Dinâmica migratória e o processo de ocupação do Centro-Oeste brasileiro: o caso
de Mato Grosso
Introdução
Embora o Mato Grosso tenha uma história de ocupação complexa, pode-se dizer que
este Estado começa a despontar no cenário brasileiro a partir do avanço da
frente pioneira paulista, em meados do século 20. Em um primeiro momento, este
avanço provocou a ocupação no norte do Paraná, expandindo-se, posteriormente,
para o sul do antigo Estado de Mato Grosso, com a pecuária de corte. Em
seguida, nos anos 60, houve a entrada de gaúchos e paranaenses que se dedicavam
à cultura do trigo e da soja (IPEA e FJN, 1997).
A dinâmica socioeconômica e a configuração espacial observadas no caso de Mato
Grosso assemelham-se bastante a "fases" já verificadas em outros Estados da
região Centro-Oeste ' como Goiás ou Mato Grosso do Sul ', que tiveram a
ocupação de seus territórios anteriormente. No entanto, para o Estado de Mato
Grosso, evidencia-se uma maior intensificação do processo de ocupação
demográfica e econômica recente, acarretando, de forma muito mais precoce, os
impactos de grandes transformações na estrutura produtiva e fundiária regional,
o que teve importantes implicações sobre sua dinâmica migratória.
Tais impactos podem ser percebidos através de dois aspectos principais: a
redução significativa dos fluxos migratórios para a área, nas últimas décadas
(80 e 90); e as características e formas de inserção produtiva do migrante.
Do mesmo modo, este processo de transformação pode ser percebido no âmbito
intra-estadual, com relação ao comportamento demográfico dos vários subespaços
do Estado, cujas trajetórias refletem as diferenças regionais e as
peculiaridades das diversas microrregiões, seja em termos do processo de
ocupação econômica, seja através dos momentos de ocupação da fronteira
agrícola. Fica claro nas análises que a forma como tradicionalmente o Mato
Grosso foi ocupado vem se esvaindo gradativamente, principalmente à medida que
a inserção dos migrantes torna-se cada vez mais difícil, considerando-se as
novas e mais vigorosas formas de ocupação econômica do território.
Além dessa redução da intensidade e do volume da imigração para Mato Grosso,
evidencia-se também um incremento da emigração para fora do Estado. As
informações analisadas a este respeito mostram duas características distintas:
por um lado, boa parte desta emigração (54% do total nos anos 90) refere-se, na
verdade, a um retorno de grandes contingentes de pessoas que haviam procurado o
Estado como uma alternativa para suas reproduções sociais; por outro,
verificase que outra parte significativa desta emigração corresponde a um
movimento que, ao longo da pesquisa, se rotulou de "caminho ou trilha da
fronteira" (CUNHA, 2002; CUNHA, ALMEIDA e RAQUEL, 2002; CUNHA e SILVEIRA,
1999), ou seja, não se trata propriamente de um processo de evasão demográfica
de nativos ou moradores mais antigos, mas sim de uma redistribuição espacial da
população migrante, que, em função de fatores de mudança, para utilizar a
terminologia de Singer (1980), se vê obrigada a procurar novos lugares para o
possível assentamento "definitivo".1
Em suma, o que se percebe em Mato Grosso é que este Estado, hoje,
particularmente em termos migratórios, está muito aquém daquilo que foi na
década de 70 e parte dos anos 80, fruto do progressivo desaparecimento de um
dos fatores que mais contribuíram para a sua ocupação: a expansão e/ou
manutenção das áreas de fronteira agrícola. Não é por acaso que o Estado,
atualmente, apresenta elevado grau de urbanização, onde os centros urbanos
tornaram-se as últimas opções para a permanência dos migrantes ali chegados,
situação que se agrava quando se considera o reduzido potencial de absorção
demográfica da maioria deles.
Mato Grosso: uma breve contextualização do seu processo de ocupação territorial
A região Centro-Oeste e, particularmente, o Mato Grosso possuem uma economia
com caráter essencialmente agrícola e urbanização crescente, mas ainda com
extensas áreas de matas e florestas. Estas características formam o retrato da
sua diversidade demográfica e ambiental, que são capazes de explicar seu grande
dinamismo econômico nos últimos anos.
Na década de 60, a Região Centro-Oeste iniciou um processo de modificação de
sua estrutura produtiva, impulsionada pela ação estatal através dos programas
de incentivo à modernização agropecuária e integração da região aos outros
mercados, elementos que tiveram importantes conseqüências em sua dinâmica
demográfica e no processo de redistribuição espacial da população.
Esta ação estatal explicita-se através da preocupação de integração nacional do
regime militar, o que justifica os representativos investimentos em grandes
projetos agropecuários. "Enquanto a sociedade brasileira era duramente
reprimida pelos governos militares que sucederam no poder nesse período, o
Araguaia, o Mato Grosso e a Amazônia foram invadidos pelos grandes grupos
econômicos através dos projetos agropecuários" (OLIVEIRA, 1997, p. 290).
Esta intervenção do governo foi realizada, principalmente, através do Prodoeste
(Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste), efetivado pela ação da Sudam
(Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), no qual muitos grupos
empresariais beneficiaram-se em diversos aspectos do processo de ocupação da
fronteira amazônica. Vale lembrar que vários projetos aprovados, alguns
megalomaníacos, nunca efetivamente entraram em funcionamento, o que gerou uma
série de escândalos pelo uso indevido de dinheiro público. Os autores ainda
sugerem que a década de 70 foi fundamental para compreender a estrutura
produtiva e a urbanização do Centro-Oeste, já que a região foi amplamente
beneficiada pela "marcha modernizadora do oeste", provocando um intenso
direcionamento dos fluxos migratórios para áreas mais promissoras.
Posteriormente, ocorreu uma articulação entre Estado e detentores de
representativos volumes de capital, realizando incentivos para que estes
pequenos produtores se engajassem em projetos de colonização, característicos
da década de 80, em substituição aos grandes projetos agropecuários da de 70.
Diante disto, pode-se observar que os anos 80 caracterizaram-se pela realização
destes projetos de colonização, baseados em assentamentos de famílias em
pequenas propriedades e executados por empresas públicas e privadas. Porém,
estes projetos acabaram limitados e tiveram suas chances de sucesso reduzidas
por diversos elementos, tais como: características qualitativas da terra;
dificuldade de acesso ao crédito por parte dos pequenos agricultores; e
condições de isolamento da maioria das áreas colonizadas (em particular no caso
do norte de Mato Grosso). Neste contexto, a abertura dos grandes eixos
rodoviários, especialmente a BR-163 Cuiabá-Santarém (1971-1976), foi um marco
representativo da efetiva implantação dos projetos de colonização.
Como conseqüência desta "colonização acelerada", ocorreu a multiplicação de
diversos novos municípios nas áreas de fronteira, como é o caso do norte de
Mato Grosso, os quais sofrem até hoje com a ausência de infraestrutura e
serviços. São cidades pequenas, na maioria das vezes com população variando
entre 20 e 50 mil habitantes, distantes geograficamente umas das outras.
Diante desta forma de ocupação populacional, surgiu um novo tipo de atividade
agrícola, isto é, a agricultura altamente capitalizada e mecanizada, cuja forma
mais difundida em Mato Grosso é a cultura da soja. Segundo Becker (2000), a
soja chega a ser uma opção viável nos cerrados ou para recuperar áreas com
pastagens, principalmente quando se considera a melhoria genética das sementes,
conseguida através de pesquisas financiadas pela iniciativa privada com apoio
estatal, apresentando assim efeitos positivos. No entanto, a autora teme pelo
aumento do desmatamento que esta cultura pode gerar se avançar muito ao norte
do Estado, aumentando, portanto, a tendência à destruição do meio ambiente.
Outra atividade econômica importante nestas áreas de fronteira é a pecuária,
que vem penetrando cada vez mais nas áreas florestais. Este aspecto é
ressaltado por Cláudio Egler (2000), que mostra como o capital financeiro tem
investido na constituição de uma forte economia agropastoril no Estado de Mato
Grosso (o 4º rebanho nacional). Além disso, existem ainda outros aspectos que
devem ser considerados quando se pretende compreender o processo de ocupação de
Mato Grosso: a questão indígena, o meio ambiente e a prática do garimpo.
Embora tais questões não sejam tratadas neste artigo, não se pode negar a
existência, no Estado, de diversos problemas inerentes a elas, como, por
exemplo, o desrespeito às terras indígenas, a devastação ambiental e o efeito
predatório dos garimpos. Estes aspectos constituem elementos importantes que
estão relacionados ao processo de ocupação e expansão da fronteira agrícola no
Estado do Mato Grosso.
Estas características do processo de ocupação territorial, aliadas à expansão
do modelo agrário convencional, foram extremamente prejudiciais para o produtor
familiar e causaram ainda fortes impactos socioambientais, como mostram os
dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais): até agosto de 1998,
10% das florestas já estavam desmatadas. Provavelmente a demanda por madeira é
a grande responsável por essa situação crítica, já que Mato Grosso e Pará são
os maiores produtores de madeira em tora do país. Além disso, depois da
realização das queimadas, a pecuária acaba sendo a alternativa mais imediata
para a valorização da terra.
Este cenário acaba gerando grandes focos de "tensão social" em territórios
matogrossenses. Todas estas características tiveram forte impacto no processo
migratório experimentado pelo Estado de Mato Grosso, sendo que tais elementos
exprimem-se tanto em termos das tendências do fenômeno ao longo do tempo, como
no que tange ao perfil desta mobilidade populacional.
A dinâmica demográfica em nível regional
Os dados sobre o crescimento populacional e o processo de urbanização de Mato
Grosso não deixam dúvida quanto ao fato de que, nos anos 90 (mais precisamente
no segundo qüinqüênio da década de 802), o Estado passou por uma importante
inflexão no seu crescimento demográfico, resultante das significativas
transformações no seu processo de desenvolvimento econômico e estrutura
produtiva, entre outros fatores (Tabela_1).
O crescimento demográfico no Estado, que durante vários períodos registrou
altas taxas ' superior a 5% ao ano nas décadas de 70 e parte da de 80 ',
reduziu-se abruptamente nos anos 90, atingindo cerca de 2,4% a.a., embora ainda
tenha sido bem superior à média nacional e ao desempenho de outros Estados do
Centro-Oeste, em particular do Mato Grosso do Sul (Tabela_1).
Ao mesmo tempo em que ocorria redução do crescimento demográfico, Mato Grosso
também se urbanizava a passos largos. Segundo o Censo de 2000, nada menos que
80% de sua população vivia nas cidades; uma taxa alta mesmo considerando-se que
o grau de urbanização do território matogrossense possa estar superestimado,
devido à forma como a informação é captada pelo IBGE, que, como argumenta Veiga
(2002), tende a considerar "cidades" espaços claramente sem as condições
mínimas para tal. Vale lembrar, para efeitos deste estudo, que somente cerca de
20% da população de Mato Grosso ainda residia realmente nas zonas rurais.
Para um Estado que foi ocupado e colonizado com base em programas de
assentamentos rurais, não é difícil perceber que existe uma aparente
contradição: possui uma estrutura econômica nitidamente baseada na
agropecuária, mas com pouquíssima população residindo nas zonas rurais, o que
reflete as conseqüências do estilo de desenvolvimento adotado.
Assim, Mato Grosso caracteriza-se não apenas pela predominância de grandes
latifúndios, mas também por uma produção primária baseada na monocultura e/ou
pecuária extensiva. No primeiro caso, a produção agrícola é altamente
tecnificada e, portanto, utiliza pouca mão-de-obra na realização destas
atividades. Os dados apresentados a seguir demonstram vários aspectos
evidenciados neste processo peculiar de desenvolvimento.
Tal redução das intensidades do crescimento demográfico espelha, em grande
medida, o arrefecimento da migração. De fato, os dados censitários mostram que
a imigração proveniente de outros Estados reduziu-se em quase 23% entre as
décadas de 80 e 90, embora ainda tenha atingido volumes superiores aos fluxos
referentes aos anos 70.3 Contudo, o impacto destes fluxos migratórios sobre a
população do Estado claramente vem perdendo força, uma vez que esta taxa
diminuiu de 0,94% a.a. no primeiro período analisado para 0,58% a.a. nos anos
90, ou seja, para quase a metade do que ocorria há 20 anos.
Em termos dos fluxos migratórios mais significativos, a Tabela_2 mostra que,
aliada à redução da imigração, ocorreu uma mudança significativa no perfil dos
movimentos quanto à última residência dos migrantes. Enquanto no auge da
ocupação as pessoas provenientes do Paraná representavam cerca de 35%,
respondendo, juntamente com outras origens como Goiás (14%), São Paulo (13%) e
Mato Grosso do Sul (11%), por quase 3/4 da imigração registrada, nos anos 90 o
quadro modifica-se bastante. Percebe-se uma brusca redução na participação
relativa do Paraná (19%), o que acaba permitindo um aumento naquela de outras
origens, como é o caso de Rondônia.
No entanto, em algumas áreas, como na microrregião de Colíder, os nordestinos
ocupam também lugar de destaque nos anos 80, seduzidos principalmente pelo
enriquecimento fácil que o garimpo prometia. Justamente foi essa microrregião a
que recebeu maior volume de imigração entre as três áreas do norte de Mato
Grosso. Esta situação mostra as diferenças existentes entre os vários tipos de
migração destinados para o Estado, sendo, em geral, distintas as motivações e
principalmente a natureza destes movimentos caso se trate de nordestinos ou de
sulistas.4
O arrefecimento de imigração, relacionado à indiscutível diminuição dos
atrativos para os migrantes, especialmente para aqueles interessados na
"promessa" das fronteiras agrícolas para se estabelecerem como pequenos
proprietários e desenvolverem uma agricultura ou pecuária em base familiar, não
foi o único fator demográfico responsável pela redução do crescimento
populacional matogrossense. Houve também intensificação da emigração para fora
de Mato Grosso, a partir dos anos 80, registrando inclusive aumento absoluto na
década de 90 da ordem de 100% se comparada à de 70.
De qualquer modo, é importante notar que a emigração praticamente estabilizou-
se entre os anos 80 e 90 e, como conseqüência, sofreu uma redução de sua
intensidade (0,39% a.a. e 0,34% a.a., respectivamente). Esta certa
estabilização das perdas populacionais evidencia, por um lado, que o maior
impacto das grandes transformações produtivas no Estado parece já ter ocorrido
entre meados dos anos 80 e começo dos 90 e, por outro, a redução significativa
de imigração já demonstrada anteriormente. De fato, à medida que passam a
ingressar menos migrantes no Estado, seria natural esperar uma redução também
do volume de saídas.
Além disso, outro elemento deve ser considerado ao se analisar a emigração de
Mato Grosso: o retorno de muitos dos migrantes para suas zonas de origem, em
particular durante a década de 90. Como se nota no Gráfico_1, do total daqueles
que deixaram o Estado, mais de 54% retornaram para suas Unidades da Federação
de nascimento, valor bem superior àquele observado na década anterior (pouco
mais de 21%).
Tal fato permite considerar que esta emigração configura-se, na verdade, como
um processo não de expulsão destes migrantes de Mato Grosso, mas sim de retorno
à origem, decorrente da constatação das dificuldades de fixação e/ou
insucessos, favorecidos pela interação de diversos elementos, tais como:
inexistência de terras adequadas em função do alto grau de concentração
fundiária; políticas pouco eficazes de assentamentos; falta de alternativas
produtivas que permitissem a reprodução social; etc.
No entanto, percebe-se que, nos anos 80, a baixa taxa de retorno atingia não
apenas os sulistas, que tradicionalmente quase não retornam (CUNHA e AZEVEDO,
2001 e CUNHA, 2004), mas todos os demais migrantes, independentemente da
procedência, inclusive os próprios nordestinos. Este fato conduz à avaliação da
hipótese de que, naquele período, a abertura de outras fronteiras ainda era uma
realidade, o que permitia aos migrantes a busca de outras possibilidades antes
da volta para os Estados de origem. Esta hipótese é fortalecida quando se
observa que, nos anos 90, até mesmo os sulistas apresentaram volume e proporção
significativos de migrantes retornados.
As características migratórias de Mato Grosso podem ser mais bem percebidas e
interpretadas a partir da desagregação da análise em termos regionais,5 tendo
em vista a heterogeneidade do território estadual, no que diz respeito tanto ao
comportamento demográfico quanto às especificidades do processo de ocupação (aí
incluindo os diferentes momentos históricos: transformações econômicas,
estrutura fundiária, uso, ocupação, cobertura do solo, etc.).
Até a década de 80, o Estado poderia ser dividido, grosso modo, em duas
porções: o norte, compondo uma área de maior dinamismo demográfico nas duas
últimas décadas; e o sul, formando uma área mais consolidada e com menores
taxas de incremento demográfico. De fato, enquanto localidades no extremo
norte, como Alta Floresta, Colíder e Alto Teles Pires, cresceram a taxas
elevadíssimas nos anos 80, nas regiões mais ao sul isso não ocorreu, com
exceção de Cuiabá e Rondonópolis, que, mesmo nos anos 90, apresentavam algum
"fôlego", crescendo a taxas superiores a 2% ao ano. Na verdade, nestes dois
casos, trata-se de microrregiões onde localizam-se importantes centros urbanos
' as principais cidades do Estado ', que contam com maior diversificação
econômica, sem considerar o fato de a primeira concentrar praticamente todo o
aparato administrativo estadual como capital de Mato Grosso (Tabela_3).
Já nos anos 90, observam-se até três situações diferentes: maior urbanização e
dinamismo nas microrregiões de Cuiabá, Rondonópolis e Alto Pantanal, onde as
atividades industriais e o setor de serviços são bastante desenvolvidos; um
processo de ocupação um tanto diferente na região central do Estado ' a maior
parte do Cerrado ', abarcando as microrregiões de Parecis, Primavera do Leste,
Alto Teles Pires e Canarana, com presença muito forte da soja ' o principal
produto agrícola ', aliada à cultura do algodão e do milho; e intenso ritmo de
crescimento demográfico no norte do Estado (ou "nortão", como é conhecido), até
o final da década de 80, devido à expansão da fronteira agrícola e,
principalmente, à atividade garimpeira, em clara queda nos anos 90.
No chamado "nortão" do Estado, enquanto as regiões mais ao norte, como Alta
Floresta e Colíder, reduziram drasticamente seu crescimento, na década de 90,
outras áreas da porção ocidental, como Parecis, Alto Guaporé, Alto Teles Pires
e Aripuanã, ainda que em menor ritmo, mantiveram significativo dinamismo
demográfico (Mapa_1). O mesmo pode-se dizer de áreas no nordeste do Estado, em
particular a microrregião do Norte Araguaia. Enquanto em Alta Floresta e
Colíder a quase erradicação da atividade garimpeira explicaria boa parte do
processo, nas outras áreas novos projetos de assentamentos (em particular em
Aripuanã, ao noroeste, e Norte Araguaia, no nordeste) e, principalmente, a
entrada da soja (nas demais regiões) poderiam ser os elementos que
justificariam tal comportamento.
De fato, como mostra a Tabela_4, várias regiões mencionadas anteriormente
figuram entre aquelas que mais receberam este tipo de projeto, inclusive em
termos do número de famílias envolvidas,6 como são os casos das microrregiões
Norte Araguaia e Aripuanã.
Em termos de volumes migratórios apresentados por cada uma das microrregiões de
Mato Grosso, a Tabela_5 explicita as situações e momentos distintos pelos quais
passaram estas áreas ao longo do período estudado. Enquanto as localidades mais
urbanizadas e dinâmicas do Estado reduziram o volume de imigração
interestadual, outras, como as do norte e noroeste do Estado, bem como aquelas
com influência mais recente da soja, registraram incremento do contingente de
pessoas que lá chegaram.
Embora o Mato Grosso tenha se urbanizado em ritmo bastante intenso nas últimas
décadas, particularmente em função das grandes transformações pelas quais
passaram as suas áreas rurais, a migração com destino a estes locais ainda é
significativa em várias regiões.
Por um lado, observa-se que, para o total do Estado, a migração com destino
rural reduziu-se tanto em volume (de 128 mil em 1986/91, para 51,8 mil em 1995/
00) quanto em porcentual (de 55% para menos de 21%7). Por outro lado,
microrregiões como Norte Araguaia, Alto Guaporé e Rosário do Oeste, ainda nos
anos 90, apresentaram 40% dos migrantes se dirigindo para suas áreas rurais.
Não menos significativos foram os porcentuais das micros do chamado "Nortão" '
Aripuanã, Colíder e Alta Floresta ', que, no mesmo período, atingiram
proporções em torno de 30% (Tabela_6).
É bem verdade que, na última década, na esteira dos custos sociais desse padrão
de desenvolvimento, que repercutiram na concentração de terras e significativa
redução do emprego agrícola (MATTEI, 1998), as políticas públicas nacionais
voltaram-se um pouco mais para a questão da Reforma Agrária, que, não obstante
suas várias deficiências,8 teve como conseqüência um aumento do número de
assentamentos no país. Nota-se, por exemplo, o boom que o Estado de Mato Grosso
teve neste período: segundo dados levantados junto ao Incra em Mato Grosso,9
enquanto no período 1986/91 foram criados em todo o Estado apenas 25
assentamentos, este número salta para 262 na década de 90.
As características da migração em Mato Grosso: os reflexos da forma de ocupação
e as mudanças econômicas
O principal intuito desta seção é demonstrar que as características dos
migrantes mostram-se perfeitamente coerentes com a estrutura de condicionantes
que este estudo identifica como fundamentais para justificar as tendências
migratórias observadas no período em questão.
Além disso, enfatiza-se o fato de que tais migrantes apresentam certa
seletividade que tende a se dissipar, à medida que o processo de ocupação da
fronteira também vai se esvaindo ao longo do tempo. Em outras palavras, o
perfil dos migrantes, ao mesmo tempo em que se transforma ao longo das décadas
analisadas, também vai se "moldando" para uma realidade mais urbana, na
proporção em que o destino rural torna-se cada vez menos predominante e
inviável, em função da forma como o Estado se estrutura em termos econômicos e
fundiários.
Quanto à dimensão demográfica, um dos primeiros elementos que merece destaque
refere-se à composição etária, por sexo e familiar dos migrantes. Estudos como
o de Sydenstricker (1992), para Machadinho em Rondônia, que tratam da ocupação
da fronteira, observam que mesmo quando o chefe da família migrava previamente
sozinho ou com os filhos homens mais velhos, visando preparar o lote, o caráter
familiar desse tipo de deslocamento era incontestável. Os resultados de Diniz
(2002) também mostram, para o caso de Roraima, que existe uma clara
predominância de pessoas casadas, em particular nas fronteiras pioneiras.10
Na verdade, dada a especificidade dos "atrativos" da região para a migração
como uma área de fronteira agrícola, em particular nas décadas passadas, seria
de se supor que a migração tivesse um predomínio de famílias,11 a não ser em
casos bem específicos, como regiões de garimpo, por exemplo.
Em termos demográficos, isso se refletiria, por um lado, na forma das pirâmides
etárias e, por outro, no perfil da migração segundo os distintos tipos de
arranjos domésticos, entre os quais aqueles relativos às "famílias nucleares",
que acabariam por apresentar maior peso relativo. Nesse sentido, os dados
apresentados a seguir mostram claramente esse comportamento. Como se percebe
pelas distribuições etárias apresentadas (Gráficos_2, 3, 4), há claras
evidências de que a migração interestadual do tipo familiar realmente
predominou em Mato Grosso, em particular nos períodos em que o fenômeno foi
mais intenso, como as década de 70 e 80. Este fato se traduz na forma piramidal
dos gráficos, muito embora fique claro que a participação de crianças menores
de cinco anos de idade não é muito grande, guardando certa lógica com o que
isso poderia implicar em termos dos constrangimentos para uma migração para
áreas inóspitas, como são as regiões rurais de Mato Grosso.
De qualquer forma, é interessante notar que, já nos anos 90, o perfil etário
dos migrantes sofreu significativa modificação, uma vez que se observa maior
concentração de indivíduos nas idades produtivas, sugerindo, portanto, uma
redução, ainda que pequena, da importância da migração do tipo familiar. Como
se verá mais adiante, este fenômeno, de fato, foi verificado, o que aponta para
uma mudança, ainda que lenta e gradativa, do perfil do migrante que se destina
para Mato Grosso.
Na verdade, em 2000, quando a migração típica de "fronteira" certamente não
tinha a mesma importância, a distribuição etária dos migrantes já mostrava uma
maior seletividade com relação à população "não-migrante" (Gráfico_5),12 em
especial nas idades entre 20 e 35 anos. As observações suscitadas pelas
pirâmides são plenamente corroboradas pela distribuição dos tipos das famílias
de chefes migrantes interestaduais. Assim, a Tabela_7, ao mesmo tempo em que
confirma a predominância de migração do tipo familiar para o Estado, também
indica redução da participação desta categoria de arranjo doméstico em favor,
particularmente, do tipo "individual".
Do ponto de vista do comportamento das microrregiões, o que se percebe é que a
relação entre o perfil dos arranjos domésticos e os momentos de cada área no
processo de ocupação demográfica e da fronteira de Mato Grosso é bastante
clara. Os dados para as regiões do norte e noroeste matogrossense (Alta
Floresta, Aripuanã, Colíder, Arinos, etc.) mostram que, nestas áreas, mesmo em
2000, a proporção de famílias nucleares era a mais significativa entre os
migrantes. A predominância de famílias não se repete no caso das microrregiões
com maior dinamismo urbano, como Cuiabá, Rondonópolis e até mesmo Parecis, que,
como já se comentou, apresentam grande crescimento demográfico e rápida
urbanização, muito provavelmente em função dos efeitos da expansão da soja.
Outro elemento que permite melhor situar a problemática migratória no Estado de
Mato Grosso refere-se à forma de inserção produtiva dos chefes migrantes.13 A
partir desta análise foi possível identificar o progressivo "desmonte" a que
foi submetido o Estado no que se refere às suas formas tradicionais de ocupação
e em termos demográficos e econômicos.
Entre as principais alterações ocorridas no perfil da migração, nos trinta anos
analisados, a que permite maiores inferências quanto aos condicionantes da
redução da migração para o Estado é a forte redução da participação relativa da
categoria "autônomo ou conta-própria na agropecuária",14 no conjunto dos
migrantes. Na verdade, associado ao arrefecimento da migração ao longo do
período, percebe-se que, enquanto na década de 70 esta categoria absorvia
produtivamente 31,4% dos chefes de família migrantes economicamente ativos,
este porcentual reduz-se para algo em torno de 12,9% em 1991 e 9,6% em 2000.15
Na verdade, o impacto das transformações produtivas em Mato Grosso fica ainda
mais claro quando estes dados são analisados segundo as microrregiões, uma vez
que tal procedimento revela reduções ainda mais dramáticas desta categoria de
chefes migrantes, como em Aripuanã (de 39,7% em 1980 para 25,2% em 2000),
Colíder (de 67,7% para 24,5%), Paranatinga (de 51,3% para 10,6%), Jauru (de
54,4% para 16,2%) e Tangará da Serra (de 41,3% para 3,0%). Um caso interessante
a ser também destacado é o de Norte Araguaia, que, nos anos 80, experimentou um
incremento destes migrantes ligados à agricultura familiar, atingindo 40% do
total, sendo que, na década seguinte, este porcentual reduziu-se para 29%.
Nesse caso específico, sabe-se que a área entra com mais força como "rota" da
fronteira apenas na década de 80 (Gráfico_6).
É interessante ainda notar que, no Estado de Mato Grosso, a tendência apontada
para os migrantes também se observa para os "não-migrantes". Como se percebe no
Gráfico_7, estes últimos também reduziram sua participação na categoria
"autônomos ou conta-própria na agropecuária", indicando que o ocorrido com os
migrantes não representa uma situação peculiar, mas sim uma tendência de um
Estado que se urbaniza a passos largos e que, portanto, oferece poucas
alternativas aos seus habitantes, em particular aqueles ligados ao meio rural.
Entre estas alternativas, destacam-se os assentamentos de trabalhadores rurais
ligados à Reforma Agrária, que, juntamente com ocupações espontâneas ' em geral
de pioneiros ' têm viabilizado, ou mantido em algum grau, a agricultura
familiar no Estado.
Vale destacar ainda o caso de Sinop, onde a atividade industrial (leia-se
madeireiras) absorvia, em 1991, mais de 40% dos migrantes, situação que denota
a força desse tipo de atividade nesta área. Porém, na visita a campo, os
discursos de políticos da região já sugerem sinais de fraqueza dessa indústria,
devido, sobretudo, ao esgotamento das reservas florestais mais próximas. Assim,
os investimentos estão se destinando ao desenvolvimento de atividades mais
diversificadas, como indústrias de móveis e ampliação do setor de serviços,
além da introdução da agricultura capitalizada, principalmente de soja e arroz.
A despeito da importância da pecuária no Estado, o porcentual de migrantes que
trabalham nesta atividade é relativamente pequeno, chegando em 1991, a pouco
mais de 4% e aumentando para quase 11% em 2000. Na verdade, verifica-se que,
nas duas últimas décadas, a maior parte dos chefes migrantes estava vinculada a
atividades tipicamente urbanas ' "Comércio e Serviços" e "Indústria" ', que
geravam trabalho a 23,4% e 27,7% dos chefes migrantes em 1991 e 2000,
respectivamente, contra apenas 16,3% no começo do período em estudo.
Tais dados mostram sinais de que o "potencial atrativo" de Mato Grosso como
área de fronteira não consolidada, progressivamente, vai se esgotando, fato que
se reflete nas formas possíveis de inserção dos migrantes, em geral
trabalhadores rurais, pequenos produtores e descapitalizados, a quem restam
poucas alternativas nos centros urbanos ou nos assentamentos ligados à Reforma
Agrária.
Conclusões
Como uma das últimas áreas de fronteira agrícola no país e, portanto, como uma
das poucas alternativas para a migração de pessoas ligadas ao campo, o Estado
de Mato Grosso, até meados dos anos 80, cumpriu um papel importante no processo
de redistribuição espacial da população brasileira. Contudo, sua trajetória
nessa condição foi uma das mais curtas em relação aos Estados do Centro-Oeste,
em função de uma rápida e intensa transformação produtiva e do conseqüente
acirramento do processo de concentração fundiária, ao qual foi exposto nas
décadas de 80 e 90.
Em um misto de desenvolvimento econômico em ritmo intenso e progressivo
"fechamento" das fronteiras agrícolas pioneiras, o Estado de Mato Grosso, em
menos de 20 anos, deixa de ser um palco de possibilidades para milhares de
brasileiros em busca de alternativas de reprodução social no meio rural, para
se converter paulatinamente em uma alternativa de grandes possibilidades
econômicas.
Os dados analisados neste estudo mostram não apenas a redução do ímpeto
migratório para o Estado, como também as relações entre este comportamento e as
mudanças nas formas de inserção dos migrantes, que espelham o processo de
"urbanização da fronteira" e a grande desarticulação das formas de ocupação que
possibilitaram o "desbravamento" de boa parte de seu território.
Mesmo existindo poucas possibilidades concretas para a manutenção de Mato
Grosso como uma área de atração migratória, ainda há muitas regiões do Estado
que se configuram como grandes alternativas para a absorção do grande
contingente de pessoas que exercem atividades ligadas à terra. Hoje em dia,
regiões do noroeste do Estado, por exemplo, são aquelas que mais crescem em
termos demográficos e boa parte deste crescimento se deve a novos núcleos
rurais que surgem. Entretanto, pode-se perceber que proporção significativa do
crescimento demográfico estadual acontece nos centros urbanos, em especial nos
maiores, como Cuiabá, Rondonópolis e Sinop.
A alternativa dos assentamentos rurais tem sido uma possibilidade concreta de
reverter parte desse processo de "urbanização forçada" de grandes parcelas de
migrantes, e até mesmo de nativos e residentes mais antigos do Estado. Na
verdade, pode-se afirmar que o processo de ocupação demográfica de Mato Grosso,
particularmente no que diz respeito ao papel das pequenas propriedades baseadas
na agricultura familiar, provavelmente teria sido ainda mais desarticulado caso
não existissem os programas de assentamentos rurais.
Estes projetos podem ser encontrados em praticamente todos os municípios de
Mato Grosso. No entanto, é fundamental que a forma de implantação e o
gerenciamento destes projetos sejam repensados de maneira a torná-los uma saída
"real" para aqueles que pretendem viver no e do rural.
As atividades econômicas hegemônicas (pecuária e soja) deixam suas marcas em
praticamente todas as áreas existentes, via de regra, implicando considerável
desruralização e inchamento urbano, que, na maior parte do território
matogrossense, não possui condições de reter o excedente populacional. Este
contínuo "movimento da fronteira" é percebido pela avaliação das tendências
demográficas das várias micror-regiões do Estado.
Não se trata aqui de fazer qualquer apologia a possíveis efeitos negativos da
expansão capitalista da agricultura, até porque ela é uma realidade e um dos
grandes pilares do desenvolvimento econômico nacional. Na verdade, como se
tentou mostrar neste estudo, em algumas áreas de Mato Grosso o efeito da soja
até se deu de maneira contrária, ou seja, viabilizando e dinamizando a ocupação
demográfica. No entanto, não há como negar que a forma como se dá a apropriação
da riqueza gerada por esta nova atividade não tem garantido uma distribuição da
renda adequada e nem, por conseqüência, implicado uma melhoria das condições de
vida da população, em particular daquelas pessoas ou famílias que desejariam
garantir sua reprodução social fora dos centros urbanos.
No entanto, considerando a trajetória econômica e demográfica mais recente do
Mato Grosso, fica claro que esta atividade, combinada com a grande hegemonia,
em termos espaciais, da pecuária, deixa poucas alternativas viáveis para a
continuidade do intenso processo de ocupação, como fora observado nas décadas
passadas. Além disso, não se pode perder de vista que parte deste processo
deveu-se à atividade garimpeira, que, embora não esgotada totalmente no Estado,
hoje se desenvolve preponderantemente a partir de grandes empresas mineradoras,
não mais movimentando consideráveis volumes de migrantes.
Resta, portanto, pensar na força dos maiores centros urbanos, como Cuiabá,
Rondonópolis e talvez Sinop, que, no entanto, não parecem possuir uma estrutura
produtiva tão diversificada para fornecer alternativas suficientes para a
atração de migrantes interestaduais. Até porque estes últimos, certamente, são
precedidos pelos migrantes intra-estaduais "deslocados" em volumes cada vez
maiores das áreas rurais, até então ocupadas no âmbito da expansão da
fronteira.
Diante deste quadro, considera-se que o Estado de Mato Grosso caminha
progressivamente para o esgotamento de sua condição de fronteira agrícola,
deixando de ser uma alternativa para os migrantes. Talvez projetos concretos,
como a pavimentação do trecho da Belém-Brasília no Pará ' que facilitaria o
escoamento da produção ', ou ainda aqueles mais distantes da realidade atual,
como o desmembramento de Mato Grosso, pudessem no futuro dar novos rumos à
dinâmica demográfica do Estado. Entretanto, nesse momento é difícil imaginar
sequer a manutenção do poder atrativo dos anos 80 e, conseqüentemente, um
desempenho migratório muito além daquele possibilitado por alguns centros
urbanos.
As análises realizadas permitem, portanto, vislumbrar algumas alternativas para
o processo de ocupação demográfica de Mato Grosso. Deve-se reconhecer que este
processo encontra-se em franca modificação e, certamente, será influenciado por
opções dos governos estadual e federal com relação a questões bastante
complexas, e por vezes contraditórias, para um país capitalista dependente como
é o Brasil: conciliar o desenvolvimento econômico com o desenvolvimento humano
e ainda a conservação ambiental.