessa de
cura física, ofertando a parte do corpo curada em cera, deixaria o valor
monetário desse membro à igreja, o que o dispensa da necessidade de comprar ou
mandar confeccionar a peça em cera. Tal prática desvincula, portanto, os
significados simbólicos histórica e religiosamente atribuídos ao membro de cera
e os ancora na quantia de dinheiro que lhe é correspondente.
Já se percorreram aqui algumas representações experimentadas pela Igreja
institucionalizada, que permeiam desde o processo de conflito do sujeito que se
encontra dividido entre a face matriarcal e a institucional da Igreja, ao
sujeito que se posicionou como provedor simbólico da Igreja e o sujeito que
admite a prática do deixar dinheiro. O excerto a seguir explicita a negação da
religião como instituição:
[7] Você vê como a pessoa é católica, o dinheiro... Deus não vê o
dinheiro. O dinheiro que é arrecadado beneficia as igrejas, não para
Deus, né? Poder... na Igreja. Deus não precisa de dinheiro, né? É,
Deus não precisa de dinheiro. O beneficiamento é para a Igreja, é
para manter a Igreja. Porque de 90 reais passou para 300 reais? Será
que como se diz, subiu tanto assim a inflação? É um bolo... é o
chamado máfia, né? É a máfia do dinheiro. A gente está vendo agora só
dinheiro na frente. [E06]
O sexto entrevistado apresenta uma estrutura de pensamento segundo a qual Deus
(o sagrado absoluto, estaria no círculo interior), a Igreja (a instituição que
não sobrevive por si mesma, presente no círculo intermediário) e a "máfia do
dinheiro" (razão pela qual o aluguel passa de R$ 90,00 para R$ 300,00). Para
esse sujeito, o sagrado, a Igreja e a economia de mercado não podem pertencer
ao mesmo universo simbólico da fé. Mas, ao tomar-se a teoria dos círculos
concêntricos, essa inter-relação é coerente com a formação de uma religião, no
entanto, valores e dogmas passam a ter influências do profano, das necessidades
de mercado, da sobrevivência não dogmática e financeira da instituição. Nesse
sentido, a religião aparece muito bem delineada como indutora da vida
organizada em torno da devoção, da valorização do sagrado tátil, ou seja, do
sagrado palpável (o beijar as fitinhas e deixar algo em troca, o deixar o
membro de cera - que posteriormente será capital simbólico de giro,
transformado em velas, entre outros). Aqui a Igreja não persegue apenas a
própria sobrevivência, ou seja, as reflexões em torno dos dogmas. Pelo
contrário, fundamenta-se no lucro. Em Congonhas, a epifania em questão, por ser
constituída de inúmeros elementos profanos (comercialização de espaços para
exposição de produtos, muitas vezes avessos ao que prega a Igreja), faz com que
muitas pessoas passem a de fato questionar o que seria o sagrado venerado no
círculo externo, no lugar do comum, da empiria religiosa. Observou-se por meio
da pesquisa, todavia, que quem mais questiona essa posição mercantilista são os
comerciantes que alugam os espaços. Para eles, o sagrado vai mudando de valor.
Já para o fiel, movido pela festa, pela fé e pelo sagrado que lhe é
apresentado, parece não haver suspeitas de uma conversão do sagrado em capital.
Em meio à variante de representações que a Igreja termina por assumir, de
acordo com as práticas que exerce e com a interpretação que lhes é conferida, a
chama viva do sagrado, não do litúrgico, parece manter-se intacta e detentora
do poder arrebatador do deslumbramento. Na romaria que leva milhares de fiéis
ao templo do Bom Senhor Jesus de Matosinhos, a multidão pagadora de promessas
passa aparentemente pouco atenta aos números que a economia religiosa faz
girar, como o proposto nos excertos a seguir:
[8] Mesma coisa, tudo a mesma coisa. Um traz de um jeito, outro traz
de outro... Como esse aqui da minha porta, já tem oito anos que ele
vem com o mesmo produto. Agora o que é bom, é muita fé que as pessoas
têm, né? Vocês precisam de ver... vocês vão ver as pessoas que vêm
com fé, as filas pra beijá o santo, como é que é... [E07]
No trecho 8, por meio do vocábulo agora, o enunciador estabelece uma relação
adversativa entre o fato de o Jubileu ainda ser frequentado por fiéis e o fato
de que todos os anos os comerciantes voltam com os mesmos produtos para a
feira. Ele propõe explicitamente o significado de que ambos os fatos ocorrem
paralelamente. Contudo, o que sustenta a conotação positiva da festa é seu lado
religioso. É implicitamente pressuposta a distinção entre as pessoas que vão ao
Jubileu pela fé e aquelas que não. Tem-se aí a procissão como uma das mais
claras demonstrações de hierofania, as longas caminhadas que antes eram feitas
como sacrifício, hoje são acompanhadas das sagas pela feira: enquanto sobem os
fiéis em direção à igreja, para beijar a fita, estão olhando de um lado para
outro para as barracas de roupas, CDs, comidas, entre outros produtos.
[9] 247 anos, se por um acaso você tiver oportunidade de vir aqui no
Jubileu seria bom mesmo. No sábado e domingo não aconselho não vocês
virem não porque é muito cheio, porque aí não dá pra você ver quase
nada, né?, assim algumas coisinhas não vê... Assim eles entrando na
igreja, né?, para ver como é que funciona lá no período do Jubileu, a
sala dos milagres... Nesse período do Jubileu vocês vão ver muita
peça de cera mesmo. Toda hora tem gente ali colocando uma cera lá e
pagando uma promessa, aí tem isso. [E07]
O trecho [9], por sua vez, é ilustrativo de algumas práticas religiosas comuns
durante o período de festa. O enunciador narra tais práticas na terceira
pessoa, demonstrando distanciamento em relação a elas. Infere-se que ele não
compartilha delas, apesar de valorizar explicitamente sua importância
histórica.
O paralelismo entre o sagrado e o mundano, além de verificar-se simbolicamente
na figura e nas práticas da Igreja, também se encontra, portanto, entre as
pessoas que circulam em Congonhas durante a festa do Jubileu. Alguns vão à
cidade pela busca espiritual, outros pela busca das trocas econômicas intensas
do período e outros, ainda, parecem ser atraídos pelos dois motivos. A
possibilidade de convivência pacífica entre interesses e pessoas diferentes
durante o período fornece as pistas para compreender como a atuação
institucional da Igreja é aceita pelo povo em geral. Ao longo dos anos, erigiu-
se uma teia complexa de significados que puderam suportar a coexistência do
sagrado e do profano em um mesmo espaço simbólico, sem que isso se tornasse
inviável.
Os valores, da Tabela_1, são resultado do levantamento de dados em campo e
representam a arrecadação total da Igreja durante um período aproximado de 15
dias. As ruas são subdivididas em recortes de espaço, em frente às casas, nas
proximidades da igreja do Bom Jesus de Matosinhos e nos espaços da rua, sob
tutela dos moradores, da Igreja e da Prefeitura, respectivamente. Apesar de os
três agentes serem de natureza totalmente distinta - privada, religiosa e
pública -, a prática estratégica dos aluguéis já se tornou institucionalizada
entre os participantes da feira. Embora se tenham registrado algumas
manifestações sobre o abuso dos preços, o pagamento dos aluguéis é amplamente
aceito e reproduzido ano a ano. Observa-se que a divisão entre os três agentes
do espaço dos aluguéis é aproximadamente equilibrada. Contudo, o valor médio
cobrado é bastante destoante, principalmente em relação aos moradores. A
Igreja, por sua vez, ainda pratica preços bem mais elevados do que a
Prefeitura. Nesse sentido, observou-se uma lógica da comercialização do espaço.
Quanto mais próximo do sagrado, ou seja, quanto mais próximo da Igreja, mais
caros tendem a ser os aluguéis, considerando-se o espaço da Igreja e as frentes
das casas de moradores.
No presente trabalho de pesquisa demonstraram-se, portanto, as práticas da
Igreja Católica para inserção no plano econômico, passando necessariamente pelo
plano político. A questão da ressignificação de tais práticas pelos indivíduos,
aqui estudada, foi considerada crucial, pois revela as várias representações da
Igreja, principalmente no que tange às práticas que vão além do plano
religioso. Dessa forma, observam-se as diferentes reações ao processo de
flexibilização dos limites entre religião, economia e política.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia da religião seria reinstituir o mundo no sacro, sob a prática de
impregnar sentido simbólico - leia-se caráter mítico sagrado - a cada elemento
do mundo real. Essa posição da Igreja nas manifestações religiosas por ocasião
do Jubileu de Congonhas são, portanto, práticas de uma religião que se mostra
indutora de criação dos novos sacros. Tais sacros envolvem um custo, mas que
seria mínimo diante das bênçãos para quem recebe. Contudo, é importante
ressaltar que seriam abençoados somente os indivíduos dotados de competência
religiosa e que se identificam com a coletividade de seres incompletos ou
desvinculados do sagrado.
Esse discurso religioso visa preencher o sem-fundo humano com completude e
vínculo com uma inteligência superior, que supra as necessidades como ser, que
talvez nem lhes sejam acessíveis nas instâncias terrenas. Ao mesmo tempo, o
processo de completude e vínculo de um ser financia as atividades do ente
sagrado concomitantemente ao processo de solidificação da institucionalização
do imaginário mítico desse ente. Em outras palavras, a possibilidade de
financiamento das práticas da Igreja é proveniente dos sentidos intrínsecos ao
movimento centrífugo em relação aos círculos concêntricos (Figura_1) baseados
na teoria de Mendonça (2003; 2004).
Ainda que a cobrança dos aluguéis ou os custos envolvidos nas oferendas dos
fiéis sejam consideráveis, os crentes em geral não os questionam, pois se
trataria de uma prática já institucionalizada e aceita pelo grupo. Nesse
sentido, a religião claramente aparece como uma instância de demonstrações
empíricas de fé, de reificação do sagrado, corroborando aqui o círculo externo
de Mendonça (2003; 2004). A festa, no entanto, legitima não somente as práticas
religiosas, mas a epifania em si, investida de seus aspectos também mundanos. A
partir do momento em que a própria Igreja aluga seu espaço (e o espaço público
também) para comerciantes que trabalham com os mais variados produtos, que não
têm ligação alguma com o lado religioso, ela reconhece a força que a parte
profana da festa tem. Sendo assim, ela transgride os limites de sua atuação
religiosa e dogmática, aproximando-se da esfera pública e, dessa maneira,
persuadindo para a sequência da institucionalização da epifania como evento
social com sentido em si mesmo. Tal expansão de atuação da Igreja representa um
dos pontos de intercessão dessa instituição com o plano econômico e com o
político.
De certa maneira, como foi possível observar a partir das falas dos
comerciantes que criticam o aumento dos aluguéis, eles reconhecem nessa prática
uma contradição, justamente por não compartilharem dos sentidos simbólicos
inerentes ao catolicismo, ou seja, não seriam dotados de competência religiosa
suficiente para desvendar os mecanismos simbólicos da atuação
institucionalizada da Igreja. Esses comerciantes interpretam as práticas da
Igreja a partir dos sentidos simbólicos que construíram na vivência do comércio
informal e, por isso, não enxergam tipo algum de vinculação ao sentido
religioso nas práticas empreendidas por essa instituição. Dessa forma, os
comerciantes incrédulos não veem justificativa para a atuação da Igreja como
instituição cobradora de aluguéis no contexto da Feira. Para esse grupo, esse
tipo de atuação não simbolizaria um caminho para o sagrado místico.
O sagrado tátil, os elementos do mundo empírico, são, portanto, fortes
influenciadores e direcionadores da instituição da religião, são eles os que
mantêm o laço entre o sujeito e a religião. Ao estudar a vida organizada na
religião, é, por conseguinte, imprescindível conhecer o que seria considerado
sagrado para cada grupo social coexistente na Feira do Jubileu. Conforme se
demonstra, a competência religiosa varia entre os diferentes grupos, assim como
o sentido de participação na Feira. Apesar das polêmicas levantadas, foi
possível notar que a Igreja tem logrado dar continuidade a suas práticas
institucionais no contexto da Feira, como ente de atuação legítima no plano
religioso e também no plano político. Observa-se que a instituição Igreja é
bem-sucedida em manter o controle no direcionamento das principais atividades
da Feira, tanto em relação aos fiéis (por meio do poder religioso) quanto em
relação aos incrédulos (por meio do poder político). Dessa forma, ela
configura-se como um dos agentes detentores do poder estratégico sobre o
território da cidade de Congonhas, ao menos durante o período do Jubileu.
Espera-se ter contribuído com este trabalho para o entendimento de como se
configura a atuação religiosa institucionalizada, a partir das articulações
teóricas expostas e também a partir dos caminhos metodológicos percorridos. O
arcabouço teórico foi verificado empiricamente por meio do desvendamento de
sentidos implícitos nos discursos dos sujeitos pesquisados, assim como no
discurso não verbal captado por meio de observações.
O objetivo, neste artigo, foi ilustrar, por meio de uma prática talvez não
inédita na Igreja Católica, como questões simbólicas são utilizadas no sentido
de obter determinados comportamentos coletivos. Caso se volte ao eixo das
conceituações sobre o que vem a ser a administração, das mais clássicas,
passando pelas ortodoxas e também pelas sofisticadas, obter-se-á um
comportamento desejado das pessoas que compõem a organização. A manipulação do
sagrado, portanto, segundo o exemplo estudado, permite a obtenção dos desejos
daqueles considerados dominantes, ou detentores do poder. Se, no caso de uma
instituição religiosa, que teoricamente não teria fins lucrativos, ela atendeu
perfeitamente bem ao objetivo capitalista de maximização de lucros, imagine-se
o que não poderia acontecer em organizações com fins lucrativos. Estabeleceu-se
o eixo de estudo sobre a Igreja Católica, porque essa seria uma ilustração
possivelmente mais clara das potencialidades da manipulação do sagrado. Devido
à maior diversidade de elementos simbólicos em organizações com fins
lucrativos, seria mais complexo compreender a manipulação do sagrado nesses
contextos. Sugere-se, portanto, o estudo do sagrado em organizações com fins
lucrativos, por meio da apreensão das práticas cotidianas e das estratégias e
táticas de manipulação simbólica.
NOTAS
(1) Neste texto, o verbo institucionalizar não faz menção a correntes de
estudos institucionalistas.
(2) No sentido do termo aristotélico política, derivado de polis (cidade), isto
é, ordenação de uma comunidade à base de uma constituição.