Mobilidade populacional, meio ambiente e uso da terra em áreas de fronteira:
uma abordagem multiescalar
Introdução
Embora a mobilidade populacional seja bastante significativa em seus efeitos
sobre o desmatamento, a urbanização e o desenvolvimento regional, um número
maior de estudos empíricos é necessário para clarificar importantes associações
entre estratégias de subsistência rural ' particularmente as que envolvem a
mobilidade populacional ' e estratégias de uso da terra que engendrem a
depleção de recursos naturais em áreas tropicais de fronteira, particularmente
na América Latina.
A escassez de evidências empíricas na literatura reflete, pelo menos em parte,
a ineficácia das teorias existentes na identificação e análise de fatores-chave
relacionados às causas e conseqüências da mobilidade populacional. Isso, por
sua vez, reflete a complexidade teórica e fragmentação em estudos sobre a
mobilidade populacional (ver discussão em BETTREL; HOLLIFIELD, 2000), bem como
a dificuldade em se incorporar, em um único marco conceitual e estratégia
analítica, a diversidade de escalas e níveis de análise afetando a mobilidade
populacional. De fato, enquanto decisões sobre mobilidade populacional podem
ser consideradas, em última instância, de caráter individual, a questão é como
compreender a forma com que fatores associados ao grupo domiciliar ou familiar
e à comunidade ou região ao qual o indivíduo pertence interagem com fatores
individuais no processo decisório.
Este artigo discute aspectos teóricos e metodológicos de uma abordagem
analítica multiescalar que reconheça a relação entre mobilidade populacional,
meio ambiente e uso da terra como dependente da escala e como essencialmente
dinâmica (variando à medida que as escalas temporal e espacial mudam).
Inicialmente, são abordados aspectos empíricos em estudos sobre a associação
entre mobilidade populacional, meio ambiente e uso da terra em áreas de
fronteira, além das dificuldades inerentes para se definir uma análise
multiescalar que contemple tal associação. Em seguida, são apresentados
elementos de uma proposta de pesquisa multi-escalar que articule as dimensões
espaciais e temporais da relação entre mobilidade populacional, meio ambiente e
uso da terra. Discute-se, em seguida, um exemplo empírico de abordagem
multiescalar em uma área de colonização na Amazônia equatoriana. O artigo
encerra com algumas conclusões e implicações para políticas públicas.
Aspectos empíricos em estudos sobre mobilidade populacional,1 meio ambiente e
uso da terra em áreas de fronteira
A fronteira pode ser definida, sob a ótica da dinâmica demográfica e em uma
perspectiva multiescalar, como sendo configurada pelos fluxos populacionais
iniciais (imigração e a "colonização pioneira") e subseqüentes gerações de
colonos (isto é, os descendentes dos colonos pioneiros e os novos imigrantes).
Tais fluxos são explicados tanto por fatores relacionados à dinâmica dos ciclos
de vida pessoal e domiciliar e motivações ou aspirações pessoais quanto por uma
diversidade de fatores contextuais, especialmente os relacionados à comunidade
local, a mudanças estruturais no país, à agenda política (ou geopolítica) e à
infra-estrutura de transportes e comunicações. Estes fatores afetam a
seletividade da mobilidade tanto da geração inicial quanto das gerações
posteriores de colonos, bem como as percepções sobre oportunidades e limitações
da mobilidade.2
A mobilidade populacional e a redistribuição da população têm sido fatores
críticos para a expansão da fronteira agrícola e a conseqüente remoção da
cobertura florestal nativa. Associado ao crescimento populacional via migração,
as gerações subseqüentes de colonos atingirão, gradativamente, as idades
adultas, constituindo um significativo "estoque populacional" que exerce
pressão sobre a oferta de recursos naturais.
Paralelamente, grande parte dos solos tropicais, particularmente na Amazônia,
tende a sofrer declínio em termos de qualidade e fertilidade, comprometendo,
assim, a capacidade de sustento das famílias de colonos e engendrando mais
mobilidade no tempo. As respostas mais comuns às limitações na oferta e
qualidade de recursos são: adaptação dos sistemas agrícolas, envolvendo, em uma
perspectiva boseupiana, a intensificação que visa tanto a subsistência como a
produção de excedente para o mercado; a extensificação agrícola (incorporação
de novas terras para cultivo agrícola), em uma perspectiva malthusiana;3 ou
mesmo, de acordo com uma revisão da teoria de respostas multifásicas
(BILSBORROW, 1987; BILSBORROW; CARR, 2001; BARBIERI; BILSBORROW; PAN, 2006),
uma combinação dessas respostas com estratégias domiciliares de diversificação
da renda via mobilidade populacional e, em última instância, regulação da
fecundidade.
Dessa forma, uma conseqüência provável da busca por melhores condições de vida
ou simplesmente pela sobrevivência, através da mobilidade, é a continuação do
processo de mudança da paisagem na fronteira, aumentando tanto as taxas de
desmatamento quanto a urbanização.4 Tem-se, assim, uma contínua expansão do
"ciclo vicioso do desmatamento" (BARBIERI; CARR, 2005), que relativiza
argumentos malthusianos segundo os quais o crescimento populacional é o único
ou principal determinante da degradação ou depleção de recursos. De fato, um
dos artigos mais debatidos sobre as causas próximas e subjacentes do
desmatamento ' a meta-análise envolvendo vários países do mundo ' conclui o
seguinte sobre o impacto de fatores demográficos sobre o desmatamento:
(...) entre fatores demográficos, somente a imigração de colonos para
áreas de floresta esparsamente habitadas, com a conseqüência de
aumentar a densidade populacional, apresenta uma notável influência
sobre o desmatamento (...) isto tende a ocorrer mais na África e
América Latina do que na Ásia. Contrariamente ao censo comum, o
crescimento populacional devido a altas taxas de fecundidade não é um
determinante primário do desmatamento na escala local em um período
de tempo de poucas décadas (GEIST; LAMBIN, 2001, p.50, tradução
nossa).
Por outro lado, mecanismos relacionados à mobilidade populacional que engendram
modificações na paisagem devem estar articulados às estratégias e políticas de
desenvolvimento e ocupação da fronteira, às condições nas regiões de origem que
expulsam população para áreas de baixa densidade de ocupação e à atração
exercida pelas áreas urbanas emergentes na fronteira.5 Assim, abordagens
empíricas devem procurar articular o desmatamento tropical e a degradação de
recursos às estratégias e características individuais e domiciliares e à
percepção de mudanças nas oportunidades econômicas ' as quais, por sua vez,
estão articuladas a outras mudanças contextuais, de cunho social, político e de
infra-estrutura.
Um outro aspecto importante da relação entre mobilidade, meio ambiente e uso da
terra em áreas de fronteira é compreender a "causalidade inversa" ou "bi-
direcionalidade", como os impactos do ambiente alterado sobre a saúde humana,
particularmente o estabelecimento de níveis epidêmicos de doenças em áreas de
ocupação, e como isto repercute na dinâmica dos fluxos populacionais (ver, por
exemplo, BARBIERI, 2006; BARBIERI et al., 2005).
A compreensão dessas articulações esbarra em limitações apresentadas por
estudos empíricos tradicionais sobre mobilidade populacional. A literatura
tradicional sobre esta questão pode, grosso modo, ser dividida entre abordagens
"micro" (focando indivíduos e domicílios) e "macro" ou "meso" (comunidades,
municípios, regiões, países, etc.). Além disso, análises tradicionais sobre os
determinantes da mobilidade populacional refletem vieses disciplinares
(BILSBORROW et al., 1984; BETTREL; HOLLIFIELD, 2000; CASTLES; MILLER, 2003).
Bettrel e Hollifield (2000) mencionam, por exemplo, o viés da sociologia em
privilegiar as conseqüências da migração, ou particularmente o processo de
assimilação no destino, enquanto antropólogos têm preferido a análise
qualitativa de aspectos sociais, culturais e de gênero que afetam decisões de
mobilidade. Economistas têm privilegiado o capital humano e diferenças de renda
e salário entre regiões como determinantes da mobilidade, negligenciado
dimensões sociais e culturais. Já os geógrafos têm enfatizado os aspectos
espaciais da mobilidade, e não necessariamente quem move ou os motivos desse
deslocamento (BILSBORROW et al., 1984).
Estudos sobre mobilidade populacional também refletem a carência de uma
definição clara do significado de migração (como uma mudança permanente de
residência) vis-à-vis outras formas de mobilidade temporária. Teorias de
minimização de risco e diversificação de renda, por exemplo, tratam
primariamente da mobilidade temporária, embora vários exemplos na literatura
associem tais teorias a estratégias de mobilidade permanente (BARBIERI, 2006).
Outra limitação em estudos tradicionais é a negligência da análise simultânea
entre os fatores determinantes das decisões de mobilidade dos que efetivamente
se movem e os daqueles que ficam, pois os determinantes e a conseqüências da
mobilidade só podem ser adequadamente investigados em relação aos fatores que
não geram tal deslocamento.
Uma implicação dessas limitações na literatura tem sido a falta de dados
adequados e, até recentemente, de metodologias de análise multiescalares da
mobilidade populacional e sua relação com fatores ambientais, o que dificulta
capturar a natureza complexa dos determinantes da mobilidade populacional, que
operam em escalas e níveis variados, e em especial sua interrelação com fatores
ambientais. Wood (1982, 2002), por exemplo, critica a carência de evidências
empíricas e o excesso de explicações ad hoc na literatura, enquanto Stilwell e
Congdon (1991) sugerem que a prevalência de abordagens disciplinares sobre a
mobilidade populacional tem, a rigor, reforçado a dicotomia entre análises
micro e macro. Massey (1990) também sugere que uma conseqüência da
"fragmentação" de estudos sobre a mobilidade populacional em várias
perspectivas teóricas e abordagens analíticas é:
[prevenir] analistas de reconhecerem relações fundamentais entre
variáveis que afetam umas as outras através do tempo e entre níveis
de análise, dependências essas que são intrínsecas à migração e que
geram um forte momentum sobre o processo migratório (MASSEY, 1990, p.
4, tradução nossa).
Massey, seguindo diversos autores desde os anos 80, conclui que um tratamento
adequado dos processos migratórios deve incluir o desenvolvimento e teste de
modelos multiníveis dinâmicos, que utilizem dados em distintas escalas e níveis
temporais e espaciais. Tais modelos devem explicitar as dependências
interníveis envolvidas nas decisões de mobilidade:
( ) decisões migratórias são feitas conjuntamente por membros da
família dentro dos domicílios; decisões domiciliares são afetadas por
condições socioeconômicas locais; as condições locais são, por sua
vez, afetadas pela dinâmica das estruturas política, social e
econômica nos níveis nacional e internacional; e estas interrelações
são conectadas umas às outras no tempo ( ) decisões individuais são
inevitavelmente estruturadas pelos contextos social e econômico, os
quais, por sua vez, refletem tendências e condições na economia
política nacional e no próprio volume da migração (MASSEY, 1990, p.4-
5, tradução nossa).
Em uma abordagem multiescalar, decisões individuais de mobilidade são afetadas
pelo grau de acesso ou percepção das oportunidades oferecidas pelo contexto. Em
particular, hipóteses de perfeita informação sobre lugares de origem e destino
em áreas de fronteira são irrealistas a princípio, devido à existência de
problemas estruturais (particularmente em áreas de fronteira), que criam
ineficiências em redes de migração ou outros mecanismos pelos quais os ganhos
potenciais da mobilidade são transmitidos. Além disso, abordagens atomísticas
que privilegiam indivíduos como tomadores de decisões negligenciam estratégias
coletivas, particularmente domiciliares e familiares, e as limitações impostas
pela comunidade local (por exemplo, o sentido de comunidade, valores religiosos
e familiares que restringem a mobilidade feminina, etc.).
O conceito de abordagem multiescalar nesse artigo refere-se à busca pela
compreensão dos efeitos, sobre a relação entre mobilidade populacional, meio
ambiente e uso da terra, dos múltiplos níveis de análise encontrados ao longo
tanto de escalas espaciais (por exemplo, indivíduos, domicílios, comunidades,
regiões) quanto temporais (anos, estações, etc.). A definição de tempo e espaço
como dimensões da mobilidade populacional reflete uma discussão mais específica
sobre a importância de se compreenderem as articulações entre níveis e escalas,
em estudos envolvendo processos naturais e sociais (GIBSON et al., 2000; WOOD,
2002). Gibson et al. (2000, p. 291) definem escala como a dimensão espacial,
temporal, quantitativa ou analítica usada para mensurar e estudar qualquer
fenômeno, enquanto o conceito de nível pode designar uma região ao longo de
qualquer escala de mensuração.
O termo abordagem multinível tem sido usado na literatura empírica, na maioria
das vezes, para descrever regiões ao longo de escalas espaciais, havendo uma
negligência quanto à importância do tempo como uma escala fundamental em
estudos de determinantes da mobilidade (ver discussão em BARBIERI, 2006). A
definição de uma dimensão temporal é particularmente importante, pois permite a
busca e incorporação de fatores causais afetando a relação entre mobilidade
populacional, meio ambiente e uso da terra, que se estendem no tempo. É nesse
sentido, por exemplo, que Blaikie e Brookfield (1987) discutem a importância de
se incorporar uma escala temporal em estudos sobre população e degradação do
solo como uma forma de compreender as implicações, em um dado período, de
falhas no gerenciamento do uso do solo em períodos anteriores.
Em suma, sugestões de abordagens que considerem distintos níveis e escalas
simultaneamente no estudo da mobilidade populacional não têm sido novidade na
literatura (ver, por exemplo, MASSEY, 1990; BILSBORROW, 1987; BILSBORROW et al,
1984). Entretanto, pouca análise empírica tem sido feita neste sentido. Esta
limitação é, em grande parte, resultante de vieses disciplinares e fragmentação
de perspectivas teóricas existentes, da escassez de dados e pesquisas que
contemplem múltiplas escalas e níveis e, até recentemente, da carência de
metodologias adequadas que abordem a mobilidade populacional em uma perspectiva
multiescalar.
Elementos de uma abordagem multiescalar
A unidade de análise privilegiada e sua articulação com níveis e escalas
distintas
Uma das maiores dificuldades na elaboração de uma abordagem multiescalar é a
definição das unidades de análise e suas articulações com diferentes níveis e
escalas. Alguns autores (por exemplo, HARBISON, 1981; WOOD, 1982; BILSBORROW et
al., 1984) sugerem que a unidade de análise mais apropriada em áreas de
fronteira é o domicílio rural,6 devido à sua flexibilidade em acomodar e
influenciar estratégias e comportamentos individuais, sintetizar e definir
estratégias de ação coletiva e absorver e transmitir internamente aos seus
membros as influências do contexto.
O domicílio pode constituir, também, uma arena de conflitos intergeracionais de
gênero, que afetam decisões e propensões à mobilidade. Barbieri e Carr (2005),
por exemplo, demonstram que a existência de importantes diferenciais de gênero
entre migrantes na Amazônia equatoriana ' com as mulheres mais jovens sendo
mais propensas a migrarem para áreas urbanas próximas dos domicílios rurais dos
pais ' é explicada, em grande parte, pelas limitadas possibilidades de inserção
laboral feminina em regiões rurais, pela preferência do trabalho feminino em
áreas urbanas devido ao menor salário comparado aos homens e pela maior
expectativa de que as mulheres enviarão remessas para o domicílio rural de
origem, em função dos maiores laços com o domicílio de origem e aquiescência à
autoridade paterna.
A rigor, uma mudança importante na literatura sobre mobilidade populacional foi
o deslocamento de perspectivas atomísticas e microeconômicas para uma abordagem
em que o domicílio ou a família constitui uma unidade privilegiada de análise.
Algumas perspectivas teóricas, como a Nova Economia da Migração do Trabalho
(New Economics of Labor Migration ' NELM; ver STARK, 1982), a "teoria de
respostas multifásicas", na reformulação de Bilsborrow e colegas, a partir da
proposta original de Davis (1963), e a "teoria de ciclos de vida domiciliares",
inspirada nos escritos de Chayanov (ver THORNER et al., 1986) e aplicada à
fronteira Amazônica por diversos autores (ver, por exemplo, WALKER; HOMMA,
1996; MARQUETTE, 1998; McCRACKEN et al., 2002; WALKER et al., 2002; BARBIERI et
al., 2005; VANWEY et al., 2006), assumem a mobilidade como uma das estratégias
domiciliares de minimização de risco e busca por determinado padrão de vida em
áreas rurais.
Harbison (1981) também confere um papel central à família nas decisões de
mobilidade, o qual é particularmente importante em sociedades em que a família
representa uma unidade de subsistência e a estrutura por meio da qual o acesso
aos recursos naturais é realizado:
[a família é o] contexto estrutural e funcional dentro do qual
motivações e valores são moldados, o capital humano é acumulado,
informação é recebida e interpretada [e decisões de mobilidade] são
colocadas em operação (...) a natureza específica das relações entre
o indivíduo, a família e o meio ambiente determina a direção de seus
impactos sobre a decisão migratória. Em seu papel como unidade de
subsistência, de socialização e de treinamento e de rede de
comunicação e assistência, a família irá moldar as motivações de
mobilidade de membros individuais (HARBISON, 1981, tradução nossa).
Além de seu papel como unidade de produção, a definição do domicílio como
unidade de análise representa ainda a possibilidade de uma investigação mais
adequada da relação entre dinâmica populacional e estrutura de consumo
domiciliar, e conseqüentemente sua associação com estratégias de sobrevivência
que envolvam a mobilidade populacional e o consumo de recursos naturais e
energéticos. Tendo em vista que o consumo energético, sobretudo de lenha obtida
da floresta nativa, apresenta uma associação direta com o tamanho médio do
domicílio, o consumo de recursos energéticos e naturais tende a decrescer com o
tamanho do domicílio, mesmo considerando que uma parte do consumo domiciliar é
uma proporção fixa de recursos naturais.
Obviamente, o foco exclusivo no domicílio como unidade de análise privilegiada,
sem a consideração de outros determinantes micro ou macro, representa a mesma
armadilha de outras abordagens que não incluem a articulação entre múltiplos
níveis e escalas. Assumir o domicílio ou família como a unidade de análise
privilegiada não implica a negligência de indivíduos, comunidades, regiões,
etc. como unidades articuladas de análise. Por exemplo, abordagens que tratam a
dinâmica da relação entre ciclo de vida domiciliar e uso da terra de forma
endógena não permitem verificar o grau de independência entre ambos,
principalmente quando mediadas por efeitos de período (por exemplo, políticas
públicas formuladas no nível nacional que repercutem na escala domiciliar e
produção agrícola). Ao se considerar, também, que decisões individuais de
mobilidade são condicionadas pelas características dos domicílios, é importante
relaxar alguns dos pressupostos básicos da abordagem microeconômica ' em
particular, de que indivíduos são entidades autônomas para tomarem decisões
sobre mobilidade a fim de maximizarem a renda, em um ambiente de perfeita
informação sobre lugares de origem e destino.
É nesse sentido que Simon (1976) propõe a substituição do "indivíduo
maximizador" e portador de conhecimento perfeito de todas as informações
pertinentes para sua tomada de decisões, por um indivíduo que busca apenas
escolher a primeira opção que aparece de forma satisfatória, entre todas
aquelas disponíveis no curto prazo (em contraste à "escolha ótima" sugerida
pela abordagem microeconômica). Dessa forma, o relaxamento do pressuposto de
informação perfeita e independente abre a possibilidade de se reconhecer um
ambiente de informação incompleta e distorcida na tomada de decisões de
mobilidade, assim como a importância-chave do domicílio como elemento
condicionador de estratégias individuais de mobilidade.7
Definição de um marco conceitual multiescalar
Um marco conceitual multiescalar da relação entre mobilidade populacional e
meio ambiente reconheceria, como sugerido por Gibson et al. (2000), que
variáveis explanatórias dessa relação mudam qualitativa e quantitativamente à
medida que a escala de análise se altera, tanto espacialmente (domicílios
rurais, comunidades, regiões, países, etc.) quanto temporalmente (semanas,
meses, anos, ciclos, etc.). Fatores causais na relação devem ser entendidos
como dependentes da escala e das interações entre escalas e níveis. A
construção e operacionalização de um marco conceitual multiescalar requer,
pois, a identificação de elementos (ou fatores, ou variáveis) que conectem seu
nível e escala de análise correspondente a outros níveis e escalas. O propósito
final seria, então, identificar uma "estrutura multiescalar" de incentivos e
restrições à mobilidade ou à decisão de não se mover.
A definição apropriada da escala temporal é particularmente importante para
capturar fatores que afetam as causas e conseqüências da mobilidade
populacional (particularmente os fatores ambientais) em períodos passados. Isto
remete a uma grande limitação na literatura empírica em boa parte das ciências
sociais, conforme sugerido por Morgan (1993):
(...) a maioria das teorias [em ciências sociais] foca em padrões de
mudança de longo prazo, mas a maioria das evidências empíricas vem de
estudos do tipo cross sectional ou, na melhor das hipóteses, de
períodos recentes (...) Dessa forma, estudos com horizontes temporais
curtos são utilizados para testar teorias amplas sobre mudanças
sociais, apesar de fatores idiossincráticos e temporais serem os
responsáveis por boa parte das mudanças (MORGAN, 1993, p. 235-6,
tradução nossa).
A avaliação temporal dos processos que afetam a associação entre mobilidade
populacional, meio ambiente e uso da terra também requer a compreensão das
interconexões entre fatores individuais, domiciliares e comunitários em um
processo de causalidade cumulativa, no sentido proposto por Myrdal (1957). O
argumento básico é de que a mobilidade populacional é um fator que, por si só,
modifica as condições que engendram mais mobilidade ao longo do tempo. A
migração pode, por exemplo, modificar a organização socioeconômica dos
domicílios e comunidades rurais de origem, por meio: dos retornos ao trabalho e
modificação dos padrões de consumo; de financiamento da produção através de
remessas de migrantes ou poupança derivada da mobilidade temporária; e do
incentivo ao uso de inovações tecnológicas e produtivas (por exemplo, uso de
insumos químicos) que aumentem a renda agrícola.
Fatores relacionados ao ciclo de vida domiciliar que estimulam a seletividade
da migração (por exemplo, a disponibilidade de indivíduos mais jovens e com
melhor nível educacional) é outro mecanismo que pode reforçar o efeito de
"causalidade cumulativa" ao longo do tempo (MASSEY, 1990; CURRAN, 2002). A
interação entre seletividade e redes de migração ao longo do tempo, no entanto,
pode tornar a primeira menos importante na definição de quem se move, devido,
em grande parte, ao fato de a migração mudar, ao longo do tempo, as
características da comunidade ou do contexto que influenciam a seletividade da
migração. Por exemplo, a mudança do papel da mulher na divisão do trabalho,
devido à introdução de novos valores em sociedades rurais, pode interagir com
fatores individuais e domiciliares (educação, idade, etc.) para alterar a
preferência masculina na mobilidade rural-rural e dessa forma equilibrar
propensões de migrar entre gêneros (ver exemplo dessa discussão em CURRAN,
2002; BARBIERI; CARR, 2005).
Fontes de dados
A elaboração de um marco conceitual multiescalar requer a disponibilidade de
uma base de dados hierárquica e longitudinal (incluindo tanto dados de
pesquisas amostrais quanto imagens de sensoriamento remoto ou uso de Sistemas
de Informação Geográfico ' SIG), que permita a mensuração da mobilidade e suas
causas e conseqüências (particularmente as relacionadas a padrões ambientais e
de uso da terra) em um determinado intervalo de tempo.
Pesquisas especializadas de migração são particularmente úteis em áreas de
fronteira, sejam estas realizadas em conjunto ou separadamente de levantamentos
sobre uso da terra, saúde, etc., pois permitem: a) capturar uma maior
diversidade de movimentos populacionais vis-à-vis pesquisas generalistas ou
censos demográficos; b) associar a mobilidade a fatores determinantes no
momento exato ou aproximado da mobilidade; c) identificar conseqüências
específicas da mobilidade para os domicílios e comunidades de origem e destino;
e d) coletar informações sobre quem no domicílio influencia, de fato, a
mobilidade de outros membros do domicílio.
Além disso, pesquisas que envolvem métodos apropriados de amostragem
(superamostragem, estratificação e cluster, etc.) permitem lidar com o problema
característico de migrante como "elemento raro", ou seja, de sua identificação
na população. Ressalte-se ainda que uma pesquisa de migração deve coletar
informações não apenas sobre os indivíduos do domicílio que se movem, mas
também dos que não se movem ' o que é particularmente importante para políticas
públicas que visem aumentar o padrão de vida da população retida em áreas
rurais.
Em uma abordagem multiescalar em áreas de fronteira, enquanto a associação
entre indivíduos e domicílios é trivial nas etapas de elaboração do desenho
amostral, coleta de dados e preparação da base de dados, a ligação de
indivíduos e domicílios às comunidades rurais ou urbanas é mais problemática.
Comunidades em áreas de fronteira podem variar enormemente em tamanho e
características de infra-estrutura, serviços, homogeneidade cultural, etc.,
definindo, dessa forma, um contexto bastante heterogêneo para a tomada de
decisões de mobilidade por indivíduos. Uma forma de associar domicílios rurais
a comunidades é através da distância física (por exemplo, distância euclidiana)
ou tempo de viagem ' ou seja, a comunidade de referência de um domicílio rural
será aquela para a qual a distância ou tempo de viagem for menor. Uma segunda
forma de associação é a identificação da área de influência de uma comunidade
sobre um domicílio rural, por meio de um conjunto específico de fatores ou
variáveis (serviços como saúde, educação e cartório, atendimento religioso,
mercado de trabalho e para a compra e venda de bens, etc.).
Por outro lado, pesquisas amostrais de migração, a não ser que estejam baseadas
em amostras relativamente grandes, não são adequadas para estimar taxas (para
tanto, censos nacionais constituem um instrumento adequado). O objetivo
principal das pesquisas é explicativo, ou seja, coletar informações sobre os
que se movem e os que não se movem e sobre o processo de mobilidade, em
detalhes suficientes para possibilitar uma análise profunda dos determinantes e
conseqüências da migração. Não obstante, o principal problema dos censos para a
análise da mobilidade é justamente fornecer elementos para um estudo de causa e
efeito entre mobilidade e seus determinantes e conseqüências (incluindo as
ambientais), assim como estabelecer um período adequado de referência entre a
mobilidade e seus fatores explicativos. Assim, pesquisas amostrais e censos
podem ser vistos como instrumentos importantes, porém com finalidades
distintas, e cujo uso conjunto pode ser útil para avaliar mais precisamente a
importância dos movimentos migratórios, assim como servir de fonte de
informação para políticas públicas.
Operacionalização do marco conceitual multiescalar
Nenhum modelo empírico, com sua simplificação da realidade, é capaz de
representar plenamente a complexidade das relações existentes entre quaisquer
fenômenos populacionais e naturais. Não obstante, a literatura empírica tem
sugerido fatores em diversas escalas e níveis de análise, que afetam a relação
entre população e meio ambiente (ver revisão da literatura em BARBIERI, 2006).
A operacionalização de um marco conceitual multiescalar envolve explicitar não
apenas os efeitos independentes destes fatores em diversas escalas e níveis
sobre a relação entre população, meio ambiente e uso da terra, mas também como
diversos fatores se interconectam e interagem de forma a afetar tal relação.
São descritos aqui, brevemente, dois métodos multiescalares de análise da
associação entre mobilidade populacional, meio ambiente e uso da terra: modelos
estatísticos multiescalares e técnicas de análise espacial.
Modelos estatísticos multiescalares
A partir de uma base de dados hierárquica e longitudinal, pode-se construir uma
variedade de modelos estatísticos multiescalares. Considera-se, a título de
exemplo e por simplificação, um modelo incorporando somente a dimensão
espacial, em que são definidos três níveis de análise: um indivíduo i residindo
em um domicílio rural j em uma comunidade de referência k. Em um modelo
multinível multinomial, as categorias da variável resposta podem ser descritas
como r: r =1, se o destino escolhido é urbano; r=2 se o destino escolhido é
rural; e s=r =0, se o indivíduo opta por não se mover. Nessa situação, o modelo
multinível multinomial pode ser descrito como:
em que representa o log-odds de se ter
um evento do tipo r ao invés de um do tipo s, a categoria de referência
(decisão de não se mover). O termo gr000 representa o intercepto do modelo; [/
img/revistas/rbepop/v24n2/03x1b.gif] representa: a) um vetor de z variáveis
independentes nos níveis individual (a), domiciliar (x) ou comunitário (w); b)
um vetor grz de uma variável independente, z, nos níveis individual, domiciliar
e comunitário. Os termos u representam os efeitos aleatórios (random effects)
de variáveis ou fatores não-observáveis operando nos níveis domiciliar e
comunitário. Assume-se que os efeitos aleatórios são normalmente distribuídos
[u~N(0,s2u)]. A fim de se observar a condição de independência de erros (visto
que os termos de interação entre diferentes níveis violam o pressuposto de
independência das observações), o modelo assume que, condicionado aos erros
aleatórios u, a variável resposta Yijk é independente.
A equação (1) representa um modelo de inclinações aleatórias (random slopes
model), em que cada variável independente (ou um conjunto de variáveis
independentes selecionadas) varia através de domicílios e comunidades. Isto é
demonstrado pelo termo <formula/>. Este modelo
permite verificar interações entre variáveis em diversos níveis: por exemplo,
se o coeficiente (ou o efeito sobre a variável dependente) de uma variável
independente qualquer, como idade, varia de domicílio para domicílio, ou
alternadamente; se os coeficientes de uma variável domiciliar como tamanho
populacional varia de comunidade para comunidade. Caso os termos aleatórios
sejam restritos a zero ' isto é, se <formula/>,
tem-se um modelo de interceptos aleatórios (random intercepts model), em que a
única variação entre domicílios e comunidades ocorre em seus interceptos, dados
pelos termos <formula/>.
Em suma, a grande vantagem do modelo descrito é a consideração da natureza
hierárquica das variáveis explicativas ' ou seja, leva em conta, na modelagem,
o fato de que indivíduos dentro de um mesmo domicílio e domicílios dentro de
uma mesma comunidade são mais homogêneos em termos de determinadas
características ou variáveis (evitando-se, assim, a violação do pressuposto de
independência de informações). A incorporação da dimensão temporal ao modelo
descrito pela equação (1), caso estejam disponíveis informações longitudinais,
ocorreria sem maiores dificuldades. Nesse caso, poder-se-ia considerar o
"tempo" (por exemplo, medido em anos) um nível agrupado (clustered) em
indivíduos (isto é, para um número n de anos, cada indivíduo teria n medidas de
uma variável independente qualquer, por exemplo, variações de idade a cada
ano).
Análise espacial
Outro importante componente metodológico de uma abordagem multiescalar é a
identificação de como padrões espaciais (distância, densidade, distribuição
espacial da população, distribuição espacial de recursos naturais como
cobertura florestal, geomorfologia, hidrologia, etc.) ajudam a definir a
estrutura de oportunidades e limitações que levam à mobilidade.
A análise espacial pode ser definida como uma análise quantitativa de dados, em
que o foco é o papel do espaço e são utilizadas variáveis explicitamente
espaciais na explicação ou predição do fenômeno sobre investigação (WEEKS,
2004). Trata-se, pois, de investigar como a locação em um ponto específico do
espaço afeta a mobilidade, ou como a mobilidade afeta tais características
locacionais (mormente as ambientais); e se esse efeito é aleatório na população
ou é dependente de algum fator espacial específico. Análises de mudança na
cobertura florestal e de uso da terra (LULCC) e o uso de Sistemas de Informação
Geográfica (SIG) têm sido particularmente úteis para compreender como as
características espaciais têm alterado a paisagem natural e socioeconômica.
Um dos aspectos mais importantes na análise espacial, particularmente no que se
refere à análise da mobilidade populacional, é a autocorrelação espacial, que
se fundamenta na primeira lei da geografia (também conhecida como Lei de
Tobler): "Everything is related to everything else, but near places are more
related than far places". Baseada na Lei de Tobler, a medida de autocorrelação
espacial trata da semelhança da locação de objetos e seus atributos no espaço.
Se os objetos espaciais são similares em sua locação e atributos, configura-se
uma situação de autocorrelação espacial positiva. Inversamente, autocorrelação
espacial negativa ocorre quando objetos próximos são mais diferentes em seus
atributos do que objetos mais distantes.
No geral, a autocorrelação espacial em modelos de migração pode levar a
estimadores ineficientes. Por exemplo, domicílios vizinhos podem ser mais
similares do que outros em determinados atributos (devido, entre outros, ao
grau de parentesco ou por dividirem determinada infra-estrutura ou dotação de
recursos naturais); essa homogeneidade, se não incorporada explicitamente no
modelo estatístico, pode afetar pressupostos de independência de informações e,
dessa forma, prejudicar a validade interna do modelo empírico e a inferência
dos resultados do modelo.
Sugestão de políticas públicas e a questão das falácias
Uma análise multiescalar deve buscar sempre a identificação de elementos que
informem adequadamente a elaboração de políticas públicas. A falta de uma
análise mais apurada dos custos e benefícios, bem como dos determinantes e das
conseqüências da mobilidade quando da formulação e implementação de políticas,
pode agravar alguns problemas ou mesmo gerar benefícios não previstos. Por
exemplo, a migração pode acentuar desigualdades regionais em países em
desenvolvimento, levando a um êxodo rural massivo e explosão urbana (WOOD,
1982), o que é uma questão particularmente importante em áreas em processo
incipiente de colonização e desenvolvimento. A intensa mobilidade rural-urbana,
temporária ou permanente, está associada historicamente a vieses urbanos no
favorecimento de políticas públicas em países em desenvolvimento, que podem
inclusive, e contraditoriamente, anular outras políticas voltadas ao ambiente
rural, que visem a intensificação agrícola como forma de retenção da força de
trabalho.8
Alguns estudos também têm chegado a diferentes conclusões sobre os efeitos das
políticas públicas direcionadas ao desenvolvimento rural e à mobilidade
populacional (por exemplo, BILSBORROW et al., 1984; RHODA, 1983). Se, por um
lado, o foco de ação política baseada em uma concepção de "desenvolvimento
rural" pode apresentar um efeito importante e desejável sobre a melhoria das
condições de vida locais, por outro, pode ter pouco efeito ou um efeito reverso
se as decisões de migrar forem independentes dessa melhoria, por exemplo,
devido a aspectos culturais que levam a mobilidade a ser uma espécie de "rito
de passagem" (PIORE, 1979).
A rigor, a falta de consenso sobre os determinantes e conseqüências da
mobilidade populacional reflete problemas usuais de inferências para políticas
públicas e planejamento. Bilsborrow et al. (1984, p. 407), por exemplo,
discutem problemas de "falácia ecológica" na formulação de políticas públicas
que privilegiem o nível macro ' ou seja, problemas de se inferirem relações
causais a partir de relações observadas em níveis macro (ou de alta agregação),
pelo fato de variáveis macro (ou agregadas) estarem altamente correlacionadas,
o que torna a direção de causalidade ambígua. Também podem surgir problemas de
"falácia individualista", ao serem inferidas relações sobre unidades agregadas
(tais como comunidades), a partir do comportamento de indivíduos. A solução, de
acordo com Bilsborrow et al. (1984), seria coletar dados e formular estratégias
analíticas que contemplem, simultaneamente, os efeitos de características
individuais, domiciliares e comunitárias sobre a relação entre população e meio
ambiente.
Uma grande vantagem da abordagem multiescalar é isolar os efeitos de variáveis
contextuais (comunidade, região, país, etc.), que afetam a associação entre
mobilidade, meio ambiente e uso da terra, de fatores individuais e
domiciliares. Esses "fatores macro" são os mais relevantes para a formulação de
políticas públicas, sendo formuladas em escalas mais agregadas e "filtradas"
para o nível micro e indicando o contexto ou a arena de decisões políticas em
que decisões individuais e domiciliares são tomadas.
Mobilidade populacional e uso da terra na Amazônia equatoriana
Análises multiescalares na área em estudo
A Figura_1 demonstra a área de colonização em estudo na Amazônia equatoriana,
região também conhecida como "Oriente", que teve seu período inicial de
colonização após a descoberta, em 1967, de reservas de petróleo economicamente
viáveis. Isso levou à abertura de estradas pela indústria petroleira, o que,
associado à concentração agrária das partes mais densamente populosas do país,
constitui grande incentivo para a migração espontânea para a Amazônia,
acarretando o processo de desmatamento na região. No Oriente, o fato de a
fronteira ser "fechada" devido às limitadas possibilidades de extensificação
(ao contrário da Amazônia brasileira), associado ao crescimento natural alto e
à continuada imigração para a fronteira, também é um fator contribuinte para
taxas elevadas de desmatamento (BILSBORROW et al., 2004).
Estudos recentes no Oriente têm realizado uma abordagem multiescalar na
avaliação da relação entre a dinâmica populacional e o meio ambiente (ver, por
exemplo, BARBIERI, 2006; BARBIERI; CARR, 2005; PAN; BILSBORROW, 2005; WALSH et
al, 2003). Tais estudos têm utilizado dados longitudinais referentes ao período
1990-1999 e níveis de análise espacial, que incluem indivíduos, fazendas e
domicílios rurais, fincas (aglomerado de domicílios rurais), comunidades rurais
e províncias.
As Figuras_2 e 3 ilustram um exemplo de análise sobre padrões de desmatamento
na área em estudo, conforme os níveis nas escalas espacial e temporal
utilizadas (BARBIERI et al., 2003). A Figura_2 demonstra as taxas de
desmatamento anuais (entre 1986 e 1996) estimadas por parroquia (unidades
administrativas equivalentes, no caso brasileiro, aos municípios). As
informações referem-se à média do desmatamento em fincas (lotes rurais)
localizadas na área da parroquia correspondente, o que limita inferências sobre
os efeitos da dinâmica micro (particularmente no que diz respeito aos
domicílios rurais) sobre o desmatamento regional.
![](/img/revistas/rbepop/v24n2/03f3.jpg)
Nesse sentido, a combinação de informações da Figura_2 com aquelas sobre
desmatamento em fincas em 1986 e 1996 (Figura_3) permitiria a observação de
padrões ou variações intraparroquiais no tempo e, conseqüentemente, uma melhor
inferência a respeito do processo de desmatamento. Por exemplo, a análise da
Figura_3 pode indicar que uma proporção pequena de fincas localizada ao longo
de uma estrada principal, aberta entre 1986 e 1996, responde pela maior parte
do desmatamento em uma parroquia com alta taxa de desmatamento, sugerindo,
dessa forma, um estudo mais aprofundado da relação entre acessibilidade física
e menores custos de transporte sobre a mobilidade populacional e o
desmatamento.
Fontes de dados
A partir da integração de diferentes escalas e níveis de análise, pode-se
desvendar como processos micro (ou macro) repercutem em processos macro (ou
micro) na determinação de uma relação específica entre mobilidade populacional,
meio ambiente e uso da terra, e modelar, a partir de metodologias adequadas
(modelos estatísticos, modelos do tipo agent-based e cellular automata, etc.),
as relações entre fenômenos populacionais e características espaciais e
ambientais. No caso do exemplo empírico descrito nessa seção, são utilizados
dados de pesquisas amostrais realizadas para indivíduos, domicílios e
comunidades, bem como sistemas de informação geográfica (SIG) que permitem a
análise de atributos espaciais em escalas e níveis tão desagregados quanto a
área ocupada por um domicílio rural. Além disso, a disponibilidade de dados
longitudinais obtidos de pesquisas amostrais e de imagens de sensoriamento
remoto classificadas e integradas a um SIG permite a incorporação de uma escala
de análise temporal que aumenta substancialmente o poder explicativo da relação
dinâmica entre mobilidade populacional, uso da terra e meio ambiente.
Os dados mencionados anteriormente referem-se a uma amostra multiestágio de 418
fincas (fazendas), cada uma associada a um domicílio rural. Uma segunda
pesquisa realizada em 1999 envolveu a mesma área em estudo e fincas
investigadas em 1990, permitindo assim a formação de um banco de dados
longitudinal, com informações sobre indivíduos, domicílios rurais e fincas. As
coortes mais antigas no banco de dados longitudinal são aquelas em que o chefe
de domicílio investigado em 1990 é o mesmo em 1999. As coortes mais jovens são
caracterizadas como aquelas em que o domicílio rural foi constituído após 1990
e investigado em 1999, podendo ser de dois tipos: a) no caso de parte da finca
ter sido subdividida após a pesquisa em 1990 e estar sendo ocupada por um
membro do domicílio investigado em 1990 (por exemplo, o filho do chefe de um
domicílio habitado por uma coorte antiga, que se casa e recebe um lote de terra
do pai); e b) se parte da terra subdivida foi vendida ou fornecida para
terceiros (não relacionados por parentesco ao chefe do domicílio da coorte
antiga).
Assim, a pesquisa de campo em 1999 investigou, em função do processo de
subdivisão de terras, 767 domicílios rurais associados a 767 fincas gerenciadas
independentemente. Além disso, uma nova pesquisa realizada em 2000 (a qual
também incluiu a coleta de informações retrospectivas para 1990) permitiu a
coleta de informações sobre as 61 comunidades rurais e urbanas de referência
para os domicílios rurais nas pesquisas de 1990 e 1999. Todos esses dados foram
integrados a um SIG que inclui informações espaciais (como redes de transporte
e hidrografia) e evolução de desmatamento e de uso da terra obtidas a partir de
classificação de imagens de satélite.
Metodologia
Barbieri (2006) propõe dois modelos estatísticos multiescalares para investigar
os determinantes de dois tipos de mobilidade populacional na Amazônia
equatoriana. O primeiro, baseado na equação (1) descrita anteriormente, trata
dos determinantes da mobilidade temporária motivada pela busca de emprego
(mobilidade realizada nos últimos 12 meses anteriores à pesquisa de campo em
1999, e que não implica mudança permanente de residência). O segundo modelo,
que utiliza uma variante da equação (1) incluindo a dimensão temporal, trata
dos determinantes da migração (mudança permanente de residência entre 1990 e
1999). Os dois modelos são elaborados no sentido de se investigarem os efeitos
de determinantes da mobilidade temporária em três diferentes níveis de
agregação: indivíduos, domicílios rurais e comunidades. No modelo de migração,
tais fatores também são mensurados ao longo da escala temporal (a cada ano,
entre 1990 e 1999). Em particular, fatores ambientais e de uso da terra
testados no modelo incluem: tipo de uso da terra; existência de contaminação
ambiental; intensificação agrícola; disponibilidade de recursos (especialmente
a quantidade de terra); e qualidade da terra.
O modelo conceitual demonstrado na Figura_4 sugere os efeitos esperados
(positivos ou negativos) sobre a mobilidade populacional, de variáveis
independentes construídas a partir de uma revisão da literatura empírica (ou,
em outras palavras, os sinais mostram a forma de associação entre as variáveis
independentes e dependentes). O modelo apresenta dois tipos de efeitos.
Primeiro, as setas contínuas representam os efeitos diretos e independentes,
sobre a mobilidade populacional, de variáveis em três níveis espaciais '
indivíduos, domicílios e comunidades. Segundo, as setas interrompidas indicam
que fatores em um nível menor de agregação são influenciados por fatores em
níveis mais agregados. Por exemplo, variáveis comunitárias agem através de
variáveis individuais e domiciliares; nesse caso, fatores comunitários são
"filtrados" para os níveis individual e domiciliar. Pelo fato de indivíduos
estarem agrupados (clustered) em domicílios, e os domicílios em comunidades, as
informações não são totalmente independentes; dessa forma, o modelo indica a
necessidade de se considerarem os efeitos das interações entre variáveis em
diferentes níveis e escalas.
Resultados
O Quadro_1 traz uma síntese dos principais resultados dos modelos estatísticos
multinomiais multiescalares descritos anteriormente. Os modelos testam as
variáveis apresentadas na Figura_4, sendo que os resultados estatisticamente
significantes (p<0,10) em pelo menos um dos contrastes dos modelos de
mobilidade populacional encontram-se no Quadro_1. Os contrastes dos modelos são
definidos em relação à decisão de não se mover, e descrevem o lugar de destino
do indivíduo que se move ' a área de influência da comunidade local, uma outra
área rural, ou uma outra área urbana. O Quadro_1 descreve, ainda, como a
aplicação dos modelos valida (V) ou contradiz (C) a orientação teórica da
literatura sobre os determinantes da mobilidade populacional, conforme sugerido
na Figura_4, pela relação (positiva ou negativa) entre variáveis independentes
e a mobilidade populacional. Por exemplo, o termo "V+" para a variável "idade
jovem" indica que o sinal positivo encontrado na aplicação do modelo valida a
relação positiva entre ser um adulto jovem e a mobilidade, enquanto o termo "C-
" para "maior educação" indica que a relação negativa entre maior educação e
mobilidade contradiz a literatura. Os casos em que o sinal positivo ou negativo
é acompanhado de interrogação ("?") são aqueles em que não há concordância, na
literatura, sobre a direção da relação entre a variável e a mobilidade.
Seletividade migratória e capital humano
De forma geral, a teoria é robusta para explicar as duas formas de mobilidade
como positivamente associadas às idades adultas jovens. No caso de sexo, a
falta de uma concordância sobre o efeito na mobilidade pode refletir variações
culturais e normativas em diferentes regiões que afetam a seletividade da
migração. Há uma associação negativa apenas entre ser homem e migrar para uma
área urbana. Este resultado pode ser explicado, ao menos em parte, pelo forte
viés feminino nesse tipo de mobilidade em áreas de fronteira (BARBIERI; CARR,
2005). Já no caso da mobilidade temporária a associação é positiva. Há uma
validação da teoria no que se refere à relação positiva entre maior educação e
mobilidade temporária para áreas urbanas, enquanto tal relação é negativa para
a mobilidade temporária local. O nível educacional do chefe do domicílio '
proxy do nível geral de capital humano do domicílio ' gera impacto positivo
sobre a migração apenas para áreas urbanas, validando a teoria. Por fim, e ao
contrário do sugerido pela literatura, indivíduos solteiros são menos prováveis
de se engajarem em mobilidade temporária na comunidade local.
Nova Economia da Migração do Trabalho (NEMT)
Os resultados indicam, ao contrário do esperado, que o acesso ao crédito à
produção é um fator de incentivo à mobilidade temporária na comunidade local e
em outras áreas rurais, provavelmente indicando uma estratégia domiciliar para
amortizar ou pagar dívidas contraídas. Também contrário à expectativa, a
segurança fundiária facilita a emigração entre coortes mais novas de colonos e
a mobilidade temporária com destino urbano. Nesse caso, a posse legal de título
da terra pode estar atuando no sentido de relaxar a necessidade de manutenção
de força de trabalho na finca. Finalmente, o efeito positivo da contratação de
trabalho assalariado sobre a mobilidade temporária pode indicar um processo de
substituição de trabalho domiciliar, especialmente aquele direcionado às áreas
urbanas (sobretudo o feminino) onde a remuneração tende a ser maior.
Fatores de expulsão
Conforme esperado, quanto maior a distância a pé do domicílio rural à estrada
mais próxima, menores as chances de mobilidade temporária, principalmente
dentro da comunidade e em direção às áreas urbanas. Em particular, o efeito
sobre o destino urbano pode estar associado ao fato de as mulheres, que
possivelmente apresentam maiores dificuldades de deslocamento a longa
distância, serem proporcionalmente mais propensas a se deslocarem para áreas
urbanas em comparação a outros destinos. Esta associação negativa também é
encontrada no caso da migração rural-rural. Conforme esperado, os resultados
indicam que, quanto maior a distância rodoviária até uma das quatro principais
cidades da região (Lago Agrio, Coca, Shushufindi ou La Joya), menores são as
chances de migração (exceto no caso de destino rural para as coortes mais
antigas) e de mobilidade temporária com destinos local e rural, possivelmente
devido às maiores dificuldades de interação (transporte e comunicação) entre
lugares de origem e destino.
Por fim, há uma validação da hipótese de que a presença de contaminação
ambiental na finca engendra mobilidade temporária dentro da área de influência
da comunidade ou para outras áreas rurais, sendo, portanto, um fator indutor da
busca por fontes suplementares de renda em função da queda da produtividade
agrícola.
Ciclos de vida domiciliares e teoria das respostas multifásicas
Os resultados validam a hipótese, no caso da migração para coortes novas e da
mobilidade temporária local, de que a migração é estimulada quando o domicílio
apresenta um número grande de indivíduos adultos.
Uma quantidade elevada de crianças arrefece a migração rural-urbana para os
dois tipos de domicílios, provavelmente refletindo o fato de que uma maior
presença de crianças tende a maximizar o trabalho adulto, ou mesmo refletindo
os efeitos da divisão sexual do trabalho em áreas tradicionais (a mulher
permanecendo no domicílio rural e assumindo a tarefa de cuidado dos filhos, em
vez de se deslocar para outras áreas). Por outro lado, uma criança adicional
vivendo no domicílio tende a aumentar as chances de mobilidade temporária para
a comunidade local ou áreas urbanas, provavelmente em função da maior
necessidade de renda suplementar para manutenção de um maior número de
dependentes, e também como forma de manter, através do vínculo de residência,
um maior contato com a família.
Indivíduos pertencentes a domicílios em um estágio mais avançado do ciclo de
vida ' mensurado pela idade do chefe do domicílio ' possuem chance
significativa de se engajarem em migração rural-urbana. Chefes mais velhos
podem ter acumulado capital e conhecimento ao longo dos anos para investirem em
formas menos intensivas de trabalho na produção rural, o que facilita a
migração rural-urbana. Esse resultado pode refletir também a maior
probabilidade de migração de um membro do domicílio que transita em algum
estágio do ciclo de vida individual (especialmente da adolescência para a idade
adulta). No entanto, e contrário à expectativa, quanto mais avançada a posição
no ciclo de vida domiciliar, menores são as chances de mobilidade temporária.
Uma maior quantidade de terras em cultivos anuais e perenes é associada a
menores chances de mobilidade temporária e migração para destinos rurais e
urbanos, o que é esperado tendo em vista a relativamente alta demanda por
trabalho nestas atividades. Uma maior quantidade de terras em pastagem está
positivamente associada a maiores chances de migração rural-urbana para coortes
mais antigas (o que poderia indicar uma estratégia de investimento em gado na
região, através de remessas de migrantes, conforme sugerido em Barbieri et al.,
2006) e, ao contrário do esperado, à decrescente mobilidade temporária local e
migração rural-urbana para coortes mais novas, nesse último caso provavelmente
em função do menor número de produtores em relação a consumidores (crianças)
quando comparado às coortes mais antigas.
As chances de migração rural-urbana tendem a ser maiores à medida que aumenta o
tamanho das fincas pertencentes às gerações mais novas (ao contrário do
esperado), sendo esta relação negativa no caso da migração das coortes antigas
e da mobilidade temporária local e urbana (conforme esperado). Por fim, e
conforme esperado, investimentos em intensificação agrícola (principalmente por
meio do uso de insumos químicos) provavelmente aumentam os retornos ao
trabalho, relaxando a necessidade de mobilidade temporária como fonte
suplementar de renda.
Capital social
Redes de migração constituem um importante fator determinante da migração,
tendo em vista a redução dos custos de do deslocamento em função do suporte
social e econômico e de informação sobre os locais de destino. A exceção é o
fluxo rural-urbano em coortes novas, o que é esperado devido ao menor tempo de
vida do domicílio, o que diminui a probabilidade de um membro ter migrado em
anos anteriores. A presença de escola secundária na comunidade, um indicativo
de melhor qualidade de vida e possibilidade de ampliação do capital social,
constitui um fator de redução da migração rural-rural nas duas coortes.
Abordagens estruturalistas
Quanto maior a população da comunidade, menores são as chances de mobilidade
temporária, conforme esperado. Comunidades maiores provêm acesso a determinados
tipos de serviços e infra-estrutura que melhoram as condições de vida e
emprego, podendo assim diminuir a propensão à mobilidade. Uma maior proporção
da força de trabalho no setor secundário da economia tem um efeito negativo
sobre a migração rural-urbana para coortes mais antigas, atuando,
conseqüentemente, na retenção de população, conforme esperado. O efeito também
é negativo no caso da mobilidade temporária com destino rural. Já um aumento da
proporção da força de trabalho no setor terciário tem impacto positivo (ao
contrário do esperado) apenas para migrantes do tipo rural-rural, tanto para
coortes antigas quanto para novas. É provável, à medida que as comunidades
diversificam seus mercados locais com o aumento do setor terciário em relação
ao secundário, que aqueles indivíduos cuja preferência é pelo trabalho rural
irão mover-se a despeito das maiores oportunidades no setor terciário (o qual
usualmente apresenta, em áreas de fronteira, baixas diversificação e
atratividade). Os resultados para a mobilidade temporária também sugerem um
efeito positivo de um maior setor terciário sobre a mobilidade temporária com
destino urbano ou rural.
Implicações para políticas públicas
Os resultados sugerem importantes implicações para o planejamento e as
políticas públicas que tratam da relação entre mobilidade populacional, uso da
terra e meio ambiente. Verificou-se a importância de fatores relacionados ao
ciclo de vida domiciliar e de uso da terra na determinação da dinâmica
demográfica regional (particularmente no que se refere à mobilidade de
indivíduos mais jovens), bem como sua relação com uma pressão populacional
latente sobre os recursos naturais da região (e a degradação resultante destes
recursos), que engendra mobilidade rural'rural, com a expansão do "ciclo
vicioso do desmatamento", e a mobilidade rural-urbana que exerce uma pressão
cada vez maior sobre a infra-estrutura urbana.
Em particular, a migração está fortemente associada à maturação de certas
características pessoais e domiciliares ao longo do tempo, assim como aos
ciclos de uso da terra, ao fortalecimento das redes de migração no tempo e aos
processos estruturais relacionados a estratégias de desenvolvimento rural. Por
outro lado, a mobilidade temporária envolve estratégias de curto prazo
motivadas pelo desejo de diversificação de risco e aquisição de renda para
investimento na produção agrícola ou no consumo domiciliar, pela diminuição da
produtividade agrícola em função da contaminação ambiental (especialmente por
petróleo) e por características pessoais e domiciliares que afetam a
seletividade da migração.
É importante, também, compreender o papel do momentum populacional, que resulta
da alta fecundidade passada e presente, sobre a relação de dependentes e não
dependentes na população e sobre a futura oferta de trabalho e demanda de
consumo de recursos naturais em áreas rurais. Além desses aspectos, a análise
para a Amazônia equatoriana também revela a existência de um momentum na
própria dinâmica migratória, devido à formação de redes de migração seguindo
uma história de mobilidade envolvendo os domicílios e suas respectivas
comunidades.
O modelo representado na Figura_4 e os resultados do Quadro_1 sugerem um
conjunto comum de variáveis independentes afetando migração e mobilidade
temporária. Entretanto, isso pode ocultar distinções importantes entre os dois
tipos de mobilidade. Por exemplo, Brown et al. (1988) sugerem que, enquanto
fatores individuais têm um efeito similar tanto sobre a emigração quanto sobre
a mobilidade temporária no Equador, suas intensidades variam pelo fato da
última estar mais associada com ambientes tradicionais (fatores culturais ou
étnicos), enquanto a emigração está mais relacionada à difusão de valores
contemporâneos (sistemas modernos de produção, oportunidades de assentamento em
novas terras, formação de mercados de trabalho urbanos, etc.).
Conclusão
A abordagem multiescalar discutida nesse artigo constitui uma proposta
analítica da complexa relação de causalidade entre mobilidade populacional,
meio ambiente e uso da terra. Nessa perspectiva, a compreensão dos impactos da
mobilidade populacional sobre o meio ambiente, e vice-versa, em áreas de
fronteira, requer necessariamente a compreensão de contingências espaciais e
temporais e efeitos populacionais mediados por fatores políticos, econômicos e
ecológicos, conforme sugerido por Carr, Sutel e Barbieri (2006).
A compreensão adequada da causalidade recíproca entre mobilidade populacional,
meio ambiente e uso da terra em áreas de fronteira requer a superação de
perspectivas disciplinares, em que um dos principais vieses é a simplificação
das dimensões espaciais e temporais envolvidas. O uso de abordagens macro pode
apresentar problemas de falácia ecológica, enquanto a inferência de condições
ou comportamentos de indivíduos para níveis mais agregados de unidades de
análise tende a gerar falácia individualista. Além disso, existem unidades
sociais além de atores individuais e macro unidades que exercem uma influência
significativa em padrões de movimentos humanos. Tais atores podem ser, por
exemplo, o domicílio, ou uma unidade de análise caracterizada por determinadas
características indutoras de mobilidade (por exemplo, uma comunidade situada em
área de risco ambiental).
O exemplo empírico de uma abordagem multiescalar na Amazônia equatoriana sugere
que, na ausência de políticas que favoreçam sistemas produtivos rurais (ou, em
algumas circunstâncias, mesmo na presença delas), especialmente em relação à
absorção de mão-de-obra endógena, a mobilidade populacional torna-se uma
alternativa atraente para famílias rurais em áreas de fronteira.
Fatores relacionados à dinâmica dos ciclos de vida domiciliar e de uso da terra
e à produtividade agrícola (incluindo oferta e qualidade de terras
agriculturáveis e degradação de recursos naturais) interagem com outras
características individuais, domiciliares e comunitárias para determinar uma
relação específica de causalidade entre mobilidade populacional, meio ambiente
e uso da terra. A mobilidade populacional também tem gerado importantes
conseqüências ambientais quando dirigidas predominantemente para ecossistemas
frágeis, de terras marginais e pouco férteis, as quais se tornam acessíveis
através da abertura ou melhoria na rede viária. No sentido inverso, as mudanças
no ambiente trazem importantes conseqüências para as populações humanas,
sobretudo em termos do comprometimento da sustentabilidade das atividades
econômicas.
Entretanto, um maior número de pesquisas empíricas é necessário para clarificar
relações causais entre estratégias de sobrevivência rurais que envolvem a
mobilidade e o desmatamento e degradação de recursos naturais. Faz-se
necessário, em particular, discutir como os resultados de uma abordagem
multiescalar podem informar os responsáveis pela formulação de políticas
públicas a respeito das conseqüências da mobilidade populacional sobre a
urbanização, o desmatamento e o desenvolvimento regional e, em um sentido
inverso, como desmatamento e urbanização são fatores que, por si só, fomentam
mais mobilidade no tempo, em um processo de causalidade cumulativa.