Estado e empreiteiras II: permeabilidade e políticas urbanas em São Paulo
(1978-98)
INTRODUÇÃO
Este artigo discute os padrões de relação entre público e privado no desenrolar
de uma política pública. Estudamos a relação entre Estado e empresas privadas
na produção e gestão da política de infra-estrutura urbana na cidade de São
Paulo, entre 1978 e 1998, executada pela Secretaria Municipal de Vias Públicas
- SVP. O artigo dialoga intensamente com pesquisa anterior sobre tema similar,
referente à política de saneamento básico no Rio de Janeiro, entre 1975 e 1996,
consubstanciada em Marques (1999a; 2000).
No estudo sobre política de saneamento, foram analisados os padrões de vitória
de empreiteiras em licitações, que se revelaram extremamente concentrados. Na
explicação desse fenômeno, destacamos a estruturação dos vínculos entre
indivíduos, grupos e entidades em redes de relações no interior da comunidade
dos engenheiros, construindo analiticamente a categoria "permeabilidade" para
dar conta dos limites e interpenetrações entre público e privado no desenrolar
da política de saneamento. A especificação da permeabilidade foi possível
graças ao estudo detalhado dos vínculos entre indivíduos e empresas, realizado
mediante a análise de redes sociais. O estudo da rede mostrou que a
concentração de vitórias em algumas poucas empresas privadas podia ser
explicada pelas posições ocupadas por elas na rede da comunidade em cada
governo.
Na presente pesquisa, examinando os padrões de vitória e a estrutura da rede de
relações de outra comunidade de política urbana - a de infra-estrutura urbana -
em uma outra grande cidade brasileira, São Paulo, comprovamos a importância da
dimensão relacional da comunidade. A política inclui projetos e obras de
drenagem, pavimentação, sistema viário, abertura de vias e grandes estruturas
(pontes, viadutos e túneis). A comparação dos dois casos, entretanto, mais do
que simplesmente confirmar os processos observados anteriormente, demonstra a
existência de inúmeras particularidades nos diferentes processos decisórios.
Estas apontam para uma especificação do padrão geral de relações entre Estado e
sociedade, segundo a estrutura do jogo político e a dinâmica do poder em cada
cidade. Em termos comparativos, ambos encerram situações muito diferentes. Na
política de saneamento no Rio de Janeiro, estudamos uma empresa pública com
receita própria e trajetórias de carreira bem definidas, o que originou uma
burocracia relativamente insulada e bastante fechada, estruturada em uma rede
polarizada em diversos grupos. Na política de infra-estrutura urbana em São
Paulo, analisamos um órgão da administração direta que depende de repasses da
Prefeitura para sua sobrevivência financeira, apresenta intensas migrações para
outros órgãos do setor público e é estruturado sobre uma rede menos densa e
menos dinâmica, hegemonizada na maior parte do tempo por um único grupo.
Do ponto de vista do poder, o caso do Rio de Janeiro envolve uma política de
expressão bem menos central do que o de São Paulo, onde a Secretaria é ocupada,
durante a maior parte do tempo, por importantes quadros técnico-políticos do
grupo político que controla a administração municipal, e que encerra algumas
das iniciativas de política mais importantes para esse grupo.
O artigo é composto de quatro seções, além desta introdução. Na primeira,
discutimos os pressupostos conceituais e situamos o leitor em relação à análise
de redes e às peculiaridades da sua aplicação ao caso brasileiro. Na segunda
seção, expomos as principais características da política de investimentos da
SVP, assim como as dimensões gerais do padrão de vitória de empreiteiras. Em
seguida, apresentamos a rede da comunidade dos engenheiros e mostramos como a
ocupação pelas empresas de determinadas posições na rede, em cada governo,
explica uma parcela considerável do fenômeno. As diferenças e as semelhanças
entre esse padrão e o encontrado no Rio de Janeiro permitem discutir as
relações entre público e privado no Brasil de forma mais ampla, o que fazemos
na quarta e conclusiva seção.
REDES E PERMEABILIDADE NO BRASIL
Para uma parte significativa da literatura de ciências sociais e para
praticamente todo o senso comum, o Estado brasileiro teria como uma de suas
principais características a interpenetração entre suas agências e atores
privados. Esse elemento constitutivo teria como conseqüências a formação de
"anéis burocráticos", que englobariam grupos do Estado e do setor privado
(Cardoso, 1970), a privatização e a segmentação do Estado (Grau e Belluzzo,
1995), ou mesmo a privatização de políticas específicas, como as políticas
sociais (Draibe, 1989). A origem de tal fenômeno estaria, em sentido
macrossocial, nas próprias relações entre Estado e classes dominantes no Brasil
(Cardoso, 1970), mediadas por "círculos de interessados" que substituiriam as
"organizações intermediárias" - partidos, sindicatos e organizações voluntárias
- pouco importantes na canalização de interesses do país, ou então no desenho
equivocado das instituições brasileiras, que incentivariam o personalismo, o
clientelismo e a corrupção (Geddes e Ribeiro Neto, 2000).
Em uma dimensão mais microssocial, a origem dos problemas estaria na presença
do "individual, [...] inserido no Estado, [...] na determinação do interesse
público" (Grau e Belluzzo, 1995:7), na continuada presença de hierarquias,
mesmo após a disseminação dos mecanismos de mercado (Lanna, 1997); na
importância das relações pessoais na estruturação do poder político, mesmo no
interior da sociedade contemporânea brasileira (Bezerra, 1995; 2000); na
dissociação entre indivíduo e pessoa nas relações sociais (DaMatta, 1978) ou na
manutenção de práticas de troca restrita concomitantemente com o
desenvolvimento de padrões de troca generalizada, o que levaria à persistência
da gramática política do clientelismo, mesmo que interpenetrada pelas
gramáticas do corporativismo, do insulamento burocrático e do universalismo de
procedimentos construídas posteriormente (Nunes, 1997).
Apesar da constatação do fenômeno e do destaque de suas conseqüências em
sentido macrossocial, ou da descrição dos microfundamentos desses
macroprocessos, a literatura brasileira de ciências sociais não tentou
descrever detalhadamente a interpenetração entre Estado e agentes privados, e
tampouco compreender os processos através dos quais esta foi produzida e é
reproduzida no cotidiano da vida política brasileira. Talvez por essa razão,
uma parcela significativa dos diagnósticos recentes sobre a crise do Estado
brasileiro do debate acadêmico, assim como os receituários para a sua solução,
presentes no debate político, sejam muito abstratos, ou excessivamente
formalistas. No primeiro caso, as análises podem ser úteis na construção de uma
crítica aos pressupostos do debate, mas dificilmente levam à elaboração de
alternativas1, enquanto no segundo se creditam possibilidades quase ilimitadas
à reforma institucional e às mudanças de desenho, sem considerar devidamente a
dinâmica política ou o funcionamento concreto de agências e instituições (ver,
p. ex., Bresser Pereira, 1998)2.
Recentemente, alguns estudos começaram a constituir um campo analítico que
permitiu compreender os padrões de relação entre público e privado no Brasil
com maior complexidade e de forma mais precisa. Na verdade, essas análises não
tentam descrever o "Estado como ele deve ser, [mas]... como ele é" (Grau e
Belluzzo, 1995:13), o que pressupõe compreender o Estado brasileiro de forma a
escapar da dicotomia atraso/moderno implícita em boa parte da literatura. Um
dos trabalhos recentes mais importantes nessa linha é o de Nunes (1997), que
mostra que as linguagens políticas - ou as gramáticas - da relação entre Estado
e sociedade foram sendo retrabalhadas historicamente a partir das gramáticas
anteriores. Tentando descrever e compreender as relações entre público e
privado em detalhes e analisar o cotidiano das práticas advindas dessas
relações, podemos citar os trabalhos de Bezerra (1995), que estudou a
importância dos padrões de relação pessoal em episódios de corrupção em obras
federais, e de Marques (1999a; 2000), que levantou as redes de relações no
interior da comunidade e explicou, a partir delas, vários aspectos da política
de saneamento no Rio de Janeiro.
O presente artigo dá continuidade a essa tarefa, realizando uma análise
detalhada das relações entre Estado e atores privados em uma política urbana,
com resultados comparáveis aos de Marques (idem; idem). Assim, ao mesmo tempo
que são apresentados os resultados da experiência paulistana, estes são
comparados com o caso carioca, de forma a destacar as particularidades de cada
um e, assim, ajudar na compreensão do padrão geral (Tilly, 1992), iluminando as
relações entre o público e o privado nas políticas públicas brasileiras.
Não cabe aqui resenhar a literatura de redes sociais na ciência política,
tarefa já efetuada em Marques (2000), mas apenas delimitar o uso que faremos
dela e destacar suas conseqüências para nosso estudo. A análise de redes
permite o estudo das relações entre Estado e setor privado no desenrolar de uma
política sem delimitar previamente os dois campos - o público e o privado -, já
que a unidade básica de análise é a relação, e não os atributos dos indivíduos
e entidades como, por exemplo, pertencer a essa ou àquela agência ou ao setor
privado. A idéia mais geral é que indivíduos, grupos e organizações, no
exercício de suas atividades cotidianas, assim como de suas estratégias,
constituem redes de relações entre si. Estas, concomitantemente, são parte
importante da dinâmica do social e cristalizam-se em redes, que operam como
estruturas de médio alcance sobre os acontecimentos posteriores, inclusive
sobre a sua própria transformação, pelo lançamento e quebra de novos vínculos.
Uma vez constituídas, essas redes influenciam o desdobramento do processo
político.
Naquilo que nos interessa mais diretamente neste trabalho, as redes influem no
desenvolvimento das políticas públicas e estruturam as relações (e a
interpenetração) entre os campos do público e do privado, já que os técnicos de
ambos os setores foram formados nas mesmas universidades, compartilham da mesma
comunidade técnica e profissional, além de se relacionarem no interior da
sociedade mais ampla. A nossa hipótese é que as redes das comunidades de
política estruturam as relações entre público e privado na explicação da
permeabilidade do Estado (idem). Mais especificamente, como veremos ao longo
deste artigo, a permeabilidade explica o padrão de vitória de empreiteiras em
licitações, já que, para além da presença de corrupção tão destacada na
literatura, um dos principais insumos nesse tipo de disputa - as informações -
circula pela rede e o acesso a eles é regulado pela ocupação de posições
diferenciadas na mesma.
INSTITUIÇÕES POLÍTICAS, REDES SOCIAIS E CONTRATAÇÕES DO SETOR PÚBLICO
Em um sentido bem geral, os efeitos sobre a dinâmica social das instituições
políticas e das redes assemelham-se, já que ambas estruturam os ambientes onde
os processos políticos se dão. Com relação ao efeito das primeiras, a
literatura neo-institucionalista já estabeleceu um ponto de difícil
questionamento (Skocpol, 1992; Steinmo et alii, 1992; dentre muitos outros).
Para os neo-institucionalistas, especialmente os históricos, as instituições
agiriam como molduras da política e das políticas, não apenas influenciando
resultados, mas alterando as próprias preferências dos atores, ao definir
possibilidades e probabilidades para diferentes estratégias, alianças e linhas
de ação (Steinmo et alii, 1992). De forma similar, as redes alteram os
resultados dos processos políticos, assim como alteram estratégias e até mesmo
preferências de atores e grupos. Esse efeito não é mutuamente exclusivo, mas,
ao contrário, ocorre de forma concomitante e paralela. Assim, embora analisemos
aqui a influência das redes na estruturação dos campos do público e do privado
no Brasil, não podemos deixar de considerar que isso ocorre no interior de um
ambiente institucional específico e que as características desse ambiente,
assim como suas alterações, também apresentam grande importância.
A relação entre redes e instituições também fica evidente na importância
diferenciada entre as redes do Rio de Janeiro estudadas por Marques (2000) e as
de São Paulo analisadas aqui. Como veremos, as duas redes apresentam
influências bastante diversas sobre a permeabilidade do Estado no desenrolar da
política. Na do Rio de Janeiro, havia uma influência muito maior do chamado
poder posicional sobre as vitórias das empresas, representado pela importância
de vínculos construídos paulatinamente ao longo das carreiras dos técnicos, em
grande parte de maneira não intencional. Nesse caso, a relação das empresas com
o poder institucional - advindo da ocupação de cargos - é em grande parte
mediada pelo poder posicional. No que diz respeito a São Paulo, ao contrário,
parece ser muito mais definidora da permeabilidade a proximidade, na rede, do
poder institucional3.
Como veremos, um elemento importante na explicação do padrão paulistano tem a
ver com a centralidade da direita nas administrações municipais no período
estudado, assim como com a construção, por esses governos, de preferências de
políticas bastante claras, em que certamente um tipo de permeabilidade e
relação com o setor privado está presente. Entretanto, acreditamos que um outro
elemento também seja muito importante para explicar por que os padrões de
permeabilidade dos dois casos são tão diferentes, e nesse ponto voltamos às
instituições. Uma outra grande diferença entre ambos está no desenho das duas
agências analisadas, sendo a do Rio de Janeiro mais insulada, estável em termos
de padrão de carreira e independente em termos financeiros. Acreditamos que a
maior institucionalização da agência carioca, comparada com a paulistana,
explica parte considerável da força de sua rede (e das posições no seu
interior) nas negociações de poder que se estabelecem, de um lado com o poder
institucional da classe política e seus gestores de livre indicação, e de outro
com o poder econômico das empresas que são contratadas nesse setor. Voltaremos
a este ponto nas últimas seções.
Dentre as instituições presentes no ambiente político, a mais importante para a
regulação das relações entre público e privado no Brasil é o marco legal que
regula as licitações. No Brasil, as contratações públicas são precedidas
necessariamente de processos administrativos padronizados denominados
licitações. Não faremos uma resenha sobre o assunto, e tampouco um histórico da
legislação, tarefa já realizada em Marques (idem), mas comentaremos rapidamente
os aspectos mais relevantes da dinâmica dessa legislação em período recente, de
forma a melhor situar o leitor com relação ao ambiente que cerca os contratos,
assim como suas alterações ao longo do período.
Apesar de as licitações regularem as compras e as contratações de obras e
serviços do setor público, a primeira legislação específica sobre licitações
foi promulgada apenas em 1986 (Decreto-Lei nº 2.300/86). Até esta data, os
processos de contratação eram regulados pelo Código de Contabilidade da União
de 1922, que estabelecia os princípios de probidade, publicidade e igualdade
para as ações dos agentes públicos, e pelo Decreto-Lei nº 200/67, que instituía
uma ampla reforma administrativa, além de legislações pontuais e sobre aspectos
específicos firmados ao longo dos anos (Meirelles, 1995). Assim, o ano de 1986
representa um marco no ordenamento jurídico brasileiro relativo à matéria,
fixando os tipos de licitação, descrevendo detalhadamente a documentação
técnica exigida para a contratação, estabelecendo com minúcias as condições de
dispensa, além de discorrer sobre inúmeros detalhes ao longo dos seus noventa
artigos.
Depois dessa legislação, a alteração subseqüente de vulto no arcabouço jurídico
ocorreu em 1993, com a promulgação da Lei Federal nº 8.666/93. Elaborada sob o
impacto do escândalo do Orçamento Geral da União e do imbróglio de PC Farias/
Collor de Mello, esta lei apresenta características bem mais restritivas que a
legislação de 1986, chegando a tipificar crimes e a estabelecer penas para os
infratores dos procedimentos administrativos de contratação4. Essa rigidez foi
posteriormente reduzida na Lei Federal nº 8.883/94, mas o detalhamento da
matéria permaneceu elevado.
Como veremos, os momentos de mudança da legislação sobre licitações coincidem
com transformações nos padrões de concentração de vitórias, indicando uma forte
influência do arcabouço institucional sobre a dinâmica da política. Esse
fenômeno já estava presente no caso do Rio de Janeiro analisado por Marques
(1999a; 2000), mas as informações sobre São Paulo confirmam a sua ocorrência.
Um último esclarecimento diz respeito à utilização, neste trabalho, da
corrupção como conceito. Em termos conceituais, queremos diferenciar três
processos, usualmente considerados genericamente como corrupção, embora nos
casos empíricos eles possam estar associados ou ocorrerem de maneira
independente. A realização de licitações e contratos, resguardando o interesse
público, pressupõe que sejam preservados três elementos: prazo, qualidade e
preço. Portanto, caso um destes seja violado, em uma dada obra ou serviço, se
estará lesando o interesse público. A realização do processo de licitação
pressupõe que, através da competição entre as empresas por contratos com o
Estado, se estabeleçam as melhores condições para este último. Entretanto, caso
um funcionário oriente o processo de contratação, escolhendo uma empresa, não
necessariamente o interesse público estará sendo lesado, desde que o serviço
possa ser realizado no prazo, com boa qualidade e pelo preço justo. Neste caso,
o funcionário estará lesando o mercado de obras públicas e, mais
especificamente, as outras empresas que não puderam concorrer em igualdade de
condições. Embora para o senso comum esses dois procedimentos sejam
equivalentes à corrupção, entendemos que é necessário delimitar mais o conceito
de forma a circunscrever uma prática única. Assim, seguindo Pasquino (1993),
consideramos como corrupto o ato de um funcionário que viola o conjunto de seus
deveres, de forma ativa ou passiva, em troca de recompensa ou promessa de
recompensa material ou imaterial.
Como tem sido fartamente noticiado pela imprensa e pelo Ministério Público
Federal de São Paulo, ocorreram lesões ao mercado e ao Estado, assim como
corrupção no desenrolar da política de infra-estrutura urbana em São Paulo
durante o período estudado5. Como fenômeno, a corrupção se encontra imbricada
com diversas facetas da política e, em termos relacionais, é um dos tipos de
vínculo presente no setor. Apesar disso, do nosso ponto de vista, a corrupção
não encerra a política. O exame da política pública, portanto, não se reduz à
análise da corrupção e podemos estudar (e explicar) inúmeros processos,
inclusive os padrões de vitória de empreiteiras, sem nos referirmos a ela
diretamente. Nesse sentido, tratamos a corrupção como um dos tipos de vínculo
entre indivíduos, grupos e empresas na rede, incluindo-a nas entrevistas
realizadas. As informações sobre corrupção advindas das entrevistas permitiram
recompor uma das camadas da rede, a de corrupção, que se articulou com os
demais tipos de vínculo (políticos, pessoais e de trabalho) na reconstrução da
rede.
Empresas de Construção, Mercado Nacional e Mercado Local
As empresas privadas de construção representam um dos mais destacados setores
das empresas nacionais na economia brasileira, constituindo, para alguns
autores, um dos principais sustentáculos da chamada tríplice aliança entre o
capital nacional, o multinacional e o Estado, tripé que instaura e desenvolve o
capitalismo no Brasil (Lessa e Dain, 1982). Sua importância foi sendo
desenvolvida paulatinamente, desde o início do processo de contratação, pelo
Estado, de empresas privadas para a construção de obras e serviços de
engenharia na década de 40 (Camargos, 1993).
A consolidação histórica desse campo levou à construção de grandes empresas
capitalizadas e de padrão tecnológico altamente especializado até o início dos
anos 70, que tinham hegemonia sobre esse mercado em nível nacional, sendo
responsáveis por grande parte das obras dos setores de transportes e energia
durante o regime militar. No decorrer das décadas de 70 e 80, esse grupo se
internacionalizou, e outros conjuntos de empresas de menor porte passaram a
assumir o controle de mercados locais e menos intensivos em tecnologia, como as
obras de infra-estrutura urbana.
No que diz respeito à dinâmica recente do mercado brasileiro de obras públicas,
sua situação pode ser expressa pela posição das mais importantes empreiteiras
na economia nacional. Como já descrito em Marques (1999a; 2000), o número de
empreiteiras entre as maiores empresas privadas brasileiras manteve-se em um
patamar elevado entre meados dos anos 70 e a primeira metade da década de 80,
tendendo a cair continuamente a partir daí: dentre as 500 maiores empresas
brasileiras, segundo a revista Exame, as de construção eram 27 em 1975, 37 em
1984, 28 em 1989, 16 em 1996 e apenas 8 em 1999. A posição média das empresas
na lista também acompanha esse comportamento, embora, neste caso, a piora
aconteça antes. A posição média das oito empresas mais bem colocadas foi de:
63ª em 1975, 69ª em 1979, 74ª em 1984, 44ª em 1989, 168ª em 1996 e 240ª em
1999. A posição das líderes melhorou entre 1975 e o final da década de 80, mas
acompanhou a crise a partir de então: a posição média das três empresas mais
bem colocadas foi de 37ª em 1975, 27ª em 1979, 22ª em 1984, 16ª em 1989, 78ª em
1996 e, finalmente, 103ª em 1999.
As empresas vencedoras das licitações da SVP, na sua grande maioria, não fazem
parte desse seleto clube de empreiteiras de grande porte envolvidas com as
obras federais de construção pesada. A maior parte das empresas vencedoras é de
porte médio e pequeno e atua no Estado de São Paulo principalmente em obras de
infra-estrutura viária e de drenagem contratadas por prefeituras e pelo governo
do estado. Sua organização típica é de natureza familiar, mesmo nas líderes
locais de porte médio. Entretanto, assim como no caso das grandes empreiteiras
de construção pesada, são comuns os vínculos das empresas, mesmo aquelas de
porte médio, com os círculos políticos locais. O caso mais notório no cenário
paulista é o da família Penido, dona e controladora da empresa Serveng
Civilsan, uma das mais freqüentes vencedoras de licitações, importante
referência da elite política e econômica do Vale do Paraíba paulista, tendo
inclusive um de seus membros ocupado cargo de deputado federal.
Em Marques (2000), desenvolveu-se a hipótese de que o mercado de obras públicas
se estrutura de forma hierárquica em escalas distintas, cada uma integrando
redes de relações pessoais e institucionais diferentes, parcelas distintas da
classe política, circuitos de corrupção específicos e tipos de obras e empresas
diferentes. Por essa razão, podemos falar de empresas típicas do setor que,
como veremos, são as mais integradas nas redes de relações da comunidade e, no
caso das obras urbanas de infra-estrutura, são originárias de locais próximos à
cidade onde se executam as obras, apresentam porte médio e estrutura familiar
de gestão. Entretanto, invasões de firmas de escalas superiores são possíveis,
motivadas em especial por crises nos mercados de maior vulto, caracterizados
por obras de grande porte, mais intensivas em equipamentos e tecnologia, mais
concentradas espacialmente e, portanto, mais lucrativas para as empresas de
maior porte.
Como veremos, essas invasões ocorreram a partir do final dos anos 80 tanto nas
obras de saneamento no Rio de Janeiro, analisadas por Marques (2000), quanto
nas intervenções de infra-estrutura urbana, que serão analisadas nas próximas
seções. Na maior parte do período, entretanto, os vencedores de licitações de
infra-estrutura no âmbito local correspondem ao que denominamos de empresas do
setor - locais, de porte pequeno e médio, gestão pouco profissionalizada e
padrões intensos de relação com as redes da comunidade.
SVP, A POLÍTICA MUNICIPAL EM SÃO PAULO E SUAS POLÍTICAS
A pesquisa baseou-se em amplo levantamento de dados primários no Diário Oficial
do Município de São Paulo, sendo analisadas todas as contratações efetuadas
pela Secretaria Municipal de Vias Públicas com empresas privadas, entre 1978 e
1998. Além das contratações diretas da Secretaria, são cobertas pela pesquisa
as intervenções gerenciadas pela Empresa Municipal de Urbanização - EMURB,
extremamente importantes por representarem as maiores obras, executadas pelas
maiores empreiteiras, como será esclarecido ao longo do artigo. As contratações
totalizam 3.350 contratos, além de aditamentos, retificações e aprovações de
preços, vencidos por cerca de 350 empreiteiras, e os contratos somam R$ 8,5
bilhões (valores para dezembro de 1999)6.
Por não possuir receitas próprias e depender de repasses do orçamento
municipal, o volume de investimentos da Secretaria é muito variável ao longo do
período analisado, indicando as diferentes prioridades políticas dos
administradores municipais. Apesar disso, o valor médio (13%) de participação
dos gastos da Secretaria no orçamento municipal é bastante elevado, se
considerarmos que suas atividades se referem apenas a investimentos e não
envolvem gastos significativos com custeio, como nos casos das Secretarias de
Educação e Saúde. Em algumas administrações, como a de Paulo Maluf, a
participação média da SVP chegou a 18%, com investimentos de até 27% do
orçamento em 1993, cerca de R$ 2,5 bilhões. Em outros governos, como os de
Luiza Erundina e Mário Covas, as participações médias dos gastos não chegaram a
9%.
Uma análise detalhada dos investimentos da SVP e de seus condicionantes já foi
empreendida por nós em Marques e Bichir (2001a; 2001b; 2001c). Entretanto, de
forma a melhor situar o leitor com relação aos mais importantes condicionantes
dos investimentos, serão apresentados os principais padrões encontrados,
especialmente delimitados pela clivagem político-ideológica entre direita e
esquerda, que se mostrou estatisticamente significativa na explicação dos
investimentos da Secretaria7. Ao contrário do que se poderia esperar com base
no senso comum e em parcela da literatura especializada, não se encontrou
relação estatística significativa entre ciclos eleitorais e ciclos de
investimentos, e tampouco associação do volume de investimentos com a maior
disponibilidade de recursos no orçamento municipal (Marques e Bichir, 2001a).
Governos de direita apresentam um padrão de investimentos bastante
característico: concentrado em poucos contratos, de alto valor unitário,
aditados intensamente (muitas vezes acima do limite legal)8, vencidos
geralmente por empreiteiras de elevado capital médio, além de dispensas de
licitação de elevados valores. Em termos espaciais, a direita tende a investir
sistematicamente mais em áreas de alto padrão, habitadas pela população mais
bem inserida socialmente, reforçando, desse modo, a segregação socioespacial9.
Administrações de esquerda, por sua vez, apresentam investimentos mais
dispersos em obras pequenas e médias, realizadas por meio de contratos de menor
valor unitário, aditados menos intensamente, vencidos por empreiteiras de menor
capital médio. Em termos espaciais, os administradores de esquerda tendem a
privilegiar as áreas habitadas pelos grupos sociais menos favorecidos.
Além da clivagem político-ideológica, outro importante fator condicionante do
volume anual de investimentos se refere à presença das empresas privadas na
rede de relações da comunidade. Foram encontradas duas variáveis
estatisticamente relacionadas com os investimentos da SVP: a magnitude da
presença de empreiteiras na rede de cada período e a proximidade média dessas
empresas ao núcleo do poder decisório10. Esta descoberta sugere que a política
de infra-estrutura viária é fortemente estimulada pelas empresas do setor.
Estas se constituiriam em um tipo especial de "consumidor" da política, muito
diferente do cidadão que usa a infra-estrutura na cidade, embora as empresas se
situem do lado da oferta, se considerarmos a linha de produção das políticas.
Os resultados das próximas seções especificam este argumento.
Concentração Geral dos Contratos, Dinâmica Política e Regras Institucionais
A primeira dinâmica relativa às empresas nas obras da SVP diz respeito à
concentração das vitórias. Os investimentos da SVP apresentam um padrão
extremamente concentrado, semelhante ao observado no Rio de Janeiro no caso da
Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE. A maior parte deles é contratada
com algumas raras empresas que vencem alguns poucos contratos, de elevado valor
unitário. A maior vencedora alcançou um valor total de R$ 880 milhões,
aproximadamente, em um total de apenas dois contratos. Esta empresa, apesar de
representar somente 0,3% do universo de empresas, beneficiou-se de 10,3% do
total investido pela Secretaria. Os dez maiores vencedores, 2,8% do universo de
empresas, receberam 51,7% dos investimentos. Essa concentração de vitórias nas
mãos de poucas firmas é maior do que a observada no caso da CEDAE, em que a
principal empresa recebeu 8,5% do total investido, e as dez maiores 46,6%.
Contudo, a concentração de vitórias apresenta diferentes dinâmicas ao longo do
tempo, como podemos verificar no Gráfico_1, que mostra a participação do valor
total anual recebido por cada grupo de empresas: os 5%, 10% e 35% maiores
vencedores em cada ano, assim como os 50% menores vencedores. O balanço geral
do período mostra um aumento da proporção de investimentos recebidos pelos 5%
maiores vencedores, ao lado da redução dos recursos obtidos pelos menores (os
50% menores receberam frações ínfimas do total investido, não chegando a 10%).
Além disso, podemos notar a existência de dois períodos distintos na
concentração dos 5% maiores vencedores. Naquele que vai de 1978 a 1986,
observa-se uma pequena participação dessas empresas, ao contrário do que se
estende de 1987 a 1998. Em ambos os períodos ocorrem reduções da concentração
em administrações de esquerda - 1984 e 1985 e entre 1990 e 1991. A maior
concentração do segundo período pode ser creditada à realização dos contratos
da EMURB que, como já foi dito, representaram a entrada das grandes
empreiteiras de construção pesada no mercado local.
A diferença entre as proporções das maiores e menores vencedoras fica ainda
mais evidente no Gráfico_2. Neste, a área mais escura indica os valores obtidos
pelos 15% maiores vencedores em cada ano, e a área mais clara, entre a primeira
e a curva do total investido, representa o volume de recursos anuais vencidos
pelos 85% menores vencedores. Seguindo um fenômeno observado no caso da CEDAE,
também no caso dos investimentos da SVP, as pequenas empresas só conseguem
receber mais, relativamente, nos momentos de elevação dos investimentos totais
da Secretaria, quando os ganhos das maiores empresas já estão garantidos. Estas
acolhem, relativamente, os maiores investimentos e sempre têm uma proporção
elevada garantida de ganhos, confirmando a hipótese da estruturação hierárquica
do mercado de obras públicas já adiantada.
O comportamento anual da concentração ainda apresenta uma última dinâmica que
merece ser destacada. Paralelamente à elevação da concentração em valor ao
longo do tempo, já destacada e apresentada no Gráfico_1, tem ocorrido uma
redução da concentração em número de documentos vencidos por empresas
distintas. As informações disponíveis indicam que esse processo é produto, ao
menos em parte, das mudanças institucionais ocorridas no arcabouço jurídico que
regula as licitações.
O Gráfico_3, além de exibir as curvas de concentração referentes aos dois
universos estudados (São Paulo e Rio de Janeiro) e às duas políticas, de infra-
estrutura e de saneamento básico, mostra o comportamento anual comparativo do
índice de concentração de documentos, desenvolvido em Marques (2000), que
expressa a relação entre as licitações realizadas em um determinado ano e o
número de empresas vencedoras naquele ano, apontando para uma maior ou menor
dispersão dos contratos assinados, já descontado o efeito das grandes variações
anuais no número de vencedores e contratos. Pode-se perceber uma dinâmica muito
similar nas duas curvas a partir de 1986, que aponta para uma redução do número
de documentos vencidos (em média) por empresa por ano, indicando, por
conseguinte, uma dispersão das vitórias nos dois casos. É importante observar
que os momentos de maiores quedas nas curvas coincidem com a promulgação de
legislação federal sobre licitações, indicando que o fenômeno interveniente é
de natureza institucional. Apesar do aparente paradoxo entre essa tendência à
dispersão do número de documentos por empresas em um dado ano e a tendência à
concentração dos valores obtidos pelas maiores vencedoras, citada
anteriormente, esses dois fenômenos coexistem coerentemente, pois o fato de
mais empresas competirem por recursos e vencerem licitações não implica que
todas recebam a mesma proporção de investimento.
Maiores vencedores
Mas quem são os mais importantes vencedores das licitações da SVP? A Tabela_1
apresenta os valores totais e médios e o número de contratos obtidos pelas
quarenta maiores empresas, responsáveis por 84% do valor licitado pela
Secretaria no período11.
É interessante notar que um conjunto muito seleto dentre os maiores vencedores
celebrou contratos por intermédio da EMURB. São eles12: Andrade Gutierrez (MG),
CR Almeida (PR/RJ), O.A.S. (BA), CBPO (SP), Camargo Corrêa (SP), Constran (SP),
Cowan (MG) e Mendes Júnior (MG)13. Algumas destas empresas, como a Andrade
Gutierrez, a Camargo Corrêa, a CR Almeida e a Cowan, só foram contratadas pela
EMURB (não obtiveram nenhum outro contrato com a Secretaria) para a realização
de grandes obras, com grande impacto sobre a cidade de São Paulo, como a
construção da Avenida Jacú-Pêssego (CR Almeida e Cowan), o túnel sob o Rio
Pinheiros (Camargo Corrêa) e o minianel viário (Andrade Gutierrez). Esses dados
reforçam a impressão de que a EMURB foi sempre utilizada para a realização das
maiores obras, que necessitavam de agilidade operacional, através de empresas
de grande porte, típicas do mercado de obras públicas nacional. Essas empresas
efetuaram contratos geralmente em administrações de direita, mais
especificamente nos governos Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta.
As duas outras empresas que figuram entre as dez maiores vencedoras em todo o
período, a Serveng Civilsan (SP) e a Firpavi (SP), apresentam um padrão
distinto de vitórias e típico das empresas do setor. Elas venceram vários
contratos com a Secretaria, dispersos ao longo do tempo, para a realização de
obras menores e mais espalhadas pela cidade. A Serveng Civilsan, vencedora de
contratos em várias administrações, realizou inúmeras pequenas obras de
pavimentação em diversos locais da cidade, além de pequenos trabalhos de
drenagem e contenção de taludes, ao lado de outros de maior porte, como as
canalizações dos córregos Pirajussara e Jaguaré. Já a Firpavi, contratada em
vários governos, realizou especialmente pavimentações encomendadas por
diferentes Administrações Regionais do Município de São Paulo, além de algumas
obras de drenagem, especialmente construção e reforma de galerias de águas
pluviais.
As demais empresas da Tabela_1 seguem esse padrão disperso ao longo do tempo,
com muitos contratos de valor não muito elevado, à exceção de duas que vencem
menos de dez contratos, com elevados valores médios - Construbase e Imobel. As
firmas que vencem de forma contínua ao longo do período são consideradas por
nós como típicas do setor de obras públicas locais. Embora elas não tenham
capital muito elevado, nem estejam próximas do núcleo de poder institucional,
são essas empresas que possuem a maior quantidade de vínculos e uma presença
mais constante nas redes da comunidade, estando ligadas principalmente a
técnicos e indivíduos pertencentes à burocracia do setor.
Podemos ainda destacar os locais de origem das empresas que mais venceram, o
que auxilia na compreensão da dinâmica do mercado de obras públicas em São
Paulo. Do início do período em estudo até a administração Jânio Quadros,
observa-se a presença quase exclusiva de firmas paulistas nas contratações,
seguidas das mineiras, que ganham menos proporcionalmente, conforme pode ser
observado na Tabela_2. Este conjunto de empresas apresenta pequeno porte e
detém pequeno capital médio, o que faz com que, no início do período analisado,
as empresas locais e mais especializadas vencessem a maior parte dos contratos.
Somente nas administrações Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta empresas de
outros estados vencem contratos, especialmente as mineiras, baianas e cariocas,
de maior porte e capital médio, confirmando uma invasão no setor local de
infra-estrutura viária por empresas nacionais a partir da segunda metade dos
anos 80. Essas maiores são exatamente aquelas contratadas pela EMURB para a
realização das obras de grande impacto sobre a cidade.
O Gráfico_4 complementa essa informação, indicando a elevação abrupta do
capital médio das empresas vencedoras a partir da administração Jânio Quadros,
com uma ligeira redução na administração Luiza Erundina, e novas elevações nas
administrações Paulo Maluf e Celso Pitta.
A rede da comunidade
Além da pesquisa primária relativa às contratações da Secretaria já referida,
realizamos uma série de entrevistas com técnicos do setor. Nestas foram
explorados os vínculos entre indivíduos, grupos e empresas de forma a permitir
a reconstituição das redes de relações por governo14. Tais redes são
representáveis através de visualizações como sociogramas e escalas, além de
passíveis de análise quantitativa com estatísticas próprias. A análise que se
segue explora essa rede de maneira a verificar a influência de posições e
padrões de vínculo nas vitórias de empresas em licitações.
A Figura_1 apresenta o sociograma da rede da comunidade centrada na SVP durante
o governo Reynaldo de Barros. Na figura, os círculos representam indivíduos da
comunidade e os traços denotam as ligações entre os indivíduos, sendo que a sua
espessura corresponde à força dos vínculos15. Dado que a quantidade de nós e
relações se adensa nas administrações subseqüentes, não apresentaremos aqui os
sociogramas dos demais governos, uma vez que a visualização destes ficaria
prejudicada. Assim, todos os resultados apresentados nesta seção se baseiam em
análises estatísticas, e não em sociogramas ou outras formas de visualização,
sendo a Figura_1 apresentada apenas com fins ilustrativos.
Para analisarmos a influência do padrão de relacionamento no interior da rede
sobre o padrão de vitória das empreiteiras, somamos os valores ganhos por cada
empresa ao longo de cada governo e comparamos estes valores, em termos
estatísticos, com um conjunto de variáveis, diversas delas calculadas a partir
das redes de cada administração16.
Como o número de empresas distintas que ganham por governo é muito grande, mas
a maior parte vence uma proporção muito reduzida do total licitado,
restringimos a análise às empresas com um total de vitórias superior a R$ 20
milhões ou com mais de vinte contratos, o que nos deixou com um universo de 183
casos (empresas/governo). Para onze empresas/governo, não obtivemos informação
de capital, e para 31, não conseguimos informações que nos permitissem ligá-las
à rede, considerando todas as suas estatísticas da rede iguais a zero17. A
variável dependente da análise, portanto, é o valor total de contratos de cada
uma das maiores vencedoras em cada governo.
Tentamos submeter a exame uma série de variáveis que pudessem testar a
importância de diferentes fenômenos no funcionamento da permeabilidade do
Estado. Incluímos, primeiramente, uma variável relacionada à escala econômica
da empresa - o capital -, segundo os capitais registrados na Junta Comercial do
Estado de São Paulo, de forma a testar a importância do poder econômico no
padrão de intermediação de interesses presente na política. Em segundo lugar,
introduzimos a variável da inclinação político-ideológica do prefeito, de forma
a testar a existência de padrões diferenciados de permeabilidade entre esquerda
e direita, assim como a influência do ambiente político sobre as vitórias.
Além dessas, incluímos a quantidade de licitações por governo, medida pelo
número médio por governo de contratos licitados por ano, de forma a controlar o
volume de vitórias pela oferta diferenciada de licitações por governo, do mesmo
modo que uma variável relativa à concentração de vitórias das licitações em
cada governo, medida pela média em cada governo dos contratos por vencedor e
ano.
Por fim, construímos variáveis associadas especificamente às redes, por
governo, descritas em detalhes a seguir. Essas variáveis foram tratadas
estatisticamente de duas formas: um primeiro conjunto foi calculado
reconstruindo as redes com indivíduos e empresas privadas; um outro a partir
das redes com os indivíduos previamente aglutinados em grupos, cada um deles
com intensos vínculos internos e padrões similares de vínculos com outros
grupos18.
As variáveis relacionais incluíram inicialmente cinco estatísticas de
centralidade na rede - o grau (que mede a quantidade de vínculos primários de
um certo nó); o poder (que mede a quantidade de vínculos primários e
secundários de um determinado nó19); a proximidade (medida sintética que indica
a proximidade de um dado nó a todos os outros da rede); a intermediação (que
indica quantos caminhos passam necessariamente por um dado nó, dentre todos os
caminhos na rede); e a informação (que mede quantos caminhos passam por um dado
nó, sendo o caminho único ou não, dentre todos os caminhos da rede). O objetivo
do cálculo dessas variáveis era testar os diferentes efeitos da presença do
chamado poder posicional (Marques, 2000) - um tipo de poder derivado da
ocupação de posições na rede e da propriedade de padrões de vínculos
específicos -, que é negociado por empresas, indivíduos e grupos burocráticos
com os detentores do poder institucional, oriundo da investidura de cargo e do
poder econômico no desenrolar da política pública.
Além dessas informações relacionais, utilizamos variáveis extraídas da rede,
mas que apontam para características de proximidade direta com o núcleo do
poder institucional na política de cada governo - distância em passos do
prefeito, do secretário de Obras, do chefe de gabinete, do superintendente de
obras e do superintendente de projetos, todas medidas pelo menor caminho na
rede daquele governo20.
Análises de correlação simples indicaram que uma grande quantidade dessas
variáveis não se apresentava nem mesmo correlacionada com o volume de vitórias
por empresa e administração. Todas foram retiradas da análise21. Em primeiro
lugar, foram excluídas as variáveis relacionais calculadas a partir das redes
de indivíduos e empresas que não apresentaram nenhuma significância na
explicação do volume de recursos ganhos por empresa e administração22.
Dentre as variáveis relacionais (todas calculadas a partir das redes de grupos
e empresas), proximidade, informação e intermediação não apresentaram
significância e também foram abandonadas. Submetidas à análise semelhante,
todas as variáveis de distância de ocupantes de cargos demonstraram ser
relevantes. Entretanto, como todas as distâncias se mostraram correlacionadas,
optamos por manter a distância do prefeito, menos correlacionada com as demais
variáveis da análise multivariada (ver a seguir)23. Por fim, as variáveis
relativas à concentração de vitórias apresentaram correlação estatisticamente
significativa com o volume de recursos ganho por governo, e sinal negativo,
indicando que em anos de elevado número de contratos os valores ganhos pelas
empresas tendem a ser menores. Entretanto, essas variáveis são correlacionadas
com diversas outras da análise multivariada, o que nos fez abandoná-las.
Assim, apresentaram correlação com o volume de vitórias por governo e empresa e
foram introduzidas na análise multivariada as seguintes variáveis: se o governo
era de direita ou de esquerda; o capital da empresa; a distância do prefeito de
cada empresa na rede; o grau de cada empresa (a quantidade de vínculos
primários); e o poder de cada empresa (a quantidade de vínculos primários e
secundários)24. A Tabela_3 apresenta os resultados dos coeficientes e as
significâncias da explicação do padrão de distribuição de recursos por empresas
em cada governo25.
Como podemos ver, apresentaram significância estatística e coeficientes
positivos as variáveis inclinação ideológica do prefeito, capital das empresas
e as quantidades de vínculos primários e secundários de cada empresa em cada
governo. Além destas, tem significância a distância que separa cada empresa do
prefeito, em cada governo, mas o sinal, neste caso, é negativo. Este resultado
era previsto, pois conceitualmente estamos testando a importância da
proximidade, e a variável mede o seu inverso (a distância): quanto maior a
distância (e menor a proximidade), menor o volume de recursos ganhos por uma
dada empresa.
O primeiro elemento a destacar é a relevância da inclinação ideológica do
prefeito, que não se refere a um atributo das empresas, mas introduz o ambiente
político no estabelecimento do padrão de vitórias. Isso indica que a
permeabilidade e o padrão de intermediação de interesses diferem entre empresas
que se encontram em um governo de direita ou de esquerda. Como já afirmamos
anteriormente, esse elemento apresenta uma grande capacidade explicativa nas
mais variadas dimensões da política estudada, sugerindo que as características
das políticas de governos de direita e de esquerda encontradas por nós
expressam, na verdade, as preferências de políticas dos governantes em São
Paulo, em especial de direita, durante o período em tela26. Assim, se empresas
em completa igualdade de condições (com o mesmo capital, os mesmos vínculos e
posição na rede) estão presentes em um governo de esquerda e outro de direita,
há uma tendência de o valor das vitórias no governo de direita ser
significativamente superior27. Mais adiante, analisaremos o padrão de vitórias
em governos de esquerda e de direita separadamente, tentando determinar como
funciona cada padrão de intermediação.
Observemos agora o impacto dos atributos das empresas e de suas relações sobre
os padrões de vitória. Em primeiro lugar, apresentou relevância o capital das
empresas, indicando que nas obras de infra-estrutura urbana em São Paulo, em
período recente, o poder econômico e a escala das empresas são importantes para
a explicação do volume de vitórias obtido por elas. Vale destacar que, no caso
das políticas de saneamento no Rio de Janeiro (ver Marques, 1999a; 2000), os
capitais das empresas não eram relevantes para a explicação do conjunto das
vitórias, embora o fossem para as obras de valor mais elevado executadas no
final do período. Voltaremos a este ponto mais adiante.
Três variáveis relacionais apresentaram significância - quanto mais vínculos
primários e secundários uma empresa tiver, assim como quanto mais próximas do
núcleo do poder institucional as empresas estiverem, maiores serão seus volumes
de vitórias. Isto indica que tanto o poder posicional quanto o acesso ao poder
institucional são importantes para as empresas no mercado de infra-estrutura em
São Paulo, e quanto mais vínculos uma empresa tiver e mais próxima estiver do
prefeito na rede28, maior tenderá a ser o seu volume de contratos. Vale
observar que, embora estejamos tratando com duas variáveis relacionais, estas
apresentam relações diferentes com a rede.
O poder posicional, ao contrário do acesso ao poder institucional, está muito
mais ligado à história da rede e a um conjunto significativo de vínculos mais
antigos e não intencionais. O mesmo pode ser dito dentre as medidas de poder
posicional: das duas variáveis de quantidade de vínculos, a relacionada com
vínculos primários (grau) apresenta-se mais associada à história da rede, a
vínculos não intencionais e antigos, enquanto a relacionada com vínculos
secundários pode dizer respeito (embora não na maior parte das vezes) ao
estabelecimento de vínculos intencionais com indivíduos e grupos de grande
centralidade.
Esse resultado novamente distancia o caso aqui estudado daquele tratado em
Marques (2000), já que na experiência carioca os vínculos primários eram
importantes, mas estavam acompanhados de uma outra medida relacional - a
informação - que no caso paulistano não apresentou significância estatística.
Além disso, no caso carioca, a proximidade dos detentores de poder
institucional era importante apenas para empresas de grande porte.
Mas será que, considerando a importância da inclinação ideológica do prefeito
não apenas aqui, mas em toda a pesquisa, esse padrão geral é composto por
padrões diferentes em governos de esquerda e de direita? Como o número de casos
é razoável, dividimos o banco de dados e testamos as mesmas variáveis para
governos de direita e de esquerda, separadamente.
Quando distinguimos vitórias em governos de direita, quase todas as variáveis
anteriores permanecem significativas - capital, distância do prefeito e
vínculos secundários. Os vínculos primários não mais apresentaram
significância, e a inclinação ideológica foi retirada do modelo por motivos
óbvios. A Tabela_4 apresenta os resultados29.
Por outro lado, quando analisamos apenas governos de esquerda, encontramos um
padrão bastante diferente dos anteriores, como podemos ver na Tabela_430. A
única variável que continua a apresentar correlação significativa é o capital.
Isto indica, em primeiro lugar, que, em governos de esquerda, o poder
posicional (vínculos primários e secundários) e a proximidade dos detentores do
poder institucional (sejam eles prefeitos, secretários ou superintendentes) não
influenciam na construção dos padrões de vitória de empreiteiras em obras de
infra-estrutura urbana em São Paulo em período recente. Como essa comunidade de
política é tradicionalmente associada com a direita, e foi estruturada ao longo
de seus governos, podemos interpretar esse resultado como um aparente sucesso
dos governos de esquerda na neutralização da influência da rede nos processos
de licitação. Em segundo lugar, entretanto, os resultados apontam que, também
em governos de esquerda, o poder econômico e/ou o porte das empresas são
importantes na definição do volume de vitórias das empreiteiras. De fato, o
valor dos coeficientes da variável capital nas duas regressões sugere que o
efeito do poder econômico seja similar, mas levemente mais elevado em governos
de esquerda do que de direita.
Na política de saneamento do Rio de Janeiro, empresas de grande capital
apresentavam um padrão de intermediação e permeabilidade diferente das empresas
de pouco capital. Com relação à SVP, podemos afirmar que o capital tende a ser
maior entre os vencedores de governos de direita31, e que as empresas de grande
capital tendem a localizar-se mais próximas do secretário de Vias Públicas32.
Como a distância do secretário, para uma dada empresa, tende a ser menor em
governos de direita, testamos se a correlação entre capital e distância do
secretário persiste quando controlada por governos de direita/esquerda. Os
resultados mantêm-se quase sem alteração33, indicando que empresas de capital
elevado tendem a localizar-se mais próximas ao núcleo do poder institucional da
política em todas as administrações, mas que em governos de direita essa
distância tende a ser menor ainda.
CONCLUSÃO
O artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que tenta explicar os padrões
de vitória de empreiteiras em uma dada política pública urbana a partir das
redes de relações que ligam técnicos e burocratas, membros da classe política e
empreiteiras no interior de uma comunidade profissional.
Os resultados indicam, em primeiro lugar, que as vitórias tendem a se
concentrar em poucas empresas, que os mais importantes vencedores tendem a ter
uma parcela dos recursos garantida, que empresas de grande porte,
principalmente, se fizeram presentes no mercado local de obras públicas em anos
recentes, e que o padrão de concentração, apesar de recentemente ter se elevado
em termos de valores ganhos, sofre uma importante influência do quadro legal
que regula as licitações.
Além disso, partindo da reconstituição das redes de relações da comunidade de
política por governo, o artigo mostra que o volume de vitórias das grandes
empreiteiras em licitações tende a ser maior em governos de direita, assim como
tende a ser maior o número de vitórias das empresas de maior capital. As
posições das empresas na rede também influenciam seus volumes de vitórias e
empresas com mais vínculos primários e secundários, mais próximas do prefeito e
do secretário de Vias Públicas, tendem a obter volumes mais elevados de
recursos. Esse efeito se mantém praticamente idêntico quando analisamos
isoladamente os governos de direita, mas em governos de esquerda a única
variável que tende a influenciar positivamente o volume de vitórias é o capital
das empresas.
Em termos mais analíticos, a permeabilidade do Estado presente nas políticas da
SVP de São Paulo está baseada em três tipos de poder - econômico, posicional e
institucional (ver Marques, 2000). Para o conjunto dos governos assim como para
governos de direita, as empresas que dispõem desses três poderes tendem a
vencer mais. Em governos de esquerda, os poderes institucional e posicional não
explicam o padrão de vitória. Aparentemente, os governos de esquerda do período
foram bem-sucedidos não só em vetar o acesso das empresas ao poder
institucional (como apresentado no discurso "nativo" dessas administrações),
como também em neutralizar o efeito do poder posicional da rede da política,
muito fortemente associada às administrações de direita e a seus gestores. O
artigo confirma, portanto, a importância da clivagem esquerda/direita para a
definição dos conteúdos das políticas, já destacada em Marques e Bichir
(2001a), assim como dos procedimentos para sua implementação. Parte da
explicação das diferenças na permeabilidade do Estado, por conseguinte, é
originária do campo político. Vale destacar, entretanto, que mesmo quando a
rede influencia o volume de vitórias - para as empresas vencedoras em governos
de direita -, as variáveis relacionais que se mostraram importantes não são
portadoras da história e da estrutura da rede, no sentido da permeabilidade
conceituada em Marques (2000)34.
Em termos comparativos, a rede, entendida como estruturação do conjunto de
vínculos de inúmeros tipos estabelecido ao longo da vida dos indivíduos e das
organizações, é menos central na permeabilidade da SVP do que se havia mostrado
no caso da CEDAE. Na política de saneamento carioca, o padrão de vitórias não
dependia do poder econômico, nem do poder institucional, mas de determinadas
formas de poder posicional. Apenas para as empresas de grande porte que
"invadiram" o mercado local a partir do final dos anos 80, o poder
institucional importava.
Com base na comparação com esse padrão carioca, gostaríamos de acrescentar um
elemento institucional na explicação da permeabilidade, já presente, mas muito
pouco explícito, em Marques (idem). As informações apresentadas aqui indicam
que agências de tipos diferentes geram (e, em parte, são geradas por) redes de
tipos e características distintos. Além disso, entretanto, a importância das
redes de relações (e do poder posicional) no desenrolar da política parece ser
muito distinta em agências com desenhos diferentes. Embora o número de estudos
sobre organizações e redes ainda seja pequeno, tudo indica que em uma agência
insulada e horizontalizada como a CEDAE, tanto políticos quanto empresas
privadas necessitam adquirir poder posicional para chegar a seus objetivos -
administrar e ganhar contratos. A importância atribuída ao poder posicional
nesse caso é elevada, fato que se expressa inclusive no status da burocracia.
Em uma agência pouco institucionalizada e escassamente insulada como a SVP, a
importância dos vínculos construídos paulatinamente e da estrutura da rede é
muito menor e, portanto, o valor das posições é muito mais baixo. Em um caso
como este, a permeabilidade está associada quase que exclusivamente aos poderes
econômico e institucional, assim como a dinâmicas relacionais derivadas destes.