Autonomia, gênero e gravidez na adolescência: uma análise comparativa da
experiência de adolescentes e mulheres jovens provenientes de camadas médias e
populares em Belo Horizonte
Introdução
A autonomia pode ser considerada um elemento-chave para conquistar a saúde
sexual e reprodutiva: nenhum nível de educação será capaz de proteger a mulher
de exposição ao vírus HIV e à gravidez indesejada se ela não puder negociar o
sexo seguro. Na falta da autonomia, a mulher não se sentirá suficientemente
empoderada para recusar o sexo ou demandar o uso do preservativo (SEN;
BATLIWALA, 2000).
Pesquisas realizadas em diferentes países já demonstraram que o uso de
indicadores de autonomia é bastante útil para medir o impacto das desigualdades
de gênero em diferentes áreas da vida da mulher, tanto em níveis macro quanto
micro de análises (CASIQUE, 2006; RILEY, 1997; JEJEEBHOY, 1995; MASON, 1993;
DAS GUPTA, 1990). Tais estudos demonstraram que o aumento do controle das
mulheres sobre suas próprias vidas e sobre seu acesso a recursos materiais e
sociais é fundamental para melhorar a qualidade de vida e de saúde de mulheres
e crianças.
Autonomia tem sido definida como sendo relativa ao "grau de acesso da mulher a,
e seu controle sobre, recursos materiais (incluindo alimentação, renda, terra e
outras formas de bem-estar) e sociais (incluindo conhecimento, poder e
prestígio) dentro da família, da comunidade e da sociedade mais ampla"
(JEJEEBHOY, 2000, p. 205). O conceito de autonomia relaciona-se com a amplitude
do controle da mulher sobre sua própria vida. Baseada nesta definição,
Jejeebhoy (2000) criou cinco dimensões de autonomia ' autoridade para tomar
decisões econômicas e relacionadas com os filhos; mobilidade; ausência de
ameaça do companheiro; acesso a recursos econômicos e sociais; e controle sobre
recursos econômicos ' e selecionou indicadores para cada uma delas.
Especificamente na esfera reprodutiva e sexual, a autonomia relaciona-se com: o
fato de a jovem/mulher poder ou não determinar, com segurança, quando e com
quem terá relações sexuais; a saúde sexual; a regulação da fertilidade; e a
maternidade segura (SEN; BATLIWALA, 2000). A ausência de autonomia na esfera da
sexualidade pode ser considerada um risco para a saúde sexual e reprodutiva da
mulher. Existem evidências significativas de que a falta de autonomia significa
um grande obstáculo, quando não uma impossibilidade de as mulheres negociarem
tanto a frequência da relação sexual quanto o uso de métodos de prevenção de
gravidez e das Aids/HIV/DSTs (doenças sexuais transmissíveis).
Em nosso trabalho, adaptamos os indicadores propostos para analisar as esferas
da autonomia relacionadas com maior susceptibilidade à gravidez entre mulheres
jovens moradoras de bairros de classe média e de favelas de uma mesma área
urbana de Belo Horizonte, Minas Gerais. A decisão de focar a análise no
fenômeno da gravidez na adolescência deve-se ao fato de que esse tem sido
objeto frequente de interesse tanto da mídia quanto de importantes pesquisas
realizadas na última década1 e é intenção aqui contribuir com novos elementos
para esse diálogo.
A despeito de indicações de uma reversão nas taxas de nascimentos para mães
entre 15 a 19 anos (BERQUÓ, CAVANAGAH, 2005), a prevalência da gravidez na
adolescência permanece relativamente alta, como um fenômeno quase que exclusivo
das camadas mais pobres da população (BASSI, 2008). E se, hoje, os resultados
de diferentes pesquisas forçaram uma revisão de várias representações presentes
no senso comum sobre a gravidez na adolescência, ao mostrar que elas não são
necessariamente indesejadas ou mesmo não planejadas, o fato de muitas vezes
resultarem de escolhas das jovens não nos preclui de examinarmos o contexto em
que essas escolhas são feitas e, principalmente, as suas consequências.
A análise do impacto da desigualdade de gênero na redução da autonomia da jovem
em diferentes esferas da sua vida e, mais especificamente, na esfera da
sexualidade e da reprodução, que se propõe apresentar aqui, é uma contribuição
nesse sentido. Longe de estigmatizar a experiência da gravidez na adolescência,
o objetivo é compreender alguns dos múltiplos fatores, incluindo a desigualdade
de gênero e de classe, que estão associados a ela. Dentro desse processo, o
principal desafio foi construir indicadores das diferentes dimensões de
autonomia de mulheres jovens que fizessem sentido no contexto cultural e social
investigado ' uma grande metrópole localizada em um país industrializado, no
qual coexistem valores e comportamentos "modernos" com expectativas
tradicionais acerca dos papéis de gênero e o machismo que caracteriza as
sociedades latino-americanas.
Desenho da pesquisa e métodos
A presente pesquisa foi realizada em Belo Horizonte, Minas Gerais, Estado
localizado na Região Sudeste do Brasil, a mais rica e desenvolvida do país, mas
ainda fortemente marcada por desigualdades sociais. Segundo o Censo de 2010, a
capital mineira possui 2.375.000 habitantes, sendo a Região Metropolitana de
Belo Horizonte a terceira maior do país, com uma população de quase cinco
milhões de habitantes (IBGE, 2010). A cidade se divide em nove regiões
administrativas, das quais a regional Centro-Sul é a que concentra os bairros
mais ricos e também algumas das favelas mais extensas do município. Esta
regional foi escolhida como lócus da pesquisa por permitir comparar a
experiência de vida de mulheres jovens de diferentes níveis socioeconômicos
vivendo na mesma região geográfica e administrativa, às vezes na mesma rua.
Para a pesquisa, foi utilizado um mix dos métodos quantitativos e qualitativos:
inquérito, grupos focais e entrevistas em profundidade. Aqui são apresentados
os resultados quantitativos. O trabalho de campo da fase quantitativa durou um
ano, de janeiro de 2007 a janeiro de 2008. Foram realizados dois inquéritos em
momentos diferentes: no primeiro, entre janeiro e setembro de 2007, foram
entrevistadas 292 adolescentes e mulheres jovens (entre 15 e 24 anos de idade)
moradoras dos bairros de classe média da regional Centro-Sul de Belo Horizonte;
no segundo, de setembro de 2007 a janeiro de 2008, foram entrevistadas 365
adolescentes e mulheres jovens da mesma faixa etária residentes em cinco
favelas daquela região (Complexo da Serra, Barragem Santa Lúcia/Morro do
Papagaio, São José, Acaba Mundo e Querosene).
O tamanho da amostra de cada inquérito foi calculado com base na prevalência da
gravidez na adolescência para ambos os grupos e também no tamanho da população
de mulheres jovens (entre 15 e 24 anos) em cada área. Em pesquisa anterior na
favela do Taquaril, encontrou-se uma prevalência de gravidez na adolescência de
38%, em 2005 (CHACHAM et al., 2007). Já os registros de nascidos vivos (Sinasc)
do mesmo ano indicaram uma prevalência de 3% de partos em adolescentes nas
maternidades privadas de Belo Horizonte, utilizadas principalmente por mulheres
de classe média e alta. Estes números foram empregados como parâmetros para a
prevalência esperada de gravidez, em ambos os grupos. Com uma equação para
amostra probabilística aleatória com nível de significância de 5%, a amostra
foi definida a partir do número total de adolescentes e mulheres jovens entre
15 e 24 anos residentes nos bairros e nas favelas da regional Centro-Sul, de
acordo com o Censo de 2000.
Para participar da pesquisa, foram sorteados 40 setores censitários normais
(bairros) e 30 setores censitários subnormais (favelas) da Regional Centro-Sul.
Posteriormente, foi realizada uma contagem do número de mulheres entre 15 e 24
anos residentes naqueles setores. Finalizada a contagem, elaborou-se uma lista
de idade e endereço de cada mulher identificada e foram selecionadas
aleatoriamente 12 jovens em cada um dos 70 setores sorteados para serem
entrevistadas.
As entrevistadoras eram estudantes do curso de Ciências Sociais e foram
treinadas e supervisionadas pelos pesquisadores. Elas receberam uma lista com
12 nomes para cada setor censitário e tinham como meta entrevistar nove
adolescentes e mulheres jovens. Todas as entrevistadas foram contatadas em casa
e assinaram um consentimento informado para participar da pesquisa.2
As entrevistas ocorreram em locais privados, onde a jovem se sentisse confiante
e confortável, e duravam cerca de 50 minutos. Ao todo foram entrevistadas 648
jovens entre 15 e 24 anos moradoras de favelas e de bairros de classe média da
regional Centro-Sul de Belo Horizonte. Após as entrevistas, cada questionário
foi conferido por um dos pesquisadores principais, e 20% das entrevistas foram
aleatoriamente escolhidas para serem checadas. Todas as respostas para algumas
questões-chave foram conferidas. Após o processo de checagem, as respostas para
as questões abertas e fechadas do questionário foram codificadas, inseridas em
uma base de dados e analisadas por meio do Statistical Programme for Social
Sciences(SPSS 16.0). Como medida de associação, aplicou-se o teste do chi-
quadrado de Pearson e as correlações foram aceitas quando o p-valor era próximo
ou inferior a 0,05.
O questionário aplicado na regional Centro-Sul foi baseado no modelo usado
anteriormente na pesquisa realizada na favela do Taquaril (CHACHAM et al.,
2007), cujos indicadores de autonomia foram inspirados no trabalho de Jejeebhoy
(2000), na Índia, e no de Araújo e Scalon (2005). O Quadro_1 apresenta as
variáveis utilizadas como indicadores das diferentes dimensões de autonomia.
Nesse artigo será apresentada uma análise da relação da prevalência da gravidez
na adolescência com as características socioeconômicas das jovens entrevistadas
e com os fatores associados com a autonomia na esfera da sexualidade e a
liberdade de violência e controle.
Resultados
Perfil socioeconômico das adolescentes e jovens entrevistadas
A análise das características socioeconômicas das entrevistadas indicou,
conforme era de se esperar, uma grande disparidade de renda entre as que
residiam nos bairros de classe média e as residentes nas favelas da região
Centro-Sul. Na favela, em 54% dos domicílios, a renda mensal era de até dois
salários mínimos,3 o que denota condições materiais bastante precárias, tendo
em vista que foi encontrada uma média de sete moradores por domicílio. Já nos
bairros de classe média, 37% declararam renda familiar mensal superior a 20
salários mínimos e 56% entre 5 e 20 salários mínimos, sendo que o número de
residentes em cada domicílio era bem mais baixo, em média quatro.
O abismo econômico encontrado entre as adolescentes e jovens dos dois grupos
pesquisados já era esperado, dada a profunda desigualdade de classe existente
no Brasil. Contudo, também foi possível observar uma grande heterogeneidade
dentro dos próprios grupos pesquisados: tanto na favela como nos bairros de
classe média, diferentes níveis de renda coexistiam no mesmo território. Entre
as jovens residentes em bairros da regional Centro-Sul de Belo Horizonte, foram
encontrados níveis de renda familiar compatíveis com os das camadas médias e
médias-altas da população, mas também um grupo relativamente pequeno (5%) que
declarou renda familiar mensal entre dois e cinco salários mínimos. Na favela,
foi observado um percentual próximo (4%) de jovens que declararam uma renda
familiar de cinco salários ou mais. Essas diferenças intragrupos se mostraram
relevantes para a análise do comportamento sexual e reprodutivo das jovens, o
que será discutido a diante.
Outra diferença entre os dois grupos refere-se à chefia do domicílio. A maioria
das moradoras dos bairros de classe média (51%) declarou que o pai era o
responsável pelo domicílio, contra 31% das residentes em favelas. As jovens
residentes em favelas declararam em maior número morar em domicílios chefiados
por mulheres: para 34% a chefe era a mãe e em 4,5% dos casos eram elas mesmas
as responsáveis pelo domicílio. Já entre as jovens de classe média, 25%
declararam que a mãe era a responsável pelo domicílio e só 0,7% afirmou ser ela
própria a responsável pelo domicílio. Uma proporção bem maior de moradoras de
favela (18%) declarou que o parceiro era o responsável pelo domicílio, em
comparação às entrevistadas em bairros (1,7%).
A chefia feminina estava associada a uma renda domiciliar mais baixa nos dois
grupos de entrevistadas, mas, entre as jovens da favela, as que residiam com a
mãe declararam renda familiar mais alta do que as que residiam em domicílios
chefiados pelos parceiros ou por elas mesmas.
Em relação ao estado civil, apenas 3,1% das moradoras dos bairros de classe
média estavam ou já haviam sido casadas ou unidas no momento da entrevista.
Entre as moradoras das favelas, apesar da grande maioria ser solteira (69%),
quando analisamos o grupo de 20 a 24 anos de idade encontramos uma proporção
muito mais alta de jovens que já haviam se casado ou unido (54%), especialmente
quando comparamos com as jovens de classe média da mesma faixa etária, entre as
quais somente 4,5% já haviam se casado ou unido. Já entre as adolescentes de 15
a 19 anos residentes em favelas, 14% encontravam-se nessa situação, contra 1,4%
das adolescentes de classe média.
Conforme esperado, dada a grande associação entre classe e raça no Brasil, onde
os negros representam 70% da população que vive abaixo da linha de pobreza, a
grande proporção das jovens entrevistadas que declararam ser pardas ou pretas
residia em favelas (84,5%), enquanto nos bairros de classe média 69% das jovens
se declararam brancas.
A religião foi mais um ponto de diferenciação entre os dois grupos de jovens:
nas favelas, houve uma predominância das religiões evangélicas/pentecostais
(42%), superando a católica (37%) em número de adeptas, sendo que 20%
declararam não ter religião. Já nos bairros de classe média, o número de
católicas continua a ser expressivo (52%), apesar de um grande número ter se
declarado sem religião (28%). Entre as jovens de classe média, 12% declararam
ser espírita e apenas 6% evangélica ou protestante.
Importante indicador da desigualdade de classe é o nível de escolaridade das
entrevistadas: a maioria absoluta (98%) das adolescentes residentes nos bairros
de classe média estava estudando, enquanto mais de 30% das adolescentes
residentes em favelas já haviam parado de estudar. Entre estas, 31,5% pararam
de estudar por ter engravidado e/ou para cuidar dos filhos. Contudo, uma
proporção significativa delas (30%) declarou que parou simplesmente porque não
gostava de estudar, dado que pode ser interpretado como indicador da baixa
qualidade do ensino oferecido na região.
Os resultados também indicam que o ensino médio é o limite da escolarização das
moradoras das favelas, ou seja, elas não conseguem acessar o ensino superior.
Entre as adolescentes de 15 a 19 anos, 44% das moradoras dos bairros de classe
média já possuíam ensino médio ou técnico completo e 5% estavam na
universidade; entre as adolescentes residentes em favelas, apenas 7% haviam
concluído o ensino médio e nenhuma estava na universidade. Para as jovens de 20
a 24 anos residentes em bairros de classe média, 70% estavam cursando ou já
tinham completado um curso superior, enquanto apenas 3,3% das jovens da mesma
faixa etária residentes em favelas frequentavam universidade, apesar de 34%
delas terem concluído o ensino médio.
Com relação à inserção das entrevistadas no mercado de trabalho, observou-se
que as moradoras das favelas ingressam mais precocemente no mercado de
trabalho: 25% das adolescentes entre 15 e 19 anos moradoras das favelas já
exerciam algum trabalho remunerado, contra 14% das residentes nos bairros de
classe média. A proporção de jovens entre 20 e 24 anos exercendo atividade
remunerada era a mesma nos dois grupos, em torno de 50%. Entretanto, o
rendimento médio mensal das moradoras dos bairros de classe média era de dois
salários mínimos, predominando como ocupação o estágio do ensino superior
(48%). Já entre as moradoras das favelas, o rendimento médio mensal
correspondia a ½ salário mínimo, predominando o trabalho no comércio varejista
(36%) e o serviço doméstico (24%). Observa-se claramente uma concentração das
jovens residentes em favelas em empregos no setor de serviços de baixa
qualificação, baixos salários, relações precárias de trabalho, sem estabilidade
e com poucas chances de ascensão profissional. Considerando-se que um número
significativo delas já havia completado o ensino médio, um nível de
escolaridade relativamente alto para os padrões brasileiros, fica evidente a
limitação desse diploma em promover uma inclusão qualificada no mercado de
trabalho.
Características do comportamento sexual e reprodutivo das adolescentes e jovens
entrevistadas
Especificamente em relação à gravidez na adolescência, verificou-se uma
prevalência de 27,3% de gravidez antes dos 19 anos de idade entre as residentes
em favelas, enquanto para as jovens das camadas médias esse percentual foi 16
vezes menor, ficando em 1,7%. Já em relação à gravidez antes dos 20 anos '
recorte comumente utilizado para a análise da gravidez na adolescência ', a
proporção foi de 30,7% para o grupo das residentes em favelas, não se alterando
para as jovens residentes em bairros. A prevalência da gravidez antes dos 15
anos de idade foi de 3,2% entre as jovens residentes em favelas e 0% para as de
classe média.
O recorte para a análise da gravidez na adolescência adotado neste trabalho, ao
contrário da grande maioria dos estudos da área, será o da gravidez ocorrida
até os 18 anos de idade, seguindo o marco etário estabelecido pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente de 1990. A justificativa para tal escolha se
fundamenta na nossa observação em pesquisas anteriores de que a gravidez antes
dos 18 anos de idade resulta em maior impacto na trajetória afetivo-conjugal da
jovem e na sua escolarização do que aquela ocorrida após os 18 anos de idade,
momento que, em tese, ela já teria completado o ensino médio e já é considerada
uma adulta, legal e socialmente.
A despeito das diferenças extremas em relação à prevalência da gravidez na
adolescência entre as entrevistadas, foi possível observar que existe uma
semelhança muito grande em alguns aspectos das trajetórias sexuais dessas
jovens: a proporção de entrevistadas que já haviam se iniciado sexualmente foi
praticamente a mesma: em torno de 70% nos dois grupos. No entanto, aquelas de
classe média se iniciaram sexualmente um pouco mais tarde (17 anos em média) do
que as jovens residentes em favelas (15,7 anos em média). Dada essa diferença,
verificou-se uma proporção maior de adolescentes sexualmente ativas entre as
entrevistadas nas favelas (50%) do que entre as das camadas médias (45,6%).
Contudo, apesar de serem sexualmente ativas há menos tempo, as jovens de classe
média declararam ter tido um número pouco maior de parceiros em média (três) do
que as residentes em favelas (dois parceiros em média). O sexo pré-marital foi
prática comum para os dois grupos, sendo que para a grande maioria das
entrevistadas (84%), a primeira relação sexual ocorreu no contexto de uma
relação estável, com um noivo ou namorado, a exemplo dos resultados encontrados
por Aquino et al. (2003).
Apesar das semelhanças na trajetória sexual das jovens das camadas médias e das
residentes em favelas, em relação à experiência reprodutiva as disparidades
encontradas entre os dois grupos foram substanciais: além da diferença na
prevalência da gravidez na adolescência, mais da metade das jovens residentes
em favelas que eram sexualmente ativas declarou já ter engravidado ao menos uma
vez (57%), contra 5,4% das entrevistadas de classe média. Entre as jovens
residentes em favelas, a primeira gravidez ocorreu em média aproximadamente um
ano após a iniciação sexual e se traduziu, na maioria das vezes, na experiência
da maternidade: entre as entrevistadas que já haviam engravidado, 70% das
adolescentes (15 a 19 anos) e 91% das jovens (20 a 24 anos) residentes em
favelas eram mães. Entre as 11 entrevistadas de classe média que já haviam
engravidado, apenas cinco eram mães (quatro haviam interrompido a gravidez e
uma estava grávida no momento da pesquisa). Só duas jovens residentes em
favelas declararam ter provocado um aborto, sendo que 12% das adolescentes e
20% das jovens declararam ter tido pelo menos um aborto espontâneo.
A prevalência do uso do preservativo na primeira relação sexual foi alta nos
dois grupos, ainda que mais elevada entre as jovens de classe média (88% contra
71%). A principal razão apontada para o uso do preservativo, nos dois grupos,
foi a prevenção de gravidez e de HIV/DSTs. Já o principal motivo para o não uso
do preservativo na primeira relação dada pelas residentes em bairros de classe
média foi de que "confiavam no parceiro" (30%), enquanto para as residentes das
favelas, as principais razões foram: "não ter o preservativo na hora" (20%);
"não se lembrou" (20%); "ter sido levada pelo momento" (17%) ou "não saber que
era importante" (12%), fatores que apontam para uma falta de planejamento em
relação ao momento da primeira relação, o que não significa que ela não fosse
desejada.
Nos dois grupos observou-se uma queda no uso do preservativo após a primeira
relação, sendo que apenas 53% das jovens dos bairros de classe média e 44% das
residentes em favelas declararam ter usado o preservativo na última relação
sexual. A diminuição do uso da camisinha coincide com a entrada da jovem em
relações estáveis, conjugais ou não, nas quais o preservativo é substituído por
outros métodos contraceptivos. Entretanto, as entrevistadas pertencentes às
camadas médias aparentemente foram muito mais bem-sucedidas nessa substituição:
apenas 4,4% delas declararam não ter utilizado contraceptivo na última relação
sexual, contra 22% das residentes nas favelas (entre elas, 36% estavam grávidas
no momento da pesquisa e mais da metade justificou não ter usado algum método
por esquecimento ou por não tê-lo em mãos no momento).
Esses dados indicam que, para as entrevistadas da favela, ao abandono do uso da
camisinha não se segue uma adoção sistemática do uso de outro método
contraceptivo. A dificuldade de acesso aos métodos contraceptivos ainda
permanece como uma questão importante para elas. Embora a grande maioria tenha
declarado que tem acesso a preservativos e pílulas anticoncepcionais nos
centros de saúde, nem sempre estes estão disponíveis quando a jovem vai ao
centro de saúde. Além disso, vários desses métodos, como a pílula, por exemplo,
requer uma consulta ao ginecologista, o que demanda tempo até ser agendada, bem
como a participação em um grupo de planejamento familiar, o que pode ser
intimidador para uma jovem, pois significa exposição pública do interesse em
obter contracepção em um ambiente frequentado por familiares e vizinhos. Esses
obstáculos ao acesso dos serviços de saúde contribuem para que uma proporção
relativamente baixa das jovens residentes em favelas que nunca engravidaram
declarassem que já haviam ido ao ginecologista (27%), enquanto 70% das jovens
de classe média na mesma situação já passaram por essa experiência.
Os resultados indicam que as jovens de classe média fazem um uso mais
sistemático e eficaz dos métodos contraceptivos quando deixam de usar o
preservativo. Elas também utilizaram a contracepção de emergência com maior
frequência: 27% afirmaram ter utilizado esse tipo de contracepção ao menos uma
vez, contra 5,6% das moradoras das favelas. Apesar de o conhecimento sobre
contracepção ter sido praticamente universal em ambos os grupos (mais de 98%
conhecem pelo menos um método contraceptivo), as moradoras dos bairros de
classe média, quando perguntado, elencaram um número maior de métodos.
O acesso ainda precário aos serviços de saúde sexual e reprodutiva pode ser
diretamente relacionado com o uso menos consistente dos métodos contraceptivos,
principalmente entre as adolescentes de 15 a 19 anos: 78% das que engravidaram
declararam que não usavam nenhum método contraceptivo quando ficaram grávidas,
apesar de 70% delas terem declarado que não desejavam a gravidez. A prevalência
muito maior de gravidez e da maternidade entre as adolescentes pobres
certamente é um reflexo dessa realidade.
Características sociodemográficas associadas à prevalência da gravidez na
adolescência entre as jovens entrevistadas
Na Tabela_1 apresentam-se os cruzamentos de algumas características
socioeconômicas das jovens com a prevalência da gravidez antes dos 19 anos.
Verificou-se maior prevalência da gravidez na adolescência entre as
entrevistadas com níveis de renda mais baixo dentro de cada grupo. Entre as
residentes em favelas, 45% das que residiam em domicílios com renda mensal de
até um salário mínimo engravidaram antes dos 19 anos de idade, sendo que essa
diferença foi mais acentuada ainda entre as entrevistadas residentes em bairros
de classe média.
Entretanto, a gravidez entre as adolescentes residentes em bairros de classe
média que declararam renda familiar mais baixa não se traduziu em um impacto
negativo na sua escolaridade, como ocorreu entre as moradoras em favelas. Mesmo
para as jovens com renda familiar mais baixa, o fato de residerem em bairros de
classe média melhora o acesso à educação. Já a associação negativa da gravidez
na adolescência com o nível de escolaridade foi bastante pronunciada entre as
jovens residentes em favelas, principalmente quando comparadas com aquelas que
tiveram filhos após os 19 anos ou que fizeram sexo e nunca engravidaram.
Entre as entrevistadas residentes em favelas, as que ficaram grávidas até os 19
anos tinham um nível de escolaridade mais baixo do que todas outras
entrevistadas, enquanto a gravidez após os 19 anos aparentemente não impacta
nos níveis de escolaridade entre as jovens desse grupo. As adolescentes que
engravidaram antes dos 19 anos tinham uma média de 7,5 anos de escolaridade,
contra uma média de nove anos para as jovens que engravidaram após os 19 anos
ou nunca engravidaram. Entre as jovens que engravidaram após os 19 anos, 28%
completaram o ensino médio, proporção que corresponde a apenas 13% para as que
engravidaram antes dos 19 anos.
A gravidez antes dos 19 anos parece ter sido um fator importante de interrupção
dos estudos ou de sua não retomada, sendo que as jovens que passaram por essa
experiência interromperam seus estudos com 16,8 anos de idade em média e 60%
delas declararam que largaram a escola porque engravidaram ou tinham que cuidar
dos filhos. Já entre aquelas que engravidaram após os 19 anos, apenas 16%
declararam ter saído da escola por causa de gravidez e/ou filhos. A experiência
da gravidez antes dos 19 anos de idade, entre as entrevistadas residentes em
favelas, reduziu suas chances de completar a escolarização e alcançar uma
inserção mais qualificada no mercado de trabalho.
Em relação à trajetória profissional das jovens, associada ao menor nível de
renda e de escolaridade, constatou-se uma inserção mais precária no mercado de
trabalho entre as residentes em favelas que engravidaram antes dos 19 anos: 35%
trabalhavam como domésticas e 15% em trabalhos manuais, contra 20% e 7%,
respectivamente, para todas as outras jovens residentes em favelas. Aquelas que
ficaram grávidas na adolescência declararam ter trabalho remunerado em maior
número, contudo, as jovens que nunca tiveram filhos ou que tiveram após os 19
anos de idade mencionaram, em maior número, estar trabalhando como comerciárias
ou assistentes administrativas. Já entre as moradoras dos bairros de classe
média, não há diferença entre o nível de escolaridade e o tipo de ocupação das
que tiveram o primeiro filho antes dos 19 anos e daquelas que nunca fizeram
sexo ou das que fizeram sexo e nunca engravidaram. Para as jovens residentes em
favelas, foi possível observar que a gravidez na adolescência amplia as
desigualdades sociais já existentes nesse grupo específico.
Obviamente, seria necessário um estudo longitudinal para avaliar as
consequências dessa desvantagem inicial entre as jovens que engravidaram na
adolescência, identificada no presente estudo. Nada garante que ela se
prolongue pela vida adulta ou que seja significativa em longo prazo. No
entanto, esses resultados levantam novas questões sobre as diferenças entre as
jovens com diferentes trajetórias reprodutivas e afetivas. Para as adolescentes
residentes em favelas que estavam casadas ou unidas no momento da pesquisa, 70%
já haviam engravidado ao menos uma vez, proporção que alcançava 91% entre as
jovens de 20 a 24. Já para as residentes em bairros de classe média, a
associação entre as experiências da gravidez, maternidade e entrada em uma
união conjugal não foi tão pronunciada.
Como seria de se esperar, a maioria das jovens residentes em favela que
engravidaram antes dos 19 anos declarou residir com um parceiro, apesar de uma
proporção significativa delas ter mencionado residir com a mãe ou só com os
filhos. Entretanto, aquelas que eram sexualmente ativas e que declararam que a
mãe era a responsável pelo domicílio apresentaram maior probabilidade de nunca
ter engravidado, quando comparadas com as adolescentes que moravam em casas em
que o pai era o responsável pelo domicílio, apesar de a proporção de virgens
ser maior nesse último grupo (dados não apresentados).
Entre moradoras de favelas, residir em domicílio chefiado pelo pai é um fator
que adiou a iniciação sexual, enquanto morar em casa chefiada pela mãe parece
contribuir para reduzir o número de gravidezes entre as jovens sexualmente
ativas, possivelmente em função de uma atitude mais aberta e menos conservadora
da mãe em relação à sexualidade da filha. Resultados similares foram
encontrados na pesquisa conduzida na favela do Taquaril (CHACHAM et al., 2007).
Ao contrário do que seria de se esperar, não foi verificada associação
significativa entre gravidez na adolescência e cor/raça e religião. A
homogeneidade racial encontrada intragrupos pode ter amenizado essa relação e,
no que se refere à religião, somente entre as jovens de classe média esse fator
mostrou ter algum impacto. Para as jovens da favela, apesar da grande proporção
de evangélicas, que em geral eram conservadoras acerca das suas declarações
(sobre a importância da virgindade e do casamento, por exemplo), a relação
fluida que aparentam ter com a religião, com grande número delas declarando
frequentes trocas de igrejas (mais comum entre as evangélicas), pode contribuir
para que os indicadores do comportamento sexual e reprodutivo sejam os mesmos
para as jovens de diferentes religiões (dados não apresentados).
Violência de gênero, indicadores de autonomia e gravidez na adolescência
Na Tabela_2 são apresentados os dados referentes à relação da gravidez na
adolescência com fatores associados à violência e ao controle por parte de um
parceiro. Os fatores selecionados foram: já ter sido proibida de usar algum
tipo de roupa, e por quem; já ter sido proibida de ter algum amigo, e por quem;
ter hora marcada para chegar em casa, e quem determina; já ter sofrido
violência física por parte do parceiro; já ter sofrido violência sexual por
parte de um parceiro. Em pesquisa realizada com jovens residentes na favela do
Taquaril (CHACHAM et al., 2007), tais variáveis mostraram associação positiva
com a gravidez na adolescência.
O grau de controle dos pais não variou muito entre as classes sociais, estando
mais relacionado com a idade da jovem, ou seja, as mais velhas possuíam maior
liberdade diante do controle parental (dado não apresentado). A presença de
maior controle por parte dos pais estava negativamente associada com a
iniciação sexual apenas para as adolescentes de 15 a 19 anos, o que não ocorria
com as jovens de 20 a 24 anos, cuja grande maioria já era sexualmente ativa
(92%).
Entre as entrevistadas de ambos os grupos, ter tido um parceiro que tentou
exercer algum controle sobre elas e/ou foi violento física ou sexualmente
estava fortemente associado com já ter ficado grávida antes dos 19 anos. Essa
associação foi especialmente forte entre adolescentes que já haviam ficado
grávidas e que estavam unidas ou casadas, em uma proporção significativamente
maior do que as outras jovens na mesma faixa etária (dados não apresentados).
Esse resultado indica o impacto negativo de uma união conjugal precoce para a
adolescente, bem como a necessidade de uma análise diferenciada da trajetória
das jovens que engravidaram mais no início da adolescência em relação àquelas
que experimentaram a gravidez após os 19 anos de idade ou mais.
As jovens que ficaram grávidas depois dos 19 anos eram mais prováveis de ter
sofrido controle e/ou violência por parte do parceiro quando comparadas com as
jovens que nunca tiveram sexo ou que tiveram sexo e nunca ficaram grávidas, mas
não quando comparadas com as jovens que ficaram grávidas antes dos 19 anos,
mesmo considerando que as primeiras eram mais prováveis de estarem casadas ou
unidas (dados não apresentados).
Os resultados encontrados são bastante consistentes com os da pesquisa na
favela do Taquaril (CHACHAM et al., 2007). O novo elemento é que a associação
entre ter um parceiro controlador e abusivo e a gravidez na adolescência foi
encontrada em jovens com diferentes perfis socioeconômicos, um forte indicativo
do efeito pernicioso da violência de gênero, independentemente de classe
social. Apesar de a magnitude do fenômeno ter variado em função da classe
social ' a proporção de entrevistadas da classe média que declararam ter
sofrido controle e violência por parte do parceiro foi bem menor4 do que entre
as jovens residentes em favelas ', o resultado foi o mesmo: as entrevistadas
que passaram pela gravidez na adolescência estavam mais propensas a ter tido
relação com um parceiro autoritário e violento em algum momento da sua
trajetória afetiva (a pergunta não se restringia ao parceiro atual).
Evidentemente não é possível estabelecer uma relação de causalidade aqui, mas
dado que as entrevistadas que tiveram sexo e nunca ficaram grávidas e as que
ficaram grávidas após os 19 anos ' especialmente as residentes dos bairros de
classe média ' declararam com menor frequência ter sofrido controle e violência
por parte de um parceiro do que as jovens que ficaram grávidas antes dos 19
anos, pode-se concluir que há uma associação entre controle e violência por
parte do parceiro e o início da vida reprodutiva e conjugal, ainda na
adolescência.
Esse efeito poderia ocorrer tanto devido ao fato de a gravidez favorecer o
estabelecimento de uma união conjugal precoce, na qual a jovem estaria em
desvantagem em relação aos recursos econômicos e sociais que pode mobilizar,
quanto em consequência de uma relação violenta e abusiva por parte de um
parceiro, na qual a autonomia da jovem em relação à sua sexualidade e
reprodução é limitada. Somando-se a isso, a permanência e forte aceitação de
estereótipos tradicionais acerca dos papéis tradicionais de gênero entre as
jovens residentes em favelas (dados não apresentados) podem contribuir no
sentido de naturalizar as relações desiguais e mesmo violentas entre homens e
mulheres, bem como identificar a maternidade e a domesticidade como trajetórias
naturais da mulher.
Esses resultados são reforçados pelos dados apresentados na Tabela_3, na qual
estão os cruzamentos de fatores referentes à saúde sexual da jovem com a
prevalência da gravidez na adolescência. Nas correlações observadas, a única
variável ligada à autonomia que mostrou uma relação forte com a gravidez na
adolescência nos dois grupos (bairros de classe média e favelas) foi a idade da
primeira relação sexual: a iniciação sexual até os 15 anos de idade está
fortemente associada à ocorrência da gravidez antes dos 19 anos. Esse efeito
não pode ser explicado somente pela ampliação do tempo em que a jovem está
exposta ao risco de uma gravidez devido a uma iniciação sexual precoce, mas
parece estar mais ligado a outros fatores como o não uso ou um uso menos eficaz
da contracepção pelas adolescentes. Em média, elas engravidaram muito mais
rapidamente após o início da vida sexual do que as jovens que tiveram a
primeira relação após os 15 anos de idade.
O fator "ter conversado com o parceiro sobre contracepção antes da primeira
relação sexual" mostrou-se associado com menor ocorrência da gravidez na
adolescência apenas para as moradoras das favelas, o que pode indicar que a
necessidade dessa negociação esteja um pouco superada entre jovens de classe
média, dado a alta prevalência do uso do preservativo nesse grupo. A forte
associação encontrada entre a gravidez na adolescência com a não utilização de
preservativo ou de método contraceptivo na primeira relação aponta novamente
para a importância da autonomia na esfera da sexualidade para as mulheres
negociarem o uso do preservativo com os seus parceiros desde o início da sua
vida sexual. Já a associação da gravidez na adolescência com o não uso do
preservativo na última relação pode estar relacionada com a maior probabilidade
das jovens que engravidaram de estarem casadas ou unidas, constituindo a
presença de uma união estável o fator preditor de maior força do não uso do
preservativo para jovens sexualmente ativas (CHACHAM et al., 2007).
Discussão
No Brasil e em outros países da America Latina não são comuns estudos que
utilizam variáveis relacionadas à autonomia e à capacidade de tomada de
decisões da mulher como indicadores de desigualdade de gênero, analisando seu
impacto na trajetória de vida destas mulheres. Pesquisas utilizando essas
variáveis tendem a se concentrar na Ásia e na África (SEN; PRESSER, 2000).
Apesar disso, estudos recentes (CASIQUE, 2000, 2001, 2003, 2006) indicam sua
adequação para dimensionar o impacto da desigualdade das relações de gênero em
diferentes esferas da vida das mulheres na América Latina. Casique (2003 e
2006) explora dados da pesquisa ENSARE realizada no México em 1988 para
discutir a relação entre maior grau de autonomia e de capacidade de tomada de
decisões por parte da mulher com maior probabilidade de uso de contracepção e
menores chances de ser vítima de sexo forçado pelo parceiro. A correlação entre
empoderamento feminino com maior capacidade de controle da mulher sobre sua
vida sexual e reprodutiva é claramente sustentada pelas análises desenvolvidas
nesses trabalhos.
Diferentemente da experiência mexicana, as últimas pesquisas de demografia e
saúde realizadas no Brasil não continham perguntas que pudessem ser utilizadas
para a construção de indicadores de autonomia. Contudo, resultados de uma
pesquisa anterior (CHACHAM et al., 2007), realizada em 2005 na favela do
Taquaril, localizada na região leste da cidade de Belo Horizonte, apontam para
a validade do uso desses indicadores para a realidade brasileira. Nessa
pesquisa buscou-se construir indicadores de autonomia para medir o impacto da
desigualdade de gênero na saúde sexual e reprodutiva de mulheres jovens. Os
resultados indicaram uma associação entre altos níveis de autonomia em
diferentes esferas da vida com baixos níveis de vulnerabilidade na trajetória
sexual e reprodutiva das mulheres jovens. Tais resultados nos inspiraram a
incorporar, nesse novo projeto, jovens das camadas médias, num esforço de
compreender como a desigualdade de gênero interage com a desigualdade de classe
na trajetória sexual e reprodutiva de mulheres jovens.
O foco dessa pesquisa na saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e mulheres
jovens está ligado ao fato de que muitas evidências apontam para uma
vulnerabilidade maior das jovens nessa esfera, em especial as de classes
populares, dado que muitas delas são dependentes financeiramente de seus
parceiros, em especial nas situações de gravidez não planejada e/ou casamentos
precoces (GAGE, 2000). No contexto de privação econômica, a habilidade das
adolescentes e jovens em negociarem quando o sexo ocorrerá ou quando
contraceptivos serão usados pode ser bastante reduzida.
No Brasil, assim como em outros países da América Latina, a vulnerabilidade
adicional de mulheres pobres pode ser relacionada com a alta prevalência da
gravidez na adolescência nas camadas com renda mais baixa da população
(RODRIGUEZ, 2008), principalmente quando se comparam com os padrões
reprodutivos de mulheres jovens oriundas dos setores médios da população
(HEILBORN et al., 2006; BASSI, 2008; FONTOURA; PINHEIRO, 2009). Segundo a
Pesquisa de Demografia e Saúde de 2006 (Demographic and Health Surveys ' DHS),
tanto a gravidez na adolescência quanto o casamento precoce (ou a coabitação)
são muito mais comuns nas áreas rurais pobres e nas favelas das grandes cidades
brasileiras (BRASIL, 2009).
Contudo, é importante salientar que a gravidez na adolescência não pode ser
considerada uma fonte de problemas sociais. Resultados de pesquisas recentes
relativizam o impacto social da gravidez na adolescência, mostrando que a
intermitência ou a ausência escolar entre meninas de baixa renda tende a ser
independente de gravidez e que a gravidez na adolescência, mesmo quando não
planejada, nem sempre é indesejada (HEILBORN et al., 2006). E certamente a
maternidade precoce não é responsável pela perpetuação do "ciclo de pobreza" ou
pelo aumento da população pobre (STERN, 1997), já que a baixa renda tem impacto
muito mais significativo do que a gravidez na escolarização da adolescente
(CORREA, 2009). Ao mesmo tempo, nesse esforço de relativização, não se pode
deixar de observar que uma gravidez não planejada pode acarretar, especialmente
para as jovens de classes populares, uma redução no número de anos de estudo e
uma inserção precoce e mais precária no mercado de trabalho (FONTOURA;
PINHEIRO, 2008; ALMEIDA; AQUINO; BARROS, 2006). Os efeitos da gravidez na
adolescência na trajetória reprodutiva futura da mulher é outra questão em
geral não considerada, mas que pode se tornar cada vez mais relevante, na
medida em que o início precoce da reprodução significa, muitas vezes, um
encerramento precoce dessa trajetória, o que pode afetar as futuras decisões
reprodutivas dentro das parcerias conjugais subsequentes dessas mulheres.
A tendência a taxas de fecundidade relativamente altas entre adolescentes
pobres em regiões urbanas, longe de ser uma característica exclusiva do Brasil,
está presente em praticamente todos os países da América Latina e do Caribe,
podendo ser relacionada com os diferentes problemas sociais presentes na
região. Em uma das análises mais extensivas sobre esse fenômeno, Rodriguez
(2008, p. 5) atribui essa tendência da fecundidade adolescente latino-americana
ao resultado de uma "síndrome de modernidade truncada" em dois âmbitos:
sexual,pela combinação de uma liberalização da conduta sem um aumento da
capacidade de controle contraceptivo pessoal (psicológico da jovem e falta de
apoio familiar) e material (acesso a serviços); e social, pelo aumento das
capacitações formais (em particular, da educação) sem uma expansão consequente
das oportunidades materiais (em particular, de trabalho).
A falta de reconhecimento da sexualidade adolescente e a persistência de
expectativas tradicionais em relação ao comportamento sexual esperado de homens
e mulheres, aliadas à dificuldade do acesso à contracepção e aos outros meios
de prevenção para um sexo mais seguro, produzem não apenas as condições de uma
alta prevalência da gravidez não planejada, mas também podem ser associadas a
uma maior suscetibilidade das mulheres jovens a infecções pelo HIV e outras
DSTs (BRASIL, 2009).
Na atual pesquisa, procurou-se compreender o papel da desigualdade de gênero,
somada à desigualdade de classe social, como sendo um dos fatores de maior
impacto na saúde sexual e reprodutiva das mulheres jovens. A inclusão na
análise dos indicadores de autonomia resulta da busca por ferramentas
analíticas que permitissem ir além dos macroindicadores de desigualdade de
gênero tradicionalmente utilizados nas análises quantitativas nesta área:
renda, ocupação e níveis de escolaridade. Contudo, na presente discussão,
também fica claro que uma análise sustentada somente por essa perspectiva é
insuficiente para a compreensão de fenômenos tão multifacetados, dada a
intersecção entre as desigualdades produzidas pelas relações de gênero, classe
social e raça existentes nos países latino-americanos. Buscou-se, então,
desenvolver uma estratégia de análise para investigar a complexa articulação
entre desigualdades de gênero e de classe, estudando seus efeitos sobre a
trajetória sexual e reprodutiva de mulheres jovens de diferentes classes
sociais, residentes em uma grande metrópole brasileira.
No que se refere às limitações do estudo, a principal corresponde aos números
de entrevistados sempre limitados dos inquéritos que utilizam amostragem. Em
geral, as entrevistadoras eram bem recebidas pelas jovens e suas famílias e a
grande maioria das jovens aceitou prontamente participar da pesquisa. Houve
algumas recusas, mas a maior parte porque os responsáveis não permitiram a
participação da jovem. O obstáculo mais comum enfrentado pelas pesquisadoras,
especialmente com as moradoras dos bairros de classe média, foi não encontrar a
jovem em casa ou de a jovem não ter tempo para a entrevista, já que muitas têm
várias atividades extraescolares. Apesar de as jovens residentes em favelas
também terem uma agenda apertada durante a semana, em geral elas podiam ser
encontradas em casa no fim de semana.
A despeito dos limites impostos pelo escopo do estudo, os resultados corroboram
nossa hipótese inicial sobre a importância do uso dos indicadores de autonomia
como uma forma de nos aproximarmos da compreensão acerca do impacto da natureza
das relações de gênero ' se mais tradicionais (significando maior controle por
parte do homem) ou mais igualitárias ' no comportamento sexual e reprodutivo
das mulheres. O uso desses indicadores se mostra relevante para pesquisas
realizadas em outros contextos que não sejam o de sociedades tradicionais ou
com baixo nível de desenvolvimento, possibilitando uma nova abordagem a ser
explorada em diferentes áreas.
Os resultados apontam para a existência de uma relação estatisticamente
significativa entre diferentes indicadores de autonomia das mulheres e a
prevalência de gravidez na adolescência em ambos os grupos estudados ' mulheres
jovens residentes em bairros de classe média e em favelas da mesma região
geográfica do município. Os níveis de autonomia das entrevistadas se mostraram
diretamente relacionados ao contexto de sua relação com o parceiro. A relação
com um parceiro abusivo e controlador diminuiu a capacidade de as mulheres
jovens negociarem o uso do preservativo e o momento da relação sexual,
aumentando sua vulnerabilidade à gravidez não planejada e ao risco de exposição
a uma DST, especialmente entre as que se uniram/casaram ainda na adolescência.
Por outro lado, a comunicação e negociação entre os parceiros, bem como a
existência de diálogo sobre sexo e contracepção, são elementos cruciais para
uma vida sexual saudável e satisfatória. Concluindo, relações de gênero
desiguais, ao reduzirem a autonomia da mulher, diminuem suas chances de evitar
uma gravidez não programada, independentemente de classe social.
Entretanto, apesar de a desigualdade de gênero atingir, em uma dimensão
quantificável, a saúde sexual e reprodutiva de mulheres de diferentes classes
sociais, a influência do contexto socioeconômico e do acesso aos níveis mais
altos de educação também tem uma grande contribuição. Ou seja, apesar de
relações com parceiros autoritários aumentarem a chance de uma gravidez na
adolescência em ambos os grupos, outros fatores de ordem econômica e social
contribuem para que sua prevalência seja inúmeras vezes maior entre mulheres de
classes populares residentes em favelas. Elas constituem uma população sujeita
a várias vulnerabilidades, que vão além da condição de pobreza, passando também
pela segregação socioespacial e estigmatização, somando-se a presença de
diversas formas de violência, incluindo a de gênero.
Neste contexto, uma gravidez precoce não programada pode afetar a trajetória de
vida da jovem de maneira mais significativa, ao reduzir suas chances de
completar sua escolaridade e impactando negativamente sua inserção no mercado
de trabalho formal e qualificado. Este desfecho para a gravidez precoce não
programada não será vivenciado pelas jovens dos estratos socioeconômicos mais
altos. Novamente é importante reafirmar que não se trata aqui de estigmatizar a
gravidez na adolescência, mas sim reconhecer que esta traz consequências
negativas para as jovens que vivem em ambientes com múltiplas vulnerabilidades
sociais que se realimentam.
Comentários finais e recomendações
Os resultados sugerem que, na elaboração e implementação de políticas púbicas
direcionadas para as necessidades de adolescentes e jovens, é fundamental
aumentar o acesso de mulheres e homens jovens de classes populares a melhores
oportunidades educacionais e profissionais, além de garantir acesso a
informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva antes da ocorrência da
gravidez ou de uma infecção sexualmente transmissível.
Igualmente imperativo é garantir que adolescentes e jovens que passaram pela
experiência da gravidez precoce tenham a oportunidade de retomar os estudos e
receber treinamento profissional, além de acesso à creche. Com relação à
escola, é preciso implementar programas que discutam a desigualdade de gênero
na família e nas relações afetivas e seu impacto sobre as mulheres, bem como
desenvolver estratégias para coibir e punir a violência de gênero.
Finalmente, como o ensino médio não é capaz de preparar a jovem para alcançar
posições mais qualificadas no mercado de trabalho, programas sociais devem
atuar no sentido de incrementar suas oportunidades de um melhor futuro
profissional por meio de capacitações que não reproduzam as ocupações
tradicionalmente tidas como femininas ' cozinheiras, enfermeiras, babás,
cabeleireiras, cuidadoras ', mas ampliem para atividades diversas tanto quanto
elas desejarem.
A ausência de políticas públicas focadas nas especificidades deste segmento
populacional aponta para uma total falta de compreensão de sua realidade e do
impacto das rápidas mudanças econômicas e das precárias condições de trabalho
sobre suas vidas, a "modernização truncada" que Rodriguez aponta (2009). Neste
sentido, é urgente pensar novas políticas que tornem possível a adolescentes e
jovens de classes populares acessarem o ensino superior ou técnico, de forma
que um treinamento profissional adequado contribua para sua incorporação no
mercado de trabalho qualificado, com melhores perspectivas de remuneração e de
carreira profissional. Este é um caminho que contribuirá para superarmos as
relações de gênero opressivas e desiguais que ainda persistem.