A politização das migrações internacionais: direitos humanos e soberania
nacional
Introdução
A reação de grande parte dos países desenvolvidos no que se refere à imigração
internacional, por meio de uma rigorosa legislação visando seu controle, tem se
constituído em um dos mais importantes problemas políticos contemporâneos.
Contudo, considerando o envelhecimento da população desses países, hoje com
taxas de fecundidade aquém do nível de reposição, a imigração tem sido
necessária, pois a oferta de mão de obra nacional não satisfaz às necessidades
da economia. Coloca-se, então, a seguinte questão: se a imigração é necessária,
então qual a razão para uma legislação tão restritiva.1
Uma primeira resposta poderia atribuir à crise econômica de muitos países
desenvolvidos, acompanhada de altas taxas de desemprego, o motivo da reação
generalizada aos imigrantes. Não há dúvidas quanto às dificuldades derivadas da
crise e de suas implicações na formulação das políticas anti-imigratórias.
Entretanto, essa hipótese pode sugerir um caráter meramente conjuntural a essas
reações, o que não parece um caminho analítico adequado.
A opção teórica deste artigo, ao contrário, é pensar essas reações à imigração
internacional numa perspectiva histórica, mostrando que elas podem ser
compreendidas como resultado da própria formação social e política dos países
desenvolvidos. Não se trata de nenhuma adesão a uma filosofia da história que
justifique qualquer forma de determinismo. A compreensão histórica não tem como
propósito procurar uma cadeia de causas que tornem os eventos atuais resultados
irreversíveis. O que se procura compreender é como alguns elementos encontrados
na história dos países desenvolvidos, hoje cristalizados nas suas estruturas,
contribuem para explicar as reações às imigrações internacionais.
A intensa politização das imigrações, ou seja, seu lugar cada vez mais
proeminente na agenda política dos diferentes países receptores de imigrantes,
tem mobilizado a opinião pública e os debates parlamentares, assumindo grande
relevância nos programas partidários, em especial dos conservadores, em que o
anti-imigracionismo tornou-se um elemento político decisivo. Esse confronto de
interesses, traduzido na legislação cada vez mais desfavorável aos imigrantes,
contém particularidades que se transformaram em objeto fascinante para a
reflexão. Vale sublinhar que a politização, em graus diferentes, não é uma
novidade histórica: as imigrações internacionais têm sido um tema político
central no desenvolvimento do capitalismo desde a segunda metade do século XIX.
A análise política desenvolvida neste artigo tem como referência teórica mais
importante a contribuição da filosofia política de Hannah Arendt. Suas
análises, de fato, estão mais voltadas para o período entre o último quartel do
século XIX e os anos imediatamente subsequentes à segunda Grande Guerra
Mundial. Mas as dimensões heurísticas de seus conceitos e de sua filosofia
política possibilitam sua utilização para outros períodos históricos, inclusive
para os dias atuais.
A compreensão de Arendt a respeito do grande deslocamento da população,
resultante da desintegração europeia entre as duas guerras, revela a emergência
de dois grandes grupos: os apátridas e as minorias. Os últimos eram
parcialmente povos sem Estado, pois pertenciam ao corpo político, mas não
estavam plenamente integrados à nação, necessitando, desse modo, de proteção e
garantias internacionais concedidas pela Liga das Nações. Os apátridas eram, de
fato, os verdadeiros povos sem Estado. Desnacionalizados pelos seus governos
nos países de origem, e deles expulsos, não tinham cidadania reconhecida nos
países de destino. Na perspectiva da proteção da lei, tratava-se de pessoas
supérfluas, sem os direitos humanos reconhecidos desde as Revoluções Americana
e Francesa.
Os apátridas e as minorias estabeleciam um problema fundamental para os
direitos humanos consagrados desde a segunda metade do século XVIII,
incorporados à tradição ocidental e considerados inerentes ao homem. Para
Arendt, em face desses dois grupos, os direitos humanos passaram a ser
reconhecidos somente como direitos dos nacionais. A soberania nacional se
sobrepõe aos direitos humanos das minorias e dos apátridas, principalmente
destes últimos. Eles são considerados uma população supérflua, sem os atributos
que o direito e a política concediam aos nacionais.
Os imigrantes econômicos, também, já aparecem na cena histórica. São os que se
deslocam entre os países em função das necessidades do mercado de trabalho e
surgem como objeto de políticas restritivas impostas pelos governos, em
especial o francês. Não é o caso clássico dos "displaced persons", mas nem por
isso devem ser omitidos na análise do dilema entre direitos humanos e soberania
nacional.
Os imigrantes internacionais, hoje, não são semelhantes às minorias ou aos
apátridas, pois, em geral, mantêm a cidadania nos seus países de origem.
Contudo, ao se deslocar para um país de destino, o migrante não leva consigo
seus direitos garantidos no país onde nasceu. No mundo posterior à Segunda
Grande Guerra ainda permanece a contradição entre a soberania nacional e os
direitos humanos. Essa é a dimensão política fundamental das migrações
internacionais e a razão básica da sua extrema politização nos dias atuais.
Hannah Arendt considera que a dissociação entre direitos humanos e soberania
nacional serviu de antessala para a ruptura total dos direitos humanos nos
regimes totalitários. A superação tanto do nazismo quanto do stalinismo, pela
democracia liberal, não foi suficiente para eximir a história contemporânea de
muitos dos seus traços. As ideologias raciais têm ressurgido em muitos países
desenvolvidos e servem de pano de fundo para a descriminação étnica intrínseca
às políticas de restrições às imigrações internacionais. O desrespeito à
diversidade étnica caminha junto com o desrespeito aos direitos humanos, mais
de 200 anos depois das Revoluções Americana e Francesa e mais de meio século
após a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A questão fundamental na perspectiva arendtiana seria recuperar a tópica
kantiana da "hospitalidade universal", deslocando-se do espaço da tríade
Estado-Povo-Território para a compreensão da humanidade como fonte de direito.
Os direitos humanos seriam fundamentados não na natureza humana, mas sim na
própria humanidade à qual todos pertencem, sem restrições de nacionalidade.
Pertencer à humanidade significa ter direito a ter direitos e ser humano seria
a sua garantia efetiva.
Seguindo um itinerário semelhante ao de Arendt, a análise da politização das
migrações internacionais acompanhará sua história a partir da segunda metade de
século XIX até os dias atuais, enfatizando três grandes períodos: o anterior à
Primeira Guerra Mundial, reconhecido como a era do imperialismo; o período
entre as duas Grandes Guerras Mundiais; e o pós-guerra, contemplado, já no seu
início, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Ideologia racial e as políticas migratórias: a mobilidade internacional da
população na segunda metade do século XIX e início do XX
A partir da segunda metade do século XIX, as migrações internacionais já
assumiam uma relevância notável. Se hoje se destacam os fluxos migratórios com
origem nos países mais pobres e tendo por destino os países mais ricos, naquela
época a direção dos fluxos era inversa. Da Europa partiram milhões de migrantes
com o objetivo de liberar alguns países europeus de seu excedente demográfico,
assim como para satisfazer às necessidades de ocupação demográfica de países
como Estados Unidos, Canadá, Argentina, Brasil e Austrália (BRITO, 1995, p.
56).
A enorme redistribuição da população mundial só se tornou possível pelas
possibilidades geradas pela grande reestruturação produtiva da economia
capitalista e pela sua internacionalização comandada pelo capital financeiro. O
notável crescimento econômico foi facilitado pela intensificação do progresso
técnico, em particular nos meios de transportes. Essa fase da economia mundial,
que vai do segundo quartel do século XIX até a primeira Grande Guerra Mundial,
é chamada, por muitos historiadores, de a era do imperialismo (HOBSBAWN, 2003,
p. 27).
Não só a população se expandia pelo mundo em direção às Américas e à Austrália,
como também o capital avançava na direção da conquista dos continentes africano
e asiático e do controle político da América Latina. As grandes potências
europeias promoveram um novo colonialismo em que a conquista política quase
sempre significaria, efetivamente, um controle territorial. A Ásia e África,
principalmente, foram repartidas em colônias com o objetivo não da ocupação
demográfica e da construção social, mas sim da subordinação pela força. As
novas colônias eram fundamentais não só como mercado para os produtos e para o
capital dos países centrais, mas também como fontes de bens primários, produtos
agrícolas e minerais, indispensáveis à acumulação de capital nos países
centrais.
As articulações econômicas, sociais e políticas do velho com o novo mundo, seja
pela expansão demográfica ou pela conquista imperialista, abriram caminhos para
as migrações e a internacionalização dos mercados. Ao mesmo tempo, a
convivência de povos com etnias diferentes foi extremamente favorável para a
emergência e consolidação política de doutrinas raciais que dividiam a
humanidade entre raças dominantes ou superiores e raças inferiores que deveriam
ser dominadas. O racismo foi incorporado à visão da política e da história,
transformando-se numa das principais armas do imperialismo e, em muitos países,
serviu como ideologia a orientar políticas de Estado (ARENDT, 2004, p. 189;
FOUCAULT, 2005, p.199).
A origem do pensamento racista se deu na França bem antes da etapa das grandes
migrações e do imperialismo. Já no século XVIII, o conde Boulanvillier (1658-
1722) interpretava a história francesa como uma "guerra entre raças", ou como
uma guerra entre duas etnias que, de fato, representavam duas nações
diferentes. Para ele, os francos, de etnia germânica, haviam conquistado, pela
força, depois da queda do Império Romano, o território que seria posteriormente
considerado como a França. Ali habitavam os gauleses que perderam suas terras
para a "aristocracia germânica", que se estabeleceu como classe governante,
legitimando-se por meio do direito de conquista e exigindo a obediência devida
ao mais forte. Para Boulanvillier, governar de acordo com os interesses da
aristocracia significava ir além do próprio território, ultrapassando as
fronteiras convencionais à procura de uma unidade internacional entre as
aristocracias germânicas (ARENDT, 2004, p. 192).
Os franceses, portanto, antes dos próprios alemães, insistiram na ideia de
superioridade germânica. A ideologia racista assumiu na Alemanha um papel
diferente do que teve na França, sendo utilizada como um poderoso mecanismo
político dentro do projeto de unificação nacional. O grande objetivo era
unificar o povo de origem étnica comum - germânica - sob um Estado-Nação, o que
só aconteceria, de fato, na segunda metade do século XIX. Neste processo
histórico, nacionalismo e racismo acabaram por se identificar (ARENDT, 2004, p.
195).
O pensador francês que realmente incorporou a raça como um fator decisivo na
dinâmica da história foi o conde Arthur de Gobineau (1816-1882) em seu Essai
sur l'inegalité des races humaines, publicado em 1855. Ele acreditou na
existência de uma lei natural que regeria a história humana e explicaria o
declínio das civilizações: a degenerescência racial fruto das misturas de
diferentes raças ou de "sangues". A preponderância da raça inferior nessa
mistura levaria ao declínio das civilizações (ARENDT, 2004, p. 203).
Politicamente, o interesse de Gobineau era a criação de uma nova elite para
substituir a aristocracia que corria o sério risco, na democracia liberal, de
submergir diante das classes inferiores. Ele sugeria, então, a criação de uma
"raça de príncipes", os arianos, para fazer frente às classes inferiores que se
expandiam. Essa nova elite racial seria um suporte político fundamental na luta
não só contra a democracia, mas também contra o nacionalismo ou qualquer forma
de patriotismo. Seguindo a tradição do pensamento racial francês, a nova "raça
de príncipes" arianos não se continha nos estreitos limites do território de
uma nação (ARENDT, 2004, p. 204).
Na Inglaterra, país à frente da expansão imperialista do século XIX, a
ideologia racial trazia como mote a preponderância histórica do povo inglês, em
que a hereditariedade se identificava com a supremacia racial. Benjamin
Disraeli (1804-1881), político e escritor, dizia: "O inglês é o homem superior
e a história da Inglaterra é a história de sua evolução" (apud ARENDT, 2004, p.
211).
A maior expressão da ideologia racial inglesa foi o darwinismo social que
relacionava a "sobrevivência dos mais aptos", na luta pela existência humana,
com a eugenia, ou seja, com o melhoramento genético (ARENDT, 2004, p. 209). O
contato europeu, inglês em particular, com os povos da África e da Ásia na
expansão imperialista utilizava a ideologia da supremacia racial como o
discurso necessário para justificar a superioridade da civilização europeia,
afirmada pela dominação política e subordinação social e cultural dos povos
colonizados.
A ideologia racial não era uma novidade histórica no século XIX, estando
presente no chamado Antigo Sistema Colonial, contemporâneo da expansão marítima
do século XVI, que se desdobrou até o início do século XIX. A escravidão dos
indígenas, o seu genocídio generalizado e a destruição das suas civilizações
abriram as portas para um dos negócios mais rentáveis para o capital mercantil
que comandava o antigo sistema colonial: a escravidão negra. Os negros
africanos eram comercializados nas colônias como mão de obra necessária às suas
economias e muitas delas, como Brasil e Estados Unidos, mantiveram a escravidão
mesmo depois da suas respectivas independências, ou seja, após quebrarem seus
laços de coloniais.
Reduzidos à mera mercadoria, objetos negociados no mercado com preços
estabelecidos e sujeitos às condições sub-humanas, os escravos eram o retrato
vivo da ideologia da supremacia racial dos povos metropolitanos. Não há como
entender a escravidão exclusivamente no plano econômico, em função dos seus
lucros extraordinários, deixando de considerar a ideologia racista que a
justificava. De fato, não era a força de trabalho dos negros que era
comercializada, como no capitalismo, o que exigiria a existência da liberdade
necessária, mesmo que negativa, mas sim o indivíduo como um todo, uma máquina
de trabalho, destituído de toda a forma de liberdade. Esse objeto, cuja
propriedade era transferida por meio do mercado, trazia previamente uma marca
racial. Era escravo não só pelo seu valor no mercado, mas, principalmente,
porque era negro (FOUCAULT, 2005, p. 307).
O século XIX, com o seu novo colonialismo, reinventou o racismo quando em
muitos países ainda não tinha se encerrado a escravidão originária do antigo
sistema colonial. O Brasil é um caso excelente dessa continuidade: a
predominância da ideologia racista e sua efetivação como política de Estado
ultrapassaram a fase colonial, penetrando no período imperial até a República.
A dominação e extermínio da população indígena e a escravidão que atravessou
quase três séculos foram eventos marcantes na história brasileira. Na segunda
metade do século XIX, quando da iminência da abolição da escravatura, o Brasil
incorporou a ideologia racista ao discurso necessário para justificar a
imigração internacional como uma política de Estado.
O Estado nacional no Brasil, desde a sua origem, tinha como um dos seus
fundamentos a política racial. Em primeiro lugar, a grande tradição de
dominação e extinção dos povos indígenas sempre foi, desde a época colonial,
uma efetiva política da metrópole. Em segundo lugar, era um Estado escravocrata
e, portanto, por definição estabelecia uma hierarquia racial, reduzindo os
negros à mera mercadoria e a uma posição socialmente subalterna. Em terceiro
lugar, mesmo antes do debate da segunda metade do século XIX, já andava à
procura de "gente branca e industriosa" para modificar a composição étnica do
povo brasileiro. Escravidão e eugenia caminharam juntas no Brasil durante a
colônia, o império e mesmo após a abolição da escravatura, deixando marcas
profundas na sociedade brasileira que persistem até hoje.
Gobineau, já mencionado neste artigo, esteve no Brasil em 1869, como diplomata
do governo francês de Napoleão III. Aqui ficou apenas um ano, mas tornou-se
amigo de D. Pedro II, que lhe solicitou um trabalho sobre o Brasil para a
Exposição Universal de Viena: Emigration aux Brésil: L'Empire du Brésil à
l'Exposition Universelle de Vienne em 1873 (READERS, 1988, p. 215).
Nesse trabalho, ele tece considerações elogiosas sobre o país, como seria
necessário a um documento escrito para o governo brasileiro, mas não deixa de
traduzir para a realidade local as suas ideias sobre as relações raciais. Ele
justifica as imigrações internacionais baseado no argumento de que a população
brasileira teria sérios problemas de crescimento devido à situação dos mulatos,
que não podiam se reproduzir além de um número limitado de gerações. Em seu
texto encomendado pelo governo brasileiro, Gobineau escreveu:
Mas, se em vez de reproduzir entre si, a população brasileira
estivesse em condições de subdividir mais ainda os elementos daninhos
de sua atual constituição étnica, fortalecendo-se através de alianças
de maior valor com as raças européias, o movimento de destruição
observado em suas fileiras se encerraria dando lugar a uma ação
contrária. A raça se restabeleceria, a saúde pública melhoraria, a
índole moral se retemperararia e as mais felizes mudanças se
introduziriam na situação social deste adorável país (READERS, 1988:
p. 240).
Escravidão e políticas de melhoramento étnico, fortemente patrocinadas pelo
Estado e com grande penetração entre as elites, tiveram como resultado colocar
a questão racial entre os fundamentos da desigualdade social no Brasil (NABUCO,
2000, p. 154; VIANA, 2000,
p. 1013). Os índios "preguiçosos" e os negros "servis", raças inferiores,
estavam sujeitos, a priori, à exclusão social. Não só eles, mas grande parte da
população brasileira, resultante da miscigenação dos negros e índios com os
portugueses, com o seu gênio "autoritário e tacanho", também estava excluída
(SKDMORE, 1976, p. 38).
A questão racial brasileira atravessou grupos específicos como os negros ou os
índios e expôs a população resultante da miscigenação, principalmente a mais
pobre, à discriminação social. Dissimulando a questão racial, difundiu-se pela
sociedade brasileira a cultura do homem pobre, fruto da miscigenação, como um
"caipira", um "preguiçoso", um "indolente", em síntese, alguém com pouca
aptidão para o trabalho. Na transição para a economia capitalista no Brasil,
isso significava um atestado de marginalização, pois nem a força de trabalho, a
única propriedade dos mais pobres, tinha algum valor. Ao contrário dos
imigrantes "brancos e industriosos" que deveriam suprir, segundo as elites, as
necessidades do mercado de trabalho da economia cafeeira capitalista.
O caso brasileiro é um notável exemplo de implementação de políticas raciais
pelo Estado, particularmente na promoção da imigração internacional, situando-
se dentro do contexto internacional da segunda metade do século XIX. Um mundo
onde a ideologia racial servia de suporte para a expansão econômica e política
das grandes nações imperiais. O resultado dessa ideologia, no século XX, vai
ser posto ao limite com as experiências totalitárias.
Crises e conflitos: a emergência dos displaced persons entre as duas grandes
guerras
As migrações internacionais no período entre as duas Grandes Guerras sofreram
um forte impacto dos conflitos militares e das crises econômicas e políticas
que se iniciaram com a Revolução Russa de 1917 e expandiram-se pelas décadas de
1920 e 1930. Como seria de se esperar, neste contexto, o volume das migrações
europeias para a América reduziu-se substancialmente. Todavia, em decorrência
dessa mesma situação internacional, em particular da desintegração de diversos
Estados nacionais europeus, emerge um tipo específico de mobilidade forçada da
população do qual se destacam dois grandes grupos sociais: os apátridas e as
minorias.
As minorias, oficialmente reconhecidas pelo Tratado de Paz decorrente do final
da Primeira Grande Guerra Mundial, foram resultantes, no leste europeu,
principalmente, da desintegração dos dois grandes impérios multinacionais: a
Rússia czarista e a Áustria-Hungria (ARENDT, 2004, p. 301). Segundo Arendt, nos
Estados sucessores, aproximadamente 30% dos seus 100 milhões de habitantes eram
oficialmente reconhecidos como sujeitos à proteção da Liga das Nações por meio
do Tratado de Minorias. Entre eles, milhões de russos e alemães, centenas de
milhares de armênios, romenos, húngaros e espanhóis (ARENDT, 2004, p. 305 e
311).
Os apátridas constituíam um caso político excepcional: perderam sua
nacionalidade no Estado de origem e, obrigados a se deslocarem para outros
países, não tinham os seus direitos mínimos de cidadãos reconhecidos no lugar
de destino (ARENDT, 2004, p. 313). Estes expulsos da clássica trindade Estado-
Povo-Território haviam perdido aqueles direitos que, desde as Revoluções
Americana e Francesa, "eram tidos e até definidos como inalienáveis, ou seja,
os Direitos do Homem" (ARENDT, 2004, p. 301). Os apátridas, antes restritos ao
leste europeu, entre as duas Grandes Guerras, espalhavam-se por toda a Europa.
As estatísticas sobre o seu número não eram dignas de confiança: oficialmente
reconhecia-se cerca de um milhão de apátridas, mas estimava-se em mais de dez
milhões. Somente na França, antes da Segunda Guerra Mundial, 10% da sua
população era de apátridas (ARENDT, 2004, p. 313).
As declarações dos Direitos do Homem, proclamadas no fim do século XVIII,
resultantes das Revoluções Americana e Francesa, forneceram a base política
para o Estado moderno, cuja legitimidade deixava de fundamentar-se em motivos
religiosos ou em hierarquias sociais que dividiam a população em estamentos
definidos pelos seus privilégios sociais (BRITO, 2010, p. 15). A grande
novidade dessas declarações é que nelas o homem tem, por sua natureza, direitos
inalienáveis que não dependem de suas posições na sociedade e na política, mas,
pelo contrário, precedem a elas; são direitos naturais, intrínsecos à natureza
humana, e o contrato social deve garanti-los (KEVERGAN, 2001, p. 89).
A declaração norte-americana de 1776 delibera que todos os homens são iguais
por natureza e gozam de direitos inalienáveis, entre eles a vida, a liberdade e
a busca da felicidade. O governo existe para garantir estes direitos e a sua
legitimidade deriva do consentimento dos governados. É um direito do povo de
rebelar-se contra o governo se este não obedece ao seu fim primordial de
garantir os direitos naturais (BRITO, 2010, p. 15).
As grandes novidades da declaração francesa estão contidas nos seus três
primeiros artigos: o primeiro reconhece, como na americana, que os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direitos; o segundo enuncia que os
objetivos do contrato social, ou da associação política, é a "conservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem, tais como a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão" (HUNT, 2009, p. 225); e o
terceiro afirma que o princípio da soberania reside na nação e não em ordens ou
estamentos (BOBBIO, 2004, p. 90).
Por um lado, o homem passa a ser o único soberano em questões de lei e, por
outro, o povo era definido como o único soberano em matéria de governo. Essa
soberania não se legitimava pela graça de Deus ou do Rei, mas em nome dos
direitos inalienáveis do homem.
Hannah Arendt, entretanto, apesar de reconhecer a importância histórica dos
direitos humanos proclamados pelas Revoluções Americana e Francesa, critica a
sua fundamentação no direito natural. Os homens não são iguais por natureza e
nem o são, muito menos, em função da sociedade em que vivem. Eles tornam-se
iguais no universo da política, artifício construído pelos próprios homens por
meio de um contrato social, edificado no solo da pluralidade humana, e não no
espaço politicamente vazio do homem no singular (ARENDT, 2004, p. 324).
A crítica de Arendt aos direitos humanos não se reduz somente à sua
fundamentação na natureza humana, mas estende-se, também, à relação entre os
direitos humanos e a soberania nacional. O ser humano, na sua individualidade
abstrata, só assumia o seu rosto de cidadão por meio do povo ao qual pertencia.
Os direitos humanos, portanto, só se configuram com a emancipação de um povo no
contexto da constituição do Estado nacional. A nação, como expressão da vontade
geral, se sobrepõe ao indivíduo, ser humano abstrato, e os seus direitos nela
se ancoravam (ARENDT, 2004, p. 261).
Desse modo, segundo Arendt, as revoluções, em particular a francesa,
subordinaram os direitos do homem à soberania nacional. "O resultado prático
dessa contradição foi que, daí por diante, os direitos humanos passaram a ser
protegidos e aplicados sob a forma de direitos nacionais" (ARENDT, 2004, p.
262). É a tragédia do Estado-nação moderno, que somente reconhece como cidadãos
aqueles que pertencem à comunidade nacional, os únicos que podem usufruir
plenamente dos direitos civis e políticos.
O termo nação, etimologicamente, vem do latim, natio, do verbo natus, nascer,
identificando-se com o povo nascido em determinado território, parte essencial
da trindade Estado-Povo-Território. O princípio da nacionalidade transforma-se
no vínculo político entre o indivíduo e o Estado e é condição necessária para
ser membro da comunidade política (LEFORT, 1991, p. 63). Este é o grande
paradoxo dos direitos humanos, pois se supunha que, intrínsecos à natureza
humana, como professavam as Revoluções Americana e Francesa, fossem
independentes da nacionalidade (ARENDT, 2004, p. 326).
Quando surgem, então, na cena histórica aqueles como os apátridas, que não
participam de nenhuma comunidade política, o conceito de direitos humanos perde
sua eficácia. Totalmente despidos dos seus direitos, os apátridas e, muitas
vezes, as minorias e os imigrantes eram uma afronta às conquistas das
Revoluções Americana e Francesa.
A visão dos direitos humanos exclusivos dos nacionais suporta uma concepção do
Estado-Nação que pressupõe a homogeneidade do seu povo, muitas vezes confundida
com a identidade étnica, considerada um dado pré-político, anterior ao contrato
social (HABERMAS, 2004, p. 159). O entendimento de homogeneidade étnica como
base do Estado-nação consagra a ruptura dos direitos humanos, que passam a ser
um privilégio dos nacionais e, mais radicalmente, dos nacionais de etnias
semelhantes.
Os apátridas, assim como, em muitas circunstâncias, as minorias nacionais e os
imigrantes, são considerados supérfluos, ou seja, pessoas cujos direitos
humanos essenciais não são reconhecidos pelo Estado e, desse modo, são política
e socialmente indesejáveis (BRITO, 2010, p. 18). Historicamente, abre-se a
antessala de uma sociedade totalitária, na qual a geração de enormes
contingentes de homens supérfluos, segregados social e politicamente, acabaria
introduzindo na cena histórica a tragédia dos campos de concentração e de
trabalho (ARENDT, 1990, p. 122, e 2004, p. 498).
Migrações, direitos humanos e soberania nacional após a Segunda Grande Guerra
As experiências totalitárias e a guerra levaram à ruptura radical dos direitos
humanos. Clamava-se por uma resposta da comunidade internacional sem a qual o
próprio conceito de humanidade estaria fortemente comprometido. A experiência
da Liga das Nações, criada em 1919 pelas potências vitoriosas na Primeira
Grande Guerra, não foi bem-sucedida. Seus objetivos eram supervisionar o
desarmamento dos países derrotados e garantir a paz e a proteção dos direitos
das minorias em suas respectivas nações. Seu fracasso pode ser compreendido
pela falta de consenso entre os países hegemônicos sobre a própria concepção da
organização das relações internacionais.
Predominava a ideologia da supremacia social, econômica e étnica da Europa,
necessária para garantir o controle sobre o seu vasto sistema colonial gerado
no período do imperialismo. A inoperância política da Liga das Nações se
mostrou definitiva com a sua incapacidade de evitar a emergência das
experiências totalitárias e, consequentemente, a Segunda Grande Guerra (HUNT,
2009, p. 203).
A criação da Organização das Nações Unidas, com o objetivo de superar as
limitações da Liga das Nações, foi a resposta encontrada pelas grandes
potências vitoriosas na Segunda Grande Guerra para impedir o ressurgimento de
um novo desastre humanitário. Na Conferência de Ialta, no início de 1945, os
governantes dos Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética já tinham em pauta
o monitoramento dos direitos humanos nos diferentes países, entretanto,
sobrepuseram-se na agenda da política internacional as questões referentes à
delimitação das fronteiras no pós-guerra e o sistema de segurança coletivo
(BELLI, 2009, p. 29).
A Carta de fundação das Nações Unidas, definida na Conferência de São
Francisco, em 1945, continha no seu preâmbulo uma menção geral à necessidade de
respeito universal aos direitos humanos e às liberdades essenciais sem
distinção de sexo, raça, língua ou religião e, no artigo 1.3, afirmava a
necessidade de cooperação internacional para a solução de diferentes problemas,
entre eles, promover e encorajar o respeito aos direitos humanos (BELLI, 2009,
p. 33). O grande obstáculo à política efetiva dos direitos humanos está no
artigo 2.7, que resguarda a soberania dos países: "Nenhum dispositivo da
presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que
dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros
a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta". Este
princípio, excepcionalmente, não se aplicava às decisões do Conselho de
Segurança, no qual as grandes potências tinham poder de veto (BELLI, 2009, p.
35).
Todavia, no capítulo X, artigo 68, a Carta previa que o Conselho Econômico e
Social criaria uma Comissão de Direitos Humanos, o que ocorreu em sua segunda
sessão, em 1946, definindo como prioritária a elaboração de uma Carta
Internacional de Direitos (BELLI, 2009, p. 35).
Em 1947, a Comissão de Direitos Humanos, dirigida pela ex-primeira dama dos
Estados Unidos, Eleanor Roosevelt, iniciou seus trabalhos com o objetivo
ambicioso de elaborar, além de uma declaração de princípios, um tratado com
obrigações legais. Entretanto, a estrutura de poder das Nações Unidas, reflexo
das condições internacionais do pós-guerra, não possibilitou ir além de uma
declaração, que tinha, evidentemente, uma força moral, mas era desprovida das
obrigações inerentes a um tratado (BELLI, 2009, p. 40).
No dia 10 de dezembro de 1948, foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o voto de 48 países,
nenhum voto contra e oito abstenções: Arábia Saudita, África do Sul e os seis
países do bloco soviético (HUNT, 2009, p. 206).
No seu preâmbulo, a Declaração explicita "que o reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e
inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo".
Reconhece, também, visando o passado recente, "que o desrespeito e o desprezo
pelos direitos humanos têm resultado em atos bárbaros que ofenderam a
consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos
tenham liberdade de viver sem medo e privações foi proclamado como a aspiração
mais elementar do homem comum". Portanto, é fundamental que "os direitos
humanos sejam protegidos pelo estado de direito, para que o homem não seja
compelido a recorrer, em última instância, à rebelião contra a tirania e a
opressão" (HUNT, 2009, p. 229).
A fé reafirmada nos direitos humanos e o compromisso dos povos das Nações
Unidas em respeitá-los são amenizados nas conclusões do mesmo preâmbulo quando
se afirma: "A Assembléia Geral proclama esta Declaração Universal dos Direitos
Humanos como um ideal comum a ser alcançado por todos os povos e todas as
nações". Na verdade, esse conjunto de obrigações, ou ideal comum, não veio
acompanhado de nenhum mecanismo que garantisse a sua efetiva implementação em
cada um dos países (HUNT, 2009, p. 230).
Certamente, se estes mecanismos fossem explicitados, a Declaração não teria
sido aprovada, pois a ONU não tinha capacidade política e jurídica de se
sobrepor à soberania de cada um dos seus países membros, como estava bem
explicitado na sua Carta. Permanecia o mesmo paradoxo, já evidenciado por
Hannah Arendt, referindo-se às declarações das Revoluções Americana e Francesa:
ainda que com a pretensão da universalidade, a realização efetiva, política,
dos direitos humanos dependia da sua incorporação na legislação de cada país.
Não se quer dizer que a importância política da Declaração deva ser minimizada.
Ela, sem dúvida, estabeleceu um novo patamar para o direito internacional,
colocando no horizonte a possibilidade de o indivíduo ser considerado o seu
sujeito e não os Estados-nacionais. Essa revolução no direito internacional foi
extremamente dificultada pela guerra fria. A soberania dos países, nas
respectivas áreas de influência dos Estados Unidos e da União Soviética,
condicionada pela hegemonia das duas grandes potências, sobrepunha-se aos
direitos dos indivíduos (BELLI, 2009, p. 55).
Os artigos 3º até o 21º da Declaração referem-se aos direitos humanos
considerados de primeira geração. Neles procura-se resgatar, depois das
tragédias que marcaram a humanidade na primeira metade do século XX, os
direitos considerados inerentes à pessoa humana constitutivos das declarações
revolucionárias do final do século XVIII. São direitos individuais, ou seja, a
titularidade é do individuo na sua singularidade, ainda que eles se efetivem
reconhecendo o direito do outro e podem, como no caso do direito de associação,
ser exercidos coletivamente (LEFORT, 1991, p. 126).
Os direitos básicos contemplados, como em 1776 e 1789, são os direitos à vida,
à liberdade, à segurança pessoal, ao casamento, à privacidade e à propriedade.
Consagram-se, também, as liberdades de pensamento, opinião, consciência,
religião, expressão, reunião, associação e participação política. A escravidão,
o tráfico de escravos e a tortura são condenados, assim como são garantidas a
presunção à inocência e a igualdade perante a lei. Incorpora-se, também, o
pressuposto das duas declarações anteriores relativas ao poder soberano,
enfatizando que a vontade do povo deve ser a vontade do governo (HUNT, 2009, p.
234).
Estes direitos de primeira geração são também chamados de direitos-liberdade,
porque têm como objetivo limitar o poder do Estado, segundo as tradições
contratualista e individualista que inspiraram as Declarações americana e
francesa (LAFER, 2006, p. 126).
Os artigos 22º ao 27º referem-se aos direitos considerados de segunda geração e
têm a ver com os direitos econômicos e sociais, visando garantir a participação
dos cidadãos em um Estado de Bem-Estar Social. Para tanto, procuram garantir os
direitos à segurança social, ao trabalho, à remuneração justa, à proteção
social, à organização sindical, a férias e a um padrão de vida que assegure
saúde e bem-estar. Os direitos à educação, cultura e ao acesso ao progresso
técnico e científico são também consignados junto com a proteção à infância e à
maternidade (HUNT, 2009, p. 234-235).
Os direitos de segunda geração são deveres do Estado, responsável pelo bem-
estar dos indivíduos. O Estado aparece como um sujeito passivo, sendo que o
verdadeiro titular do direito continua sendo o indivíduo, como nos direitos-
liberdade. Os direitos de primeira geração têm como meta limitar o poder
soberano do Estado e ampliar a democracia política, enquanto os de segunda
geração objetivam fortalecer as atividades do Estado e ampliar a democracia
social (FERRY; RENAUT, 1997, p. 22; LEFORT, 1991, p. 127).
Os três últimos artigos da Declaração propõem que a ordem social e
internacional assegure que os direitos humanos possam ser plenamente realizados
e que os seres humanos devem estar sujeitos apenas às restrições postas pela
lei, que não podem contrariar os propósitos e princípios da ONU (HUNT, 2009, p.
236).
No que se refere à mobilidade da população, a Declaração de 1948 afirma, no
artigo 13, os direitos de ir e vir e de mudança de residência dentro das
fronteiras do país, mas não garante a mobilidade no plano internacional, apenas
menciona o direito de retorno ao país de origem e, quando o caso, o direito ao
exílio (HUNT, 2009, p. 232).
O maior avanço, sem dúvida, foi o direito à nacionalidade: ninguém pode ser
destituído dela e fica garantido o direito de mudá-la, se assim o indivíduo
desejar. O grave problema dos apátridas, e mesmo de algumas minorias,
destituídos da sua nacionalidade e impedidos de readquirir outra, em tese,
estaria resolvido. O indivíduo teria o direito, segundo a Declaração, de não
ser destituído de sua nacionalidade em seu país de origem, assim como de
requerer outra nacionalidade no país escolhido como destino (HUNT, 2009, p.
232).
O grande problema é que o paradoxo arendtiano entre direitos humanos e
soberania não foi superado pela nova Declaração. Efetivamente, a nacionalidade,
do ponto de vista político e jurídico, depende menos dos direitos dos
indivíduos e mais do seu reconhecimento em cada Estado-nação. O indivíduo detém
a titularidade dos seus direitos, mas a sua realização no plano internacional
subordina-se à soberania de cada país, que é, de fato, o principal titular no
direito público internacional.
Assim, cada Estado assegura o seu direito de legitimar e controlar, dentro das
suas fronteiras, os movimentos populacionais internacionais e a concessão de
nacionalidade. Ambos se constituem em um dos fundamentos da sua própria
soberania. Desse modo, as decisões internacionais, como a Declaração de 1948,
de fato, significam mais um ideal comum a ser alcançado, sem a força política
necessária para se sobrepor à soberania de cada Estado (REIS, 2004, p. 154).
A insuficiência da Declaração de 1948 levou as Nações Unidas a elaborarem um
conjunto de convenções que pudessem complementá-la. Não se pode omitir uma das
respostas dada pela Assembleia Geral aos horrores da Segunda Grande Guerra,
esta sim sob a forma de uma convenção, considerando o genocídio como crime sob
o direito penal internacional. A Convenção para a Prevenção e a Punição do
Crime de Genocídio, aprovada em 9 de dezembro de 1948, responsabiliza
penalmente não o Estado, mas as pessoas que cometeram o crime, sejam
governantes, funcionários ou particulares (BELLI, 2009, p. 38).
Quanto aos apátridas e refugiados, foi aprovada, em 1951, a Convenção de
Genebra Relativa ao Status de Refugiado, tendo como objetivo a garantia ao
direito de asilo. Também foram aprovadas a Convenção Relativa aos Apátridas, em
1954, e a Convenção de Prevenção de Formação de Apátridas, em 1961, com a
finalidade de dar àqueles que não são considerados cidadãos nacionais acesso
aos mesmos direitos dos nacionais, além de facilitar o processo de
naturalização (REIS, 2004, p. 151).
As migrações internacionais com o objetivo de trabalho, que cresceram muito
depois da Segunda Guerra, passaram a exigir, também, as primeiras Convenções
Internacionais. Duas delas foram elaboradas pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT): a primeira em 1949, a Convenção da Imigração para o Trabalho; e
a segunda em 1975, a Convenção dos Trabalhadores Imigrantes. A intenção
fundamental de ambas era que os imigrantes tivessem os mesmos direitos dos
trabalhadores nacionais, independentemente da nacionalidade, raça, religião ou
sexo. Um bom indicador dos conflitos gerados pelas migrações internacionais no
pós-guerra, apesar da necessidade fundamental da mão de obra estrangeira para
suprir as necessidades da economia em expansão, foi a mudança de atitude dos
países de grande imigração em relação a essas Convenções. A primeira, em 1949,
teve a ratificação de 41 países e a segunda, já em 1975, de apenas 18, sendo
que países de grande imigração de trabalhadores, como os Estados Unidos, França
e Austrália, não ratificaram (REIS, 2004, p. 152).
O novo cenário das migrações internacionais fica mais nítido a partir dos anos
1980. Os fluxos migratórios dos países em desenvolvimento em direção àqueles
mais desenvolvidos se multiplicaram, principalmente para a Comunidade Europeia,
os Estados Unidos, o Canadá, o Japão e a Austrália. Dentro da própria
Comunidade Europeia havia um intenso movimento populacional proveniente dos
países do leste europeu. Acrescente-se que as imigrações das antigas colônias,
principalmente na Europa, não só se ampliavam como já se reproduziam em
diferentes gerações nascidas nos próprios países de destino.
Essa intensificação dos fluxos migratórios internacionais tem sido
contemporânea de rápidas e profundas transformações na estrutura produtiva do
capitalismo, com fortes repercussões sobre o mercado de trabalho (TAPINOS;
DELAUNAY, 2001, p. 26). Apesar da criação de novas ocupações, requeridas pelos
novos processos tecnológicos e pelas novas formas de organização do trabalho,
tem havido uma enorme redução nas necessidades de mão de obra. Desse modo, os
mercados de trabalho estão mais seletivos, exigindo maior treinamento
educacional. Como consequência, verifica-se um aumento fantástico das taxas de
desemprego, recentemente alimentadas pela forte crise econômica, gerando um
excedente estrutural de força de trabalho que tem avançado, inclusive, sobre os
espaços secundários do mercado de trabalho, tradicional nicho dos imigrantes
(BRITO, 1995, p. 62).
A situação demográfica dos países desenvolvidos, depois de décadas de taxas de
fecundidade abaixo do nível de reposição, tem gerado um aumento inédito do grau
de envelhecimento da população. Este crescimento da proporção de idosos em
relação à população economicamente ativa tem pressionado o financiamento das
políticas sociais incorporadas no Welfare State, aguçando a crise fiscal do
Estado. Consequentemente, têm surgido políticas restringindo muitas das ações
da seguridade social e ampliando os estímulos a um mercado de trabalho mais
competitivo.
As dificuldades do Welfare State e o mercado de trabalho cada vez mais
competitivo estão entre as causas das políticas restritivas à entrada de
imigrantes e do ambiente cada vez mais adverso para eles. Concomitantemente,
tem sido notável o ressurgimento de movimentos nacionalistas, principalmente na
Europa, como se o reforço da identidade nacional por meio de concepções étnicas
de nacionalidade, alimentadas por ideologias raciais antigas na cultura
europeia, pudesse compensar as adversidades postas pela nova realidade
econômica e demográfica.
Neste contexto, as imigrações internacionais assumiram uma dimensão inusitada,
expressa não só na atitude repressiva do Estado em relação aos imigrantes, mas
também no aumento da sua importância na cena política. Essa politização tem
duas dimensões essenciais. Uma delas refere-se aos imigrantes temporários que
circulam dentro do mercado internacional de trabalho. De fato, a maioria dos
imigrantes internacionais é temporária, pois a perspectiva de integração na
sociedade de destino é mínima devido não só à competitividade no mercado de
trabalho, mas também à quase total impossibilidade de qualquer tipo de
mobilidade social ascendente. A institucionalização de diferenças sociais e
culturais, que resvalam para um preconceito social e étnico, tem reforçado as
adversidades aos imigrantes incentivando a temporalidade.
Entre os imigrantes temporários ainda existem os ilegais, aqueles que não
possuem a documentação necessária para permanecer e trabalhar no país, cuja
situação é mais grave, pois estão sujeitos à prisão e à deportação. Legais ou
não, os imigrantes não têm como meta prioritária a integração na sociedade de
um país desenvolvido, constituindo-se apenas como membros de um mercado de
trabalho internacionalizado. Só que no capitalismo contemporâneo, ao contrário
do mercado financeiro em que a livre circulação do capital é um dos seus pré-
requisitos, o mercado de trabalho restringe a livre circulação da mão de obra.
Ela esbarra em um dos fundamentos da soberania nacional que é o monopólio sobre
a legitimidade da mobilidade internacional da população dentro do seu
território. Essa é uma das dimensões essenciais da politização das migrações
internacionais (REIS, 2004, p. 150).
A outra dimensão da politização tem a ver com os imigrantes não temporários e
seus descendentes (ESSER, 2004, p. 1139). Aqueles que se integram à sociedade e
são assimilados por ela não se constituem em problema, a não ser quando os
critérios de desigualdade social incorporam as diferenças de nacionalidade ou
de etnia da família de origem. O problema maior é daqueles migrantes, ou seus
descendentes, provenientes de culturas e etnias diferentes, às vezes antigas
colônias, que não se dispõem à assimilação pela sociedade, decididos a manter
traços culturais da sociedade de origem.
No caso da Europa, particularmente, este é um tópico fundamental e relaciona-se
com a questão da soberania, pois implicaria a redefinição das relações
contratuais entre a sociedade e o Estado pautadas constitucionalmente. Com a
pressão dos imigrantes e seus descendentes, a tendência tem sido de que se
recrudesça a legislação, reforçando as bases sociais, culturais e étnicas que
garantem a unidade da nação. As condições demográficas potencializam esse
recrudescimento, já que a população de nacionais tende a diminuir em termos
absolutos, enquanto a dos imigrantes e seus descendentes ainda se mantém com um
crescimento positivo (COLEMAN, 2006, p. 404). Um possível rompimento da unidade
social e cultural da nação tem sido compreendido como uma ameaça ao poder
soberano do Estado e reforçado ideologias nacionalistas, com forte conteúdo
étnico, centradas no anti-imigracionismo.
Ambas as dimensões da politização das imigrações internacionais acenam para a
ruptura dos direitos humanos, na perspectiva arendtiana. Problema que se
manteve historicamente desde a proclamação dos direitos humanos nas Declarações
de 1776 e 1789 e que se confirmou na Declaração de 1948.
Conclusões: o direito a ter direitos
A Declaração das Nações Unidas não sugeria a liberdade de movimento da
população colidindo com o monopólio de cada Estado de legitimar os movimentos
populacionais pelas suas fronteiras. Ela avançava no direito à nacionalidade,
resguardando, inclusive, o direito à sua mudança. Certamente, ela referia-se
mais àqueles desnacionalizados em seus países de origem que demandavam uma nova
nacionalidade em um país de destino, os apátridas. Não é o caso dos imigrantes
que mantêm sua nacionalidade de origem, mas não levam consigo, dentro do
mercado de trabalho internacionalizado, os direitos que tinham em seus países.
Maior evidência não poderia existir de que os direitos humanos não são
intrínsecos à natureza humana, pois cessam logo que o indivíduo atravessa as
fronteiras da sua nação.
Despidos dos seus direitos, os imigrantes ficam à mercê da soberania exercida
pelo Estado no país de destino. Na maioria das vezes, eles perdem sua cidadania
plena, ou seja, o direito de pertencer a uma sociedade e a uma comunidade
política. Os imigrantes são seres supérfluos, reconhecidos apenas pela sua
força de trabalho, mercadoria disponível para as ocupações socialmente
subalternas na hierarquia social (FREEMAN, 2004, p. 949).
A gravidade da situação dos imigrantes internacionais levou a Assembleia Geral
das Nações Unidas a aprovar, em dezembro de 1990, a Convenção sobre os Direitos
dos Imigrantes, com o objetivo de exigir o mesmo tratamento no trabalho para os
imigrantes legais e os nacionais e o direito de apelação ao Judiciário em caso
de deportação. Essa convenção só foi ratificada em março de 2003 e, mais uma
vez, sem a assinatura dos principais países receptores de imigrantes (REIS,
2004, p. 152).
A importância dos direitos humanos na política internacional motivou as Nações
Unidas a convocarem uma conferência específica para discuti-los, em 1993, em
Viena. Dois grandes avanços merecem ser mencionados: a criação do Alto
Comissariado dos Direitos Humanos; e a implementação de um Tribunal Penal
Internacional para julgar os crimes contra os direitos humanos. Esse último só
se efetivou, de fato, em 1998, com o Tratado de Roma, com o objetivo estrito de
julgar os crimes de genocídio, guerra e agressão. Por princípio, sua finalidade
não é julgar a conduta de países em relação aos direitos humanos, mas sim o
delito de indivíduos, governantes ou não, contra o direito internacional (REIS,
2006, p. 36).
Quanto ao deslocamento das pessoas no plano internacional, a Convenção de
Viena, além de confirmar a necessidade de proteção das minorias e a garantia ao
direito de asilo, insiste na necessidade de proteção dos direitos humanos dos
trabalhadores imigrantes, nos seus artigos 33 e 34 e, em particular, dos grupos
mais vulneráveis, como as mulheres e as crianças (REIS, 2006, p. 36).
A Conferência da ONU, no Cairo, sobre População e Desenvolvimento, um ano após
a de Viena, em 1994, trata da questão dos movimentos internacionais de
população dividida em quatro grandes grupos: migrações internacionais e
desenvolvimento; imigrantes documentados; imigrantes indocumentados; e os
deslocados forçados, refugiados e solicitantes de asilo. O primeiro grupo
enfatiza a dimensão positiva das migrações internacionais tanto no país de
origem quanto no de destino. No caso da emigração, os governos devem atuar no
sentido de intervir nas causas para que o indivíduo possa permanecer em seu
país, bem como apoiar os emigrantes viabilizando a entrada das suas remessas e
apoiando o seu retorno. Os imigrantes trabalhadores, documentados, segundo a
Conferência, devem ter tratamento semelhante ao dos trabalhadores nacionais.
Quanto aos indocumentados, reconhece-se o direito soberano do Estado de decidir
sobre a sua entrada e permanência, insistindo na necessidade de se evitarem o
racismo, a xenofobia, a exploração e o tráfico de trabalhadores. No caso dos
deslocados forçados e solicitantes de asilo, o objetivo é combater as causas e
garantir sua proteção internacional (POVOA; SPRANDEL, 2009, p. 303).
Apesar não ter sido superada a questão fundamental da sobreposição da soberania
nacional sobre o direito individual, o regime internacional de direitos humanos
se impõe como um condicionante importante a ser considerado na análise das
políticas migratórias. Não há dúvida de que existe uma tensão entre o regime
jurídico internacional que tem por sujeito a nação e um sistema de direitos
humanos que tem como sujeito os indivíduos independentes de suas
nacionalidades. Os Estados nacionais, ainda que possam ser vulneráveis às
pressões internacionais, não se dispõem a abrir mão da sua autodeterminação, ou
do seu poder soberano, no que se refere tanto ao controle da mobilidade
internacional da população que passa pelo seu país, quanto ao controle sobre a
concessão de nacionalidade (PASTORE, 2005, p. 349).
O contexto atual está longe de sugerir uma governança das migrações
internacionais que subordine as nações ao regime dos direitos humanos
individuais, embora tenha sido somada às atividades das Nações Unidas, a partir
dos anos 1970, uma rede de organizações não governamentais que não pode ser
desprezada na cena da política internacional, com o objetivo de zelar pelos
direitos humanos, no geral, e pelos direitos dos imigrantes, em particular
(REIS, 2006, p. 39).
Todavia, não se pode desconhecer o indiscutível esforço da ONU, e das
organizações não governamentais, para proteger os direitos humanos dos
imigrantes. Contudo, não se constrói um sistema internacional de direitos
humanos independente da estrutura de poder que rege as relações entre as
nações. O período da guerra fria acabou desdobrando a Declaração de 1948 em
dois pactos aprovados pela Assembleia Geral em 1966, mas que só entraram em
vigor dez anos depois. A existência de dois pactos, um sobre direitos civis e
políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais, foi
resultante dos conflitos sobre prioridades entre os países ocidentais,
defensores dos primeiros, e os socialistas, defensores dos segundos (BELLI,
2009, p. 46).
Mesmo nesse período de enormes dificuldades políticas internacionais, foi de
grande relevância a Comissão de Direitos Humanos da ONU, abrindo brechas na
inércia da bipolaridade refletida no seu Conselho de Segurança e lutando contra
o racismo, o colonialismo e os regimes ditatoriais, inclusive os da América
Latina (BELLI, 2009, p. 67, 71-73).
Superada a bipolaridade da guerra fria com a derrocada dos regimes socialistas
articulados à União Soviética, na Conferência de Viena o sistema internacional
de direitos humanos se viu ameaçado pela visão relativista dos direitos humanos
defendida por muitos países asiáticos, inclusive a China, e pelos países
islâmicos. Foi notável a vitória da concepção universalista dos direitos
humanos contra o relativismo, que muitas vezes escondia argumentos favoráveis a
alguns Estados historicamente autoritários. Um novo sopro de otimismo alimentou
novas esperanças quanto ao sistema internacional de direitos humanos (BELLI,
2009, p. 98).
Contudo, ao otimismo se sucedeu uma apreensão, particularmente, quanto à
atuação das Nações Unidas. A Comissão de Direitos Humanos da ONU foi
substituída em 27/03/2006, 60 anos depois da sua criação, pelo Conselho de
Direitos Humanos ligado diretamente à Assembleia Geral. Essa mudança fazia
parte da tentativa de reforma das Nações Unidas e tinha como objetivo corrigir
as ingerências políticas nas decisões da antiga Comissão (BELLI, 2009, p. 1-2).
As possibilidades de êxito do novo Conselho dependem da sua capacidade de
superar, efetivamente, o obstáculo que a Comissão sempre encontrou: a submissão
do sistema internacional de direitos humanos aos direitos dos Estados nacionais
reconhecidos pela própria Organização das Nações Unidas.
A tutela dos direitos dos imigrantes nos países mais desenvolvidos será um dos
seus testes definitivos. A grande questão é que os problemas gerados pelas
migrações internacionais implicam a superação dos alicerces da soberania dos
Estados nacionais: os monopólios sobre o controle da mobilidade populacional no
território e sobre a concessão da nacionalidade (REIS, 2004, p.155).
A proposta de Hannah Arendt para solucionar o paradoxo posto pelos apátridas,
as minorias e os imigrantes internacionais seria um direito inalienável a ter
direitos (ARENDT, 2004, p. 330). Não se trata de uma mera proposta filosófica,
mas sim de uma nova concepção dos direitos humanos que se realiza no espaço
político internacional independente dos Estados nacionais (BRITO, 2010, p. 23).
Não é a ilusão totalitária de um Estado internacional subordinando as
diferentes nações; pelo contrário, a ideia de Arendt refere-se à construção de
um espaço político internacional que assegure a tutela dos direitos humanos
além das soberanias nacionais, e essa é a sua grande novidade (BRITO, 2010, p.
23).
A história mostra que a tutela dos direitos humanos pelo sistema internacional
implantado pelas Nações Unidas, mesmo com todos os progressos após a Segunda
Grande Guerra, não assegurou o direito a ter direitos. Contudo, ele se
constitui em uma nova sinalização política para a compreensão crítica das
democracias liberais contemporâneas, que estabeleceram limites territoriais
para o pleno exercício dos direitos humanos. O direito a ter direitos não é só
a negação do totalitarismo, nas suas formas clássicas do nazismo e do
stalinismo, mas é, também, a negação dos seus resíduos que ainda prevalecem nas
democracias liberais resistentes a uma verdadeira tutela internacional dos
direitos humanos.