A ética do discurso e o modelo dos consensos democráticos: uma réplica a J.
Eisenberg
Pode-se dizer que Jürgen Habermas tem muito em comum com Max Weber. Não me
refiro apenas à conhecida influência de Weber sobre a teoria social de
Habermas, mas principalmente a um destino aparentemente comum aos dois teóricos
sociais alemães: alguns de seus conceitos fundamentais não escaparam a
interpretações equivocadas. Não são poucos os manuais destinados a estudantes
de administração que apresentam o conceito weberiano de "tipo ideal"
de burocracia como se este significasse uma "recomendação" desse tipo
de organização (Leivesley et alii, 1994).
Tudo indica que a obra de Habermas já sofre do mesmo mal que se abateu sobre a
de Weber. Objeto de inúmeras análises críticas, e tendo servido de referência
para estudos em diversos campos do conhecimento ' da sociologia à administração
pública, passando pela teoria política e filosofia moral ', a crescente
influência da abordagem de Habermas nas ciências sociais também acarretou
problemas: seus conceitos têm sido muitas vezes mal compreendidos, o que acaba
prejudicando a própria recepção crítica de seus argumentos. A culpa por esses
mal-entendidos recai, pelo menos em parte, sobre o próprio Habermas. Seus
textos adotam um estilo notoriamente abstruso, o que acaba dificultando o
acesso a seus argumentos, característica que, como notou Martin Jay (1984), é
compartilhada por praticamente todos os teóricos identificados com o marxismo
ocidental. McCarthy (1981) sugere que os erros de interpretação seriam
conseqüência do fato de os escritos de Habermas só poderem ser compreendidos em
seu conjunto. A demora na tradução para o inglês de seus livros fundamentais '
em especial, The Theory of Communicative Action(1984; 1987), seu magnum
opus'teria contribuído para a difusão de alguns equívocos, uma vez que os
primeiros comentadores do pensamento habermasiano fora da Alemanha se basearam
em uns poucos artigos disponíveis em inglês. Em que pesem essas considerações,
pode-se dizer que a responsabilidade pelos mal-entendidos é questão secundária,
e o que importa é empreender um esforço para desfazê-los. Só assim, a
contribuição teórica de Habermas poderá ser recolocada na perspectiva adequada
para o debate crítico.
Meu propósito aqui é esclarecer alguns conceitos utilizados por Habermas e
adotados no artigo "Justificação, Aplicação e Consenso: Notas sobre
Democracia e Deliberação", de José Eisenberg (2001)1. Argumentarei que
este, ao apresentar um modelo de interpretação de arranjos políticos nas
sociedades contemporâneas ' que chamarei de "modelo dos consensos
democráticos" ', atribui sentidos aos conceitos contidos na "ética do
discurso" (Diskursethik) que diferem daqueles utilizados por Habermas. Por
isso, a teoria habermasiana acaba não servindo às intenções pretendidas por
Eisenberg. Procurarei, também, apontar alguns problemas de consistência teórica
do modelo dos consensos democráticos que, se não esclarecidos, comprometem sua
plausibilidade. Esses dois aspectos estão interligados e, por isso, não serão
discutidos separadamente.
Eisenberg sustenta que, a partir do processo de formação de consensos na esfera
política, são obtidos quatro mecanismos de arbitragem que correspondem, por sua
vez, a quatro tipos de consensos democráticos: comunitarista, liberal,
autoritativo e republicano. O autor também afirma que há uma dinâmica de
transição entre esses consensos, que ele denomina de "círculo virtuoso da
democracia". Se a passagem de um tipo de consenso para outro não for
possível, emergirão patologias sociopolíticas: fundamentalismo, apatia,
separatismo e violência. Para desenvolver seu argumento, ele parte do modelo de
democracia deliberativa de Habermas, mas deixa claro que vê deficiências na
abordagem habermasiana e se propõe a apresentar uma proposta capaz de superá-
las.
Eisenberg entende a democracia como um conjunto de regras de formação da
vontade política que fundamentam sua legitimidade em processos deliberativos.
Segundo ele, um consenso é "democrático se ele resulta de mecanismos de
arbitragem em que atores em posição de igualdade formal consentem à validez das
instituições resultantes." (:198) Essa formulação não difere da de
democracia deliberativa de Habermas (1998a), fundamentada no argumento de que a
validação discursiva de regras de deliberação democrática ' ou seja, mecanismos
de arbitragem,segundo a terminologia adotada por Eisenberg ' é o que confere
legitimidade às decisões tomadas por meio dessas. O autor aceita o argumento de
Habermas no que se refere aos critérios para se atribuir legitimidade aos
procedimentos de deliberação. No entanto, ao enfatizar o aspecto da aceitação
ou rejeição dos resultados da deliberação democrática, Eisenberg abre caminho
para um mal-entendido conceitual que é, no passo seguinte, incorporado ao
modelo dos consensos democráticos. Ele afirma que
"[...] os resultados do processo deliberativo não precisam ser
aceitáveis para todos os participantes; basta que as regras daquele
processo o sejam e, como especificado pelo "princípio do
discurso" (chamado de princípio D) da ética de Habermas, que
todos aqueles potencialmente afetados pela norma cheguem a um acordo
quanto à sua validez." (:198, ênfases minhas)
Ou seja, Eisenberg interpreta o conceito de "aplicação" da ética do
discurso de Habermas como sendo a aceitação (ou rejeição) de normas que
resultam de um processo de deliberação legítimo. Entretanto, como Habermas
argumentou em Justification and Application(1993), "aplicação" é uma
forma de discurso e não uma constatação empírica quanto à aceitação ou rejeição
de normas de interação social. Segundo este argumento, o discurso de
justificaçãotem como meta validar uma norma moral, enquanto o discurso de
aplicaçãotem por objetivo deliberar se a norma moral se aplica a uma
determinada situação específica.Como observou Rehg (1997), o processo do
discurso de aplicação envolve principalmente a hierarquização de normas morais
em conflito. Atores sociais podem decidir que determinada norma não se aplica
ao caso em questão e que outra deve ser considerada mais importante, dependendo
do contexto em que se encontrem. Temos de ter em mente que Habermas considera
que normas morais são aquelas com validade universal, ou seja, são as que, em
princípio, devem ser consideradas justas e, portanto, válidas para todos os
atores pertinentes2. Os contextos específicos, porém, determinam que normas
morais terão precedência sobre outras. Dessa forma, por meio do discurso de
aplicação, uma norma moral é qualificada por outras normas que são trazidas à
consideração dos participantes do discurso prático pelas circunstâncias do
contexto. Rehg mostra que esse tipo de procedimento está implícito em frases
que expressam desculpas, como, por exemplo: "Eu teria chegado no horário
combinado, mas me atrasei porque minha filha ficou doente" (idem:190). Ele
também argumenta que a qualificação obtida nesse tipo de discurso prático é
candidata a se tornar uma norma universal. Por exemplo, a norma "não se
deve mentir" qualificada pela norma "deve-se proteger um
inocente" resulta na norma universal "deve-se proteger um inocente,
mesmo que isso signifique mentir" (idem:196)3. Em suma, uma norma pode ser
considerada justa, mas se a mesma se aplica à determinada situação concreta
depende de uma avaliação dos participantes, o que constitui um passo adicional
do processo discursivo. Mas o que Habermas considera como sendo um discurso?
O discurso habermasiano corresponde ao processo de avaliação crítica de
reivindicações de validade apresentadas por atores sociais que visam ao
entendimento mútuo por meio do consenso. O pressuposto do discurso é a situação
ideal de fala, ou seja, um contexto livre de dominação tal que permita aos
participantes chegar ao entendimento mútuo. Temos aqui um aspecto da teoria
habermasiana que é freqüentemente mal compreendido: a situação ideal de fala
não é requisitoprévio para a prática da racionalidade comunicativa e sim um
pressuposto assumido pelos participantes de um discurso autêntico4. É
importante observar que a condição de pressuposto também se aplica à idéia de
consenso, como observou Habermas:
"Somente nos discursos teórico, prático e explicativo, os
participantes têm que partir do pressuposto (freqüentemente
contrafactual) de que as condições para uma situação ideal de
discurso são atendidas em um grau suficientemente satisfatório. Eu
chamarei de discurso' somente a situação na qual o sentido da
reivindicação de validade problemática força conceitualmente os
participantes a supor que um acordo poderia, em princípio, ser
alcançado, notando-se que a frase em princípio' expressa a condição
ideal: se a argumentação pudesse ser conduzida de maneira
suficientemente aberta e se pudesse durar o tempo suficiente."
(1984:40, ênfases minhas)
Habermas (idem) também observa que, na prática comunicativa do dia-a-dia, o
entendimento mútuo é frágil, tentativo e passível de revisão permanente. O
consensorefere-se, antes de tudo, a uma expectativa racional dos participantes,
ainda que seja também uma possibilidade empírica. Entretanto, a facticidade
empírica não é necessária para o uso do conceito habermasiano de consenso, pois
quando atores sociais estão engajados em um processo de entendimento mútuo, o
consenso como pressupostoestá presente. Isto é fundamental para toda a obra de
Habermas, pois para ele a linguagem já pressupõe um "consenso universal e
irrestrito" (Habermas, 1971:314).
Como vimos, Habermas nos diz que o processo de validação de normas morais
inclui dois passos: o discurso de justificação e o discurso de aplicação. Para
que uma norma tenha validade universal, é preciso que ela atenda ao
"princípio de universalização"(U), definido como a situação em que
"todos os afetados podem aceitar as conseqüências e efeitos secundários
que a aceitação geral [da norma] é esperada de causar na satisfação dos
interesses de todos (e essas conseqüências são preferíveis àquelas possíveis
alternativas para a regulação)" (Habermas, 1990:65). Assim como a situação
ideal de discurso, o princípio (U) também é considerado um pressuposto racional
que os participantes do discurso prático assumem ao deliberarem sobre normas
que se pretendem justas. Em outras palavras, participantes de um discurso
prático pressupõem que os critérios estipulados pelo princípio (U) podem ser
contemplados quando buscam obter um consenso sobre normas morais. Portanto, o
princípio (U) expressa os critérios que devem ser atendidos para que a norma em
questão esteja de acordo com o princípio moral geral ' o princípio (D),
mencionado por Eisenberg. O discurso de aplicação, por sua vez, busca atender
ao "princípio de propriedade"5, que consiste na avaliação da
aplicabilidade de determinada norma moral a um contexto específico por meio de
um processo de hierarquização de normas. Os papéis desempenhados pelo princípio
de universalização e pelo princípio de propriedade são complementares, mas
distintos. Deve-se ter em mente que o discurso de aplicação só tem lugar depois
que um consenso por meio do discurso de justificação é alcançado.
Portanto, na ética do discurso de Habermas, "aplicação" é uma
modalidade de discurso prático. Para ele, a questão da aceitação ou rejeição de
normas relaciona-se com o problema da legitimidade (Habermas, 1998a). É preciso
notar, porém, que Habermas não considera que normas são legítimas somente pelo
fato de serem aceitas pelos destinatários. Elas são legítimas quando atendem ao
critério de legislação legítima, ou seja, ao "princípio de
democracia". Este estipula que apenas aqueles estatutos que podem contar
com o consentimento [Zustimmung] de todos os cidadãos, obtido por meio de
regras discursivas de legislação que tenham sido, por sua vez, legalizadas,
podem ser considerados legítimos (idem). A legislação legítima refere-se a uma
comunidade política formalmente estabelecida, na qual a expectativa é que as
normas legitimadas pelo princípio de democracia sejam aceitas pelos
destinatários quando puderem ser justificadas. Porém, a aceitação empírica de
normas não é a fonte da legitimidade.
"A legitimidade de um estatuto é independente de sua
implementação de facto. Ao mesmo tempo, porém, a validade de facto ou
adesão [compliance] varia de acordo com a crença dos destinatários na
legitimidade [do estatuto], e essa crença é, por sua vez, baseada na
suposição de que a norma poderia ser justificada. Quanto mais frágil
for a legitimidade de uma ordem legal, ou ao menos considerada como
tal, tanto mais outros fatores, tais como intimidação, a força das
circunstâncias, costume e puro hábito, devem assumir posição para
garanti-la." (idem:30)
Em outras palavras, se há adesão espontânea a uma lei, pode-se supor que os
destinatários desta a reconheçam como legítima e sejam capazes de justificá-la
racionalmente. Se, por outro lado, há baixa adesão (ou seja, pouca
"aceitação") a uma lei, é porque seus destinatários não a têm como
suficientemente legítima e não encontram argumentos para justificá-la. Em suma,
em uma comunidade política qualquer, para que normas formais (leis) sejam
consideradas legítimas, elas precisam atender aos seguintes critérios: (a)
devem ser submetidas a um processo deliberativo; (b) as regras do processo
deliberativo devem ter sido validadas discursivamente; (c) as regras de
deliberação foram institucionalizadas na forma de lei. Atendidos estes
critérios, a expectativa é que a adesão a essas normas seja espontânea '
ouquase. Deve-se ter em mente que normas formais exigem sanções. Atores sociais
podem escolher agir estrategicamente, ignorando as normas legitimadas pela
comunidade política. Portanto, o bem-estar geral só pode ser garantido se
atores auto-interessados forem dissuadidos de agir contra o interesse geral por
meio da aplicação de sanções. O interesse geral, por sua vez, só pode ser
estabelecido mediante procedimentos de deliberação democrática. É essa
dinâmica, entre a legitimidade discursiva das leis e a necessidade de aplicação
de sanções, que Habermas (idem) identificou como sendo a tensão entre a
validade e facticidade da lei. Esta deve atender ao princípio de democracia, de
outro modo não poderia ser considerada legítima; mas ela também precisa aplicar
sanções para forçar atores que agem estrategicamente a adaptar seus
comportamentos de forma a preservar o interesse geral. Portanto, em sociedades
complexas, tanto a legitimação discursiva como a aplicação de sanções são
elementos necessários ao processo democrático.
Para Habermas, as regras de deliberação também incluem processos deliberativos
que não visam necessariamente ao consenso: trata-se da barganha justa. A
diferença entre o consenso e a barganha justa reside nas razões sustentadas
pelos grupos de interesse envolvidos. "Enquanto consensos racionalmente
motivados (Einverståndnis) se baseiam em razões que convencem todos os grupos
da mesma maneira, um compromisso pode ser aceito por grupos diferentes, cada um
segundo suas razões próprias e diferentes" (idem:166). Eisenberg, porém,
parece achar que as barganhas, por envolverem interesses não generalizáveis,
não seriam procedimentos democráticos. "Contratos, barganhas e outros
mecanismos em que se articulam interesses de atores em posições de igualdade
formal [argumenta Eisenberg] não necessariamente constituem mecanismos
democráticos" (:199). No entanto, Eisenberg sustenta que
"Do ponto de vista da política nas sociedades contemporâneas, a
redução da complexidade sistêmica traduz-se em democracia, isto é, em
um conjunto de mecanismos de arbitragem que visa resolver o problema
da produção de consentimentos legítimos em contextos nos quais o
consenso efetivo e a persuasão mútua são horizontes
impossíveis." (:198)
Apesar da constatação de que o consenso muitas vezes é inviável, na avaliação
de Eisenberg as barganhas permanecem em um limbo, pois não são consideradas
mecanismos de arbitragem e, portanto, não seriam procedimentos democráticos
legítimos. Essa questão parece estar relacionada com o conceito de consenso.
Eisenberg, embora siga o modelo de democracia deliberativa de Habermas como
ponto de partida, não adota a idéia de "consenso" como um pressuposto
de discursos práticos: ele constrói o seu modelo a partir da idéia de consensos
empíricos obtidos por meio de deliberações nas "posições iniciais",
um elemento heurístico que toma emprestado das teorias políticas
contratualistas. Com isso, os conceitos habermasianos baseados em pressupostos
discursivos são introduzidos em um argumento teórico que depende da postulação
de consensos empíricos, uma estratégia que se revelará problemática para o
modelo dos consensos democráticos. Para abordar esta questão, vamos retomar um
aspecto mencionado acima: o uso que Eisenberg faz do conceito habermasiano de
"aplicação".
Podemos sintetizar o mal-entendido conceitual presente no argumento de
Eisenberg nos seguintes termos: o termo "aplicação" é adotado como
sinônimo de adesão de facto a normas ' ou seja, como "aceitação" ' e
não como uma modalidade de discurso, como faz Habermas. Dessa maneira, ele
introduz uma mudança fundamental no conceito habermasiano original. Porém, não
faz uma preparação para esse "salto" conceitual, mas apenas aplica o
novo conceito à idéia das posições iniciais, apresentando o seguinte argumento:
"Temos, então, dois planos em que esses consensos normativos são
formados via deliberação ' o plano da justificação e o da aplicação
de normas ', e a convergência em um ou dois destes planos gera quatro
cenários que podem ser analiticamente definidos como posições
dialógicas iniciais em que os atores se encontram antes de se
engajarem em um processo de deliberação e formação de
consensos." (:200, ênfases minhas)
Eisenberg afirma que o processo de formação de consensos por meio de
deliberação resulta em quatro cenários nas posições iniciais, a saber: SS, SN,
NS e NN (ver Quadro_1). Por exemplo, em SS, os atores chegam a um consenso em
relação à justificação e aplicação das normas, ou seja, elas são consideradas
justas e suas conseqüências também são aceitas, o que acarreta a adesão dos
atores ao comportamento determinado por elas; em SN, por outro lado, há
consenso quanto à justificação, pois os atores as assumem como justas, mas não
aceitam os resultados destas, ou seja, eles não aderem ao que elas estipulam.
Como vimos acima, Habermas afirma que, se regras de interação social são
reconhecidas como legítimas pelos seus destinatários, a expectativa é que a
maioria as aceite e se comporte de acordo com o que elas estipulam; os casos de
não-aceitação são resolvidos pela imposição de sanções. Portanto, segundo
Habermas, uma situação na qual os atores sociais consideram as normas justas,
mas esses mesmos atores não aceitam os "resultados" das mesmas, ou
seja, não aceitam seguir o que elas estipulam, seria algo esdrúxulo. Eisenberg,
porém, não vê necessidade de justificar essa questão, tomando-a como não
problemática.
Além do problema conceitual ' ou seja, o entendimento de "aplicação"
como "aceitação" de normas ', temos outro problema no texto de
Eisenberg transcrito acima, dessa vez de consistência lógica. Ele nos diz que a
deliberação gera os cenários das posições iniciais, mas também que estas
correspondem à situação em que se encontram os atores antes da deliberação e
formação de consenso. Em outras palavras, a deliberaçãodá origem aos cenários
das posições iniciais(SS, SN, NS e NN), mas estas também são consideradas
posições anteriores à deliberação. O que podemos concluir dessa passagem do
texto? Há deliberação ou não há deliberação nas posições iniciais? Se não há
deliberação, as posições iniciais só podem corresponder a decisões tomadas
individualmente pelos atores: cada indivíduo escolhe, de acordo com a sua razão
monológica, como se colocará em relação às normas. Mesmo considerando o alto
grau de abstração e simplificação inerente a qualquer modelo teórico, a
possibilidade de ocorrer convergência de posições em uma comunidade política
por meio de uma deliberação monológica é implausível. Um simples
"experimento de pensamento" indica essa limitação: imagine centenas
ou milhares de indivíduos escolhendo uma das posições iniciais possíveis. A
possibilidade de a comunidade política como um todo vir a assumir uma dessas
posições sobre um conjunto de normas é mais do que remota6. Nesse sentido, se
considerarmos que as posições iniciais são escolhas individuais, sem
deliberação coletiva, o modelo dos consensos democráticos só permite um único
resultado plausível: uma comunidade política onde há total divergência nos
planos da justificação e aplicação, o que, segundo Eisenberg, resulta no
"consenso autoritativo", ou seja, no modelo hobbesiano.
Mesmo considerando que há deliberação coletiva nas posições iniciais, o
problema da convergência não desaparece. Eisenberg dá a entender que elas
correspondem a um momento no qual todas as regras de interação social são
deliberadas uno actu, pois argumenta que só existem quatro possibilidades
quanto ao resultado da deliberação. Portanto, ou há consenso na justificação e
aplicação de todas as normas (SS), ou há consenso na justificação de todas as
normas, mas não há consenso na aplicação de todas as normas (SN), e assim por
diante. O cenário mais plausível seria que cada regra de interação social fosse
submetida a uma deliberação independente e, dessa forma, cada uma poderia
assumir uma das quatro posições possíveis. Ao final, também não haveria uma
convergência de todas as normas para apenas um cenário. Com isso, teríamos uma
pluralidade de cenários que, segundo o modelo, resultaria, uma vez mais, no
"consenso autoritativo". Mas não é só a convergência de posições que
se mostra implausível. A própria existência de "normas" nas posições
iniciais é problemática, pois o modelo dos consensos democráticos pressupõe que
elas seriam externas à comunidade política, pois são consideradas dados do
contexto e os atores sociais limitam-se a avaliá-las nos planos da justificação
e aplicação. Como nada sabemos sobre a origem das mesmas, só podemos concluir
que são elaboradas por um "soberano". Portanto, o modelo dos
consensos democráticos, segundo suas próprias premissas, se vê limitado ao
modelo hobbesiano. Para que possamos prosseguir na discussão do modelo dos
consensos democráticos, passo a assumir suas premissas sem levar em conta as
limitações que acabei de mencionar. Portanto, na discussão que se segue,
considero que há deliberaçãonas posições iniciais e que as normas (externas à
comunidade política) são deliberadas uno actu.
Vejamos agora como interpretar o modelo. Eisenberg parece se referir a dois
momentos distintos de deliberação: o primeiro corresponde ao processo decisório
na posição inicial e o segundo à escolha do mecanismo de arbitragem.
Entretanto, essas não são duas decisões independentes, pois o resultado da
deliberação nas posições iniciais (SS, SN, NS e NN) determina qual será o
mecanismo de arbitragem escolhido. Vejamos mais atentamente as características
dos pares, representando os cenários das posições iniciais: em SS, os atores
concordam com a validade e com a aplicação das normas (há consenso); em SN, os
atores aceitam as normas como válidas, mas não a aplicação das mesmas sob o
contexto considerado (não há consenso); em NS, os atores não concordam com a
validade das normas, mas estão de acordo com a aplicação destas (o que resulta
em um paradoxo conceitual, já que o discurso de justificação precede o discurso
de aplicação); em NN, os atores não concordam nem com a validade nem com a
aplicação das normas (não há consenso, mas também não haveria necessidade do
discurso de aplicação). Utilizando-nos dos conceitos da ética do discurso de
Habermas, as posições iniciais resultam em quatro cenários: um consenso, um
paradoxo conceitual e dois dissensos. No entanto, o modelo considera que esses
cenários não consensuais não afetam a legitimidade dos mecanismos de
arbitragem. Como explicar, então, a relação entre as posições iniciais e os
mecanismos de arbitragem? Deixaremos esta questão em suspenso por um momento.
Para Habermas (1990:122), o discurso prático não envolve nenhum conteúdo
normativo substantivo: "Qualquer conteúdo, não importa quão fundamentais
sejam as normas de ação, deve ser submetido a um discurso real [...]". O
princípio de universalização e o princípio de propriedade também não possuem
nenhum conteúdo normativo substantivo, pois o primeiro corresponde a critérios
que os participantes do discurso utilizam ao deliberarem sobre normas morais, e
o segundo ao processo de hierarquização de normas morais. No modelo dos
consensos democráticos, porém, conteúdos normativos substantivos são
introduzidos na forma de "princípios de justificação"e
"princípios de aplicação"(ver Quadro_2), sendo que o conteúdo do
primeiro determina o do segundo. Segue o argumento apresentado por Eisenberg:
"A cada princípio de justificação corresponde um princípio que
articula no plano da eficácia das normas, isto é, no plano da
propriedade da sua aplicação, uma estratégia de ação coletiva para os
atores. Os princípios de aplicação, portanto, traduzem princípios de
justificação em questões de ordem prática que podem ser
institucionalizados. Os mecanismos de arbitragem, por sua vez,
constituem os instrumentos específicos através dos quais o subsistema
político gera a eficácia das normas. O subsistema político opera por
intermédio de mecanismos de arbitragem cuja função é precisamente
reproduzir e revigorar consensos inicialmente produzidos pelos atores
sem ter que recorrer permanentemente a instrumentos de
deliberação." (:203)
Os princípios de justificação são os mais importantes para o modelo dos
consensos democráticos, pois é a partir deles que cada um dos "consensos
democráticos" é definido. Retomando a pergunta feita acima, os argumentos
apresentados por Eisenberg para cada um dos consensos democráticos fornecem a
resposta sobre a relação entre as posições iniciais e os mecanismos de
arbitragem. Vejamos o argumento referente à origem do "consenso
comunitarista":
"Na medida em que os atores compartilham de uma mesma concepção
moral do bem comum, o mecanismo de arbitragem primordial será a
reafirmação da tradição que é comum aos atores, institucionalizada na
forma de costumes cuja legitimidade deriva da identificação dos
membros com os valores sancionados simbolicamente pela cultura."
(ibidem)
Em outras palavras, uma concepção ético-política do "bom"
compartilhada pelos membros da comunidade política resultaria no princípio de
justificação "identidade" que emerge do consenso sobre as normas de
interação social (cenário SS). Com isso, a comunidade política adota um
princípio de aplicação "reprodução de valores" e tem preferência por
um mecanismo de arbitragem que corresponda à "reafirmação da
tradição". Já que há consenso sobre as normas presentes na comunidade,
tudo o que os atores políticos desejam é reproduzir essa condição. Vamos
examinar agora o argumento apresentado para as conseqüências do cenário inicial
SN, que resulta no "consenso republicano":
"No caso [...], em que há uma concordância no plano da
justificação, sem uma compreensão comum de como aplicar as normas
convergentes, caímos em um cenário que pode ser explicado nos termos
do discurso republicanista. A existência de uma convergência somente
no plano da justificação remete ao conceito republicanista de
fundação, segundo o qual toda comunidade política, para se sustentar,
depende de um momento original em que consensualmente se delimita a
cidadania. Nesse contexto, a aplicação das normas dá-se via a
afirmação de virtudes cívicas." (:205)
Se deixarmos um pouco de lado a descrição tradicional do modelo civil-
republicano, concluímos que essa descrição também poderia ser aplicada ao
"consenso comunitarista" (cenário SS). De fato, o parentesco entre as
abordagens comunitarista e civil-republicana é conhecido, tendo sido discutido
por Habermas (1998a). Os consensos "comunitarista" e
"republicano" seriam o resultado tanto do cenário inicial SS como do
cenário inicial SN. O fato de no "consenso comunitarista" haver
convergência no plano da aplicação e no "consenso republicano" não
haver não parece ser relevante para a argumentação. Exceto pelas expressões
comumente usadas na literatura de teoria política, não há diferença entre os
contextos dos "consensos comunitarista e republicano": em ambos os
atores políticos compartilham uma mesma concepção de bem comum, que se expressa
na convergência no plano da justificação. Raciocínio análogo pode ser aplicado
em relação aos "consensos liberal e autoritativo". Examinemos os
argumentos apresentados por Eisenberg sobre o "consenso liberal":
"Quando há discordância no primeiro destes planos [ou seja, o
plano da justificação], ainda que haja concordância no segundo [isto
é, o plano da aplicação], os atores precisam apoiar-se em um
princípio comum de justificação baseado na tolerância à diversidade
moral, e buscar, conseqüentemente, um princípio de aplicação baseado
na proteção de liberdades individuais. O mecanismo de arbitragem
correspondente é a distribuição de direitos, institucionalizados na
forma de leis sancionadas juridicamente pelo subsistema do
direito." (:204)
Segundo esse argumento, na posição inicial NS, os atores sociais não têm uma
concepção compartilhada do "bom" e, por isso, acham que é desejável
um mecanismo de arbitragem baseado na garantia da liberdade individual. Tal
argumento parece bastante razoável: como há conflito entre as concepções
éticas, os atores políticos sentem necessidade de regular suas ações por meio
do mecanismo de arbitragem "distribuição de direitos". Porém, qual
seria o papel da convergência no plano da aplicação? Eisenberg não fornece uma
resposta a esta pergunta. O argumento que justifica a origem do "consenso
autoritativo", resultante do cenário da posição inicial NN, também não
esclarece essa questão. Ei-lo:
"Mas o que acontece quando há discordância em ambos os planos? É
possível um consenso entre atores que divergem tanto nas normas de
justificação quanto nas de aplicação? Este é o cenário mais difícil
de intuir, já que aparentemente não há consenso algum se há
divergência em ambos os planos. Mas, desde que os atores continuem
buscando a reprodução do corpo político ao qual pertencem, existe um
princípio de justificação que opera mesmo quando não há convergência
na justificação e aplicação de normas. Esse princípio pode ser
traduzido em termos de segurança e é melhor ilustrado pelo modelo
hobbesiano." (:205)
Se os atores no cenário NN não compartilham das mesmas concepções do
"bom", não poderiam ter optado pelo "consenso republicano"?
Para Habermas (1998a), é isso que indica uma inconsistência fundamental do
modelo hobbesiano, pois ele está baseado no pressuposto de que os atores não
aceitam as regras que poderiam auto-impor-se, mas estariam dispostos a aceitar
as normas impostas por um soberano. Por isso, Habermas (idem:90) afirma que
Hobbes pode ser lido mais "como um teórico do estado de direito burguês
sem democracia do que como um apologista do absolutismo ilimitado".
Habermas observa que Hobbes não consegue justificar a decisão de delegar ao
soberano a imposição de todas as normas de interação social a partir da
perspectiva de atores auto-interessados. O consenso subjacente à idéia de
contrato introduz o pressuposto de que os atores no estado da natureza já
tenham capacidade de se reconhecerem mutuamente como portadores de direitos e
de agirem por meio da concepção do "nós" social. No modelo dos
consensos democráticos, a concepção de um "nós" também tem que ser
pressuposta como "consenso autoritativo" e está expressa no argumento
da busca da "reprodução do corpo político". Tal como o modelo
hobbesiano, o "consenso autoritativo" não consegue justificar por que
atores políticos preferem um soberano que impõe normas de cima para baixo à
alternativa de escolherem, eles mesmos, as normas de interação social.
No que se refere à questão da legitimidade, os conceitos de
"aplicação" e "justificação" incorporados aos cenários das
posições iniciais também são um problema para o modelo dos consensos
democráticos. Não irei tratar aqui os argumentos que Eisenberg apresenta para
cada um dos "consensos democráticos". É suficiente lembrar a sugestão
de que, ao se romper um consenso, há a possibilidade de transição para um outro
tipo; caso isto não ocorra, emergem patologias sociopolíticas: apatia,
fundamentalismo, separatismo e violência. No entanto, isso não é suficiente
para explicar por que surgem as crises de legitimidade. Tudo o que se pode
aferir do modelo dos consensos democráticos é que as crises podem ocorrer. A
transição sem crises para outros consensos é explicada pelas alterações nas
posições iniciais, mas o modelo não fornece uma razão para o rompimento dos
consensos em torno dos mecanismos de arbitragem. Tudo o que Eisenberg nos diz é
que
"[...] em todo e qualquer momento desse processo, existe a real
possibilidade de que o subsistema político não consiga produzir o
consentimento dos atores. Dependendo do consenso que define a posição
dos agentes naquele momento, determinados tipos de crise de
legitimidade política podem surgir, e a natureza dessas crises é
determinada precisamente pelo tipo de consenso que é rompido naquele
momento." (:209)
Esse argumento não é uma explicação para a eclosão de crises de legitimidade,
mas restringe-se a uma hipótese de que as crises, quando ocorrem, assumem
características que são intrínsecas aos arranjos políticos que as originaram.
Mas, ainda assim, falta plausibilidade ao modelo. Crises políticas geralmente
apresentam todos os quatro sintomas de patologias sociopolíticas,
independentemente do arranjo político que as precederam. Como se sabe, Habermas
(1987) desenvolveu uma tese sobre a eclosão de patologias sociais que leva em
consideração a emergência de vários sintomas simultaneamente. Ainda que a
teoria habermasiana esteja sujeita à crítica de estar limitada ao contexto das
sociedades de Bem-Estar Social, negligenciando as condições a que estão
submetidos os países do Terceiro Mundo (Said, 1994), não deixa de ser uma tese
consistente. A questão teórica relevante, nesse caso, me parece ser menos qual
arranjo político origina que sintoma, e sim se a explicação habermasiana para
as crises do capitalismo tardio pode ser relevante para o contexto dos países
subdesenvolvidos. Mas, por ora, vamos deixar esta questão de lado, retornando à
discussão do modelo dos consensos democráticos.
Ao que parece, a incompatibilidade entre a abordagem habermasiana e o modelo
dos consensos democráticos reside também na inspiração contratualista do
último. A idéia de posições iniciais requer ' como acontece nos casos do
"estado da natureza" de Hobbes e do "véu de ignorância" de
Rawls ' a postulação de "situações objetivas", ou seja, requer que
sejam atribuídos conteúdos substantivos aos valores, normas e interpretações
dos atores na posição inicial. Como mostrei acima, é justamente isso que
Habermas deseja evitar com a ética do discurso, que parte apenas dos
pressupostos de que normas morais são validadas intersubjetivamente e que os
atores envolvidos consideram ser possível atender ao princípio (U). Desse
argumento vem a crítica que Habermas dirige a Rawls:
"Rawls impõe uma perspectiva comum às partes na posição original
por meio de restrições nas informações disponíveis e, assim,
neutraliza a multiplicidade de perspectivas de interpretação
particulares desde o início. A ética do discurso, em contraste, vê o
ponto de vista moral como incorporado a uma práxis de argumentação
intersubjetiva que leva aqueles envolvidos a um alargamento
idealizado de suas perspectivas interpretativas." (Habermas,
1998b:57)
Portanto, diferentemente do que Eisenberg considera, a ética do discurso de
Habermas não está limitada a "um único horizonte normativo [...] através
do qual derivamos certos pré-requisitos ou princípios primeiros para uma
concepção de justiça" (:210). A idéia do princípio (U) tem justamente o
objetivo de submeter qualquer conteúdo normativo de condutas morais ao processo
de argumentação. O modelo dos consensos democráticos, por outro lado, está
fundamentado em conteúdos normativos substantivos, apresentados na forma de
princípios de justificação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modelo dos consensos democráticos apresenta problemas tanto de consistência
teórica como de coerência conceitual. Como vimos, os próprios pressupostos do
modelo dificilmente podem ser considerados plausíveis. Parece, entretanto, que
o ponto crítico do modelo dos consensos democráticos reside no mal-entendido
que afetou os conceitos da ética do discursode Habermas. "Aplicação"
não é aceitação (ou rejeição) de normas, como supõe Eisenberg, mas um passo
adicional ao processo discursivo sobre normas morais. Portanto, os conceitos de
discurso de justificação e discurso de aplicação não são o recurso conceitual
mais adequado para interpretar o que ocorre nas posições iniciais. Ao adotar-se
os argumentos da ética do discurso de Habermas para interpretar os cenários das
posições iniciais, só se pode concluir que os três cenários não consensuais são
apenas um momento de instabilidade normativa inerente ao processo de
deliberação discursiva7. Embora Habermas apresente vários tipos de
"princípios" ' princípio de discurso, princípio de universalização,
princípio de propriedade e princípio de democracia ', estes não apresentam
nenhum vínculo com os princípios de justificação e os princípios de
aplicaçãointroduzidos por Eisenberg. Estes últimos parecem derivar das
características dos modelos tradicionais de arranjos políticos: comunitarismo,
liberalismo, civil-republicanismo e contrato social hobbesiano. Essa impressão
é quase inevitável, uma vez que o modelo dos consensos democráticos não
conseguiu demonstrar a relevância da deliberação no plano da aplicação para a
gênese dos quatro "consensos democráticos". Por esse motivo, o modelo
dos consensos democráticos parece ter sido construído "de trás para a
frente": primeiro teriam sido escolhidos os quatro tipos de arranjos
políticos e a partir deles chegou-se aos princípios de justificação e aos
demais componentes do modelo. Os cenários resultantes da deliberação nas
posições iniciais tornam-se o último elo do argumento e não o primeiro, como
parece ter sido a intenção de Eisenberg.
Quanto aos princípios de justificação introduzidos no modelo dos consensos
democráticos, partindo-se da ética do discurso de Habermas, eles só podem ser
compreendidos como argumentos que atores em situações concretas poderiam
apresentar no momento de deliberação sobre o mecanismo de arbitragem. Nesse
caso, a concepção das posições iniciais deixa de ter pertinência, pois o que é
relevante é o discurso prático sobre os mecanismos de arbitragem. Como os
conceitos da ética do discurso de Habermas não se referem a conteúdos
normativos substantivos, mas apenas aos princípios que regem os discursos
práticos, parece-me que a abordagem da teoria moral de Habermas foi de pouca
utilidade para o modelo dos consensos democráticos.
Quanto aos quatro tipos de arranjos políticos que servem para fundamentar o
modelo dos consensos democráticos, poderíamos nos perguntar se são mesmo quatro
ou se se limitam a dois. Se aceitarmos o argumento de que o modelo hobbesiano é
inconsistente, como sustenta Habermas, ou, simplesmente, que não é democrático,
e também que o modelo comunitarista é uma versão contemporânea do modelo civil-
republicano, então estariam em jogo apenas dois tipos de arranjos políticos
relevantes: o "consenso liberal" e o "consenso
republicano". São justamente esses dois modelos de democracia que Habermas
busca integrar ao longo da argumentação que ele desenvolve em Between Facts and
Norms(1998a). Dessa maneira, aquilo que o seu modelo de democracia deliberativa
procurou reconciliar e integrar, o modelo dos consensos democráticos buscou
diferenciar e separar.
Considero que existem elementos no modelo dos consensos democráticos que, se
adequadamente desenvolvidos, podem representar uma interessante contribuição
para a teoria democrática. Infelizmente, não é possível comentá-los aqui.
Resta-me apenas sugerir um ponto de partida para uma possível reformulação do
modelo dos consensos democráticos. Estou me referindo à tentativa de Habermas
(idem:371) para realizar uma tradução "do conceito de política
deliberativa em termos sociológicos", pois há aqui um ponto de
convergência com o objetivo mais amplo de Eisenberg, a saber: o desenvolvimento
de uma "teoria sociológica da legitimação de normas em uma
democracia" (:211). Naturalmente, essa sugestão dependerá de o autor
continuar a reconhecer na teoria habermasiana uma referência adequada aos seus
objetivos.
NOTAS
1.Todas as referências a Eisenberg no presente texto se referem ao artigo
citado.
2.Esse é um dos aspectos mais controversos do discurso ético de Habermas. Sobre
essa questão, ver Benhabib e Dallmayr (1990), Murphy III (1994) e Cohen (1994).
3.Não é possível, infelizmente, estender essa argumentação aqui, mas remeto o
leitor à excelente discussão apresentada por Rehg (1997:184-210).
4.Sobre esse mal-entendido recorrente, Habermas (1986:171) comentou: "Nada
me deixa mais nervoso do que a imputação de que em virtude de a ação
comunicativa focar sua atenção na facticidade social das reivindicações de
validade, ela propõe, ou ainda sugere, uma sociedade racionalista utópica. Eu
não considero a sociedade totalmente transparente ' e deixe-me acrescentar a
esse contexto: ou uma sociedade homogeneizada e unificada ' como um ideal, nem
desejo sugerir nenhum outro ideal ' Marx não foi o único a se assustar com os
vestígios de um socialismo utópico".
5.Eisenberg utiliza a palavra "propriedade" como tradução do termo
alemão Angemessenheit. Decidi manter esta tradução neste artigo, embora uma
mais fiel ao sentido de principle of appropriateness, utilizado na tradução em
inglês (Habermas, 1993), seja "princípio do apropriado".
6.O "experimento de pensamento" pode ser estruturado nos seguintes
termos: uma vez que a posição inicial NN corresponde a um total dissenso,
precisamos saber apenas qual é a probabilidade de convergência nas três
posições iniciais restantes ' SS, SN e NS, tendo como pressuposto que as três
são igualmente possíveis. Em uma comunidade política qualquer, composta por n
pessoas e m normas, essa probabilidade é expressa pela fórmula 3/3^(mx n).
Portanto, para uma comunidade composta por dez pessoas e duas normas, a
probabilidade de convergência em qualquer uma das três posições iniciais é de
apenas 0,0000001%.
7.É por isso que Habermas (1998a) considera que em sociedades complexas é
preciso institucionalizar o sistema legal, pois de outro modo a instabilidade
normativa dos processos comunicativos inviabilizaria a integração social. Por
outro lado, Habermas considera que essa instabilidade comunicativa é
fundamental para garantir a dinâmica da formação da opinião e vontade políticas
na esfera pública.