A demografia brasileira e o declínio da fecundidade no Brasil: contribuições,
equívocos e silêncios
Falar da diminuição da fecundidade no Brasil é também entrar em assunto
controverso em que os diversos contendores desqualificam, de saída, os
argumentos que contrariam suas posições. São visões radicais e incompatíveis.
No debate sobre planejamento familiar é preciso medir as palavras. Cada
expressão usada será o signo de um complexo ideológico que tem as suas raízes
na maneira de ver a conservação ou a mudança na estrutura econômica. Estas
posições, quando cristalizadas, servem de freio à análise e dificultam a
leitura dos fatos.
Ao ser retomada agora a discussão, depois de um longo esquecimento, parece que
surgiram as condições para a elaboração de uma posição não comprometida com as
já históricas contendas entre natalistas e antinatalistas. Não foi só o tempo
que desgastou o debate, foram também as mudanças ocorridas na sociedade e a
presença de novos atores em nossa arena política.
(Ruth Cardoso, 1983, p. 2)
Essas citações da professora Ruth Cardoso, escritas há mais de duas décadas,
fornecem elementos importantes para uma reflexão crítica sobre o papel
desempenhado pela comunidade demográfica brasileira no processo de rápido
declínio da fecundidade no país. Apesar do demasiado otimismo na última
citação, pois alguns ecos das contendas até hoje obscurecem corações e mentes,
elas servem como uma ótima introdução a este trabalho, cujo objetivo é analisar
as contribuições, os equívocos e, em particular, os silêncios dos demógrafos e
estudiosos da população sobre o rápido declínio da fecundidade no Brasil e suas
conseqüências.
A população feminina mais pobre tem sido vítima da desinformação sobre as
possibilidades de regulação da sua fecundidade e, mais ainda, da dificuldade de
acesso aos quase sempre deficientes serviços públicos de saúde. A conseqüência
social tem sido dramática, contribuindo, decisivamente, para privar parte das
mulheres de sua cidadania plena. Tal como quando se vivia sob o manto de um
debate ideológico, hoje totalmente esclerosado, os demógrafos e estudiosos da
população, em sua maioria, ainda se mantêm silenciosos quanto ao atendimento,
mediante políticas públicas, às necessidades dessa parcela da população
feminina.
O silêncio também prevalece, de modo geral, quanto às conseqüências do novo
padrão demográfico brasileiro, no que diz respeito às oportunidades criadas e
aos novos desafios. Tanto aquelas quanto estes exigem uma nova postura da
sociedade e do Estado, e nesse processo a demografia tem uma responsabilidade
social única e insubstituível.
Este artigo não deseja reviver uma estridência inócua. O tom pretendese
analítico. Para tanto, será feita uma revisão histórica da dimensão política
que a questão do crescimento populacional assumiu na segunda metade do século
XX.
A questão do crescimento populacional ' a agenda política internacional
O rápido crescimento populacional tornouse fundamental na agenda política
internacional após a Segunda Grande Guerra. Os países mais desenvolvidos, em
sua maioria, já tinham avançado na transição em direção a um desacelerado ritmo
de crescimento populacional. Entretanto, os países então chamados de
subdesenvolvidos, onde se localizava a maior parte da população mundial,
vivenciavam o declínio das taxas de mortalidade, combinado com altas taxas de
fecundidade. Nos anos 50, esses países, entre eles o Brasil, apresentavam taxas
de crescimento populacional muito acima daquelas observadas entre os países
mais desenvolvidos em toda a sua história pós-revolução industrial.
A questão do crescimento populacional dentro da agenda internacional
apresentava duas dimensões fundamentais. A primeira referia-se às
possibilidades do crescimento da economia com uma oferta ilimitada de mão-de-
obra, em um contexto de intensa urbanização. A segunda, aos problemas políticos
decorrentes da pressão demográfica sobre a terra em regiões estagnadas, como o
semi-árido nordestino brasileiro.
A primeira dimensão, a princípio, era analisada com um certo otimismo, tendo
como base as teorias sociológicas sobre a modernização da sociedade e as
teorias econômicas sobre o desenvolvimento da economia (Lewis, 1963; Germani,
1969). Ambas as perspectivas apostavam que as migrações internas transfeririam,
gradualmente, a população das áreas rurais mais atrasadas e com produtividade
do trabalho próxima de zero para as áreas urbanas, onde a sociedade moderna
articulava-se a uma economia que, sustentada pelo crescimento industrial,
apresentava alta produtividade, alimentada por um acelerado progresso técnico.
Esperava-se que as populações nessas novas sociedades urbanas e industriais, à
semelhança do que já havia acontecido nos países mais desenvolvidos,
experimentariam um generalizado declínio nos níveis de fecundidade e,
conseqüentemente, uma redução do crescimento demográfico.
Em síntese, o desenvolvimento da economia e a modernização da sociedade seriam
os fatores mais importantes para reduzir o crescimento populacional. Portanto,
não haveria necessidade de retomar as teses de economistas como Thomas Malthus,
do final do século XVIII e início do século XIX, que insistiam nos
desequilíbrios entre o crescimento demográfico e o crescimento da economia
(Malthus, 1951).
Entretanto, os países mais ricos, os Estados Unidos em particular, e as
organizações multilaterais, como a Organização das Nações Unidas e o Banco
Mundial, logo se convenceram de que o otimismo demográfico, baseado no binômio
desenvolvimento-modernização, estaria sendo atropelado, nos países
subdesenvolvidos, pelas crescentes taxas de crescimento vegetativo (declínio da
mortalidade e fecundidade alta e estável) e pela migração rural-urbana. No
Brasil, o rápido crescimento populacional, somado à estagnação em grande parte
das áreas rurais, nos anos 60, e à modernização agrícola patrocinada pelas
políticas públicas, nos anos 70, tinha proporcionado uma transferência maciça
de população para as cidades,1 principalmente para os maiores centros urbanos,
acelerando o processo de urbanização a taxas historicamente inéditas.
Contudo, o bom desempenho da economia brasileira, inclusive no que se refere à
geração de empregos ' principalmente a partir do Plano de Metas do governo JK
(1955-1960) e mais acentuadamente nos anos 70 ', não tinha sido suficiente para
integrar a grande maioria da população à sociedade moderna, tendo, ademais,
ampliado os desequilíbrios regionais.
A segunda dimensão da questão demográfica dentro da agenda política
internacional tinha a ver com as relações estabelecidas entre o crescimento
demográfico e o comportamento político das populações mais pobres. Nesse caso,
o Nordeste brasileiro era exemplar, principalmente depois da organização das
Ligas Camponesas no final dos anos 50 e início da década de 60, contemporâneas
da Revolução Socialista em Cuba. A enorme crise social no Nordeste, decorrente
de uma miséria secular, era vista como tendo grande potencial revolucionário,
ampliado por sua volumosa população, que crescia a taxas muito elevadas.
Levava-se em conta, ainda, que o desenvolvimento da economia brasileira não se
mostrava capaz de retirar o Nordeste da sua histórica estagnação.
A importância da questão demográfica no Nordeste brasileiro era também
destacada pelo grande economista Celso Furtado. Dentre os projetos a serem
implementados pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),
criada em 1959, da qual Furtado foi o seu principal idealizador e primeiro
dirigente, incluía-se uma grande transferência de população da região do semi-
árido nordestino para o Maranhão, onde uma reforma agrária deveria contribuir
para absorvê-la produtivamente. Como justificativa de tal projeto, afirmava-se
que a densidade demográfica do semi-árido nordestino era incompatível com a
organização de uma economia produtiva, em particular devido à sua estrutura
fundiária, o que potencializava a crise social que acompanhava as grandes secas
(Furtado, 1959). Deve-se observar que a inércia política da população do semi-
árido, a partir da segunda metade da década de 50, foi sendo substituída pela
mobilização dos camponeses, organizados em ligas e sindicatos.
O otimismo demográfico decorrente do binômio desenvolvimento-modernização,
atropelado pela própria realidade do mundo subdesenvolvido, que, aparentemente,
não repetia a secular transição demográfica dos países desenvolvidos, sofreu,
ainda, um impacto maior e decisivo: o da Guerra Fria. A tensão internacional,
após a Segunda Guerra Mundial, entre os países dos blocos capitalista e
socialista estabeleceu nítidas fronteiras territoriais e ideológicas, dentro
das quais os países hegemônicos estabeleciam as suas estratégias de confronto e
negociação. A Revolução Chinesa em 1949 e a decorrente crise da Coréia, na
primeira metade dos anos 50, e, principalmente, a Revolução Cubana em 1959
mostraram a instabilidade da divisão política internacional e levaram os
Estados Unidos a uma agressiva política de colaboração econômica, política e
militar com os países latino-americanos, inclusive o Brasil.
O confronto político-ideológico internacional acabou transformando,
definitivamente, no mundo capitalista, o otimismo demográfico em um pessimismo
de cunho malthusiano. Acreditava-se, então, que a redução do rápido crescimento
demográfico de países como o Brasil não ocorreria sem uma eficiente política de
controle da natalidade. Mais ainda, dentro da agenda internacional, o
crescimento populacional tornou-se uma variável politicamente estratégica e o
controle da natalidade passou a fazer parte de pacotes de colaboração
econômica, política e militar.
As pressões norte-americanas2 e dos organismos multilaterais para que fossem
implementadas políticas de controle da natalidade estendiam-se a todos os
países em desenvolvimento, em particular à América Latina e Ásia. A Índia,
então um país extremamente pobre e com a segunda maior população do mundo, foi
um laboratório de pesquisas acadêmicas e de políticas oficiais de controle de
natalidade, cujos resultados, em termos de declínio da fecundidade, foram
praticamente inexpressivos. O México foi um outro exemplo de esforço
governamental na implementação de políticas populacionais, através do Conselho
Nacional de População (Conapo), criado em 1974.3
O interessante é que o único país da América Latina que de fato implementou
políticas nesta área, com êxito indiscutível, foi Cuba, obviamente sem nenhuma
pressão norte-americana. A taxa de fecundidade total (TFT) de Cuba, que nos
anos 50 apresentava níveis relativamente baixos, em torno de 3,6 filhos
nascidos vivos por mulher, experimentou significativo aumento logo após a
Revolução, passando para 4,5 e 4,3 nos qüinqüênios 1960-1964 e 1965-1969,
respectivamente (Alfonso Fraga, 2005). Comandada pelo Estado, houve uma ampla
mobilização popular, utilizando, inclusive, o sistema educacional, com o
objetivo de implementar políticas de planejamento familiar, associadas a
políticas de saúde materno-infantil. Há um número especial da Revista
Brasileira de Estudos de População (vol. 4, n. 1, jan.-jul. 1987) com
instigantes artigos sobre as experiências cubanas, mexicana e chinesa, entre
outras. Cuba, na verdade, seguiu a tradição dos países socialistas, iniciada na
antiga União Soviética. Logo após a Revolução Bolchevique, em 1917, foi
elaborado um conjunto de leis sobre aborto, esterilização e casamento, ligadas
a uma nova concepção do papel da mulher dentro do socialismo e à necessidade de
sua mobilização como mão-de-obra. De fato, a antiga União Soviética não
enfrentava rápido crescimento populacional, mas tinha problemas relacionados à
distribuição espacial de sua população. Com o objetivo de redistribuí-la,
desenvolveu-se, no período stalinista, um projeto de reforma agrária,
acompanhado de uma política de migração forçada, que se transformou numa
tragédia de dimensões humanas incomensuráveis (Carr, 1972).
A China, também um país fora da esfera de influência norte-americana desde a
Revolução Comunista de 1949, certamente foi onde se levou, após um
comportamento oscilante e, às vezes, ambivalente, às últimas conseqüências a
política de controle da natalidade. Nos anos 70, o controle da natalidade foi
considerado, definitivamente, uma questão de Estado. Além das medidas
anticonceptivas, introduziu-se o "controle malthusiano do casamento": na
cidade, para se casar, os homens deveriam ter, no mínimo, 28 anos de idade e as
mulheres, 25 anos; no campo, deveriam ter 25 e 23 anos, respectivamente. O
ápice do controle da natalidade foi a política de "um casal, um filho", que
ainda prevalece e cujas conseqüências sociais e demográficas têm sido
observadas com pessimismo (Population Reports, 1982; Winckler, 2002;
Greenhalgh, 2003).
A questão do crescimento populacional ' a agenda política nacional
O golpe militar de 1964 no Brasil contou com a decisiva colaboração dos Estados
Unidos, interessados em manter o país dentro das fronteiras do capitalismo. O
regime político emergente, gradualmente, mas de um modo cada vez mais radical,
implantou um governo autoritário que cerceava, sem limites, as liberdades
fundamentais do povo brasileiro. A legislação sobre a segurança nacional e os
atos institucionais, em particular o de nº 5, de 1968, e uma repressão que não
obedecia aos parâmetros formais foram instrumentos que consolidaram a ditadura
militar no Brasil.
Do ponto de vista demográfico, contudo, a forte influência dos Estados Unidos
no Brasil não se traduziu em políticas públicas de controle da natalidade,
apesar da ostensiva pressão direta, através da United States Agency for
International Development (Usaid), ou indireta, por meio de algumas fundações
privadas e de organismos internacionais, como o Banco Mundial e as Nações
Unidas, onde a posição americana era hegemônica.
As posições referentes ao controle de natalidade se diferenciavam dentro dos
grupos que davam sustentação interna ao regime militar brasileiro. Os
militares, que assumiram a responsabilidade direta pelo controle do aparelho
estatal, defendiam, em sua maioria, a tese de que o território brasileiro
comportaria uma população maior e, portanto, não se atemorizavam com o problema
do rápido crescimento demográfico. Ao contrário, consoante com a perspectiva
predominante na época, de defesa da segurança nacional, crescer e redistribuir
a população, de modo a ocupar o amplo espaço vazio nacional, era um objetivo
estratégico para os militares. Um bom exemplo foi o ambicioso e malsucedido
projeto de colonização da região amazônica, que tinha como meta transferir
cerca de 1,5 milhão de famílias da região onde existiam muita população e pouca
terra, o Nordeste, para a Amazônia, onde existiam muita terra e pouca população
(Martine, 1987).
Por outro lado, uma proporção significativa dos tecnocratas, associados aos
militares na administração pública, mostrava-se defensora da necessidade de
políticas públicas que contribuíssem, efetivamente, para o controle da
natalidade. A justificativa era a de que o crescimento da economia e,
principalmente, a redução da pobreza seriam por demais facilitados se o ritmo
do crescimento da população fosse menor. Um dos expoentes dessa corrente foi o
economista Mário Henrique Simonsen, ministro, por duas vezes, dos governos
militares, que seguia a tradição analítica de Roberto Campos, para quem "a
tecnologia agrícola matou o demônio malthusiano na primeira metade do século
XX. A tecnologia bioquímica o ressuscitou na segunda metade do século" (citado
por Simonsen, 1975).
Simonsen faz uma crítica ao que ele denomina a aritmética dos coelhos, ou seja,
à tradição católica brasileira, que teria levado a população a seguir à risca o
preceito bíblico "crescei e multiplicai-vos", num ufanismo demográfico que se
esquecia que a população é o "denominador da fórmula da renda per capita", cujo
rápido crescimento contribuía negativamente para o bem-estar das pessoas. Para
ele, a assertiva dos ufanistas de que a solução seria "aumentar o banquete e
não diminuir o número de comensais" era equivocada, porque não se tratava de
"reduzir o número de comensais, mas, apenas, de refrear a sua taxa de
crescimento". Em segundo lugar, para Simonsen, o
argumento de que o importante seria acelerar a taxa de crescimento do
produto real e, não, conter o aumento da população revelava a
incapacidade de raciocinar com funções de duas variáveis.
De fato, ambas as preocupações eram relevantes, não havendo razão para que uma
excluísse a outra. "Dentro das boas regras da aritmética, se fosse possível
aumentar o dividendo e conter o divisor, tanto melhor para o quociente". E,
mais importante do que tudo isso, afirmava
que se escapamos do círculo vicioso da pobreza absoluta, talvez
continuemos enredados no da pobreza relativa [...] se não
conseguirmos deter a nossa explosão populacional. (Simonsen, 1975, p.
99 e 115)
Do ponto de vista da política populacional, Simonsen defendia a necessidade de
superar o fatalismo demográfico, segundo o qual
a taxa de natalidade acabará declinando com a urbanização e o aumento
da renda real per capita [...] e dificilmente será possível antecipar
tal declínio por simples medidas de política demográfica. (Simonsen,
1975, p. 115)
Para ele, "não se tratava de criar o Estado-Herodes, mas compreender que o
planejamento familiar afastaria o risco da paternidade irresponsável,
inserindo-o dentro de uma política educacional" (Simonsen, 1975, p. 99 e 115).
A posição desse segmento da tecnocracia não foi suficientemente influente para
incluir a questão do crescimento demográfico na agenda governamental, até
porque outros grupos importantes no cenário político, como a Igreja Católica,
eram francamente contrários a qualquer política de regulação da fecundidade e
até de oferta de serviços neste campo. Acrescente-se que o Estado no Brasil, aí
incluídas as elites que sempre o governaram em seus diferentes momentos
históricos, nem sempre considerou a população uma questão neutra no
desenvolvimento do país e na construção da nação. Ao contrário, recorrentemente
preocupou-se com a questão populacional, principalmente com a formulação de
políticas migratórias, no que se refere tanto ao estímulo da imigração
internacional quanto à redistribuição interna da população, mediante projetos
de expansão da fronteira agrícola e políticas de ordenamento territorial.
Não se deve esquecer que as políticas de imigração internacional no final de
século XIX e princípio do século XX tinham como objetivo buscar no mercado
internacional não somente a mão-de-obra necessária à economia, mas também o
aperfeiçoamento étnico do povo brasileiro, que as elites desejavam fosse mais
branco e industrioso, como os europeus (Brito, 2004, p. 17).
A diversidade de opiniões dentro dos governos militares levou-os a uma
deliberada omissão, que se, por um lado, não os conduziu à formulação explícita
de uma política de controle da natalidade, por outro, possibilitou o livre
trânsito no governo dos tecnocratas favoráveis ao controle da natalidade e o
livre acesso à população de organizações privadas nacionais e internacionais de
inspiração neomalthusiana, que agiam principalmente no Nordeste do país.
A politização da questão do crescimento demográfico pelos Estados Unidos, no
contexto do pessimismo malthusiano, e o lugar estratégico reservado à sua
desaceleração dentro da sua política internacional levaram, principalmente na
América Latina, a um confronto político-ideológico e científico entre aqueles
que defendiam as políticas de controle da natalidade e a quase unanimidade dos
cientistas sociais, constituídos, majoritariamente, por professores e
pesquisadores com fortes convicções nacionalistas e socialistas, entre eles a
grande maioria dos demógrafos. Acrescente-se que, no Brasil, a forte
resistência à política intervencionista norte-americana e à sua sustentação ao
regime ditatorial levou a maioria dos cientistas sociais interessados ou
dedicados aos estudos populacionais, convictos opositores do regime militar, a
uma postura ainda mais radical contra toda política que pudesse ser
relacionada, direta ou indiretamente, com o planejamento familiar, qualquer que
fosse seu matiz.
Ademais, estavam convencidos de que não havia demanda insatisfeita por
anticoncepção. Por lógico, se o Estado porventura se fizesse presente nesta
área, qualquer declínio da fecundidade, em conseqüência de sua ação, seria um
fruto inaceitável da coerção. Apesar de o governo brasileiro implementar,
explicitamente, desde os anos 50 até o final da década de 70, políticas de
redistribuição de população, mormente pela expansão da fronteira agrícola, a
atenção da grande maioria dos demógrafos estava concentrada na oposição aos
chamados neomalthusianos, isto é, àqueles que defendiam a implementação de
políticas de população ' no caso, estrito senso, políticas de controle da
natalidade. Opunham-se, no Brasil, a qualquer presença do Estado no domínio
exclusivo das decisões dos indivíduos e casais sobre o número adequado de
filhos.
A politização excessiva da questão do crescimento demográfico levou os chamados
neomalthusianos a superestimar a eficiência de políticas de controle da
natalidade sobre os níveis de fecundidade, assim como os efeitos positivos da
desaceleração do aumento populacional sobre o crescimento da economia e o
equilíbrio social e político. Também impeliu seus opositores a subestimarem a
demanda genuína por anticoncepção e os efeitos negativos para os indivíduos e
as famílias, assim como para a sociedade e para a economia, advindos de uma
fecundidade permanentemente alta e do conseqüente rápido crescimento
populacional.
Dos dois lados da contenda sobre o controle da natalidade havia apenas um ponto
consensual, nunca reconhecido como tal: não se deveria esperar por um declínio
natural da fecundidade nos países então chamados de subdesenvolvidos,
obviamente aí incluído o Brasil, no curto e médio prazos. A corrente
neomalthusiana, com a sua visão pessimista ' e muitas vezes catastrófica ' do
rápido crescimento demográfico, propugnava por políticas que interferissem
diretamente no nível da fecundidade, conduzindo as famílias pobres a superarem
a sua "irracionalidade" econômica e social no tocante ao número de filhos. Seus
antagonistas, inclusive a maioria dos demógrafos brasileiros, estavam convictos
de que só o verdadeiro desenvolvimento econômico, com mudanças estruturais
profundas, levaria os casais a planejar sua prole. Como a economia brasileira
crescia a taxas positivas muito altas, afirmava-se, então, que estava havendo
crescimento econômico, não, porém, desenvolvimento econômico. Só neste último
caso a fecundidade declinaria de modo natural, o que, por si só, não
corresponderia a um ganho para indivíduos e para a sociedade, uma vez que o
número de filhos e o ritmo de crescimento populacional seriam neutros, do ponto
de vista do bem-estar social.
A compreensão teórica da neutralidade da população em face do crescimento da
economia e do bem-estar social buscava a sua fundamentação, em muitos casos,
nas críticas feitas por Marx a Malthus. Segundo o primeiro, o grave equívoco do
segundo foi acreditar que o excedente demográfico nos países capitalistas era
decorrente do crescimento demográfico.
O economista alemão não colocava em dúvida a existência de um excedente
demográfico; ao contrário, considerava que ele fazia parte da própria natureza
da acumulação capitalista, que produz, constantemente, devido ao progresso
técnico, uma população supérflua. O crescimento da população trabalhadora seria
sempre mais rápido do que o do capital variável, gerando, conseqüentemente, um
número de desempregados ' o exército industrial de reserva ' estruturalmente
determinado pelo processo de acumulação. Para Marx, a contração ou expansão do
exército industrial de reserva seria uma função não do tamanho absoluto da
população, mas das proporções dos exércitos economicamente ativo e da reserva
em que se divide a classe trabalhadora, segundo os diferentes ciclos
industriais (Marx, 1975).
Esta conclusão poderia levar a uma leitura de que o tamanho da população e,
logicamente, o seu crescimento seriam neutros em relação à dimensão do
excedente populacional. Porém, se considerarmos a própria tese de que a
velocidade do crescimento da população trabalhadora seria sempre maior do que a
do capital variável, o seu tamanho e crescimento seriam determinantes na
divisão entre as proporções da população economicamente ativa e da reserva.
Pois, quanto maior o crescimento e, portanto, o tamanho da população, maior o
excedente populacional. Nesta perspectiva, a população, ainda que por motivos
diferentes dos enunciados por Malthus, não poderia ser considerada uma variável
neutra.
Os debates teóricos e as discussões políticas sobre a neutralidade da questão
demográfica, isto é, sobre as implicações do tamanho e ritmo de crescimento da
população, e sobre a necessidade ou não das políticas de regulação da
fecundidade estenderam-se da segunda metade da década de 60 até os anos 80.
Entretanto, segundo alguns estudiosos da população,
o significado real do planejamento familiar para os indivíduos e
famílias de baixa renda ' que carregavam o ônus da responsabilidade
pelas rápidas taxas de reprodução ' não foi objeto de discussão
explícita na época, em vista da reação extremamente negativa às
pressões internacionais e da predominância de atitudes de laissez-
faire com respeito ao assunto. (Martine e Faria, 1986, p. 7)
O rápido declínio da fecundidade no Brasil: e agora?
Enquanto a contenda se desenvolvia, a história passava ao largo, alheia àquele
radicalismo inócuo e à existência ou não de políticas de controle da natalidade
ou de planejamento familiar. Já havia indicadores de que a fecundidade das
mulheres brasileiras começara a declinar. O viés ideológico e a certeza sobre a
implausibilidade de sua queda, produto do debate e do contexto no qual se
realizava, impediram alguns demógrafos, como Carvalho (1973), de enxergar essa
realidade. A sua tese de doutorado tinha elementos que indicavam, claramente,
um persistente declínio da fecundidade em regiões responsáveis por 61% da
população brasileira em 1970.
As séries P/F,4 resultantes da aplicação da técnica de fecundidade de Brassaos
dados do Censo de 1970, que deveriam ser rapidamente decrescentes em contextos
de fecundidade constante, apresentaram-se constantes, até crescentes, no Sul e
Sudeste brasileiros, ao contrário daquelas das demais regiões. O Anexo
apresenta as séries P/F das populações que cobrem todo o Sul e Sudeste, assim
como aquelas do Norte,5 Nordeste Central6 e do país como um todo.7 Estavam a
indicar, indubitavelmente, no Sul e Sudeste, persistente e significativo
declínio da fecundidade, enquanto nenhuma conclusão, sequer inferência, poder-
se-ia tirar no tocante às outras regiões. Da série do país como um todo, se
analisada cuidadosamente, poder-se-ia levantar uma hipótese robusta, qual seja,
de que já estaria havendo, pelo menos durante os anos 60, queda sistemática dos
níveis de fecundidade.
Poder-se-ia esperar que Carvalho (1973), diante de tais evidências, inferisse
ou pelo menos levantasse a hipótese de que o país já teria entrado no processo
de transição de uma fecundidade alta a uma fecundidade baixa, visto que a
fecundidade vinha caindo nas regiões brasileiras mais desenvolvidas de forma
continuada. Já se sabia, então, que nos países onde o processo de transição se
encontrava avançado, o declínio da fecundidade começara nos grupos e regiões
mais desenvolvidas para, em seguida, espalhar-se por toda a população.
A mesma falta de acuidade repete-se em trabalho imediatamente posterior. Ainda
baseado em sua tese de doutorado, analisando a situação demográfica do
Nordeste, Carvalho (1975, p. 29 e 35) afirma:
Seus níveis de fecundidade são elevadíssimos [...] Historicamente,
tem sido mais fácil baixar os níveis de mortalidade, uma vez que a
queda da fecundidade depende, antes de tudo, de um verdadeiro
desenvolvimento socioeconômico. [...] No que tange ao Brasil como um
todo, observa-se uma alta contínua no seu potencial de crescimento
[...] Parece-nos que a crença [...] de que o Brasil já começou a
experimentar uma queda duradoura em suas taxas de crescimento não se
apóia em uma boa base científica.
Apesar de o Censo de 1970 já trazer indicadores do declínio da fecundidade no
Brasil, estes não foram devidamente detectados pelos demógrafos e estudiosos da
população, submersos no confronto político-ideológico. Os dados das PNADs de
1972 e 1976 confirmaram, claramente, o declínio da fecundidade no Brasil nos
anos 70. A TFT tinha se reduzido em 5%, entre 1970 e 1972, e 22% entre 1972 e
1976 (Carvalho, 1980, p. 537).
Foi um "Deus nos acuda" nos dois pólos da contenda, pois a realidade estava
desmentindo a única tese sobre a qual concordavam: não havia no país demanda
generalizada pela redução do número de filhos e, conseqüentemente, pela
anticon-cepção. Foram anos de perplexidade na comunidade demográfica
brasileira, incapaz de prever, ainda que como uma probabilidade, o fenômeno,
muito menos sua magnitude.8
Chegou-se mesmo a argumentar, ignorando-se o já prenunciado pelos dados do
Censo de 1970, que o declínio aparente da fecundidade poderia ser conseqüência
de erros de amostragem da PNAD de 1972. Porém, os dados da mesma pesquisa do
IBGE, em 1976, atropelaram tal argumento, reiterando uma queda rápida e
significativa da fecundidade na maioria das regiões do país.
Restava, pois, explicar o que para a grande maioria dos demógrafos e estudiosos
de população apresentava-se como absolutamente inusitado. Algumas análises
levaram em conta os chamados fatores inibidores da fecundidade, utilizando-se
dos determinantes próximos de Bongaarts. Destaca-se, no caso, o trabalho de
Elza Berquó, apresentado em 1980 em um seminário do Grupo de Trabalho sobre o
Processo de Reprodução da População, do Conselho Latino-Americano de Ciências
Sociais (Clacso), em Teresópolis (RJ), que arrisca algumas hipóteses
explicativas. A primeira delas refere-se a que
[...] uma fração da classe trabalhadora, principalmente da periferia
das grandes cidades, vem sofrendo uma diminuição da libido (não sei
se esse é o termo mais correto) devido a problemas de saúde e
desgaste físico. O que me leva a pensar nesta hipótese são as
jornadas de trabalho nas cidades grandes, que podem cobrir até 10 ou
12 horas por dia, acrescidas do tempo gasto em transportes coletivos,
que pode chegar a 2 ou 3 horas diárias. Se a isto se agregam os
problemas de saúde e desnutrição que podem afetar diretamente a
libido, tem-se todo o quadro completado. (Berquó, 1983)
As outras hipóteses de Berquó referem-se ao cálculo econômico incorporado
"mesmo a contragosto, para alguns", por uma fração da classe trabalhadora na
decisão sobre o número de filhos e à inserção da mulher no mercado de trabalho.
Há de se louvar a atitude de Elza Berquó, ao autorizar a publicação do artigo
três anos após sua apresentação no Seminário de Teresópolis. Como introdução,
ao artigo original ela acrescenta duas páginas, sob o título de "Advertência
(ou uma confissão)", onde faz reflexões e refere-se, em breve relato, aos
avanços interpretativos alcançados após o seminário do Clacso. Afirma, nesta
introdução, que sua primeira reação foi de não autorizar a publicação do
artigo, pois ela própria "já havia avançado no sentido de algumas das hipóteses
ali apenas esboçadas". Entretanto, "fora convencida do contrário ' o pôr juntos
os trabalhos [...] é importante como forma de eternizar aquele momento de
reflexão [...] [pelo qual o Grupo do Clacso] passou ao longo de sua
trajetória".
Um outro tipo de análise sobre o declínio da fecundidade foi apresentado por
Carvalho, Sawyer e Paiva (1981). Os autores consideram a generalização do uso
de anticoncepcionais, inclusive entre a população rural, porém não tomam esse
fato como determinante, em um país onde não havia uma política oficial de
planejamento familiar. Defendem a tese de que "o aspecto mais importante da
queda da fecundidade seria a alteração do comportamento das populações de baixa
renda" (idem, p. 56).
Nessa camada da população teriam ocorrido dois fenômenos fundamentais para a
queda da fecundidade. O primeiro deles foi
[...] a intensificação do processo de proletarização que reduziu,
drasticamente, a contribuição da produção doméstica para o consumo de
uma grande parte da população brasileira. Isto tornou ainda mais
difícil a criação de grandes famílias, em razão de ter cessado, em
sua maior parte, a participação dos filhos na produção dos vários
itens consumidos pela família. (idem, p. 57)
O segundo argumento tem a ver com a realidade específica do período:
na década de 1970, a despeito do pequeno aumento dos salários reais,
os preços dos gêneros alimentícios aumentaram mais rapidamente do que
os preços dos bens industrializados, o que reduziu ainda mais o
padrão de vida da população de baixa renda e tornou menos factível a
manutenção de famílias grandes. (ibidem)
Em 1983, em trabalho publicado pelo Committee on Population and Demography, da
National Academy of Sciences, Merrick e Berquó (1983) apresentam estudo ' o
mais detalhado, até então, relacionado ao Brasil ' sobre os determinantes do
rápido declínio da fecundidade no país. Contando, também, com informações da
Pesquisa Nacional de Reprodução Humana, que, coordenada pelo Cebrap, levantara
dados em nove localidades de diferentes regiões do Brasil, os autores avançam
as seguintes hipóteses:
a) o principal componente da queda teria sido o declínio da
fecundidade marital;
b) o determinante próximo mais importante daquele declínio seria o
aumento do controle dentro do casamento;
c) o declínio da fecundidade marital teria acontecido devido à
generalização do controle da fecundidade dentro das regiões e grupos
sociais mais pobres;
d) esses grupos teriam passado por transformações socioeconômicas,
tais como o aumento da escolaridade, da posse de bens de consumo
duráveis e da participação das mulheres no mercado de trabalho, que
teriam engendrado normas favoráveis às famílias pequenas (Merrick e
Berquó, 1983, p. 3-4).
Uma análise do declínio da fecundidade no Brasil que sintetiza, em parte, as
contribuições anteriores e amplia o seu escopo analítico é a de Faria (1989).
Esse texto dá ênfase às mudanças institucionais, associadas "tanto ao processo
de desenvolvimento excludente ' e, portanto, ao processo de proletarização e
empobrecimento ' quanto ao padrão de intervenção do Estado capitalista
brasileiro pós-1964". Não desconsidera, também, os determinantes próximos da
fecundidade e pretende
[...] contribuir para o debate sobre a transição da fecundidade,
introduzindo:
a) fatores de caráter cultural, sem cair no vazio das generalizações
funcionalistas da teoria da modernização;
b) conseqüências não-antecipadas da ação governamental, sem uma visão
conspiratória ou mecânica dessa ação;
c) uma modalidade de análise que enfatiza a complementaridade causal
entre os processos estruturais e a ação dos atores, ultrapassando o
falso dualismo entre determinação estrutural e ação individual.
(Faria, 1989, p. 69)
A tese de Faria (1989) é a de que um conjunto de políticas governamentais gerou
mudanças culturais de grande difusão espacial, provocando a institucionalização
da demanda por uma regulação da fecundidade. As políticas governamentais
mencionadas são as do crédito ao consumidor, de telecomunicações, de
previdência social e de atenção à saúde. Os efeitos dessas políticas sobre a
demanda pela regulação da fecundidade são considerados "conseqüências não-
antecipadas". Entre as conseqüências, poder-se-ia listar:
a) fortalecimento do cálculo econômico como padrão de orientação na
definição do número de filhos;
b) exposição da população à cultura médica;
c) separação, em termos de valores e normas, entre atividade sexual e
atividade reprodutiva;
d) deslocamento da responsabilidade social (saúde, previdência) do
eixo familiar para o Estado.
A institucionalização da demanda pela regulação da fecundidade, sem a oferta de
meios relativamente eficientes de anticoncepção, com a necessária redução dos
seus custos econômicos, sociais e psicológicos, e a não existência de uma
[...] política pública de oferta de meios de regulação da
fecundidade, explícita e passível de controle democrático, permitiram
que a demanda por esses meios tivesse de ser atendida,
fundamentalmente, embora não exclusivamente, no mercado [...] todo
esse processo acabou por adquirir um caráter profundamente
discriminatório [...] desfavorecendo as camadas mais modestas da
população. (Faria, 1989, p. 95)
O autor conclui que
a inexistência de uma política de oferta de meios de regulação da
fecundidade, através de outros mecanismos que os de mercado, terminou
por prejudicar os segmentos sociais mais modestos. E é justamente
nisso que reside o efeito perverso dessa ausência. (Faria, 1989, 96;
grifos do autor)
Digno de observação é que esse excelente texto de Faria não foi apresentado em
reunião da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) e, sim, em
reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs). Certamente, não seria fácil para os demógrafos e estudiosos da
população responderem a uma questão colocada pelo autor, também associado da
Abep:
[...] a oposição a uma política pública de oferta de meios de
regulação, com o controle popular do seu desenho e de sua
implementação, não teria tido resultados perversos, isto é,
contrários àqueles que essa oposição desejava conseguir, na medida em
que o resultado da ausência teria sido prejudicial aos grupos e
setores sociais que se queria beneficiar e proteger? (Faria, 1989, p.
95)
O próprio autor adianta que, "em caso afirmativo, essa é uma das muitas peças
que a dialética do processo social é capaz de pregar" (Faria, 1989, p. 96).
O biombo ideológico atrás do qual se alinhava a maioria dos demógrafos e
estudiosos da população, na ampla contenda contra a interferência norte-
americana e a sua visão de política da população, impediu que eles enxergassem
as necessidades, e por elas lutassem, daqueles que seriam, pelo menos
teoricamente, seus aliados. O resultado foi uma cumplicidade, mesmo que "não-
antecipada", com efeito perverso sobre a população mais pobre, traduzida em um
silêncio profundo sobre seu direito de regular a sua fecundidade.
As conseqüências deste maniqueísmo levaram a que a Assembléia da Abep, em 1980,
votasse contra moção que pretendia que o IBGE se responsabilizasse por uma
pesquisa nacional sobre fecundidade, no âmbito do World Fertility Survey (WFS),
então implementado em vários países, tendo como base comum um questionário
padrão. Sobre esse fato, reza a ata da Assembléia de 13 de outubro de 1980, ao
relatar as deliberações tomadas: "[...] rejeitar por 28 (vinte e oito) votos
contra 14 (quatorze) a favor e 18 (dezoito) abstenções, moção proposta pelo
membro Maria Helena T. Henriques de que a Abep manifeste seu interesse e apoio
a que a Fundação IBGE se faça responsável pela realização de uma pesquisa
nacional de fecundidade" (Abep, 1980).
Um dos autores deste artigo era, então, presidente da Abep e votou pela
rejeição da moção. Ainda bem que, em 1986, o suplemento da PNAD foi dedicado à
fecundidade das mulheres brasileiras. Contou, então, com o apoio da Abep,
inclusive na formulação do questionário.
Em 1990, a área de demografia do Cedeplar não aceitou, por decisão da maioria
de seus membros, convite para participar da pesquisa DHS (Demographic and
Health Survey) no Nordeste. O DHS, à semelhança do WFS, era um programa
internacional de estudos comparativos, também baseado em um questionário
padrão, mas que permitia adaptações segundo a realidade e interesses dos países
envolvidos. Em 1996, foi aplicado no Brasil como um todo. Neste caso, com a
participação, na discussão dos questionários, de alguns pesquisadores dos
principais núcleos de demografia do país. Houve, então, da parte do Cedeplar,
apoio logístico para a implementação da pesquisa em Minas Gerais, Espírito
Santo e no Centro-Oeste.
Do lado dos grupos neomalthusianos, a primeira reação ao inesperado declínio da
fecundidade foi creditá-lo ao aumento do número de abortos, ainda que, com
isso, houvesse o reconhecimento implícito por forte demanda por anticoncepção
(antes negada, daí a necessidade de intervenção). A ênfase no aumento da
prevalência de aborto fortalecia o pleito pela implementação de serviços de
planejamento familiar em todo o país, no qual estavam diretamente interessados.
Até então, falava-se, sem nenhuma base empírica, em cerca de um milhão de
abortos no Brasil por ano. Esta estimativa sofreu, de repente, alucinante
aumento. O relatório do Banco Mundial de 1984 afirma que "calcula-se que entre
3 e 5 milhões de abortos ilegais e clandestinos são realizados anualmente no
Brasil, ou aproximadamente um para cada nascimento" (World Bank, 1984).
Não tendo condições de desconhecer o rápido declínio da fecundidade no Brasil,
na ausência de qualquer política governamental com esse objetivo, em vez de
analisar a ocorrência do fenômeno, o relatório prefere comparar o caso
brasileiro com os da Colômbia e do México, onde as políticas populacionais
teriam sido responsáveis por uma queda nos níveis de fecundidade mais acentuada
que a do Brasil. Não há referência às fontes utilizadas pelo relatório,
entretanto as estimativas de pesquisadores brasileiros não confirmam as suas
inferências. Pelo contrário, o declínio da fecundidade no Brasil, entre os
finais das décadas de 60 e 70, foi superior ao do México e da Colômbia (World
Bank, 1984).
Independente da posição dos demógrafos e estudiosos da população, a partir da
segunda metade da década de 70 a anticoncepção espalha-se rapidamente pelo
Brasil, com freqüência patrocinada por instituições privadas, como a Sociedade
Civil de Bem-Estar da Família (Bemfam), aliadas a instituições médicas e
amparadas numa deliberada omissão do Estado. Desde 1971, o governo federal
havia reconhecido a Bemfam como entidade de utilidade pública (Fonseca
Sobrinho, 1993).
Alguns programas governamentais na área do planejamento familiar e da saúde
reprodutiva ' o importante papel dos movimentos feministas
Na Conferência Internacional de População de Bucareste, organizada pelas Nações
Unidas em 1974, o governo brasileiro ainda se mantinha, oficialmente, favorável
à tese de que, "em termos absolutos, não há problema de superpopulação no
Brasil". Porém, e de acordo com a oposição antiimperialista dos seus próprios
opositores, afirmaria:
A política demográfica brasileira é do domínio soberano do governo do
Brasil. O governo não aceitará interferência de caráter oficial ou
privado na sua política demográfica [...] O controle demográfico é
uma decisão do núcleo familiar, o qual, a esse respeito, não deve
sofrer interferência governamental. A capacidade de recurso ao
controle da natalidade não deve ser um privilégio das famílias
abastadas e, por isso, cabe ao Estado proporcionar as informações e
os meios que possam ser solicitados por famílias de recursos
reduzidos. (citado por Fonseca Sobrinho, 1993, p. 148)
Em 1978, o então presidente do Brasil, Ernesto Geisel, em entrevista concedida
durante sua viagem ao México, foi explícito:
Nós achamos que a limitação da natalidade não deve ser imposta. Ela
deve ficar ao arbítrio, ao desejo do casal. É o marido e a mulher que
têm que resolver seu problema. Mas, eles devem ser informados sobre
essa questão. E devem ter uma orientação de como realizar o seu
planejamento familiar. Esse é o meu ponto de vista pessoal. Quero
dizer que no Brasil isto ainda não está sendo praticado. (citado por
Fonseca Sobrinho, 1993, p. 154)
Na sua mensagem ao Congresso Nacional, em 1983, em plena crise econômica, o
presidente João Figueiredo convocou o Congresso para um amplo debate sobre a
questão populacional, para que se determinassem as políticas adequadas a
respeito. Justificava a mensagem, como se vê, com forte conotação
neomalthusiana:
A explosão demográfica ocorre, sobretudo, nos países menos
desenvolvidos, onde se comprimem cerca de dois terços da população
mundial. No Brasil, nos últimos quarenta anos, o aumento demográfico
ultrapassou 50 milhões de habitantes. Este crescimento humano, em
termos explosivos, devora, como se tem observado, o crescimento
econômico, agente da estabilidade; acarreta desequilíbrios sociais,
econômicos, culturais e políticos que reclamam profunda meditação.
(citado por Fonseca Sobrinho, 1993, p. 136)9
A mensagem repercutiu no Congresso, que instalou uma Comissão Parlamentar de
Inquérito cujo relatório final, aprovado em 1984, teve uma forte influência da
Bemfam. O relator era membro do Grupo de Parlamentares para o Estudo de
População e Desenvolvimento, ao qual a Bemfam, desde 1981, prestava assessoria.
Foram quatro as conclusões do relatório:
1) a necessidade de formação de uma atitude consciente coletiva: a da
"paternidade responsável";
2) a identificação do "planejamento da prole" como sendo um direito
humano, onde a decisão cabe ao casal, devidamente informado;
3) a responsabilidade do Estado em fornecer as informações e os meios
para que os casais possam implementar suas decisões;
4) a constatação de que tal responsabilidade ultrapassa os limites do
Ministério da Saúde, devendo ficar a cargo de um Conselho Nacional de
População e Planejamento Familiar, ligado diretamente à Presidência
da República. (citado por Fonseca Sobrinho, 1993, p. 156)
Enquanto os parlamentares procuravam dar uma roupagem nova ao controle de
natalidade, o Ministério da Saúde foi mais ágil. Contando com um grupo de
médicos de longa tradição progressista e com a colaboração do emergente
movimento das mulheres, deu início ao Programa de Assistência Integral à Saúde
da Mulher (Paism). Já em 1983, o projeto começava a ser discutido no Congresso
de Saúde Pública em São Paulo. A implantação do Paism foi conseqüência de uma
compreensão do planejamento familiar como um dos componentes da saúde da
mulher, fortalecida, principalmente, com a nova moldura política e ideológica
introduzida pelo movimento feminista.
O movimento das mulheres cresceu e consolidou-se no Brasil assentado em dois
pilares principais. Em primeiro lugar, o movimento internacional pelos direitos
das mulheres, que envolvia uma nova visão do seu papel e da sua inserção
social. Em particular, sobre os seus direitos reprodutivos e sobre a sua
soberania em relação ao seu corpo e à sua sexualidade. A importância do
movimento das mulheres fez a Organização das Nações Unidas proclamar 1975 como
o Ano Internacional das Mulheres. Um outro pilar foi o processo de luta pela
democratização do país, no qual o Movimento Feminino pela Anistia cumpriu um
papel fundamental.
A presença das mulheres no cenário político do país foi fundamental para a
emergência de uma nova visão do planejamento familiar. Entretanto, ligadas a
diferentes grupos político-ideológicos, elas
[...] estiveram sempre oscilando entre orientações partidárias e
autonomia para as suas reivindicações. Neste contexto, o planejamento
familiar sempre foi área conflitiva. Era difícil para as mulheres
aceitar sem discussão o laissez-faire em matéria de controle da
reprodução, como pregava a esquerda. Por outro lado, não podiam se
confundir com o antinatalismo proposto pela direita [...] Mas não
pode haver prática feminista sem tocar nos temas da sexualidade,
controle do corpo, respeito pelos desejos das mulheres, direito de
aborto etc. [...] e como sufocar a discussão, uma vez que ela aponta
para a necessidade de garantir às mulheres das classes populares o
acesso aos instrumentos da contraconcepção? (Cardoso, 1983, p. 3)
Estava posto um novo paradigma político para se compreender o planejamento
familiar. Não se tratava mais de discutir a relevância de se controlar a
fecundidade para que o crescimento da economia fosse maior e mais justo. A
própria história recente brasileira desmentia a tese controlista: a economia
tinha crescido aceleradamente desde os anos 50, a fecundidade havia diminuído
aceleradamente a partir da segunda metade dos anos 60, e a pobreza continuava
num patamar inaceitável. Não se podia mais considerar o planejamento familiar
como uma panacéia para se reduzir a pobreza.
Mais ainda, a década de 80 marcou a transição do país para um regime político
democrático, e apesar dos diversos obstáculos o seu êxito foi indiscutível. O
autoritarismo na política passava para a história, era o desejo da sociedade:
"nunca mais!". Com o processo de redemocratização, o autoritarismo implícito em
muitas propostas controlistas foi para a lata de lixo da história. A sociedade
democrática constrói-se baseada na garantia dos direitos políticos e sociais
dos cidadãos. O movimento das mulheres sublinhou os seus direitos, inclusive os
direitos reprodutivos. Estava posto um novo paradigma para o planejamento
familiar. Mas, para caminhar decisivamente nessa direção,
seria necessário reconhecer a necessidade de uma política de saúde
que garanta a todas as mulheres a informação e a assistência de que
necessitem para exercer o direito de optar por ter ou não ter filhos,
usando os métodos que escolham, sem qualquer constrangimento.
(Cardoso, 1983, p. 5)
A preparação havida no Brasil para a Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento do Cairo (CIPD), de 1994, a própria constituição da delegação
oficial do país (com representantes da Abep e de ONGs) e a sua atuação naquele
evento atestam as mudanças profundas ocorridas tanto no seio da sociedade,
quanto no nível governamental.
Após exaustiva interlocução com a sociedade civil organizada, aí incluídos os
estudiosos de população e demógrafos, poder-se-ia dizer que a posição oficial
levada pelo país à CIPD representava quase um consenso (Berquó, 1998). A
divergência mais marcante partiu da Igreja Católica, sem no entanto atingir a
radicalização e virulência constatadas em outros países latino-americanos.
Pode-se afirmar que os pontos mais marcantes das resoluções da CPID,
consubstanciados nas recomendações do Programa de Ação do Cairo-94, já
constavam da proposta brasileira. Entre eles, dados os objetivos deste artigo,
há que se ressaltar:
a) ao invés de se atribuir aos Estados o papel de definir o ritmo em
que suas populações deveriam crescer, "conforme suas conveniências, a
abordagem do Cairo se baseia, acima de tudo, nos diretos humanos e no
conceito de desenvolvimento sustentável" (Alves, 1995);
b) "ênfase nos direitos sexuais e reprodutivos, ao invés do foco no
planejamento familiar" (Alves, 2004, p. 37);
c) "incentivo às parcerias entre governos e ONGs na área da regulação
da fecundidade e dos serviços de saúde reprodutiva" (Corrêa e Sen,
citado por Alves, 2004).
Na verdade, o consenso levado à CIPD fora construído durante os anos 80. Vale a
pena fazer referência a uma assertiva da dra. Leila Linhares:
A Constituição Brasileira de 1988 pode ser considerada como tendo se
antecipado ao Plano de Ação de Cairo, ao reconhecer, por pressão
principalmente do movimento das mulheres, o planejamento familiar
como direito fundado nos princípios da dignidade humana [...] sendo
sua demanda de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar
o acesso necessário aos serviços e à informação e orientação para o
exercício desse direito, vedando qualquer forma de coerção. (Tanaka
et al., 2002, p. 41)
Atualmente, existem nos diferentes níveis de governo vários programas focados
na atenção à saúde reprodutiva, incluindo a informação e distribuição de meios
necessários à regulação da fecundidade. Estes programas ocorrem em um contexto
de aceleradas mudanças sociais, econômicas e culturais, no Brasil e no mundo,
em conjunto com o aperfeiçoamento da medicina ligada à saúde reprodutiva,
grandes responsáveis pelo rapidíssimo declínio das taxas de fecundidade. Em
1970, a TFT das mulheres brasileiras era de, aproximadamente, 5,8 filhos
nascidos vivos por mulher. Em 2000, em torno de 2,3!
O declínio da fecundidade no Brasil foi vertiginoso: a taxa de fecundidade
total de 5,8 filhos nascidos vivos por mulher, em 1970, caiu para 2,3 em 2000.
Contudo, nem todas as mulheres têm tido um acesso democrático aos meios
contraceptivos e a todo o progresso técnico ligado à saúde reprodutiva. As
dificuldades impostas pela seletividade do mercado e as deficiências dos
serviços de saúde pública para a grande maioria da população feminina pobre
ainda mantêm muitas mulheres como reféns da desinformação e da falta de acesso
aos meios anticoncepcionais. Isto impede que vivam plenamente os seus direitos,
já limitados pela própria pobreza: de fato, vivem uma cidadania limitada.
Conclusão
Ressuscitar o velho debate controlistas versus não-controlistas no início do
século XXI seria repetir, como farsa, o que antes terminou em tragédia.
Questões ideológicas postas há décadas foram superadas pela história. Hoje, os
direitos sociais impõem-se sobre as teorias que justificavam as velhas
contendas. Para tornar ampla e irrestrita a cidadania das mulheres mais pobres,
como a de todas as outras, cabe aos demógrafos e estudiosos da população não
somente o reconhecimento, "em alto e bom som, da legitimidade do planejamento
familiar" (Cardoso, 1983, p. 8), mas, também, que propugnem, como profissionais
da área, que a ele tenham acesso as camadas mais pobres da população. Não se
trata de uma interferência impositiva ou constrangedora, como ocorreu e ocorre
em outros países, mas de criar condições, através do poder público, para que
todas as mulheres possam cuidar de sua saúde sexual e reprodutiva e regular a
sua fecundidade, segundo seus desejos e necessidades, podendo, assim, caminhar
para o exercício de sua cidadania plena.
Não há mais motivos para buscar no passado o pano de fundo ideológico e, muito
menos, para jogar para debaixo do tapete das velhas teorias as evidências de
que a população não é uma variável neutra no processo social. Sabe-se,
perfeitamente, que as variáveis demográficas não são exclusivamente dependentes
ou determinadas por processos macroeconômicos, mas também determinantes. Aliás,
deve-se a essa crença na neutralidade, alimentadora de batalhas gloriosas,
porém equivocadas, no passado, o fato de que ainda se observa na demografia
brasileira uma enorme dificuldade para reconhecer que o declínio da
fecundidade, com as conseqüentes diminuição do ritmo do crescimento
populacional e profunda mudança na estrutura etária, abriu para a sociedade
novas oportunidades, assim como coloca sérios desafios. Se muito doloroso for,
porque equivaleria a uma reavaliação crítica, ainda que sempre salutar, que não
se usem expressões tais como "janela de oportunidades" ou "bônus demográfico".
Porém, os profissionais da área têm a obrigação de, constantemente, chamar a
atenção para essas oportunidades e desafios. As primeiras, em sua maioria,
rapidamente se extinguirão e têm de ser aproveitadas enquanto duram. Os últimos
têm de ser enfrentados, pois vieram para ficar. As tendências demográficas,
hoje evidentes, são irreversíveis.
Nas regiões estagnadas, como o semi-árido nordestino, onde a pobreza tornou-se
secular, ou em outras, como as grandes áreas metropolitanas, onde reside,
atualmente, a maior parte da população mais pobre brasileira, a significativa
proporção de filhos não desejados tornou-se parceira da miséria e da degradação
social. Mulheres, reféns da sua cidadania incompleta, não têm tido a
oportunidade de exercer seus direitos reprodutivos, inclusive o direito de
regular sua fecundidade, segundo os seus desejos e necessidades. São
socialmente empurradas, pela desinformação e falta de acesso aos meios de
regulação, para a geração de uma prole que só tem tornado mais grave a sua
situação social. A pobreza, repetindo o óbvio, não é fruto do crescimento
populacional, mas a ele se articula em muitas circunstâncias, num círculo
vicioso que precisa ser rompido por meio de diversas políticas sociais, entre
elas o planejamento familiar. Pode-se repetir, com Ruth Cardoso, mais de 20
anos depois: "Estas são as razões pelas quais uma política de planejamento
familiar é uma política social inadiável no Brasil" (Cardoso, 1983, p. 7).
A demografia brasileira, nas últimas quatro décadas, cresceu e consolidou-se,
seja através da Abep, seja através dos bons centros de pesquisa e ensino, seja
através dos inúmeros profissionais espalhados pelos órgãos públicos e
instituições de todo o país. Na América Latina, constitui uma das comunidades
demográficas mais sólidas, com jovens gerações muito bem formadas, que nada
devem às suas co-irmãs de outras partes do mundo. Muito se fez, mas ainda há
muito por fazer. Que esta avaliação crítica sobre os nossos equívocos e
silêncios no passado contribua para que não os reproduzamos no presente e no
futuro.