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BrBRHUAp0102-30982010000100011

BrBRHUAp0102-30982010000100011

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0102-3098
ano2010
Issue0001
Article number00011

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Histórias de "movimentos": embarcações e população portuguesas na Amazônia joanina

Introdução No Cais de Lisboa, naquele movimentado 27 de novembro de 1807, um raro evento se desenrolava. A Corte, incluindo a rainha e o príncipe, iniciava sua transferência para o outro lado do Atlântico; viagem que transformaria uma simples colônia na sede de um Império. Pela primeira vez, desde os tempos dos descobrimentos transoceânicos, o Velho Mundo assistia um regente deixar o continente e buscar refúgio em terras do Novo Mundo.

Imaginar a partida da Corte não é tarefa fácil, principalmente pelas incertezas quanto ao número de pessoas que compunham a comitiva real, embora a versão mais repetida oscile entre 10 e 15 mil membros. Outra estimativa é menos generosa, apontando que inicialmente 211 pessoas mais a família real chegaram ao Brasil, em 1808, acompanhadas, no ano seguinte, por mais 233 viajantes. Também é possível encontrar uma versão que afirma que seis mil seriam apenas os que seguiram a esquadra naval, tendo ainda que somar a família real e os membros da Corte. A discrepância entre os números arrolados pode ser explicada, fundamentalmente, pela variedade de fontes utilizadas e pelo próprio tratamento analítico dispensado a tais documentos (MALERBA, 2008, p. 170-176).

Concomitantemente, essa variação ajuda a pensar que a dramaticidade da viagem da Corte para o Brasil deixou um rastro de possibilidades de investigação... e de versões.

Apesar das muitas incertezas, pode-se encontrar testemunhos que destacam as tensões e representações que cercaram a partida da Corte, como na cena descrita nas memórias do marquês da Fronteira, José Trazimundo, que, com cinco anos de idade, teve suas lembranças marcadas pela correria e tristeza do embarque real: Minhas tias mandaram logo [chamar] por duas carruagens, que nos levaram a toda a pressa ao cais de Belém, onde reinava a maior confusão e desordem. As bagagens da corte, expostas ao tempo e quase abandonadas, ocupavam desde a rua da Junqueira até o cais; as carruagens não puderam entrar no largo de Belém, porque o Estado do Príncipe, o imenso povo que estava no largo, as bagagens e o regimento de Alcântara, que fazia a guarda de honra, impediam o trânsito. Não pudemos, portanto, ver os nossos parentes que partiam... Nunca esquecerei as lágrimas que vi derramar, tanto ao povo como aos criados da Casa Real, e aos soldados que estavam no largo de Belém. (BARRETO, 1932, p.32).

Entre números imprecisos e memórias recriadas, rumo ao Brasil navegava um período marcado por transformações sociais, políticas e econômicas, ao qual, hoje, chamamos de joanino (1808-1821). Anos de histórias de muitas separações: separação de um príncipe de seus súditos, de uma Corte de sua origem, de uma colônia de sua metrópole, de uma nobreza de parte de sua riqueza, de proprietários de seus pertences, de soldados de seus generais, de criados de seus senhores, separação de famílias... separação de populações.

Entre tantas separações e imprecisões, os números também podem ser aliados na tentativa de se enveredar pela "dinâmica da distância", considerando as embarcações e as pessoas que deixaram portos lusitanos e buscaram abrigo no Brasil. Números que ancoram possibilidades de investigação e marcam "movimentos" que não eram novidade entre Portugal e Brasil, mas que ganharam novos contornos.

Esse ensaio busca analisar o período joanino, considerando o movimento de embarcações e pessoas, no ir e vir entre Portugal e a Amazônia, mais especificamente para o Pará. Não falaremos de nobres atordoados pela distância da Corte e nem de uma Corte restrita ao Rio de Janeiro.... Falaremos de um porto e de uma população ao norte da América lusitana, onde, por motivos diferenciados, entre 1808 e 1821, presenciou partidas e chegadas.

Entre mares e rios, o movimento das embarcações A impressão que a cidade de Belém podia causar em viajantes europeus, entre 1808 e 1821, algumas vezes não era das melhores... em outras, surpreendia aos menos otimistas. Mesmo considerando os juízos de valor contidos em algumas narrativas da época, ainda é instigante imaginar a paisagem inicial que os navegantes encontravam ao ancorarem no Pará. Essas impressões, por exemplo, são registradas no diário de viagem de Spix e Martius (1817-1820): Do lado do mar, avistam-se, perto da margem e quase no meio da fila de casas, a Praça do Comércio e a Alfândega, atrás da qual surgem as duas torres da Igreja das Mercês. Mais para dentro, eleva-se a cúpula da Igreja de Santana e, na parte norte, termina a vista com o Convento dos Capuchinhos, de Santo Antonio; na parte do extremo sul, o olhar repousa no Castelo e no Hospital Militar, a que se juntam o Seminário Episcopal e a Catedral, esta com duas torres. Mais para o interior das terras destaca-se, naquele lado, o Palácio do Governo.

(...) Porém, quando o recém-chegado entra na própria cidade, encontra mais do que prometia o aspecto exterior: casas sólidas, construídas, em sua maior parte, de pedras de cantaria, casas em largas ruas, que se cortam em ângulos retos. (SPIX; MARTIUS,1981, p. 23).

Em si, a impressão da cidade revela o "movimento" nos termos comparativos implícitos, seja com cidades europeias, seja com outras localidades do Brasil visitadas pela dupla de viajantes. A surpresa com a solidez das construções também revela o "movimento", pois a expectativa é a antessala da chegada.

Entre as ruas da cidade, uma população marcada pela migração deixava suas pegadas. Negros "crioulos" e de variadas partes da África, índios de diversas aldeias, brancos de vários países, "brasileiros" de várias capitanias e filhos de relações interétnicas compunham um cenário populacional também marcado pelo "movimento".1 Apesar dos números pouco precisos, verifica-se um crescimento da população paraense nos anos joaninos, que saltou de 96.000 habitantes, em 1808, para 128.000, em 1823 (RECENSEAMENTO DO BRAZIL, 1922). Números em "movimento" que auxiliam a perceber uma Amazônia multifacetada que poderia ir além das construções sólidas que causavam surpresas aos viajantes europeus. Uma Amazônia que vivenciava transformações e expansões populacionais. Uma terra de "chegadas" e de encontros.

Encontros, como no caso de um "rapaz" que, em meio aos ecos da terceira invasão francesa ao território português, foi embarcado em 1811 no navio "Prazeres & Alegria" para ser levado ao encontro de seus pais que estavam no Pará: (...) igualmente embarcou no mesmo Navio [Prazeres & Alegria] hum Rapaz de menor idade que aqui [no presídio da Trafaria] se achava cujos os Pais tinham ido degredados para o Referido[Pará] por assim me ser determinado por Aviso Va. Exa. De 16 do corrente [novembro de 1811].2 Dois pontos merecem destaque nesse caso: o primeiro refere-se ao navio de transporte, o "Prazeres & Alegria", uma embarcação que fez com regularidade a linha Belém-Lisboa entre 1809 e 1833; e o segundo diz respeito às circunstâncias associadas à partida de Lisboa do jovem "rapaz", que envolviam prisões e degredo de seus pais. Tais destaques mostram possibilidades múltiplas de separação e encontro entre familiares, bem como a importância e a regularidade de embarcações que, mesmo diante das Guerras Peninsulares, continuaram unindo dois polos de um aparentemente debilitado Império lusitano " o que nos faz pensar no perfil dessas travessias.

E assim, vejamos inicialmente o fluxo de embarcações que navegavam entre a Amazônia e Portugal. Para analisar esse fluxo, utilizou-se, como fonte de pesquisa, o controle da saída de navios através da barra da baía do Guajará, na cidade de Belém. Esses registros são instigantes por auxiliarem a compreensão do trânsito fluvial-marítimo na região e por, indiretamente, indicarem a dinâmica de visitas de embarcações ao cais belenense.3 O porto de Belém foi visitado com relativa frequência nos anos joaninos. Entre 1808 e 1821 foi registrada, na fortaleza da cidade, a saída de 534 embarcações (média de 41 por ano), sendo que algumas - como "Prazeres & Alegria" - faziam linha regular entre os dois continentes.

Das saídas registradas na barra de Belém, aproximadamente 64% ocorreram depois de 1815. Considerar esse ano como referência é importante, pois justamente marca o fim das chamadas Guerras Peninsulares, o fim da invasão portuguesa na Guiana, a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido, a derrocada final das tropas napoleônicas e o início de uma relativa pacificação na Península Ibérica. A situação política na Europa, em especial na Península Ibérica, parece interferir diretamente no fluxo de embarcações estrangeiras para Belém - mas não de maneira linear.

Embora seja possível perceber, de um modo geral, o aumento do fluxo de embarcações depois 1815, também nesse período constata-se a retração no fluxo de navios portugueses: das 216 embarcações de origem lusitana que passaram pelo controle da barra de Belém nos anos joaninos, 55,5% foram registradas nos anos de maior tensão entre Portugal e França (1808-1815). Ou seja, o período de maiores tensões militares, econômicas e políticas em Portugal - durante uma série de invasões francesas - não significou a fragilização da presença lusitana no porto de Belém. Muito pelo contrário, entre 1808 e 1815, havia a hegemonia de naus portuguesas no cais amazônico.

A partir desses números, pode-se suspeitar que os combates na Península Ibérica não foram suficientes para retrair a presença de navios lusitanos na Amazônia.

Em parte, isso se explica pela fragilidade e tamanho da marinha francesa, que, envolvida diretamente em conflitos navais com esquadras britânicas, teve aproximadamente dez vezes mais baixas do que os ingleses (HOBSBAWM, 1982, p.104). As empreitadas marítimas francesas não conseguiram impedir a navegação de embarcações inglesas e de seus aliados, como Portugal, no Atlântico.

Por outro lado, até 1815, foi menor a presença de embarcações de outras nacionalidades na baía do Guajará. Nesse sentido, o período de pacificação na Europa significou aumento das visitas de embarcações estrangeiras ao porto de Belém do Pará e, ao mesmo tempo, retração no número de visitas portuguesas.

Seria um indício da fragilidade dos laços que uniam o Brasil a Portugal e do fortalecimento da presença de outras nações em território amazônico? Durante todo o período joanino (1808-1821), das 534 embarcações que ancoraram em Belém, apenas 13 não tiveram seus países de origem informados. Das 521 embarcações que tiveram suas nacionalidades referidas, 216 (41%) vieram de Portugal - numa média de 16 embarcações/ano. Esses números expressivos podem oferecer novas tonalidades ao considerarmos o impacto da abertura dos portos brasileiros em 1808 e da ocupação francesa em Portugal.

Após 1808, mesmo tendo a possibilidade legal de ancoragem de navios de diversos países, Belém ainda recebia majoritariamente embarcações lusitanas, principalmente nos anos de guerra; navios que vinham de um país marcado por ocupações estrangeiras, produção industrial e agrícola agonizante e uma economia que tentava se restabelecer ainda sob o efeito dessas ocupações.

Os anos de ocupação francesa e a presença de tropas inglesas em território lusitano marcaram uma desarticulação na produção portuguesa. A partir de 1812, com o arrefecimento das Guerras Peninsulares em algumas regiões de Portugal, ações governativas buscaram fornecer à agricultura sementes, mão de obra e ferramentas para retomar o cultivo da terra que havia sido interrompido pela guerra. O estado da produção industrial somente em 1814 foi avaliado pelo governo português (Real Junta do Comércio), que procurou elaborar estatísticas das fábricas ainda existentes no país (PERES, 1934, p. 418).

Esse quadro de recuperação econômica, iniciado em 1812 e 1814 e que ainda teve que esperar a pacificação efetiva da península pós-1815, mostra a fragilidade produtiva portuguesa nos anos joaninos. Mas, apesar dessa aparente debilidade, em Belém ainda eram as embarcações portuguesas que dominavam o trânsito no porto da cidade.

Entretanto, não se deve ignorar a importância do Congresso de Viena e da expulsão do exército francês de Portugal. Logo após a assinatura do Tratado de Paris, em 1815, houve um aumento significativo no número de embarcações portuguesas em Belém, que passou de 14 navios, em 1815, para 23, em 1816, e 25, em 1817. Mas, a partir de 1818, diminuiu vertiginosamente a presença de navios lusitanos: 15 embarcações nesse ano, 13 em 1819, 10 em 1820 e 10 em 1821. Ou seja, a efetiva pacificação peninsular instigou, inicialmente, o aumento da presença de barcos portugueses no porto de Belém, mas depois, ainda sob o esforço de reorganização econômica em Portugal, esse número voltou a patamares condizentes aos anos de ocupação francesa.

Ao longo de todo o período joanino, a presença de navios lusitanos não excluiu a vinda de embarcações de países, destacando-se a Inglaterra, com 177 barcos, ou aproximadamente 34% to total, gerando uma média de quase 14 embarcações/ano.

A presença inglesa no Brasil joanino, em especial quando se pensa o Pará, pode ser ressaltada ao se comparar o número de navios ingleses com os portugueses. A diferença percentual foi de apenas 7% a favor das embarcações lusitanas, o que induz a considerar a influência britânica nas atividades comerciais que envolviam a região. Essa perspectiva ganha força quando lembramos o papel das tropas inglesas na expulsão dos exércitos franceses do território português. E, mesmo após a derrocada final do exército napoleônico, o número de embarcações britânicas no porto de Belém continuou a aumentar, chegando ao máximo em 1818, com 29 visitas. Esses dados ratificam o esforço e sucesso britânicos em obter o controle total dos mercados coloniais e ultramarinos (HOBSBAWM, 1982, p.101).

Contudo, Belém não foi alvo da visita apenas de embarcações lusitanas e inglesas: 24,5% dos navios que passaram pelo controle da barra do Guajará tinham origem em outros países, destacando-se os EUA, com 89 (17%), e, para nossa surpresa, a França, com 30 (6%).

A presença de embarcações de origem francesa em pleno período joanino é intrigante; em fins de 1807, em 1809, 1810 e 1815, Portugal e França estavam em guerra no continente europeu. Além disso, em julho de 1808, o governador do Pará recebeu ordem régia para invadir Caiena, possessão francesa na América, numa ocupação que se estendeu até 1815: quadro de conflitos que oficialmente anulou o contínuo contato entre a Coroa portuguesa e o Estado francês.

A análise do Gráfico_1 ajuda a compreender o fluxo de embarcações francesas, num comparativo com as inglesas e portuguesas. Entre 1808 e 1815, nenhuma nau francesa teve registro de passagem arrolado no porto belenense, período em que portugueses e franceses estavam em conflito nas Guerras Peninsulares e em Caiena. Com o fim das hostilidades em 1815, as visitas de embarcações francesas aumentaram, com o primeiro registro em 1816. O número alcançou seu ápice em 1818, com 11 autorizações concedidas pelo posto de controle da barra da baía do Guajará.

A partir de 1816, observa-se a diminuição da presença de embarcações portuguesas, quando comparadas com as inglesas e francesas. Esse decréscimo no fluxo de naus lusitanas pode ser pensado a partir de alguns fatores: os anos de guerra significaram o fortalecimento da dependência da economia portuguesa em relação à Inglaterra; o pós-guerra foi marcado pelo esforço de reorganização interna da economia portuguesa; o fim das Guerras Napoleônicas não significou o término das tensões políticas que envolviam o governo português, ao contrário, houve intensificação desses conflitos, que desaguaram, em 1821, na Revolução do Porto; e a força da marinha inglesa articulada à necessidade de ampliação da rede comercial britânica.

Os dados da Tabela_1 mostram que o fim das Guerras Peninsulares instigou o aumento das embarcações estrangeiras no porto de Belém, notadamente inglesas e francesas. Além disso, em números absolutos, os navios da Inglaterra chegaram a superar os de Portugal. Somando-se as naus francesas, inglesas e portuguesas, depois de 1815, tem-se um total de 252 visitas - quase a metade de todas as visitas do período joanino (534). Destas, 50% eram embarcações inglesas, 38% portuguesas e 12% francesas. a efetivação do domínio inglês nas relações portuárias em Belém, bem como uma significativa diminuição da presença lusitana.

A partir desses dados, verifica-se que, entre 1808 e 1821, o porto de Belém foi frequentemente visitado por embarcações estrangeiras. E mais, no conjunto das visitas, percebe-se um aumento paulatino das embarcações de origens inglesas e francesas, o que coincidiu com o processo de pacificação das relações entre Portugal e França, com a dominação comercial inglesa e a efetivação de um cenário político que impelia o retorno da família real.

Ainda na chegada do príncipe regente à cidade de Salvador, sua primeira carta régia promulgava a abertura dos portos brasileiros a todas as nações amigas. No caso do norte do Brasil, isso significou, na prática, a preponderância das embarcações inglesas. A soma das embarcações de outras nações - EUA (17%), França (6%), Holanda (0,3%), Suécia (0,6%) e Dinamarca (0,6%) - não alcançava o total referente à presença inglesa (34%). Os portos foram abertos às "nações amigas", mas a mais "amiga" era a Inglaterra. Segundo Jobson Arruda (2008), pelo menos em relação ao Rio de Janeiro, essa abertura aconteceu efetivamente em 1800. Ou seja, entre a abertura dos portos fluminenses em 1800, a Carta Régia que formalizou essa abertura em 1808 e a circulação de embarcações estrangeiras na Amazônia, existem intervalos temporais significativos, o que torna instigante pensarmos as especificidades do fluxo de embarcações no Brasil joanino.

Em suma, é possível considerar uma história do movimento, da origem e do período dos navios que chegavam a Belém nos anos joaninos, em que se verifica uma relação direta entre as origens das embarcações que visitavam o cais belenense e a intensificação dos conflitos peninsulares na Europa, marcando o predomínio das embarcações lusitanas até a derrocada final do exército napoleônico e a supremacia inglesa nos anos seguintes. Observa-se, também, que a suposta "abertura dos portos", pelo menos na Amazônia, se efetivou depois de 1815, com marcante aumento da presença de naus inglesas e francesas. Das 89 embarcações dos Estados Unidos, somente 20 ancoraram em Belém antes de 1816.

Das poucas naus holandesas, suecas e dinamarquesas que vieram ao Pará no período joanino, nenhuma ancorou antes de 1816.

Da origem ao destino Segundo a Ordem Régia de agosto de 1808, assinada no Rio de Janeiro, todos os navios portugueses e estrangeiros eram obrigados a relacionarem não apenas seu porto de origem, mas também o de destino,4 o que possibilita, por meio dos documentos de controle da barra de Belém, ter uma ideia mais detalhada do fluxo de embarcações na Amazônia.

Muitas vezes, Belém era utilizada como escala de viagem, por navios que vinham dos EUA e da Europa. No esforço de análise dessas escalas, a documentação pesquisada apresenta um primeiro problema: 62% das embarcações não declararam seus destinos finais, o que significa o descumprimento das diretrizes portuárias joaninas. Assim, das 534 embarcações que saíram de Belém, 333 não registraram seus destinos finais, que poderiam ser outros países, outras capitanias ou até mesmo outras localidades do próprio Pará. Das 201 embarcações que indicaram seus portos de destino, 184 (91,5%) eram de origem portuguesa.

Das 177 embarcações inglesas e das 30 francesas que partiram da baía do Guajará, nenhuma declarou seu porto de destino.

Das embarcações portuguesas, 26,5% (49) estavam indo para Lisboa ou para a cidade do Porto. Dos navios que declararam como destino portos portugueses, 47 registraram que o porto de retorno seria na cidade de Belém. Ou seja, partiam de Belém, ancoravam em Lisboa ou no Porto e depois retornavam para a capital paraense. Assim, pode-se imaginar uma continuidade de contato entre os portos portugueses e o de Belém, como no caso referido do navio "Prazeres & Alegria".

Ainda considerando as embarcações portuguesas partindo de Belém e que tiveram seus portos de destino declarados, verifica-se um significativo percentual de viagens cujos destinos eram outras regiões brasileiras. Essas viagens internas alcançavam 31% dos destinos declarados, ou 57 viagens: o Maranhão era o mais visitado, com 38 viagens, seguido por Pernambuco com sete. A capital, Rio de Janeiro, residência da família real, recebeu cinco embarcações lusitanas que partiram de Belém, a vila paraense da região do salgado, Bragança, recebeu quatro, a Bahia duas e o Ceará uma visita. Assim, 31% dos navios portugueses que saíam de Belém dirigiam-se para os portos brasileiros. Somando-se a esse número os 26,5% das saídas para portos portugueses, verifica-se que 57,5% das embarcações portuguesas que partiam com destino para outros portos ancoravam no Brasil ou em Portugal.

Esse número ganha novos contornos quando se consideram as viagens para Caiena, que até 1815 estava sob o domínio português. Para foram mais 48 viagens, ou 26% dos destinos de embarcações portuguesas que partiam de Belém. E, mesmo depois de 1815, a Guiana continuou a receber visitas de naus portuguesas, pelo menos até 1821 (foram 22 visitas), o que pode ser um indicador de que a desocupação militar portuguesa não rompeu imediatamente com os vínculos entre Belém e Caiena.

Assim, se somadas as partidas de embarcações portuguesas com destino a outros portos brasileiros, a portos portugueses e a Caiena, tem-se um total de 83,5% dos destinos de navios lusitanos que passaram pela barra de Belém nos anos joaninos. Ou seja, a navegação portuguesa ficava circunscrita a Portugal, ao Brasil e à Guiana. Poucos foram os países na Europa ou na África que eram destinos das embarcações lusitanas que partiam de Belém: França (2), Inglaterra (2), Angola (4), Guiné-Bissau (3), Cabo Verde (4) e Gibraltar (10).

Entretanto, é necessário relativizar alguns destes dados. Apesar de se localizarem no continente africano, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau faziam parte do Império português. Gibraltar, por sua vez, era possessão inglesa. Ou seja, em última instância, embora os navios partissem rumo à África, seus portos de chegada estavam atrelados a "Portugal" ou, no caso de Gibraltar, à "Inglaterra". Essas regiões eram fontes do tráfico de população escrava, exceto Gibraltar. A partir de 1815, todavia, apenas Angola se enquadrava nesse aspecto, pois Portugal e Inglaterra firmaram um acordo que proibia o tráfico negro de regiões da África localizadas acima da Linha do Equador.5 Outro ponto a destacar é o número reduzido de viagens à França (apenas duas), o que pode criar a impressão de que o contato entre Belém e a França era esporádico, mesmo considerando o número de embarcações francesas que partiam do porto de Belém (30). Entretanto, o que os registros mostram é que os barcos portugueses preferiam visitar as possessões francesas no Caribe: Ilha de São Bartolomeu (três viagens), Ilha de São Vicente de Guadalupe (três) e Martinica (uma). No total foram sete viagens a portos franceses no Caribe, mais do que, por exemplo, as quatro viagens para Angola, as duas para Inglaterra, as três para Guiné Bissau ou as duas para Barbados (colônia britânica na parte extrema oriental do Caribe). Além das visitas das embarcações portuguesas ao Caribe francês, ainda podem ser somadas as visitas às Guianas, o que efetivamente destaca o contínuo contato entre o porto de Belém com essas regiões sob domínio francês, principalmente a partir de 1815-16.

Em resumo, por meio dos dados apresentados, verifica-se que, no período joanino, alguns elementos podem ser destacados no vir e ir de embarcações portuguesas através do porto de Belém.

No vir, durante o período joanino em geral (1808-1821), Belém recebeu prioritariamente visitas de embarcações portuguesas ou inglesas. Somente depois de 1815, a despeito da famosa "abertura dos portos" em 1808, a ancoragem de embarcações estrangeiras no cais de Belém passou a ser mais diversificada, incluindo navios dinamarqueses, suecos, etc. Noutro sentido, o avançar dos anos joaninos também significou a diminuição da presença de embarcações portuguesas na baía do Guajará. E fundamentalmente explicitando a força da ingerência econômica inglesa, houve o prevalecimento da ancoragem de embarcações britânicas após 1815 - que superou a presença lusitana.

No ir, percebe-se que os navios portugueses que partiam de Belém trafegavam principalmente entre Portugal, Brasil, Gibraltar e Caribe francês. As naus lusitanas também visitavam com frequência o porto de Caiena, mesmo após a desocupação desse território por parte das tropas portuguesas. As mesmas embarcações portuguesas, quando tinham destino para outras partes do Brasil, visitavam prioritariamente o Maranhão.

Assim, pode-se ter uma ideia do tráfico de embarcações que passou pelo porto de Belém durante os anos joaninos. O destaque é dado para o fluxo de navios lusitanos, que ligaram extremos de um mesmo império. Mas, ainda considerando esse império, devemos pensar no perfil da trajetória que marca a saída de pessoas, como no caso do "rapaz" que embarcou no "Prazeres & Alegria".

Para além das embarcações Não foram navios que partiam e chegavam no porto de Belém nos anos joaninos.

A relação entre Portugal e a Amazônia não se resumia ao transporte de mercadorias e nem ao simples ancoradouro. Pessoas também saíam de Lisboa ou do Porto rumo à capital do Pará.

A documentação que sustenta essa análise está disposta no Arquivo Histórico Ultramarino Português: são as solicitações de permissão de viagens feitas aos administradores de Portugal durante a ocupação francesa e a ausência da família real. Os pedidos estão relacionados à saída com destino direto ao Pará. Trata- se de uma documentação limitada para o esforço de compreensão do perfil demográfico desse movimento migratório, pois não é difícil imaginar pessoas fugindo de Portugal sem a autorização de uma administração precária e submetida a constantes mudanças de governantes e aos rigores das guerras.

Apesar dos limites, os dados levantados a partir desses registros são um indicativo do perfil do fluxo de pessoas para Belém do Grão-Pará. Entre 1808 e 1821, a média foi de 17 pedidos de passaportes/ano, um número significativamente inferior às 41 embarcações/ano que passavam pelo porto de Belém no mesmo período. Em 1807, um pouco antes da transferência da família real para o Brasil, foram solicitadas 12 autorizações de embarque.

O ano que mais apresentou pedidos de passaportes foi 1811, com 29 solicitações.

Entre a chegada da família real ao Brasil (1808) e o último ano de grandes confrontos na pacificação da Península Ibérica (1815), houve 140 (54%) autorizações expedidas para partida de viajantes de Portugal para o Pará.

Outras 119 autorizações, ou 46% dos passaportes expedidos, ocorreram entre 1816 e 1821 (Gráfico_2).

Essa constância nos pedidos de passaportes parece interessante, principalmente quando lembramos que o ano de 1815 foi um marco nas transformações do perfil de embarcações que frequentavam o porto de Belém. Os navios portugueses diminuíram sua presença e os estrangeiros tornaram-se mais significativos e variados, enquanto o fluxo de moradores de Portugal que desejavam vir ao Pará manteve-se o mesmo.

Mas, fujamos dos números pela pouca confiabilidade da documentação e nos fixemos na análise das trajetórias individuais, que, mesmo circunscritas a histórias de vida, possibilitam pensar o que foram os anos joaninos para pessoas que deixaram Portugal e chegaram à Amazônia. E mais, num movimento de refluxo, as trajetórias individuais podem auxiliar a análise de tendências populacionais mais gerais, apontando limites e possibilidades documentais.

Franceses ao mar Os anos joaninos iniciaram com a partida da família real para o Brasil, período que ganhou contornos dramáticos pela invasão das tropas de Junot, que avançaram em território lusitano enquanto a Corte partia. Esse momento foi marcado por uma série de batalhas, invasões e escaramuças que envolviam ingleses, portugueses, espanhóis e franceses. Conflitos que não repercutiram apenas num cenário bélico e nem se restringiram ao joguete de tropas e de seus generais.

As tensões militares entre Portugal e França mexeram com a vida de homens e mulheres. A retaliação feita por Portugal à França, com a tomada da Guiana, em especial com o remanejamento de tropas e de uma elite administrativa para Caiena, a partir de dezembro de 1808 (REIS, s/d, p. 74), por exemplo, marcou a trajetória de Dona Bárbara Benedita, que, em outubro de 1809, solicitou passaporte para partir de Lisboa até Belém e de até Caiena. Não viajaria sozinha, pedia licença para ser acompanhada por três filhas menores de dez anos, um criado e uma criada. O motivo da partida era justificado pela "chamada" do marido, então nomeado governador intendente geral da Nova Conquista de Caiena e Guiana Francesa. No tabuleiro de retaliações joaninas, mãe, filhas e criados tinham seus destinos atrelados ao Pará e a Caiena.6 E se alguns partiram de Lisboa para Belém do Pará, outros fizeram o caminho contrário. Cristóvão Luiz era negociante e ex-granadeiro, nascido em Braga e servia em Belém. Havia dado baixa da infantaria por motivos de saúde, por adquirir uma moléstia que, segundo os cirurgiões, encontraria remédio em Lisboa: era necessário regressar. Seu processo de "passaporte" apresentava detalhes como a descrição física de Cristóvão que, com 27 anos de idade, era considerado um homem de estatura mediana, com cabelo castanho escuro, olhos pardos, rosto claro e redondo.

A travessia para Portugal foi marcada pelo encontro com uma frota francesa: duas fragatas e um brigue aprisionaram o navio que transportava Cristóvão, conduzindo-o para a Ilha da Madeira. No entanto, posteriormente, mesmo debilitado pela moléstia, ele conseguiu fugir para Lisboa. Segundo o próprio Cristóvão, foi buscar em Portugal a cura de suas doenças, mas não a encontrou.

E justamente por isso, em agosto de 1812, solicitou ao Regente a autorização de retorno para Belém. Toda essa trajetória de Cristóvão - Belém-Ilha da Madeira- Lisboa-Belém - durou pouco mais de um ano.7 Seu caso mostra que, apesar das escaramuças e da intensificação das tensões durante a Guerra Peninsular, homens e mulheres comuns continuavam viajando entre Brasil e Portugal - mesmo que algumas vezes se deparassem com ações militares francesas. E, a despeito da ameaça francesa, não foram poucos os que atravessaram o Atlântico rumo ao Brasil, mesmo antes da derrota final do exército francês. Entretanto, mesmo a superioridade da marinha inglesa não foi suficiente para impedir pontuais ações francesas no mar, o que poderia significar o apresamento de embarcações portuguesas e alterações nos destinos originais de seus passageiros (HOBSBAWM, 1982, p. 104).

Homens em rumo ao Pará Entretanto, a mais famosa travessia foi da frota que trouxe a Corte, ancorando em Salvador em 22 de janeiro de 1808. As ruas da cidade lentamente foram tomadas por súditos curiosos para verem de perto o príncipe e a rainha.

Em Lisboa, um dia após a chegada da Corte à Bahia, Joaquim Alves Godinho também fazia preparativos de viagem para o Brasil e solicitava permissão para partir de Portugal. Porém, não pretendia aportar na cidade baiana ou no Rio de Janeiro, mas sim na capital paraense. Não atravessaria o oceano seguido por centenas de famílias nobres, mas tentava embarcar com seus dois supostos filhos, um criado, "duas criadas pretas" e a esposa, dando início a uma travessia pouco mais discreta. Justificava seu pedido de deslocamento pelo fato de ter morada em Belém e exercer o ofício de cirurgião. O intrigante do seu pleito era a presença dos filhos. O "passaporte" solicitado, em 23 de janeiro de 1808, trazia uma anotação lateral informando que Godinho partiria com a esposa, Gertrudes Justina, dois filhos, um criado e "duas criadas pretas". Mas, estranhamente, durante a reiteração da solicitação do "passaporte", uma semana depois, Godinho textualmente afirmou: "não tem o Suplicante filhos e nem esperança de tê-los, pella sua avançada idade por tanto não pode ser útil a esse país [Portugal]".

Parece que o fato de ter ou poder ter filhos dificultaria a permissão de viagem; a ausência da prole era apresentada como ponto favorável para seu deslocamento até o Pará. Mas, mesmo assim, não se pode esquecer a anotação na lateral da página do primeiro pedido de "passaporte", bem como o fato de Godinho fazer referência à sua família nos dois documentos: seria apenas a esposa? Envolveria os criados? Os filhos seriam frutos de outra relação da esposa? Perguntas que hoje temos poucas condições de responder.

Mesmo considerando limites documentais, é possível estabelecer um diálogo entre casos particulares e tendências mais gerais, num esforço de compreensão do significado da autorização de viagem pleiteada por Joaquim Godinho e sua família (incluindo os supostos filhos). O primeiro ponto é a quantidade. Em todo período joanino, foram solicitados 236 pedidos de viagem para o Pará (considerando a documentação do Arquivo Ultramarino de Portugal); entretanto, isso não significa dizer que esse foi o número de pessoas que deixaram Portugal rumo à capitania paraense. Não seria absurdo imaginar a possibilidade de muitos navios partirem de Lisboa e do Porto sem a permissão das autoridades (principalmente considerando-se os anos de guerra e de ocupação de parte do território lusitano), trazendo passageiros não declarados e sem "passaporte".8 Joaquim Godinho pediu apenas um "passaporte", mas este não se resumia à sua partida; compreendia também criadagem, supostos filhos e esposa. No geral, embora tenham sido solicitadas 236 autorizações de viagem, o número dos envolvidos era superior pela presença de "agregados". Além dos 236 solicitantes, foram identificados 40 "agregados", ou quase 17% de pessoas acrescidas ao total de pedidos. A soma dos solicitantes de "passaportes" e dos "agregados" apresenta uma média de 21 pessoas/ano tentando viajar rumo ao Pará.

Esse número talvez não seja expressivo, principalmente quando comparado com o provável contingente que acompanhou D. João ao Brasil, mas instiga a problematizar, considerando o período joanino, as alterações populacionais na Amazônia - pelo menos quanto ao quadro migratório.

Essa tentativa de ponderar sobre os limites das possíveis alterações na população da Amazônia ganha reforço quando se considera o perfil dessas migrações. Joaquim Godinho pediu autorização de viagem, uma ação que era predominantemente masculina: do total de solicitações de embarque para o Pará, aproximadamente 74% foram feitas por homens. Nesse sentido, pode-se pontuar a maior possibilidade de mobilidade masculina. Sim! Mas, não esqueçamos que Joaquim viajaria acompanhado, incluindo a esposa. Então, pedidos feitos por homens não estariam mascarando o deslocamento de mulheres, como no caso citado? Entre as solicitações masculinas que declararam "agregados", apenas oito pedidos não englobavam cônjuges. Outros 24 casos envolviam homens com suas respectivas esposas. Ou seja, de 175 homens que solicitaram licença para viajar ao Pará, 18% viajaram acompanhados. Mas, quando comparado ao quadro geral de pedidos masculinos, o caso de Joaquim Godinho se enquadrava no rol seleto de homens que partiram de Portugal com cônjuges.

A justificativa para o pedido feito por Joaquim traz outras informações. Sua solicitação, mesmo que se valesse de um jogo retórico para fugir de Lisboa, vinculava sua partida ao fato de retornar para casa. Joaquim explicitou para as autoridades que havia residido em Belém por mais de 16 anos, onde tinha "casa de morada". Em Lisboa, ainda segundo o próprio Godinho, ele e sua família encontravam-se "na maior desgraça pelos fundos do seu giro se acharem no Pará", onde exercia a função de cirurgião, o que significava dizer que ele estava "partindo" de Lisboa motivado por suas precárias condições de subsistência. E mais, que o Pará era local de sua residência onde não apenas tinha propriedades e exercia um ofício, mas também possuía uma base domiciliar. Joaquim Godinho estava "retornando" para sua morada em Belém do Pará.9 Considerando os motivos explicitados nos pedidos de "passaporte" formalizados por homens, 20% (35) apontavam o "retorno" como justificativa da viagem. Ou seja, eram homens que alegavam ter residência no Pará. Ainda levando-se em conta as solicitações masculinas, somente 0,1% (três) declarou o empenho de se estabelecer pela primeira vez em território paraense.

Tão significativo quanto o número de retornos, como no caso de Joaquim Gondinho, era o percentual de pedidos associados diretamente à navegação. Eram homens que apenas exerciam funções em embarcações que pretendiam aportar no Pará. Esses casos também figuravam no percentual de 20%, com destaque para a presença de capelães de navio (11%).

Somando os números de "retornos" com os dos "navegadores", tem-se uma perspectiva que minimiza o impacto da presença da Coroa no processo de migração para Amazônia. Considerando a população masculina, 40% dos deslocamentos estavam associados ao "retorno" ou às funções de navegação. A esse número somam-se 10% de homens que foram degredados - (27% não identificaram o motivo).

Tem-se um quadro em que não ganham destaque as empreitadas masculinas empenhadas em garantir pela primeira vez residência na Amazônia joanina.

Nem mesmos os homens que viajavam acompanhados de suas esposas, excetuando os "retornados", poderiam indicar um empenho de se estabelecer num período mais duradouro no Pará. Dos 24 maridos que durante o período joanino partiram de Portugal com suas esposas, 12 (50%) tinham uma razão compulsória comum: o degredo.

Este era o caso de José Antonio Martins, comerciante natural de Setúbal. Em novembro de 1818, encontrava-se preso na Ribeira das Naus. Deveria embarcar o mais breve possível para Belém, onde cumpriria sua pena de degredo por cinco anos. Escrevera uma solicitação a D. João VI destacando que havia sido condenado injustamente, fruto de acusações falsas de seus inimigos e, principalmente, pelo mal cumprimento da legislação, pois no seu processo não houve exame de corpo e delito e nem pronúncia para sua prisão. E mais, deixava nas entrelinhas uma reclamação sobre a partida do soberano, enfatizando que uma autoridade local, D. Miguel Pereira Forjaz, fazia as "vezes" do rei: "Vossa Excelência é que faz as vezes e quem enxuga as lágrimas da saudade do nosso amantíssimo (sic) soberano auzente". Entretanto, o objetivo da solicitação era pedir autorização para que sua esposa o acompanhasse durante o degredo. E justificava o pedido: "e o que mais sente he deixar sua mulher e filhos entregues a hua desgraçada ruína, por não ter tempo de cobrar (...) dividas que se lhe devem, e nem por vigorarse das graves enfermidades que padece".10 O caso de José Antonio entrava em sintonia com metade dos pedidos feitos por maridos que desejavam levar a esposa como acompanhante: iniciava-se a partir do degredo. E mais, nas dificuldades de sobrevivência da família fracionada, estava a justificativa da ação de José Antonio. Um homem que reclamava da sua suposta condenação, das dificuldades de subsistência da mulher e dos filhos, e que pensava passar cinco anos no Pará acompanhado da família.

Embora o mais comum fosse homens condenados ao degredo solicitarem a companhia da esposa, esses casais não estavam isentos de conflitos conjugais. Casais degredados, unidos muito mais pela dificuldade de a esposa subsistir em Portugal, nem sempre permaneciam unidos. Como no caso de Teresa de Jesus, cujo marido cometeu vários "crimes". Sob condenação, o esposo foi degredado para o Pará, onde deveria ficar por cinco anos. A esposa, Teresa, se ofereceu para acompanhá-lo. Mas, em 1814, Teresa não suportava mais as agressões impostas pelo cônjuge e entrou com um pedido de autorização para retornar a Lisboa; justificava a solicitação pelos maus tratos dispensados pelo marido a ela e a um filho menor. Parece que a esposa preferiu a insegurança da subsistência que poderia se abater sobre ela e o filho a ficar exposta à violência impetrada pelo marido.11

Mulheres para Belém Em 1809, apareciam os primeiros pedidos demandados por mulheres por meio de seus procuradores, como no caso de Maria Luiza de Barros, que em 18 de abril de 1809 solicitou autorização para deixar Lisboa e ir para Belém do Pará. Maria nasceu em Lisboa e pretendia embarcar com sua filha, Ana Luiza, de um ano e nove meses. O motivo alegado era atender ao chamado do marido, Antonio Daniel, que estava residindo na cidade de Belém. Ou seja, a mãe e a filha buscavam juntar-se ao marido e pai para estabelecer residência no Brasil. A "chamada" feita por Antonio Daniel era um forte indício do esforço de fincar morada no Pará, o que justificaria a reunião da família em Belém. O passaporte não deixava claro quanto tempo Daniel estava no Brasil, mas a pouca idade da filha pode estabelecer uma estimativa.

O passaporte também vinculava o depoimento de três testemunhas, que atestavam a origem, o motivo e a identidade de Maria. As três testemunhas eram marítimos, entre eles dois pilotos. Além dos depoimentos, o passaporte trazia o aval de dois "homens de negócio" atestando que Maria partiria para Belém em companhia de sua filha e para se encontrar com o marido. Somada ao depoimento das testemunhas e ao aval dos "homens de negócio" estava a declaração do capitão do "Navio Comerciante", que informava estar levando Maria e sua filha para Belém do Pará, com a intenção de uni-las ao marido e pai.

E se Maria Luiza alegava como justificativa para a viagem o esforço de reunir- se ao esposo, podemos entrever outras mulheres com o mesmo empenho. É o caso de outra Maria, a Maria Joaquina dos Santos, em 20 de abril de 1809. Joaquina havia nascido e morado no Porto e pedia para ir a Belém acompanhada por sua mãe viúva e dois filhos, um com seis e outro com quatro anos. Deixaria Portugal levando um grupo familiar mais dilatado, incluindo a mãe viúva. O instigante nesse documento é o fato de Maria Joaquina, seus dois filhos e sua mãe terem embarcado na mesma viagem que levara Maria Luiza e sua recém-nascida filha ao Pará.12 Duas famílias que deixavam Portugal e rumavam para Belém. Essas duas mulheres não apenas compartilharam a mesma viagem, mas também declararam o mesmo motivo: ficarem juntas dos respectivos maridos e residirem com as famílias no Pará - onde os cônjuges haviam se estabelecido. O "Navio Comerciante" foi palco, naquele mês de abril de 1809, do encontro entre "Marias". "Marias" que deixavam Lisboa e rumavam para Belém, "Marias" que buscavam o amparo do marido, "Marias" que levavam seus filhos rumo a uma distante e mal conhecida região do outrora poderoso Império lusitano e que agora se deparava com a ameaça das empreitadas napoleônicas. No convés do Comerciante, histórias parecidas se encontrariam.

O caso de Maria do Rosário também é instigante, devido às instruções que acompanhavam a "carta de chamada", escrita por Zeferino Xavier, seu marido, que havia partido para a capital paraense antes mesmo da ocupação francesa e, em 1805, morava na cidade. Após cinco anos distante da família, ele achava que chegara o momento de chamar a esposa e o filho. Por isso, Rosário, a esposa, em 1810, solicitara o direito de viajar para Belém acompanhada de um filho com seis anos de idade. A carta do marido fora escrita em agosto de 1809, no Pará; chegara às mãos de Rosário por meio de um comerciante que vinha de Belém e logo nas primeiras linhas orientava a esposa para se por "em prática seu avizo".

Zeferino explicitava sua vontade de buscar pessoalmente Rosário e seu filho: "Eu queria antes ir em lugar da carta (...)". Mas, logo justificada a sua impossibilidade: "porem este gosto não me é possível tello pelo desarranjo em que fica meu giro" (sic). O negócio estabelecido por ele no Pará necessitava da sua presença contínua, o que na carta aparece como justificativa para a permanência no Brasil.

A carta continha claras instruções para Rosário, como ela deveria proceder ao chegar em Belém. Primeiro, ela deveria buscar a casa dos irmãos Feliciano e Domingos Colares, pois eles providenciariam a ida de Rosário e de seu filho até onde seu marido estava no Pará. Ao compadre que morava em Portugal escrevia também, pedindo que este auxiliasse Rosário a suprir qualquer eventual necessidade de vestuário. A partida de Rosário deveria ser rápida, Zeferino esperava reunir-se com a família no Natal. Para tanto, pedia que a mulher embarcasse logo no primeiro navio e que, se não o fizesse, lhe avisasse em qual embarcaria. Ele teve que esperar, pois, apesar de remeter a carta em agosto de 1809, somente em 15 de janeiro de 1810 o processo começou a caminhar: passou mais um Natal longe da esposa e do filho.13 Orientava que a esposa vendesse os "trastes" que tinha em casa. Embora tivesse dúvida sobre a possibilidade da existência de tais "trastes", explicitada numa lacônica frase: "se he que ainda tem algum". Essa dúvida pode sugerir uma instabilidade econômica na vida de Rosário, explicada parcialmente pela situação de Portugal após a partida da Corte, pois houve um expressivo deslocamento de parte de sua base econômica para o Brasil, incluindo a intensidade do comércio e a circulação de capital. Nesse quadro, Rosário tinha que sustentar a si e a um filho, e sem ajuda dos pais que eram falecidos. A venda dos "trastes" serviria como meio de sustento. No entanto, na mesma carta, o marido orientava Rosário a não se desfazer da cama, que deveria acompanhá-la até o Pará - era um "traste" especial, que merecia ser mantido no patrimônio familiar, o que se justifica pela limitada possibilidade de aquisição de mobília no Brasil e seu elevado custo.

Após todas as orientações, o marido reforçava o desejo de se reunir com a esposa: "o mais que me resta fica para a vista, que com ella serei feliz".

Encerra a carta mandando lembranças a muitos conhecidos e parentes que residiam em Portugal, e assinava a carta como: "Seu fiel esposo, Zeferino José Xavier".

A "carta de chamada" é instigante por apresentar problemas corriqueiros que envolviam o deslocamento para a Amazônia. O cuidado com os bens que ficavam em Lisboa, a debilidade material no Pará, a rede de sociabilidade criada em Belém e que deveria amparar a chegada da esposa, a entrada de Zeferino em regiões distantes de Belém, o desejo de reencontrar a família, os amigos e parentes que continuavam em Portugal... Todos esses elementos integravam uma espécie de "cotidiano da separação" de um casal que, dos sete anos de possível vida marital, tiveram durante cinco anos o Atlântico como fronteira.

Mas, no geral, quais seriam os motivos alegados por mulheres para deixarem Portugal em busca da Amazônia? Dos 61 casos que envolviam mulheres, 42% (26) estavam justificados pelo empenho da esposa em acompanhar o marido. Seja um marido que foi degredado, seja, principalmente, um esposo que buscava morar no Pará. Como no caso de Zeferino que chamava Rosário para fazer residência em Belém. Em outros casos, as mulheres alegavam acompanhar parentes masculinos, como filhos (8%), irmãos (6,5%), genro ou pai (3%). Ou seja, 61,5% das partidas das mulheres eram justificadas pelo fato de acompanharem a iniciativa de parentes masculinos.

Assim, marca-se uma diferença significativa entre os motivos alegados por homens e por mulheres para alcançarem a Amazônia. Os homens, no geral, declaravam retornar para suas moradas no Pará (20%) ou acompanhar as embarcações onde exerciam ofício (20%). No caso das mulheres, o destaque era dado para seus empenhos em seguir o marido. Somente 5% (3) das mulheres alegaram buscar em Belém do Pará por iniciativa própria, embora amparada por outros parentes, uma alternativa de sobrevivência que não estava relacionada diretamente a uma determinação masculina.

Este é o caso da ex-escrava Joaquina Maria, nascida em Angola, com 25 anos de idade e que residia em Lisboa. Em 26 de maio de 1809, solicitou passaporte para retornar ao Pará, junto a uma filha chamada Paula Francisca, de pouco mais de quatro anos. Paula era natural do Pará, ou seja, sua mãe estava pouco tempo morando em Lisboa. Foi para a capital portuguesa acompanhando seu senhor, José Monteiro de Carvalho, e por morte deste ganhou a alforria. Forra e em Lisboa, Joaquina precisava garantir a vida naqueles tempos de incertezas, tempos de súditos sem soberano. A forra declarou que sua ida para Belém se justificava por não ter condições de se sustentar na capital portuguesa e por contar no Pará com o apoio de parentes. O paquete Santo Antonio do Pará foi autorizado a levar a ex-escrava e a filha.14 O outro caso foi de Dona Ana Raimunda Góes Freire, viúva do desembargador Manuel Freire. Em abril de 1817, Dona Ana solicitou o direito de partir de Lisboa, onde morava, para a cidade de Belém. O pedido se estendia a três filhos menores, um com 11 anos, outro com cinco anos e o mais novo com três meses de idade; também foi solicitado o "passaporte" para sua criada Maria Gertrudes, uma portuguesa com 20 anos de idade. Dona Ana era viúva e, pela idade da filha mais nova, presume-se que recentemente perdera o marido. Mas o que levaria a viúva de um alto funcionário, com seus três filhos e uma criada, partir de Lisboa para Belém naquele ano de 1817? A explicação talvez resida no fato de Dona Ana ter nascido em Belém do Pará, onde provavelmente tinha uma base familiar que lhe garantiria a subsistência sua e de seus filhos.15 Cita-se, ainda, o caso de Vitória Maria Teresa, viúva e natural do Pará. Fora para Lisboa acompanhando o filho que era cirurgião numa nau real. Após o falecimento do filho na capital portuguesa, Vitória solicitou, em 1810, autorização para voltar a Belém com a filha e o neto de seis anos. Alegava que estava passando "grandes mizerias e necessidades pela falta de abrigo e amparo do dito seu filho sem terem por quem as sustentem". Vitória formava um intrigante grupo familiar em Lisboa, pois a paraense viúva morava com a filha (sem referência ao genro), com o neto e com o filho que era o provedor da residência. Continuando seu relato, empenhada em transmitir a gravidade de sua situação, Vitória Maria dizia que no Pará tinha dois filhos, que serviriam como base de apoio para que ela, a filha e o neto retornassem para Belém.16 Considerando o caso da ex-escrava, da viúva do desembargador e de Vitória, encontramos os três únicos processos de "passaporte" solicitados por mulheres que destacavam como motivo da viagem a vontade de estabelecer vida em Belém.

Não atrelando suas viagens diretamente a parentes masculinos específicos, como a maioria dos casos, tais mulheres buscavam retornar à terra de suas famílias.

Embora estivessem separadas por estamentos sociais tão distantes, a ex-escrava Joaquina Maria, Dona Ana e Vitória tinham como marco do deslocamento inicial o falecimento de seus "provedores" em Lisboa; seja o senhor, o marido proprietário ou o filho.

Os casos citados possibilitam pensar que as viagens de mulheres ao Pará não se limitavam a um único estamento social, envolvendo senhoras casadas acompanhadas de seus filhos, viúvas com seus netos, bem como uma ex-escrava e sua filha. A cidade de Belém, em anos joaninos, emergia como possibilidade de residência e amparo - mesmo para poucos -, principalmente considerando o estabelecimento de maridos e outros parentes que serviam como base de auxílio. No rastro da família real, outras famílias buscaram no Brasil sobrevivência, residência e tentaram reconstruir suas vidas, embora, na realidade específica do Pará, esse número não seja significativo.

Mas nem todos vinham à Amazônia por vontade própria. Alguns eram obrigados, pagando punições judiciais com o degredo. Em 27 de novembro de 1811, era remetida pelo comandante do presídio de Trafaria uma lista de condenados que deveriam ser embarcados para o Pará, na referida embarcação "Prazeres e Alegria", que fazia linha regular entre Belém e Portugal, transportando passageiros, pólvora, madeira, sal, fio de vela, pedra calcária... e, naquele novembro de 1811, a "carga" incluía 13 presos.17 Entre os presos apenas um era homem, os demais eram mulheres. A culpa mais comum entre as condenadas era o furto (10), outra era acusada de infanticídio, uma viúva acusada de participar da morte do marido e o único homem arrolado fora acusado de "aviso falso". Mulheres livres, outras condenadas, esposas de altos funcionários reais, cônjuges de comerciantes, ex-escravas, prisioneiras... compunham um cenário com muitas possibilidades daqueles que partiam de Portugal e buscavam o Pará.

Epílogo Mesmo em época joanina, com as incertezas rondando um Portugal em meio a avanços e recuos de invasões estrangeiras e a um regente afastado, o ir e vir não cessou entre a Amazônia e os portos lusitanos. No rastro da Coroa, alguns partiram para o norte do Brasil, por variados motivos. O instigante é não reduzirmos essas aventuras migratórias a uma nobreza perdida, nem a homens de guerra. É preciso considerar outros agentes sociais, que insistiam em procurar o Brasil. Aliás, também é preciso pensar a presença da família Real além do Rio de Janeiro, relativizando seus desdobramentos.

E, nesse caleidoscópio, a Amazônia emerge como possibilidade de imagens. Seja por continuar a receber embarcações de origens portuguesas e estrangeiras, seja por se apresentar como possibilidade de sobrevivência ou expurgo de "crimes" para moradores de Portugal. Os anos joaninos não significaram o isolamento da região e, mesmo no auge dos confrontos peninsulares europeus, muitas embarcações e pessoas buscaram o porto da cidade de Belém. Anos de "movimento", de embarcações, populações e... história em movimento.


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