A Abep no contexto político e no desenvolvimento da demografia nas décadas de
1960 e 1970
Quando a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) foi criada, na
segunda metade dos anos 1970, o debate sobre as questões relacionadas ao
crescimento demográfico já se havia iniciado há cerca de dez anos no Brasil.
Estamos falando do debate desencadeado pela preocupação dos países capitalistas
desenvolvidos com o aumento populacional dos países pobres e de suas grandes
cidades, bem como do interesse daqueles países em reduzir esse crescimento.
Debate provocado, portanto, a partir do ponto de vista neomalthusiano, que
emergira no cenário internacional após a Segunda Guerra Mundial e,
especificamente, na América Latina durante os anos 1960.
Naquela ocasião também já atuavam no Brasil algumas das mais importantes
instituições do campo da demografia. Instituições que desenvolviam suas
atividades na esfera da administração pública, sobretudo de caráter técnico, e
aquelas que trabalhavam no âmbito da universidade, ou mesmo externamente a
essa, voltadas para a formação profissional e para a investigação científica.
Vale anotar, desde logo, que essas últimas, constituídas a partir de 1966,
realizavam seus projetos institucionais e de pesquisa, em grande parte, com
apoio de recursos provenientes do exterior.
Conforme afirmávamos em outro trabalho:
Durante as décadas de 1960 e 1970, a interpretação dominante nas
agências internacionais e de países desenvolvidos ' que o crescimento
populacional nos países em desenvolvimento se fazia a taxas
relativamente altas e estáveis cujos resultados poderiam inibir o
crescimento econômico ' levou a que oferecessem recursos para
pesquisas nesses países, visando, primeiro, conhecer melhor a
tendência e os determinantes de seu crescimento demográfico e,
segundo, interferir nesse crescimento através de políticas
populacionais. (Berquó, 1993, p. 167)1
O presente artigo busca visitar o contexto da criação da Abep, em 1976,
considerando seu entorno, ou seja, do fim dos anos 1960 ao fim dos anos 1970,
incluindo seu primeiro encontro nacional, em 1978. Cabe ressaltar que a
entidade foi uma das beneficiárias desses recursos provenientes do exterior,
inclusive em sua própria constituição. Para a construção desse contexto,
retratamos alguns aspectos do debate que se travava no Brasil sobre a questão
do crescimento demográfico, com ênfase na discussão política que ocorria no
Parlamento a partir da segunda metade dos anos 1960, bem como apresentamos o
percurso do surgimento das instituições técnicas e acadêmicas que atuavam no
campo da demografia naquela ocasião.
A questão subjacente a este trabalho é procurar entender como uma associação
criada sob o estímulo de recursos externos ' em um ambiente internacional com
forte preocupação com o crescimento demográfico ' e em pleno regime autoritário
(embora no começo da abertura política) resultou em uma entidade pluralista e
com uma visão abrangente de demografia. Ou seja, resultou em uma entidade
distinta do apelo neomalthusiano da época e em um fórum de discussões teórico-
metodológicas e de importantes questões sócio-cultural-econômica-ambiental-
demográficas, além de questões políticas e das políticas públicas.
O contexto político
Um dos principais espaços políticos da discussão sobre o crescimento
demográfico no Brasil, em seus primórdios, foi o Congresso Nacional. A
controvérsia despertada pelo assunto foi responsável pela constituição, em
1967, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados '
a primeira sobre o tema. Para caracterizar alguns momentos do debate que
contextualizam a criação da Abep, decidimos começar enfocando a atuação do
Parlamento naquela época. A partir dessa atuação, por nós estudada
anteriormente (Rocha, 1987 e 1993), pretendemos ainda evidenciar a participação
de outros importantes atores políticos e sociais desse debate.
As referências legais ou as interpretações dessas referências
Essa discussão encontrava, no país, um quadro legislativo com características
em geral consideradas natalistas (nominalmente natalistas, para alguns autores)
ou encontrava uma legislação formulada em outra época, na qual não estava
previsto um locus para o desenvolvimento de atividades de regulação dos
nascimentos. A legislação em questão eram dispositivos referentes ao assunto,
ou assim interpretados, que constavam da Lei das Contravenções Penais, da
legislação social, bem como do Código Penal.
A Lei das Contravenções Penais, promulgada durante o Estado Novo, em 1941, em
seu artigo 20 proibia "anunciar processo, substância ou objeto destinado a
provocar o aborto ou evitar a gravidez". Essa era, dentre as normas legais aqui
referidas, a que apresentava um significado natalista mais explícito. Segundo
Feiguin (1970), teria sido formulada sob a influência dos governos nazi-
fascistas da Europa, que fomentavam, em seus países, políticas de teor
natalista.
Ao lado de aspectos estruturais mais amplos que diferenciavam o quadro
internacional e a sociedade brasileira naqueles dois momentos, durante os anos
1940 e os anos 1960, nos quais não cabe nos determos aqui, havia uma evidente
pressão para se alterar essa lei por parte de atores políticos e sociais
preocupados com a questão do aumento demográfico. Sob essa pressão, em 1979
essa norma legal acabou sendo modificada, ao se suprimir a proibição do anúncio
de meios para se evitar a gravidez.
No que diz respeito à legislação social, o que estava em questão era,
especificamente, o salário-família ' norma estabelecida, de início, na
Constituição de 1946, artigo 157/1, na forma de salário mínimo capaz de atender
às necessidades do trabalhador e de sua família, e implementada por meio da Lei
nº 4.266, de 1963. Mediante essa lei, o trabalhador tinha direito a receber por
cada filho com menos de 14 anos o valor correspondente a 5% do salário mínimo
vigente (naquela ocasião, salário local). Ainda nos anos 1960 esse salário foi
estendido para os aposentados e passou também a considerar os dependentes do
trabalhador. A Constituição de 1988 incluiu o trabalhador avulso.
Em artigo que analisa a legislação social no Brasil e sua relação com a
dinâmica populacional, Werneck Vianna não encontra uma conexão real entre tal
legislação e o estímulo à natalidade. Sem esquecer que a ideologia do Estado
Novo era nominalmente natalista, o autor considera que "a filosofia implícita
da legislação consistiu, desde sua elaboração nos anos 30, em situar os
direitos dos trabalhadores no nível do elementar" (Werneck Vianna, 1977, p.
137). O salário-família se enquadraria nessa visão, tratando-se, simplesmente,
de garantir a manutenção da família do trabalhador, e não de incentivá-lo a ter
mais filhos.
O questionamento do efeito natalista desse dispositivo, entretanto, não era
considerado na ação parlamentar. Houve tentativas de modificar ou mesmo
substituir a referida norma legal já no início dos anos 1980 ' embora sem êxito
', motivadas por razões explicitamente demográficas, a exemplo de procedimento
semelhante utilizado nas políticas populacionais de outros países não
desenvolvidos.
Por fim, o Código Penal, originário também do período do Estado Novo, datado de
1940, em seu artigo 129 definia como crime contra a pessoa, por provocar lesão
corporal, "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem". Neste artigo
vinha sendo situado, por alguns intérpretes, o ato médico da esterilização
cirúrgica. No inciso III do seu parágrafo 1o e no inciso III do seu parágrafo
2o, respectivamente, julga lesão corporal de natureza grave se essa ofensa
resultar em debilidade permanente, bem como perda ou inutilização "de membro,
sentido ou função". A cirurgia da esterilização, segundo aqueles intérpretes,
afetaria a função reprodutiva.
O dispositivo do Código Penal concernente à lesão corporal, acima mencionado,
diferentemente daquele da Lei das Contravenções Penais, podia ser considerado
ambíguo em sua formulação no que se refere a uma política populacional para o
Brasil, por não conter referência explícita à prática da esterilização
cirúrgica. Conforme anotam Barroso e Amado (1986, p. 1104), essa lei foi
elaborada "numa época em que não era generalizado o recurso à esterilização com
fins anticoncepcionais".
Em alguns dos projetos de lei sobre o assunto que analisamos, no entanto, essa
norma é considerada proibitiva da esterilização cirúrgica como meio de limitar
o número de filhos. Ressalta-se, porém, que a maior parte dos projetos que se
referem à esterilização (no período sobre o qual nos detivemos ou mesmo
posteriormente) não remete a esse dispositivo do Código Penal. No caso do
projeto que finalmente resultou na Lei de Planejamento Familiar ' aprovado
parcialmente em 1996 e na íntegra em 1997 ' não houve referência a esse
dispositivo, mas ele foi uma das razões alegadas para o veto parcial do projeto
pelo Executivo, decisão rejeitada pelo Congresso no ano seguinte (Brasil,
Congresso Nacional, 1996).
No contexto do quadro legislativo ora exposto, e no período tratado neste
estudo ' entre 1966 e 1979, em pleno regime autoritário ', ocorreram
importantes momentos da discussão política sobre a matéria no Congresso
Nacional. Ali, de alguma maneira, expressavam-se questões também apresentadas
no âmbito do Executivo e da sociedade civil, inclusive, direta ou
indiretamente, por volta dos anos 1980, questões apresentadas por membros da
própria comunidade demográfica, como foi possível observar analisando os
documentos do acervo do Congresso.
A discussão realizada no Parlamento no período abrangido por este trabalho
ocorria por meio da apresentação de projetos de lei, de pronunciamentos de
parlamentares, de palestras e seminários no âmbito das comissões técnicas, bem
como por intermédio da referida Comissão Parlamentar de Inquérito.
Enfatizaremos aqui a atuação dessa comissão, por seu significado pioneiro no
debate, mas faremos também referência às discus sões travadas nas comissões
técnicas e aos projetos de lei formulados sobre o assunto.
Os questionamentos da CPI, as discussões nas comissões técnicas e os projetos
de lei favoráveis ao controle da natalidade
A "Comissão Parlamentar de Inquérito para Estudar a Conveniência ou Não de um
Plano de Limitação da Natalidade em Nosso País", constituída em 1967, apesar de
não ter produzido um relatório substantivo, representou um relevante momento na
história dessa discussão no Brasil. Na CPI, não somente aparecia o interesse do
Parlamento sobre o tema, como também já se apresentavam na cena política, como
seus depoentes, importantes atores políticos e sociais envolvidos com o
problema. Reitere-se, ainda, que naquele ano os dois primeiros projetos de lei
a respeito da matéria estavam sendo debatidos na Câmara.
Criada em decorrência de requerimento encabeçado pelo deputado Mário Covas,
então líder do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), essa comissão vinha
discutir a questão da política de população referente à fecundidade, em um
momento em que esse tema assumia uma relativa importância na agenda da
sociedade. O tema despontara recentemente no país como um problema de caráter
público, relacionado, em grande medida, ao começo da realização de atividades
de controle de natalidade-planejamento familiar dirigidas às populações de
baixa renda. Em 1967, essas atividades, ainda bastante incipientes e
envolvendo, às vezes, pesquisas com meios anticoncepcionais, geravam estranheza
e causavam acirrada polêmica.
Desse ambiente faziam parte comissões parlamentares de inquérito de âmbito
estadual ' no Maranhão e no então Estado da Guanabara ', reportagens da grande
imprensa sobre o assunto e mobilizações de diferentes segmentos da categoria
médica. Outros fatos se somaram a esses: a Igreja Católica se pronunciava, às
vésperas da promulgação da encíclica Humanae Vitae, sobre a regulação dos
nascimentos; os economistas neomalthusianos se manifestavam, em face de um
incremento populacional que todos acreditavam estar aumentando; e, finalmente,
criara-se e, logo em seguida, fomentara-se o desenvolvimento da Sociedade Civil
Bem-Estar Familiar do Brasil (Bemfam), por meio de sua vinculação com a
International Planned Parenthood Federation (IPPF). Ressalte-se, ainda, que
quando esse tema surgiu no país, já era objeto de estudos teóricos, discussões
políticas e programas específicos em nível internacional, tendo ganho espaço na
América Latina a partir dos anos 1960.
Um dos motivos que provocou a emergência da referida comissão foi a denúncia,
veiculada pela imprensa, a respeito da aplicação de dispositivos intra-uterinos
em mulheres da Região Amazônica por membros de organizações estrangeiras. Esses
e outros fatos acabaram por estimular o debate sobre vários aspectos referentes
à questão demográfica mais ampla, e sobre as questões médicas da anticoncepção
e do abortamento. Os objetivos da comissão e a composição dos seus depoentes
traduzem o clima reinante na ocasião, clima esse canalizado para o Parlamento.
A CPI tinha por finalidade averiguar os seguintes aspectos:
1. estudar a conveniência ou não de um plano de limitação da
natalidade em nosso País;
2. verificar a veracidade das denúncias de interferência alienígena
na dinâmica populacional do País, através da aplicação de processos
anticoncepcionais;
3. verificar a interferência de Entidades, Organizações, grupos
nacionais ou estrangeiros, na motivação e execução de processos de
limitação da natalidade;
4. constatar a aplicação sistemática ou intensiva do DIU (dispositivo
intra-uterino) ou "Asa de Lipps", vulgarmente denominado "espiral",
"serpentina" ou "cobrinha esterilizante" em diversas regiões do País;
5. estudar os fundamentos médico-científicos dos processos de
limitação da natalidade e suas conseqüências;
6. conceituar o problema frente ao Código Penal Brasileiro;
7. verificar os aspectos moral, social, religioso, econômico e
político do problema;
8. examinar os estudos feitos durante o Governo Castello Branco e
divulgados sob o título "Dinâmica Populacional no Brasil";
9. constatar a ação da entidade Bemfam (Bem-Estar da Família) na
execução de processos de limitação da natalidade;
10. verificar as conseqüências psicossomáticas e orgânicas nas
pacientes submetidas aos processos anticoncepcionais e abortivos;
11. constatar as implicações sob os aspectos da soberania e da
segurança nacional;
12. indagar a posição e as providências adotadas pelo Ministério da
Saúde em relação ao problema. (Brasil, Câmara dos Deputados, 1970, p.
1)
Para tão vasto temário foram convocados 24 depoentes, de várias especialidades
e/ou funções e com opiniões divergentes sobre a questão, os quais, em geral e
grosso modo, podem ser divididos em dois grupos.
Um conjunto de convidados colocava-se numa postura de denúncia ou de crítica à
intervenção estrangeira na área do controle da natalidade, à atuação da Bemfam
e à utilização pouco criteriosa do dispositivo intra-uterino (DIU),
considerado, por alguns, um método abortivo. Nessa categoria podem ser
classificados os depoentes deputados, os jornalistas, uma parcela dos médicos e
um dos representantes da Igreja Católica.
Outro conjunto de depoentes, de modo diverso, salientava as dificuldades
econômicas e sociais que, acreditavam, o crescimento demográfico iria acarretar
para a sociedade e para a família, e defendia a importância das atividades de
limitação dos nascimentos. Nesse grupo podem ser situados, além dos médicos
ginecologistas pertencentes à Bemfam, os economistas com tendência
neomalthusiana, ao lado do demógrafo e do sociólogo ali presentes, que
partilhavam idéias semelhantes a esses últimos.
Apesar do conjunto de depoimentos realizados e da vasta documentação reunida, a
CPI terminou por não concluir seus trabalhos. O fato de a comissão não ter
apresentado um parecer sobre o assunto reduz grandemente a sua importância
política, do ponto de vista dos próprios objetivos da sua realização. Afinal,
as atividades desse inquérito não resultaram na apresentação de propostas, nem
mesmo na formulação de respostas às mais diversas indagações colocadas em seu
temário.
Essa inconclusão não estava diretamente relacionada ao problema discutido, mas
sim ao conturbado clima político que o Brasil atravessava, particularmente no
ano de 1968. Recorde-se que, no final do mesmo ano, houve um enrijecimento do
regime, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), provocando
profundas conseqüências na vida política do país, que se estenderam, de modo
especial, ao Congresso Nacional.
Por fim, podemos afirmar que a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos
Deputados, mesmo não tendo chegado a termo, deixou sugerida, em sua convocação
e em seu temário, a crítica à idéia de uma política de controle da natalidade,
em um momento de grande pressão externa referente ao assunto e de grande
restrição à democracia no país ' restrição logo acentuada com a promulgação do
mencionado Ato Institucional. Registrou, também, a presença do Parlamento nos
primórdios dessa discussão no Brasil, indicando um processo político que apenas
se iniciava, envolvendo as relações Parlamento-sociedade e Parlamento-
Executivo. Evidenciou, ainda, a participação de importantes atores políticos e
sociais, grande parte dos quais, de alguma maneira, permanece no debate até a
atualidade.
Ao lado da realização dessa CPI, a Câmara dos Deputados organizou, ainda, um
conjunto de reuniões públicas sobre o assunto no espaço das Comissões
Permanentes (hoje, Comissões Técnicas), especificamente na Comissão de Saúde
(hoje, Comissão de Seguridade Social e Família). Ao todo foram realizadas seis
reuniões ' uma delas em 1970 e as outras cinco em 1972 ' associadas à
tramitação de projetos de lei sobre a matéria.
Essas reuniões foram organizadas com o intuito de discutir os temas controle da
natalidade e planejamento familiar, além de focalizar as questões médico-
sociais relacionadas ao planejamento familiar e ao aborto. As palestras
realizadas trataram, consecutivamente, de problemas demográficos, assuntos
médico-sociais do aborto, incluindo a questão do dispositivo intra-uterino,
população e desenvolvimento e, por fim, planejamento familiar. Assim como os
depoentes da CPI, seus expositores apresentavam opiniões polarizadas sobre o
tema, basicamente em torno do antinatalismo e da crítica a esta postura.
Polarização semelhante ocorreu no Simpósio sobre Problemas Demográficos
Brasileiros, realizado pela Comissão de Saúde do Senado (hoje, Assuntos
Sociais) em 1979. O evento reuniu, entre seus participantes, dirigentes e
integrantes de organismos de planejamento familiar-controle da natalidade, bem
como representantes de entidades da categoria médica e da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB). Convidado para o simpósio, o ministro da Saúde
recusou-se a participar.
Durante todo o período estudado, o tema foi objeto de debate e o Congresso
Nacional sofreu pressões das entidades privadas de planejamento familiar para
legislar sobre a matéria. Vale adiantar que, tanto em 1970 como em 1972,
tramitavam na Câmara dos Deputados dois projetos de lei com teor antinatalista,
embora nenhum deles tivesse sido aprovado. Em 1979, porém, proposição
semelhante apresentada no Senado acabou se tornando lei, em um ambiente
governamental condizente com essa aprovação.
A questão foi objeto de diversos projetos de lei ' instrumento mais imediato de
alteração das normas legais no contexto do Congresso. Ao todo foram
apresentados 13 projetos dedicados à matéria entre 1967 e 1979: 11 originários
da Câmara, um do Senado e um projeto mais amplo, de reformulação da Lei das
Contravenções Penais, oriundo do Poder Executivo.
A análise sistemática do processo político de discussão e decisão referente às
proposições do Congresso Nacional foi realizada em dois trabalhos anteriores,
já mencionados. Por ora, cabe salientar que a quase totalidade dos projetos de
lei ora focalizados tinha preocupações explícitas com o crescimento da
população. Essa pressão política resultou na aprovação do projeto de lei do
Senado acima referido, 12 anos depois de terem sido apresentados os dois
primeiros projetos de lei sobre o tema, em 1967. Essa aprovação alterava o
dispositivo da Lei das Contravenções Penais, permitindo o anúncio de processos,
substâncias ou objetos referentes a anticoncepção, mas mantinha a proibição em
relação ao aborto.
A justificativa desse projeto evidenciava seus fundamentos em relação ao tema
e, ao mesmo tempo, buscava apoiar-se em documentos do governo brasileiro
formulados nos anos 1970, sobre os quais trataremos adiante:
[...] o controle da reprodução humana [é] uma das maiores
preocupações dos estadistas e homens públicos contemporâneos, seja
para limitá-lo em índices razoáveis, sobretudo nos países em vias de
desenvolvimento, seja para prevenir a chamada gravidez de alto risco.
A mudança proposta na Lei das Contravenções Penais buscaria
viabilizar a política demográfica do Governo brasileiro, definida na
Conferência Mundial de População de Bucareste, em 1974, incorporada
ao Programa de Prevenção da Gravidez de Alto Risco do Ministério da
Saúde, de 1977, e presente em declaração do Presidente Figueiredo, de
1979. Trata-se, assim, de "levar adiante os seus programas e métodos
de controle da natalidade, que os interesses do país estão a exigir".
(Brasil, Senado Federal, 1979, p. 4.848)
Entrevistado sobre o que motivou a apresentação do referido projeto, seu autor
informou que havia uma atmosfera política para sua aceitação. Declarou que o
general Golbery Couto e Silva, ministro do governo anterior, era interessado
nesta questão e que o presidente que assumira no início do ano, João
Figueiredo, já manifestara sua preocupação com o assunto. Tal aceitação do
Executivo seria confirmada, segundo o parlamentar, pela própria sanção
presidencial ao referido projeto. Em relação à aceitação do Senado, afirmou que
o interesse demonstrado pelo Executivo teria provocado a aprovação do projeto
naquela Casa (Rocha, 1992, p. 156).
A aprovação desse projeto representou o limite máximo que conseguiram alcançar,
do ponto de vista legislativo, os segmentos sociais comprometidos com a
proposta de uma política favorável ao controle da natalidade, sobretudo as
entidades privadas de planejamento familiar ' tendo na retaguarda uma posição
oficial ambígua do governo brasileiro, relativamente cautelosa sobre a questão
daquela política mas, nesse contexto, sempre permissiva em relação às ações das
referidas entidades privadas.
Essas colocações nos remetem ao Executivo, cujas propostas, sem dúvida,
repercutiam nas atividades do Congresso. A posição do poder público no Brasil '
natalista, ou nominalmente natalista ' foi se modificando, podendo detectar-se,
nos anos 1970, algumas medidas de certa maneira relacionadas a uma política
governamental na área.
O documento oficial brasileiro apresentado à Conferência Mundial de População
de 1974, ao lado da afirmação sobre a importância do crescimento populacional
para o desenvolvimento do país, registrava a necessidade de o Estado, quando
solicitado, colocar à disposição das populações de baixa renda informações e
meios referentes à regulação da fecundidade. O II Plano Nacional de
Desenvolvimento, do mesmo ano, reiterava esse último aspecto, junto a uma
concepção mais moderada acerca da importância do aumento demográfico,
mostrando-se preocupado com o equilíbrio entre esse aumento e a taxa de
expansão do emprego.
Por fim, o Programa da Prevenção da Gravidez de Alto Risco de 1977, que fazia
parte do Plano Nacional de Saúde Materno-Infantil do Ministério da Saúde,
programa esse que não chegou a ser implantado, propunha concretizar essa
política, baseado em razões referentes à proteção à saúde das mães e das
crianças. Acrescentemos a esses documentos a preocupação com o crescimento
demográfico evidenciada em declaração do ex-presidente Figueiredo, já no começo
da década de 1980. Nesse caso, esse aumento é visto como "explosivo", aumento
que "devora" o crescimento econômico. "Agente de instabilidade, acarreta
desequilíbrios sociais, econômicos, culturais e políticos, que reclamam
profunda meditação" (Figueiredo, 1983, p. 13).
Com a ampliação da abertura política em 1979 e início dos anos 1980 e,
sobretudo, com a redemocratização do país, em meados dessa década, a postura
governamental a respeito do assunto foi mudando ' embora, no começo, com
ambigüidades ', bem como as entidades privadas de planejamento familiar
perderam grandemente sua capacidade de influir, primeiramente no Executivo
federal e depois no Congresso. É bastante significativo que os resultados de
uma nova CPI, realizada no âmbito do Senado em 1983 e 1984, com grande
influência dessas entidades, não tenham sido incorporados pelo novo governo que
assumira com a mudança do regime político em 1985.
É igualmente emblemático que esses segmentos, embora presentes na discussão
sobre planejamento familiar durante a Constituinte, não tenham participado da
formulação e discussão do projeto de lei apresentado em 1991, projeto esse do
qual resultou a já referida Lei de Planejamento Familiar ' inspirada pela
perspectiva de atenção integral à saúde e de direitos reprodutivos.
Encerrando essa reconstrução, que procurou retratar alguns aspectos do cenário
político em que foi constituída a Abep ' do fim dos anos 1960 ao fim dos anos
1970 ', é importante ressaltar que outros atores entraram nesse debate público
a partir dos anos 1980, agora em um novo contexto de mudanças políticas e
institucionais. Dentre esses atores, destaca-se o movimento feminista (Jardim,
2003), que passa a discutir e buscar saídas para o enfrentamento de várias
questões referentes aos direitos das mulheres, enfatizando o direito à
regulação da fecundidade, sem objetivos demográficos.
O contexto institucional da área de demografia
Nos anos 1960, contava-se com a herança dos trabalhos de Giorgio Mortara, os
quais lidavam com os censos demográficos de 1940 e de 1950. O de 1960, por
alegados motivos técnicos, só iria ser publicado muitos anos mais tarde, quase
no final da década seguinte.
A publicação dos resultados definitivos do Censo Demográfico de 1970 propiciou
farta matéria-prima para os estudiosos da área, ainda mais quando se leva em
conta o vazio de vinte anos de dados censitários ocorrido após o levantamento
de 1950.
Ainda no campo da disponibilidade de dados, em 1967 foi implantado no Instituto
Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) o levantamento por amostragem de
domicílios (PNAD), visando criar um sistema contínuo de base domiciliar capaz
de prover informações sobre o quadro socioeconômico do país. Na década de 1970,
várias das PNADs incluíram suplementos contemplando temas demográficos, como
fecundidade e migração.
Do ponto de vista da dinâmica populacional, os resultados do Censo de 1970
vieram mostrar que a população brasileira experimentara na década de 1960, ou,
mais precisamente, a partir da sua segunda metade, um primeiro declínio,
passando de 6,2 (valor mantido constante de 1940 a 1960) para 5,6 o número
médio de filhos por mulher. Esse descenso produziu uma redução da taxa de
crescimento anual da população, a qual se havia elevado na década anterior em
decorrência do declínio da mortalidade. Iniciava-se, por assim dizer, a chamada
transição demográfica no Brasil.
A segunda metade da década de 1960 marcou, também, o início no país do processo
de industrialização do campo e modernização agrícola, aumentando o êxodo rural;
além disso, já deslanchava o processo de esgotamento das antigas áreas de
fronteiras. De outro lado, as mudanças ocorridas na estrutura produtiva
nacional pós-1960 implicaram a diversificação do parque industrial, abrindo
novos empregos urbanos. A década de 1970 intensificou essas tendências,
ressaltando-se que, mesmo com a fronteira amazônica, as migrações passaram a
ser predominantemente dirigidas ao meio urbano, ou seja, esse período marcou a
consolidação dos grandes centros urbanos, com o crescente processo de
metropolização (Berquó, 2001).
As instituições da demografia
Da perspectiva institucional, dispunha-se, no âmbito do IBGE, do Centro
Brasileiro de Estudos Populacionais, da Escola Nacional de Estatística e da
Revista Brasileira de Estatística, essa última alimentada, em grande medida,
pelos estudos de Mortara.
O Centro Brasileiro de Estudos Populacionais, hoje Departamento de Estudos de
População (Despo), dava continuidade às tarefas do Laboratório de Estatística,
órgão do Conselho Nacional de Estatística, e que tinha a seu cargo, até o
início da década de 1960, a realização de pesquisas e estudos de interpretação
dos levantamentos estatísticos brasileiros nos campos demográfico, econômico e
social.
A Escola Nacional de Estatística, funcionando desde 1952, prosseguia, no
período citado, com sua vocação de tentar consolidar a tarefa de formar
analistas demógrafos, pela incorporação da disciplina de demografia formal ao
currículo de graduação em estatística.
Fazia também parte desse cenário o Setor de Demografia do Instituto de Pequisa
Econômica Aplicada (Ipea), criado em 1966 e inserido em um grupo
multidisciplinar, com a finalidade de fazer o diagnóstico da área e colaborar
na elaboração de um modelo econométrico brasileiro, que viria a constituir a
base do então Plano Decenal de Desenvolvimento. Transformado posteriormente em
uma das unidades de pesquisa do Instituto, ocupou-se de elaborar e promover uma
série de estudos, em particular nas áreas de migrações internas e urbanização.
Alguns grupos esparsos dedicados à análise demográfica e integrados em órgãos
públicos, como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o
Banco do Nordeste, complementam o quadro institucional de que se dispunha na
época.
De cunho acadêmico universitário, contava-se com o recém-criado Centro de
Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip), estabelecido na Universidade de São
Paulo (USP) em 1966, anexo ao então Departamento de Estatística Aplicada, da
Faculdade de Higiene e Saúde Pública. Sua origem baseava-se na necessidade de
dotar o meio brasileiro de centros universitários de investigação e ensino
especialmente voltados para o estudo das questões populacionais (Berquó, 1980).
Este projeto fazia parte de um convênio estabelecido entre a referida faculdade
e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) para financiamento de pesquisa em
demografia e preparação de recursos humanos, em nível de pós-graduação, em
renomadas universidades americanas que contavam com programas de estudos em
população.
Os primeiros integrantes do Cedip, com formação nas áreas de medicina,
economia, estatística e ciências sociais, e com bolsas da Organização Pan-
Americana da Saúde, credenciaram-se para o doutorado em demografia nas
universidades de Michigan, Chicago e Princeton, nos Estados Unidos. O ritmo que
vinha marcando as atividades desse grupo pioneiro sofreu mudanças com a saída
da USP de alguns de seus membros fundadores, por força de ato de exceção do
governo autoritário, em 1969.
Por outro lado, o não cumprimento, por parte da Faculdade de Higiene e Saúde
Pública, do compromisso mínimo de absorver em seus quadros, após cinco anos, os
integrantes do Cedip teve como conseqüência natural que o grupo se desmembrasse
e que grande parte de seus profissionais fosse para outras faculdades da
Universidade de São Paulo ou para outras universidades e centros de pesquisa do
país. Uma parte da antiga equipe pôde ser reaglutinada no Programa de Estudos
em Demografia e Urbanização (Prodeur), implantado na Fundação para a Pesquisa
Ambiental da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Outra parte se
manteve nos quadros da própria Faculdade de Higiene e Saúde Pública.
Neste contexto autoritário de exceção foi criado o Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento (Cebrap), em 1969, para abrigar professores e pesquisadores das
ciências sociais que compulsoriamente deixaram a Universidade de São Paulo,
inclusive alguns dos que foram afastados do Cedip.
O Cebrap deu continuidade à Pesquisa Nacional de Reprodução Humana iniciada no
Cedip, a qual passou a contar não somente com seus integrantes originais, mas
também com praticamente toda a equipe do Cebrap, além do apoio de recursos
externos. Essa investigação, dado o seu escopo, trouxe consideráveis subsídios
para a elucidação de questões básicas da problemática populacional, isto é, das
inter-relações entre os diferentes processos de produção e a dinâmica
populacional, mediados pelo papel das instituições.
Datam também desse período os primeiros passos para a constituição do Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), vinculado à Faculdade de
Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, que contou com um
programa de apoio à vinda de professores visitantes na sub-área de demografia,
iniciado em 1971.
Em 1974 o Cedeplar criou uma área de concentração em demografia econômica no
Programa de Mestrado de Economia. Visando consolidar seu papel no campo do
ensino e da pesquisa, criou um Programa de Pós-Graduação em Demografia,
inicialmente com mestrado e posteriormente com doutorado.
Além de equipes da esfera de governos estaduais que estudam a dinâmica da
população para fins de planejamento, implantação e avaliação de políticas
públicas, são também desse período outros importantes centros e programas
vinculados à universidade e/ou voltados à pesquisa (Berquó e Rocha, 1983).
Estamos nos referindo ao Centro de Estudos de Recursos Humanos (CRH) da
Universidade Federal da Bahia, ao Centro de Documentação e Pesquisa (Cedope) da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, e à Fundação
Instituto Joaquim Nabuco; ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Paraná e ao Programa de Demografia Histórica do Departamento de
História da Universidade de São Paulo; e aos grupos de estudiosos da área,
desta universidade, constituídos na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas,
na Faculdade de Saúde Pública e no Departamento de Geografia. Suas
contribuições marcaram o cenário institucional no campo da demografia ou
correlatos na época. Cada qual a seu modo, seguindo seus próprios mandatos e
vocações, essas entidades continuam desenvolvendo seus trabalhos até os dias de
hoje.
Esse quadro institucional presente no país era também caracterizado por um
diálogo permanente com instituições e órgãos de ensino e pesquisa latino-
americanos. Destacam-se, nesse sentido, o Centro Latino-Americano de Demografia
(Celade) e o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso).
Ao lado de seu papel pioneiro na formação de recursos humanos na América
Latina, o Celade coordenou, nos anos 1960, o Programa de Encuestas Comparativas
de Fecundidad para América Latina (Pecfal), envolvendo as capitais Caracas,
Bogotá, Buenos Aires, México, Panamá, São José, Rio de Janeiro, Guatemala,
Guaiaquil e Quito. Seu objetivo era obter informações sobre níveis e tendências
da fecundidade, atitudes e opiniões sobre o tamanho desejado de família e seus
diferenciais socioeconômicos, bem como acerca do conhecimento, atitudes e
práticas no uso de anticoncepcionais. Ou seja, o programa dialogava com a
famosa pesquisa KAP, em voga na época.
No Clacso, em princípios de 1971, foi criada a Comisión de Población y
Desarrollo. Estruturada em três grupos de trabalho ' fecundidade, migrações e
informação demográfica ', essa comissão representou importante fórum de diálogo
no campo demográfico. O referente à fecundidade teve seu escopo ampliado logo
na primeira reunião, realizada no México, em 1972, para estudos sobre a
reprodução da população. Ao revisitar, do ponto de vista de uma crítica
teórico-metodológica, as pesquisas anteriores realizadas nesse campo, com
ênfase especial na região da América Latina, esse grupo, que se reuniu
anualmente até 1982, produziu volumosa e relevante contribuição para os estudos
de população. Desde sua implantação, contou sempre com uma coordenação exercida
por pesquisadores brasileiros e por várias vezes a Pesquisa Nacional sobre
Reprodução Humana, conduzida pelo Cebrap, ocupou a agenda de suas reuniões.
Fundação Ford: sintonia e contradição
Ao lado das agências nacionais de fomento à pesquisa, várias fundações e
organizações internacionais contribuíram para a construção e a consolidação
institucional da demografia no país. Dado o foco deste artigo ' a construção
dos contextos político e institucional da criação da Abep ', a Fundação Ford
ocupará papel de destaque dentre as demais, por ter desempenhado ação decisiva
no apoio à criação dessa associação.
Documento sobre estratégias de operação da Fundação Ford na América Latina, de
1967, refere-se à
[...] necessidade de reforço mútuo, no interior dos países e entre
eles, de iniciativas individuais dos próprios latino-americanos,
dando-se ênfase ao apoio a ser concedido às lideranças regionais nas
áreas de ensino, pesquisa e aplicação de economia e ciência política.
O documento confina as atividades prioritárias a cinco setores ou
campos funcionais, quais sejam, agricultura, educação, população,
ciência e tecnologia e Ciências Sociais. (Miceli, 1993, p. 65-66)
Conforme Miceli (1993), a atuação da Fundação Ford na América Latina não seguiu
a mesma conduta adotada em outros continentes, de privilegiar interlocuções com
os governos nacionais. Ao contrário, na ação concreta, enfatizou o diálogo com
instituições produtoras de conhecimento.
Considerações contidas em trabalho elaborado em 1968 por Ansley Coale, na
qualidade de consultor da Fundação Ford de Nova Iorque, reforçam este ponto de
vista no que se refere ao Brasil. Para Coale,
dada a atual ausência de prestígio ou mesmo do aparente
reconhecimento da Demografia, é fundamental plantar as sementes de
seu desenvolvimento em instituições fortes e saudáveis ' nas melhores
faculdades onde já existam bons estudantes e pesquisa de alta
qualidade, em instituições de pesquisa com boas equipes, adequadas
facilidades, e uma produção científica relevante, e em agências
governamentais ou de consultorias que possuam bons quadros e tenham
comprovada influência e flexibilidade. (Coale, 1968, p. 1)
Dentro dessa perspectiva, ela marca sua atuação no campo de população no Brasil
através de bolsas de estudos, concursos de pesquisa e programas de professores
visitantes. Com a dupla finalidade de oferecer oportunidade e condições de
trabalho de investigação a seus bolsistas ' que vinha apoiando desde a segunda
metade dos anos 1960 ' quando do regresso ao país e atrair para pesquisa em
população professores e investigadores com treinamento em campos afins, a
Fundação Ford criou, em 1972, um Programa de Bolsas de Pesquisa.
Apoiado em um Comitê Assessor composto por personalidades nacionais de destaque
na área, e sob a inteira responsabilidade da Fundação, o programa concedeu em
apenas seis anos um total de 65 bolsas para investigação. Como parte desse
programa, a Ford investiu intensamente nesse campo, contando com um
representante especialmente dedicado aos estudos populacionais.
Duas iniciativas merecem destaque dentre as inúmeras atividades por ela
desenvolvidas no período em causa. Em relação ao Cedeplar, contribuiu para que
fossem abertos cursos com o fim de aglutinar economistas interessados nessa
especialização. Paralelamente, com suas bolsas de doutoramento, tornou possível
o treinamento, em renomados centros do exterior, de um grupo de economistas-
demógrafos. Sua contribuição foi também bastante decisiva para a criação do
Cebrap, em 1969, mesmo enfrentando "recusas na sede, na medida em que alguns
dirigentes identificaram nessa solicitação os sentidos de uma atitude hostil ao
governo brasileiro" (Miceli, 1993, p. 55).
Após 1975, o investimento da Fundação Ford dar-se-ia principalmente através do
concurso de bolsas de pesquisa, uma vez que os outros dois componentes de seu
programa já haviam atingido o nível desejado. É quando essa fundação pensa em
transferir a liderança na coordenação do programa de estudos populacionais para
uma entidade brasileira de caráter associativo. Essa idéia encontra grande
repercussão no meio especializado, o qual, por sua vez, já vinha sentindo e
percebendo a necessidade e oportunidade da presença no país de um órgão dessa
natureza.
Com o fim de fomentar, ampliar e fortalecer o intercâmbio científico entre os
demógrafos brasileiros, como também entre estes e os demais estudiosos das
questões populacionais, foi criada, em 1976, a Associação Brasileira de Estudos
Populacionais (Abep), como uma associação de indivíduos.
Durante os dois anos seguintes, as relações entre a Abep e a Fundação Ford,
através de seu representante, demógrafo, mantiveram-se muito estreitas. Várias
atividades foram programadas e desenvolvidas conjuntamente. A transferência da
responsabilidade pelo concurso de bolsas de pesquisa para a Abep deu-se de
forma gradativa, três anos após sua criação, ou seja, em 1979.
Nesse contexto, vale dizer que a recém-criada Abep chegou com competência e
compromisso ao seu 1º Encontro Nacional, realizado em Campos do Jordão, São
Paulo, em 1978. O testemunho do seu sucesso pode ser avaliado pelo elevado
número de participantes, 141 pessoas ao todo, pela quantidade de trabalhos
apresentados, que acabaram por ocupar 642 páginas dos seus Anais, e por um
temário abrangente e sensível às questões populacionais prevalecentes no país,
o que pode ser observado pelo conteúdo de suas sessões temáticas.
O estudo das migrações internas incluiu urbanização, alternativas de fixação
produtiva, política urbana e aspectos metodológicos. O tema mortalidade e saúde
incluiu aspectos formais e técnicos, diferenciais, considerações sobre os
sistemas de saúde, o papel do Estado e a democratização da saúde. Nos campos da
fecundidade, nupcialidade e participação da mulher no mercado de trabalho foram
tratados aspectos formais para o estudo da fecundidade e da nupcialidade, a
individualização da força de trabalho e o trabalho feminino sob o capitalismo
dependente.
Um conjunto de sessões sobre o Nordeste abrangeu dimensão e componentes de seu
crescimento demográfico, crescimento econômico, subemprego e sub-remuneração,
as distribuições de renda real e monetária e a questão agrária e o papel do
Estado.
Antes de finalizar, é importante salientarmos que o apoio à criação da Abep
fazia parte de um plano programático mais amplo, no qual a Fundação Ford
tentava reduzir os efeitos negativos das fortes desigualdades
interinstitucionais resultantes, em parte, de sua própria orientação em relação
à América Latina, inclusive o Brasil, de privilegiar o apoio a centros de
excelência (Miceli, 1993).
Em coerência com esta visão, a Fundação Ford apoiou também a constituição da
Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec), em 1973,
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), em
1976, e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs), ainda em 1976. Ao lado das comunidades científicas criadas em âmbito
nacional, a constituição do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais
(Clacso) contou também com o apoio da Fundação Ford.
***
O fato de a Abep ter sido criada como parte de um processo caracterizado por
instituições que se consolidavam, produção intelectual consistente, comunidades
acadêmica e técnica atuantes, bem como por interlocuções latino-americanas
fortalecidas, fez dela um ator político capaz de enfrentar as contradições do
apoio de organismos e fundações internacionais, as pressões referentes à
questão do crescimento demográfico e os desafios do período autoritário.
Consideramos que é esse complexo processo do contexto institucional da sua
criação ' no cenário de uma sociedade civil que se organizava no país ' que vai
fornecer os principais elementos para se esclarecer a questão subjacente a este
trabalho. A nosso ver, tudo isso tornou possível o surgimento e o posterior
desenvolvimento de uma entidade pluralista e abrangente nos enfoques utilizados
e nas temáticas tratadas.