O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira
A obra Os Donos do Poder - Formação do Patronato Político Brasileiro, de
Raymundo Faoro, traz como tema central uma explicação para as mazelas do Estado
e da nação brasileiros: a estrutura de poder patrimonialista estamental
plasmada historicamente pelo Estado português, posteriormente congelada,
transplantada para a colônia americana, reforçada pela transmigração da Corte
lusa no início do século XIX e transformada em padrão a partir do qual se
organizaram a Independência, o Império e a República no Brasil.
Uma imutabilidade histórica, que se constitui através de arranjos intimamente
relacionados nos campos econômico e sociopolítico. No primeiro, prevalece o
capitalismo politicamente orientado. O Estado não assume o papel de fiador e
mantenedor de uma ordem jurídica impessoal e universal que possibilite aos
agentes econômicos a calculabilidade (termo caro a Weber, amplamente usado por
Faoro) de suas ações e o livre desenvolvimento de suas potencialidades; ao
contrário, intervém, planeja e dirige o mais que pode a economia, tendo em
vista os interesses particulares do grupo que o controla, o estamento. Não há
"regras do jogo" estáveis na economia, pois elas atendem ao subjetivismo de
quem detém o poder político. Esse tipo de capitalismo adota do moderno
capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem lhe aceitar, todavia, a
"alma" - a racionalidade impessoal e legal-universal. Um arranjo tradicional,
mas maleável em face da modernidade capitalista, a qual aceita seletivamente,
mas sem vender a alma - conformada à racionalidade personalista e casuística. O
capitalismo não brota espontaneamente na sociedade, mas vicia-se no estímulo e
na tutela estatal: tire-se do capitalismo brasileiro o Estado e pouco ou nada
sobrará, adverte Faoro.
Quanto ao segundo aspecto, sociopolítico, Faoro pontua que a sociedade não se
organiza, senão subsidiariamente, em classes. A clivagem primordial dá-se entre
estamento burocrático e o restante da sociedade, incluindo neste "resto" as
camadas proprietárias ou não. Ao contrário da classe social, definida pela
agregação de interesses econômicos, determinados, em última instância, pelo
mercado, o estamento é uma camada não econômica. Para pertencer a ele, os
requisitos são basicamente sociais e políticos, embora, admitam Faoro e Weber,
aconteça freqüentemente uma coincidência ou superposição de status econômico e
social.
Para Faoro, uma sociedade de classes possui um potencial equalizador e
universalista, já uma do tipo estamental privilegia a desigualdade e o
particularismo. O estamento é uma camada organizada e definida politicamente
por suas relações com o Estado, e, socialmente, por seu modus vivendi
estilizado e exclusivista. Não se confunde com a burocracia: "burocrático" é
uma qualificação, não a substância; o cargo burocrático é um veículo para a
diferenciação social. E, por último, não é, adverte Faoro, uma "elite", nos
termos de Mosca, Pareto ou Michels, pois não é uma camada heterônoma e aberta,
surgida da "composição patrício-plebéia" que operou nos países capitalistas a
partir do século XIX. Ao contrário, é uma estrutura social autônoma e fechada,
típica de um "Estado patrício", em que não há uma circulação de baixo para
cima.
O instrumento de poder do estamento é o controle patrimonialista do Estado,
traduzido em um Estado centralizador e administrado em prol da camada político-
social que lhe infunde vida. Imbuído de uma racionalidade pré-moderna, o
patrimonialismo é intrinsecamente personalista, tendendo a desprezar a
distinção entre as esferas pública e privada. Em uma sociedade patrimonialista,
em que o particularismo e o poder pessoal reinam, o favoritismo é o meio por
excelência de ascensão social, e o sistema jurídico, lato sensu, englobando o
direito expresso e o direito aplicado, costuma exprimir e veicular o poder
particular e o privilégio, em detrimento da universalidade e da igualdade
formal-legal. O distanciamento do Estado dos interesses da nação reflete o
distanciamento do estamento dos interesses do restante da sociedade.
Patrimonialismo, estamento e capitalismo politicamente orientado, portanto, são
conceitos-chave e inter-relacionados na obra de Faoro. Em termos sociológicos,
coube a Max Weber desenvolver tais conceitos, sobre os quais discorrerei a
seguir e tentarei salientar a forma como Faoro os utilizou.
PATRIMONIALISMO E ESTAMENTO EM FAORO E WEBER
Patrimonialismo é a substantivação de um termo de origem adjetiva: patrimonial,
que qualifica e define um tipo específico de dominação. Sendo a dominação um
tipo específico de poder, representado por uma vontade do dominador que faz com
que os dominados ajam, em grau socialmente relevante, como se eles próprios
fossem portadores de tal vontade, o que importa, para Weber, mais que a
obediência real, é o sentido e o grau de sua aceitação como norma válida -
tanto pelos dominadores, que afirmam e acreditam ter autoridade para o mando,
quanto pelos dominados, que crêem nessa autoridade e interiorizam seu dever de
obediência.
Em razão da instrumentalidade que o estudo do poder exercido sob forma de
dominação apresenta na análise sociológica dos "regimes de governo", é
fundamental, para Weber, a caracterização da dominação social como um poder
fundado no mando/obediência psicossocialmente aceitos, distinto do tipo de
poder oriundo de "constelações de interesses" organizadas em torno do mercado.
Toda dominação, afirma Weber, se manifesta e funciona na forma de governo.
Portanto, todo regime de governo precisa do domínio, sua atuação depende de
poderes imperativos enfeixados nas mãos de alguém.
Dominação e administração, uma requer a outra, e ambas são necessárias sempre
que, minimamente: a) uma organização social se expanda; b) seus membros se
diferenciem em termos de poder; c) as tarefas administrativas se tornem
complexas. Daí a importância do estudo dos "meios administrativos". Estudar a
administração é estudar a dominação.
No estudo da administração, há que prestar atenção em três fatores intimamente
relacionados: a) como se organiza, isto é, como são distribuídos os poderes de
mando e obediência, tanto entre os dirigentes e seu pessoal administrativo
quanto entre o conjunto dirigentes-quadro administrativo, de um lado, e os
dominados em geral, de outro; b) que tipos específicos de tensões e lutas pelo
poder uma determinada administração engendra; e, finalmente, o mais importante
e influente deles, c) em que princípios últimos repousa a validez das relações
de autoridade - a legitimidade.
São três os princípios básicos dessa legitimidade, definidos por Weber no livro
Ensaios de Sociologia (1982): o burocrático-legal, o tradicional e o
carismático. Conforme a dominação se legitime - e se organize -
predominantemente (nas realidades sociais empíricas, os princípios de
legitimidade nunca atuam sozinhos, adverte) por meio de um dos tipos ela se
adjetiva: dominação burocrático-legal, tradicional ou carismática.
A dominação tradicional subdivide-se em patrimonial e feudal. A dominação
patrimonial tem sua legitimidade baseada em uma autoridade sacralizada por
existir desde tempos antigos, longínquos. Seu arquétipo é a autoridade
patriarcal. Por se espelhar no poder atávico, e, ao mesmo tempo, arbitrário e
compassivo do patriarca, manifesta-se de modo pessoal e instável, sujeita aos
caprichos e à subjetividade do dominador. A comunidade política, expandindo-se
a partir da comunidade doméstica, toma desta, por analogia, as formas e,
sobretudo, o espírito de "piedade"1 a unir dominantes e dominados.
O patrimonialismo, portanto, explica a fundamentação do poder político, ou
seja, como este se organiza e se legitima, e caracteriza-se pelo poder político
organizado através do poder arbitrário/pessoal do príncipe e legitimado pela
tradição. Tal legitimação pela tradição é ambivalente em relação à tendência
dos dirigentes ao arbítrio pessoal. A tradição, ao mesmo tempo que a ampara,
limita-a, ao reconhecer aos dominados certos direitos e imunidades sacralizados
pelo tempo e costumes. É a coexistência dinâmica e tensa daquilo que a autora
mexicana Gina Zabludovsky Kuper considera o cerne da estrutura patrimonial de
poder: o binômio tradição/arbítrio.
Se o arbítrio predomina, o patrimonialismo aproxima-se do que Weber classificou
de patrimonialismo sultanista, ou patriarcal, ou puro. Se prevalece a tradição,
o patrimonialismo tende a transformar-se em patrimonialismo estamental ou
descentralizado, no qual as relações entre o príncipe e o corpo administrativo
são mais estáveis e equalizadas. Para Weber, cada forma de dominação engendra
tensões e conflitos específicos na luta pelo poder. O equilíbrio tenso e
instável entre tradição e arbítrio e entre governantes centralizadores e quadro
administrativo descentralizador é característico dos tipos de dominação
tradicional - patrimonialismo e feudalismo. Neste último, ocorre, de forma tão
acentuada, uma "apropriação dos meios administrativos" por parte dos
"servidores", que acaba por gerar uma situação contratual entre estes e o
governante patrimonial, embora não de cunho moderno, formal-objetivo, mas
baseada na "honra" subjetiva das partes.
A diferenciação entre patrimonialismo e feudalismo, entretanto, nem sempre é
inequívoca. Zabludovsky (1989), por exemplo, destaca a ambigüidade que Weber
empresta ao termo patrimonialismo. Geralmente, diz a autora, Weber classifica-
o como subtipo de dominação tradicional, ao lado do feudalismo. Às vezes,
porém, patrimonialismo é tratado por Weber como sinônimo de dominação
tradicional, sendo o feudalismo um "modo" de patrimonialismo, identificado com
o "patrimonialismo estamental". Daí a diferenciação feita pela autora entre
patrimonialismo em sentido amplo (sinônimo de dominação tradicional, que
engloba o feudalismo) e patrimonialismo em sentido estrito (um modo de
dominação tradicional, ao lado do feudalismo).
Talvez essa ambigüidade se deva ao fato, para Weber, de o feudalismo possuir,
contraditoriamente, tanto elementos tipicamente patrimoniais - como o culto à
fidelidade pessoal ao governante - quanto características tipicamente
extrapatrimoniais - como a complexa e minuciosa estipulação contratual (mesmo
que não-escrita, costumeira) de direitos e deveres entre governantes e quadros
administrativos. No primeiro aspecto, configura-se como um tipo de
patrimonialismo, embora peculiar; no segundo, extrapola a dominação
patrimonial.
Note-se, porém, que Weber, inclusive nesse segundo aspecto, continua a
considerar o feudalismo uma variante do patrimonialismo, mesmo que um tanto
descaracterizado pelas relações não completamente patrimoniais entre príncipe e
barões:
"[...] como a relação feudal específica representa [...] uma relação
de tipo extrapatrimonial, encontra-se, nesse sentido, além das
fronteiras da estrutura patrimonial de dominação. Contudo, é fácil
advertir-se que, por outro lado, está tão fortemente condicionada por
sua própria atitude de devoção puramente pessoal - relação de piedade
- com respeito ao soberano, e oferece de tal maneira o caráter de uma
'solução' a um problema prático do domínio político de um soberano
sobre e por meio dos setores patrimoniais locais, que é tratada
sistematicamente de modo mais preciso como um 'caso-limite' extremo
de patrimonialismo" (Weber, 1992:809, tradução minha).
Duas observações podem ser feitas a partir do trecho acima: os barões feudais
fundam seu poder em seus domínios também na relação de "piedade" paterno-
filial; o patrimonialismo, para Weber, é definido, por um lado, pelo fundamento
da relação de dominação - no caso, a piedade -, mesmo que a relação em si
assuma contornos extrapatrimoniais, e, por outro, pela forma como se encaminha
a solução do problema de reinar sobre extensões territoriais consideráveis e
administrá-las. É nesse sentido que o feudalismo é um "caso particular" ou um
"caso-limite" de patrimonialismo e que a melhor forma de se trabalhar o
conceito weberiano de patrimonialismo é entendê-lo lato sensu como dominação
tradicional que abarca o feudalismo - ou patrimonialismo estamental.
O problema da manutenção do controle pessoal sobre territórios extensos é um
dilema típico do governante patrimonial, diante das dificuldades causadas pelas
distâncias e precariedade das comunicações e pelos focos de poder locais. Ele o
faz por intermédio de "servidores" nem sempre fiéis, que apresentam, não raro,
tendências centrífugas. Para o governante patrimonial, o servidor é, ao mesmo
tempo, uma "solução" para problemas administrativos e de consolidação do poder
central, e uma fonte de problemas e preocupações.
Outra fonte de dor-de-cabeça dos príncipes patrimoniais é o poder dos
"notáveis" locais, geralmente grandes proprietários rurais que desejam
preservar sua autonomia. No embate entre ambos, assinala Reinhard Bendix (1986:
279), normalmente, nem os proprietários rurais nem os governantes conseguem
prevalecer definitivamente. Aos primeiros, faltam união e independência
completa perante o poder central; aos segundos, os recursos privados
necessários ao exercício pleno das funções administrativas. O comum, então, são
compromissos que legitimam a autoridade dos notáveis locais sobre seus
arrendatários, na medida em que isto seja compatível com os interesses fiscais
e militares do governante.
Da existência desses conflitos, típicos da dominação patrimonialista, conclui-
se que a descentralização, em si, não basta para descaracterizar um arranjo
patrimonialista de poder. Os príncipes patrimoniais realmente desejam a
centralização, e agem nesse sentido, pois só assim podem exercer o poder de
modo pessoal. Porém, os resultados dos tipos de luta pelo poder que ocorrem no
patrimonialismo, descritos acima, nem sempre garantem que isso ocorra. Pode
haver um enfraquecimento do poder central sem que isso descaracterize o
patrimonialismo, que não é, necessariamente, sinônimo de poder centralizado.
E nem sempre uma eventual descentralização distingue o feudalismo. Feudalismo é
um caso extremo de descentralização, que chega a ponto de fragmentar, em parte,
o caráter patrimonial da relação governante/quadro administrativo, sem,
contudo, romper seu fundamento ideológico - a piedade - ou o caráter patriarcal
do próprio poder dos barões.
Isso é importante na análise das idéias de Faoro, que concebe nosso
patrimonialismo como "sufocante", "tutelador", "sobranceiro", "autônomo" e
outros adjetivos que apontam para um só aspecto: o poder emanando do centro.
Para corroborar sua tese, Faoro, então, "torce" às vezes a história brasileira.
Admite momentos e tendências centrífugos, mas estes são invariavelmente
derrotados e/ou permanecem secundários. Assim, a Guarda Nacional, por exemplo,
é entendida como um "agente da política central". Ora, se a Guarda Nacional
foi, de fato, instrumento do governo regencial e imperial para implantação e
manutenção da ordem estatal, foi, ao mesmo tempo e na mesma proporção,
expressão e reforço do poderio do patriciado rural. E (também ao mesmo tempo)
expressão da incapacidade de os dois setores, governo e senhores rurais,
prevalecerem um sobre o outro, representando uma solução de compromisso, um
outro "caso típico" de descentralização ao lado do feudalismo. O que extrema
essa descentralização daquela presente no feudalismo é que ela, entre outros
motivos, por ser menos profunda que a descentralização feudal, não cria nos
potentados uma coesão social baseada na honra estamental. Entre outras coisas,
é a configuração em um estamento honorífico que diferencia senhores feudais de
meros "notáveis" rurais.
No amplo estudo tipológico que Weber faz do patrimonialismo, de forma alguma
há, entre os tipos extremos do sultanismo (ou patrimonialismo "puro", ou
patriarcal) e do feudalismo (ou patrimonialismo estamental), um salto abrupto
ou uma passagem automática, mas sim um amplo leque de composições de poder
específicas e constantemente tensas. Nessa zona de transição, pensamos,
encaixar-se-ia o patrimonialismo brasileiro - tomado em sentido amplo como
dominação tradicional: nem patrimonialismo patriarcal (ou "puro") nem
feudalismo, com uma camada de notáveis amparando-se na tradição para se
autonomizar perante o príncipe.
Faoro, porém, provavelmente temendo que a descentralização comprometa a noção
de patrimonialismo e caracterize a de feudalismo, prioriza a proeminência do
centralismo na tradição política brasileira. Sua recusa em admitir a
descentralização litúrgico-patrimonial como parte da tradição política
brasileira tem duas conseqüências: uma é a diminuição da importância histórica
do senhoriato rural no Brasil, expressão do poder de classes proprietárias, do
poder economicamente condicionado, prefiguração de uma classe social ligada ao
comércio internacional e não de um estamento, embora seu poder local repousasse
em fundamentos patriarcais. A outra é um tipo de crítica à sua teoria que se
equivoca quanto ao conceito weberiano de patrimonialismo ao pretender negar a
presença deste no Brasil, apresentando situações históricas, realmente
flagrantes, de incapacidade e fraqueza do governo central diante de grupos
privados poderosos. Para a teoria de Faoro, isso pode representar problemas,
por esse motivo ele minimiza ou omite tais situações. Em termos estritamente
weberianos, contudo, a incapacidade ou fraqueza do poder central não
desqualifica, em absoluto, uma caracterização patrimonialista do poder no
Brasil2.
Convém lembrar que outro traço do patrimonialismo, além da descentralização, é
a ineficiência governamental. Weber, ao tratar das dificuldades históricas dos
príncipes patrimoniais persas e chineses de impor aos grandes comerciantes a
cunhagem oficial de moedas, comenta que este exemplo "expressa [...] o alcance
extensivo e não intensivo da administração patrimonial" (1992:842). Tal
"alcance extensivo" da administração patrimonial é uma característica peculiar
e contraditória, que costuma acompanhar vários arranjos políticos
patrimonialistas: o fato de o governo central ser, ao mesmo tempo, onipresente
e fraco. Weber exemplifica ao analisar o sistema fiscal do antigo império
patrimonial chinês e salientar que, de toda massa de impostos suportados pelas
famílias e aldeias camponesas, apenas uma fatia chegava à Corte do imperador, o
restante era dissipado (legal e, principalmente, ilegalmente) ao longo da
hierarquia dos funcionários, a despeito de toda vigilância. Entretanto, lembra,
tal estrutura patrimonial perdurou durante séculos, em um equilíbrio tenso
entre o comando patrimonial vindo de cima e o contrapeso dos funcionários e dos
grupos de interesse locais e familiares.
Ou seja, os fundamentos personalistas do poder, a falta de uma esfera pública
contraposta à privada, a racionalidade subjetiva e casuística do sistema
jurídico, a irracionalidade do sistema fiscal, a não-profissionalização e a
tendência intrínseca à corrupção do quadro administrativo, tudo isso contribui
para tornar a eficiência governamental altamente problemática no
patrimonialismo, especialmente em comparação à eficiência técnica e
administrativa que Weber vê em um sistema de poder racional-legal-burocrático.
E como tal eficiência é um dos atributos básicos do capitalismo moderno, todos
esses fatores mencionados funcionam, também, como um obstáculo à constituição
deste em sociedades patrimoniais.
Como vimos, Weber considera que o patrimonialismo, em sua versão
tradicionalista e extremamente descentralizada, costuma desenvolver um corpo
social que, se lhe é característico, também lhe é contraditório, pois trabalha
quase sempre contra o poder pessoal arbitrário do governante. Esse corpo social
é o estamento feudal.
O conceito que se contrapõe ao de estamento e, ao mesmo tempo, o baliza é o de
"classe". Como foi visto, um estamento é, essencialmente, um grupo social
definido por critérios calcados em modelos de status social e não por critérios
puramente econômicos, como uma classe3. Inicialmente, Stand (estamento, em
alemão)4 dizia respeito, na Alemanha imperial, basicamente, à hierarquia social
e aos níveis sociais mais elevados da população. Weber passa a empregar o termo
para designar qualquer grupo social cujas ações veiculassem uma subcultura, um
"estilo de vida" particular que fosse importante na compreensão das ações
sociais de seus membros. Tal utilização corresponde à necessidade de Weber de
explicar a formação de grupos sociais e suas ações coletivas não só pela
economia, mas também por suas crenças. Segundo Reinhard Bendix, o objetivo de
Weber era formular um conceito que abrangesse a influência das idéias sobre a
formação de grupos, sem perder de vista as condições econômicas5.
O esquema de grupos sociais formados tanto por aquilo que Weber chama "idéias"
- crenças de origem não econômicas - quanto por "interesses" - determinantes
econômicos - será consubstanciado na relação entre estamentos e religião.
Estudando três grandes sistemas religiosos - hinduísmo-budismo, confucionismo-
taoísmo e judaísmo-cristianismo -, Weber destaca, na configuração de todos, a
importância de estamentos de líderes religiosos. Ele pretende, assim, avaliar
não só como cada doutrina religiosa influencia a vida prática dos homens, isto
é, sua conduta econômica, mas também estudar como as religiões tomaram rumos
específicos de racionalizar a relação entre o humano e o divino em resposta aos
interesses concretos dos líderes religiosos, e também de seus seguidores, cujas
aspirações eles deviam sempre levar em conta ao erigir o sistema de fé. Ou
seja, idéias, realidade econômica e interesses materiais, todos se
influenciando reciprocamente, sem que sejam aprioristicamente determinantes uns
ou outros.
Uma sociedade estamental é uma "ordem de status" baseada em "prestígio social"
para qualificar positiva ou negativamente os grupos sociais. Os grupos
positivamente qualificados costumam manter um estilo de vida que desvalora o
trabalho físico, o esforço premeditado e contínuo, o interesse lucrativo, e
buscam, através de monopólios sociais e econômicos, a manutenção de um modus
vivendi exclusivo, diferenciado, traduzido em privilégios de consumo. A razão
de ser dos estamentos, portanto, é a desigualdade calcada na diferenciação da
honra pessoal, no exclusivismo social e na ostentação do consumo.
Essa noção essencial de estamento como um grupo definido por critérios
basicamente sociais, em vez de econômicos, e que tem como premissa a
diferenciação e o exclusivismo sociais, está presente em Faoro. Entretanto,
enquanto Weber pensa sempre no plural, em estamentos, pois vários grupos
sociais podem se estamentalizar, positiva ou negativamente, Faoro usa quase
sempre o singular, tão singular que muitas vezes vem desadjetivado: o estamento
- e ponto final. O estamento, para Faoro, são os donos do poder, o patronato
político brasileiro.
Se a estratificação social por estamentos se distingue daquela por classes pelo
fato de promover uma diferenciação entre indivíduos baseada não em critérios
puramente econômicos, mas de status social, o estamento, então, é um tipo de
grupo social e não um grupo social, havendo estamentos positiva e negativamente
qualificados em termos sociais. A insistência de Faoro em falar do estamento no
Brasil seria como se Marx falasse da classe, em lugar de mencionar a classe
burguesa ou a classe proletária.
Além disso, na combinação dos conceitos de patrimonialismo e estamento - o
patrimonialismo estamental -, Faoro afasta-se de Weber. Para o sociólogo
alemão, patrimonialismo estamental é um tipo radicalmente descentralizado de
patrimonialismo, no qual o poder do príncipe ombreia com o dos barões
territoriais, é sinônimo de um tipo de feudalismo - o ocidental -, o mais
típico e "puro", desenvolvido até as últimas conseqüências.
Enquanto o estamento de senhores feudais de Weber é um grupo que se origina do
patrimonialismo, mas que acaba, em parte, negando-o, o estamento político-
burocrático de Faoro tem origem no patrimonialismo e reforça-o. Isso porque o
estamento feudal de Weber é senhorial-territorial, atuando em uma economia não
ou pouco monetarizada, ligado intimamente ao feudalismo, o qual apresenta uma
burocratização reduzida. Já o de Faoro é um estamento burocrático constituído
"à ilharga do Estado" em um sistema socioeconômico dominado pelo comércio
mercantilista, que nada tem de feudal. O primeiro é vetor de descentralização
política; o segundo, de centralização.
Faoro tem plena consciência dessa "infidelidade" ao weberianismo. Considera-a,
entretanto, um ajustamento necessário à sua teoria - a heterodoxia à teoria
weberiana dever-se-ia a peculiaridades da América Ibérica, na qual "o
patrimonialismo se acomoda com uma particularidade, uma particularidade talvez
ibérica, talvez ibero-americana. Fora da ordem feudal, os estamentos cresceram
e se tornaram visíveis, sem a quebra - o que espantaria Max Weber - da ordem
patrimonial" (Faoro, 1993:26).
Faoro constrói, portanto, o seu estamento, ibero-americano, nem feudal nem
antipatrimonialista. Talvez por isso, por não enxergar no estamento um desafio
à ordem patrimonial - desafio que, repita-se, é parcial em Weber, para quem o
estamento feudal é e não é patrimonialista -, ele descuide de definir melhor as
relações, cruciais para Weber, entre estamento e governante patrimonial. Em Os
Donos do Poder, ora o príncipe patrimonial é um joguete nas mãos do estamento,
como no caso da deposição de D. Pedro II, ora permanece dócil e atado ao poder
pessoal do líder.
A ambivalência quanto a essa questão talvez se deva ao fato de a verdadeira
dicotomia apontada por Faoro verificar-se não entre quadro administrativo e
líder patrimonial - ambos patrimonialistas -, mas entre estes em conjunto e o
povo. No esquema explicativo de Faoro sobre o Brasil, ausência de povo é
presença constante. Abúlico, o povo brasileiro não constituiu uma sociedade
civil contraposta ao Estado. Confrontadas com uma fraqueza popular congênita,
as rusgas entre o estamento e o rei (ou o presidente da República) são, na
melhor das hipóteses, deixadas em segundo plano, quando não simplesmente
ignoradas.
Para Faoro, as liberdades públicas estribam-se nas liberdades econômicas e
somente uma estrutura social baseada em classes, expressão do domínio pleno da
economia pelo sistema de mercado, pode abrir reais possibilidades para um
Estado liberal-democrático. Caso contrário, tem-se o estamento, e o liberalismo
e a democracia são superficiais. "Os estamentos florescem, de modo natural, nas
sociedades em que o mercado não domina toda a economia, a sociedade feudal ou
patrimonial" (Faoro, 1998:23). Ou seja, somente nas sociedades modernas e
capitalistas é que o econômico sobrepuja e define o político e o social; nas
sociedades atrasadas e pré-capitalistas ocorre exatamente o contrário.
Colocando a questão nos termos: ou sociedade de classes ou de estamentos, Faoro
decide, portanto, pela última opção para caracterizar a história brasileira. Há
autores, entretanto, que negam a escolha tanto de uma como de outra opção para
explicar a sociedade brasileira. Estudaremos, a seguir, o argumento de alguns
deles, que, influenciados, de uma forma ou de outra, pela tradição weberiana e
a partir de um foco analítico na época do Império, estabelecem um diálogo,
direto ou indireto, com as idéias de Faoro sobre a preeminência do estamento e
do patrimonialismo na história brasileira.
PATRIMONIALISMO E ESTAMENTO NA SOCIOLOGIA WEBERIANA BRASILEIRA
Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Homens Livres na Ordem Escravocrata, nega a
idéia do Brasil tanto como uma sociedade estamental quanto de classes, a partir
de seu estudo sobre a vida de um contingente populacional paulista rural não-
escravo e não-proprietário no século passado. A razão para a negação dos
estamentos é a de que o critério básico de diferenciação social não era a
honra, mas o dinheiro, em um meio humano em que o latifúndio era definido pela
produção mercantil. A sociedade brasileira não era tradicional (estavam
ausentes a estabilidade, o contratualismo subjetivo, a solidariedade vertical e
a estereotipação e diferenciação sociais), mas instável, aberta ao
recrutamento, não estereotipada, anticonvencional, em que a vulgarização
cultural diminuía a distância social.
Nem por isso chegava a ser uma sociedade de classes. A escravidão impedia não
só os cativos, mas principalmente os homens livres e pobres, de verem-se
incluídos em uma relação social e econômica propriamente capitalista, por
estarem agregados à parte tradicional, não-dinâmica, não mercantil daquela
economia - a parte dinâmica e mercantil era justamente a produção escravista. A
agricultura mercantil escravista, que os fazia existir, não lhes conferia
utilidade social alguma e atava-os ao poder pessoal do latifundiário. Este,
entretanto, premido pelo caráter comercial de seu empreendimento, não raro
descurava de compromissos éticos de proteção tacitamente assumidos, jogando os
desfavorecidos em um mundo instável de anomia e violência sem expressão social.
O poder pessoal autárquico não se refletia exclusivamente no mundo dos pobres,
mas também determinava, entre os ricos, uma falta de coesão social que impedia
a percepção e o desenvolvimento de projetos coletivos: "ao ter o mundo reduzido
a dimensões pessoais, os alicerces mesmos de seu poder determinavam seus
limites: quase onipotentes porque fechados em seus pequenos reinos, por isto
mesmo mostram-se incapazes de transcendê-los" (Franco, 1976:218).
Trata-se de um universo intrinsecamente contraditório e ambíguo aquele descrito
por Franco. De um lado, tem-se a predominância de elementos impessoais na
produção mercantil; de outro, a produção direta de meios de vida e o poder
privado, que se manifesta inclusive na apropriação, por parte dos potentados
rurais, dos meios administrativos, fazendo com que o privado se prolongue na
vida pública e nesta mantenha a dominação social. Entretanto, salienta Franco,
apesar de "possuírem" o Estado, os latifundiários não conseguiam, por seus
horizontes limitados pelo personalismo, construir uma esfera pública.
Apesar de distintas, as duas práticas econômicas e sociais - produção direta de
meios de vida e produção de mercadorias - estão, na história do país,
simbioticamente ligadas e são, como Franco resume, constitutivas uma da outra.
Atraso e modernidade mutuamente alimentando-se, mas ao mesmo tempo impedindo
que a sociedade possa ser nitidamente caracterizada como "atrasada" ou
"moderna".
A negação do caráter estamental da sociedade brasileira, sem que isso defina
uma sociedade de classes, contrasta claramente com a tese de Faoro. Franco
nega, contudo, que o patriciado rural se tenha transformado em um estamento. A
meu ver, não é nesse grupo que está o estamento de Faoro, mas na burocracia
encastelada no Estado. De qualquer forma, Franco ressalta a fluidez, a abertura
e a não-estereotipação como características (não estamentais) presentes em
nossa sociedade, advindas de um arranjo social em que o poder econômico tinha,
sim, ao contrário do que nega Faoro, autonomia e força suficientes para
determiná-las. O que singularizava esse poderio econômico, porém, era o fato de
ele ser umbilicalmente ligado ao mercado externo e só subsidiariamente ao
interno. A modernidade, entendida como o mercado impessoal, só penetrava nossa
sociedade até determinado ponto e sob impulso externo.
No sentido de negação do estamento, tanto no setor latifundiário quanto na
burocracia, há também a obra de José Murilo de Carvalho (1980), que estuda a
burocracia imperial brasileira e seu papel decisivo na manutenção das
possessões lusas da América em um só Estado - monárquico, civil, estável e
conservador. Essa burocracia imperial - que "eram várias", assegura Carvalho -
não se constituía em estamento sequer em seus níveis mais altos, como o
Conselho de Estado, onde política e administração se fundiam, pois não era
aquele um Estado feudal ou mercantilista. (Faoro diria que era mercantilista,
sim.) Mas tampouco era moderna, no sentido weberiano. A precariedade funcional,
a escassa utilização de parâmetros meritocráticos de ascensão, a má
estruturação das carreiras, o personalismo, a bajulação, a cultura do favor,
todas estas características patrimoniais lhe negavam peremptoriamente tal
qualificação.
Também os latifundiários, segundo ele, não constituíam um estamento, à conta do
sistema escravista exportador. Não podiam viver ociosos dos serviços de
camponeses, disponibilizando-se para serviços militares/administrativos como a
elite inglesa. Eram homens de negócio que não tinham como se dedicar ao
governo.
Somada à não-coesão dos latifundiários, havia a tradição de um Estado coeso.
Coeso não significa todo-poderoso ou absolutamente eficiente. Mesmo com uma
grande capacidade de controle e aglutinação, o Estado imperial brasileiro não
era, garante Carvalho, autônomo perante a nação. Assim como a burocracia e a
elite que o conformaram, o Estado tinha a mesma ambigüidade em relação ao
latifúndio escravista, uma vez que "dependia profundamente da produção agrícola
de exportação e encontrava na necessidade da defesa dos interesses dessa
produção um sério limite a sua liberdade de ação" (Carvalho, 1980:126). A
questão, assevera o autor, é que o Brasil não era como Portugal, governado por
uma aliança entre estamento burocrático e comércio, mas uma economia de
produtores agrícolas escravistas e de pecuaristas - escravistas ou não. As
bases de poder aqui eram outras, havia um foco de poder independente no
latifúndio agrário, algo inexistente em Portugal desde a dinastia de Avis.
Essa ambigüidade foi resolvida, segundo Carvalho, mediante uma solução de
compromisso com o poder privado econômico, cujo exemplo era a Guarda Nacional.
A nomeação, pelo poder central, de seus membros, assim como dos delegados de
polícia - recrutados invariavelmente entre os poderosos locais -, pacificava a
conflituosidade local entre esses poderosos e solucionava o problema da
manutenção da ordem - pelo menos de um tipo de ordem - em um território tão
extenso, problema que o governo central certamente não daria conta sozinho. Os
conflitos eram, assim, processados na esfera pública, mas a preço de manter
privado o conteúdo do poder. As conseqüências, de efeitos duradouros na
história brasileira, eram a estabilidade política, por um lado, e a restrição à
cidadania e ao conteúdo público do poder, por outro, em um arranjo em que
governar significava reconhecer a estreiteza do poder estatal.
José Murilo de Carvalho, portanto, contesta a tese de Faoro, na medida em que
aponta o caráter não estamental da sociedade brasileira e, especialmente, da
burocracia imperial e também considera o patriciado rural como um foco
independente de poder. Todavia, no que se refere à questão do patrimonialismo,
Carvalho corrobora as teses (de sentido histórico, inclusive) de Faoro,
especialmente a do patrimonialismo como uma herança lusa reforçada pelo
peculiar processo de Independência brasileiro:
"O clientelismo e o patrimonialismo aportaram a estas plagas nas
caravelas lusas. Eram parte integral do Estado metropolitano. Aqui
não sofreram qualquer desafio. Pelo contrário. A colonização foi
empreendimento estatal, o rei se apossou das terras e as distribuía
aos vassalos, assim como distribuía capitanias e delegava funções de
governo. Portugal e seu rei mercador não tinham gente suficiente para
administrar as novas conquistas e foi necessário recorrer ao concurso
dos particulares. Estes, por sua vez, podendo obter mercês e
delegações da metrópole, preferiram manter a vinculação patrimonial a
rebelar-se. Nossos barões nunca enfrentaram o rei, salvo em alguns
ensaios como nas guerras dos senhores de engenho em Olinda contra os
mascates do Recife e dos paulistas contra os emboabas em Minas"
(Cordeiro e Couto, 2000:24).
A citação acima parece, à primeira vista, contraditória em relação a idéias do
próprio Carvalho, quando afirma que nossos barões jamais enfrentaram o rei,
sendo que anteriormente ele advertira que o Brasil não era Portugal, pois
haveria aqui um foco independente de poder, expresso pelo latifúndio. A
contradição, a meu ver, é apenas aparente. Em primeiro lugar, os latifundiários
constituírem um foco de poder é uma coisa; enfrentarem diretamente o rei é
outra, embora obviamente a autonomia e a solidez possam encaminhar eventuais
enfrentamentos. Porém, mais importante é perceber que a contradição, a
ambigüidade - mesmo que permanecendo o mais das vezes em estado latente - não
estão nas análises de José Murilo de Carvalho, mas na dinâmica do próprio
sistema que ele analisa, o patrimonialismo. Segundo Weber, tensões,
ambigüidades e contradições entre o poder central, o poder dos funcionários da
administração e o poder de potentados locais relativamente autônomos são
característicos da dominação patrimonialista, assim como a resolução de tais
tensões mediante soluções de compromisso entre tais focos de poder que envolvem
vantagens e garantias recíprocas.
Entretanto, não é apenas esse tipo de contradição que a dominação de tipo
patrimonial engendra, segundo a teoria de Weber. Já vimos que de suas entranhas
pode nascer, segundo o sociólogo alemão, uma organização de poder feudal-
estamental que, ao mesmo tempo, reforça e solapa o patrimonialismo puro. E pode
nascer, também, um arranjo de poder que, embora reforce, por um lado, o
patrimonialismo, tem afinidade com outro tipo ideal weberiano de dominação, o
racional-legal. Este arranjo de poder, contraditório em relação ao
patrimonialismo do qual emerge, é o sistema patrimonial-burocrático, muito bem
estudado por Fernando Uricoechea na obra O Minotauro Imperial (1978), que
caracteriza o sistema político imperial brasileiro a partir da contradição
básica entre um impulso modernizante e um contexto político-cultural, do qual
brotou esse próprio impulso - tradicionalista.
O Estado brasileiro tem, para Uricoechea, caráter modernizador, na medida em
que consegue, de alguma forma, mesmo compactuando com um estrato de
proprietários patriarcalistas, estender uma efetiva burocratização e
racionalização sobre a sociedade. Esse tipo de argumento parece, à primeira
vista, análogo às teorias de Antônio Paim, apresentadas especialmente na obra A
Querela do Estatismo (1998), na qual o autor busca chamar a atenção para a
dimensão modernizante - segundo ele, injustamente esquecida pela maioria dos
pesquisadores - do patrimonialismo na tradição política luso-brasileira. Esse
"patrimonialismo modernizante" começa com as reformas de Pombal, passa pelos
arquitetos da ordem imperial e chega, no século XX, ao Estado Novo e aos
governos militares.
De acordo com Paim, Faoro teve o mérito de, através do conceito de
patrimonialismo, ser o introdutor e divulgador de um fecundo esquema
interpretativo da história e da sociedade brasileiras. No entanto, pondera que
Faoro, talvez "ofuscado pela magnitude da própria descoberta", radicalizou sua
explicação, transformando o patrimonialismo no Brasil em um determinismo
histórico inafastável, além de traçar um juízo severo e injustamente negativo
tanto do patrimonialismo, ao não reconhecer a já citada faceta modernizadora do
mesmo6, quanto do liberalismo do Império - a acusação de elitismo é
extemporânea, afirma Paim, pois somente no fim do século XIX houve o processo
de democratização da idéia liberal no mundo como um todo.
Portanto, apesar da coincidência quanto ao reconhecimento de um impulso
modernizante no patrimonialismo, a diferença entre as visões de Paim e
Uricoechea está em que, para o primeiro, a modernização é um feito do
patrimonialismo estatal em si - que ele identifica como "autoritarismo
instrumental" - e que aproveita, mesmo que indiretamente, a toda a sociedade,
na medida em que a resgata de um exacerbado privatismo. Já para Uricoechea, a
modernização deu-se não pelo patrimonialismo, mas apesar dele, e o arranjo
político da burocracia patrimonial é instrumentalizado em proveito basicamente
de dois estratos da sociedade pactuantes entre si: um aparato administrativo e
os grandes proprietários interessados em manter a ordem escravista - pacto cuja
origem não se esgota na causa citada por Bendix, qual seja, da impossibilidade
relativa tanto de um grupo prevalecer sobre outro, quanto de ser derrotado e/ou
cooptado, mas que tem como função primordial a necessidade básica para ambos de
manutenção da ordem social e do status quo diante da massa popular de
desprivilegiados.
Pode-se argumentar que Faoro já havia salientado o papel intrinsecamente
conservador, oligárquico e exclusivista do patrimonialismo, assim como a
tibieza do setor popular na história brasileira. A diferença básica, porém, é
que Faoro vê na burocracia imperial um estamento centralizador e mantenedor do
atraso e do patrimonialismo tradicionalista, enquanto, para Uricoechea, se tal
elite burocrático-patrimonial realmente favorecia a constrição social, indo ao
encontro do projeto dos latifundiários, ela também foi um vetor de
racionalização progressiva da esfera pública - um entendimento que se aproxima
mais das análises de José Murilo de Carvalho sobre a burocracia imperial.
Para Uricoechea, o enfraquecimento do sistema de poder do Império, que culmina
com o advento da República, e da instituição que o representava - e
representava o compromisso entre burocracia estatal e latifundiários, a Guarda
Nacional - deve-se ao processo concomitante de organização dos latifundiários
em moldes classistas e de transformação do Estado, cada vez mais, em espaço de
representação e disputa de interesse em lugar de esfera de solução de
compromisso tradicionalista, ou seja, o poder vai se legitimando cada vez mais
em moldes racional-burocráticos.
A presença de grupos sociais organizando-se e atuando politicamente em moldes
de representação e competição de interesses econômicos também é detectada por
Simon Schwartzman, que tem no conceito de patrimonialismo a ferramenta central
de seu modelo interpretativo, expresso na obra Bases do Autoritarismo
Brasileiro. Assim como Paim e Uricoechea, Schwartzman matiza o caráter
esmagador e estático do patrimonialismo faoriano - a quem critica diretamente
por isso. Entretanto, apesar de apresentar o patrimonialismo de maneira mais
benévola e menos negativa (citando, inclusive, a advertência de Paim sobre
algumas de suas implicações racional-modernizantes), Schwartzman não nega sua
primazia e continuidade no desenvolvimento brasileiro. E, mais importante, não
nega que ambas estejam relacionadas ao padrão autoritário da política nacional.
É fundamental, para a construção de sua teoria, a análise do que ele denomina
"padrão de colonização portuguesa" que se implantou no Brasil. Tal padrão tem
como base a dependência externa (já experimentada por Portugal em relação à
Inglaterra, após a Restauração, e transferida ao Império recém-formado) para
associar, de forma aparentemente curiosa, fortalecimento e centralização
política, de um lado, e decadência econômica, de outro. Some-se a essa receita
a atenção ao problema regional e tem-se o diagnóstico de Schwartzman: regiões
brasileiras como o Nordeste, o Rio de Janeiro e Minas Gerais, que amargaram
decadência econômica, vivenciaram, a partir de suas elites, o fortalecimento do
patrimonialismo e do sistema político de cooptação autoritária de atores
sociais para compensar, extra-economicamente, tal decadência; já São Paulo,
região pobre e de tradição autonomista em face do poder central, não conheceu
um ciclo econômico de apogeu seguido de decadência, estabelecendo um sistema
político de representação classista de atores econômicos no qual o
patrimonialismo penetrava com muito menos força.
A questão é que, nacionalmente, o sistema político permaneceu basicamente nas
mãos das elites das regiões economicamente decadentes e politicamente
patrimonialistas, enquanto a região de economia mais dinâmica, São Paulo,
quedou marginalizada politicamente. Assim, Schwartzman, contrariando boa parte
da historiografia brasileira, considera, por exemplo, que a República Velha não
expressou o domínio da oligarquia cafeeira paulista sobre o Estado brasileiro,
mas o contrário. A coalizão de interesses entre as oligarquias rurais e o
Estado, que autores como Elisa Reis salientam, é efetiva, mas não explica
completamente, garante Schwartzman, o quadro do início da República - para tal,
é necessário levar em conta que a estrutura política brasileira,
predominantemente patrimonialista, tem como característica um esquema que
associa dependência externa, autonomia estatal interna e resolução política,
elitista e extramercado, dos problemas gerados pela decadência econômica, a
favor de certas regiões e em prejuízo de outras.
"O padrão de dependência externa [...] significou, assim, não apenas
que os recursos e a riqueza nacional eram canalizados para o
exterior, o que é [...] conceitualmente trivial, mas também que,
neste processo, o Estado patrimonial foi capaz de sobreviver ao
limitar as oportunidades de organização e manifestação política
independente por parte de grupos nacionais que detinham uma base
produtiva própria [...]. Confrontados com um setor político
dominante, que gozava do apoio de interesses econômicos estrangeiros
poderosos, os grupos nacionais podiam implorar, pressionar ou
reivindicar favores especiais e concessões dos detentores do poder
político, mas nunca poderiam aspirar a conquistá-lo e submetê-lo a
seus próprios fins. É por isso que a coalizão conservadora dos
cafeicultores com o governo federal não teve como resultado, a longo
prazo, a subordinação da política federal aos interesses do café, mas
ao contrário, a progressiva dependência dos interesses do café em
relação ao governo do Rio de Janeiro" (Schwartzman, 1988:101).
No artigo "Elites Agrárias, State-Buildinge Autoritarismo", espécie de resumo
de sua tese de doutorado, Elisa Reis (1982:339) corrobora a afirmativa de
Schwartzman de que a permeabilidade do Estado aos interesses rurais-
oligárquicos - e somente a tais interesses e de nenhum outro grupo - configura,
em última análise, não o domínio, mas a submissão de grupos privados ao poder
do Estado. No entanto, o desenvolvimento de seu argumento7 acaba por contestar
o de Schwartzman, na medida em que lembra que os cafeicultores paulistas também
lançavam mão de fatores políticos para obter benefícios econômicos8.
Isso vai de encontro à afirmação de Schwartzman de que no Brasil "o
fortalecimento de estruturas políticas não se deu a partir da expansão
econômica de determinados setores, mas precisamente em função da decadência de
outros" (1988:99). A seguir-se a argumentação de Elisa Reis, tem-se um caso em
que o robustecimento de estruturas políticas se dá, sim, a partir da expansão
econômica de um setor, indicando que, se a correlação entre fortalecimento
político (patrimonial)/decadência econômica faz sentido, não subsiste, porém,
sozinha na vida nacional, nem tem validade explicativa plena. Elisa Reis
afirma, inclusive, que a oligarquia rural paulista da República Velha, com a
necessidade do atendimento de suas reivindicações, legitimou de tal forma o
poder central que abriu caminho para a modernização autoritária conduzida pelo
Estado pós-30.
"No Brasil, o papel das elites agrárias foi [...] contraditório:
defendendo a descentralização de poder sob o federalismo, elas
paradoxalmente contribuíram para concentrar a autoridade pública. Na
medida mesma em que [...] lograram sucesso em diluir a fronteira
entre as esferas pública e privada, elas contribuíram para a
centralização do poder. Tanto política quanto economicamente, os
fazendeiros atuaram de forma a conferir ao Estado o status de ator
político privilegiado. Fortalecendo o poder Executivo sobre o
Legislativo e o Judiciário, neutralizando a competição política,
exigindo a intervenção constante do Estado na economia, a dominação
oligárquico-rural abriu caminho para um Estado forte." (Reis, 1982:
345)9
De qualquer forma, apesar das diferenças, há um ponto básico comum que perpassa
as teorias de Schwartzman e Reis: a ausência de um encaminhamento tipicamente
burguês e classista do desenvolvimento nacional, baseado na representação de
interesses. Este ponto é, de certa forma, óbvio e inúmeros autores salientam-no
- inclusive os já citados aqui: José Murilo de Carvalho, Maria Sylvia de
Carvalho Franco, Fernando Uricoechea, para não falar do próprio Faoro. O que os
diferencia, porém, são as causas apontadas para explicar tal questão. No caso
de Schwartzman e Reis, o primeiro oferece como justificação o papel
politicamente marginalizado que a região portadora de um modelo de
desenvolvimento não baseado na cooptação autoritária patrimonialista tem
ocupado na história nacional; a segunda afirma que a modernização brasileira,
por opção dos atores políticos, excluiu o modelo liberal burguês e deu-se pela
via autoritária, de cima para baixo, em que o Estado é construído pela
coligação conservadora entre elites agrárias e setores político-burocráticos
que controlam o aparelho estatal.
As dificuldades de implantação no Brasil desse encaminhamento tipicamente
burguês e classista serão tema de estudo detalhado de um dos mais importantes
intelectuais brasileiros, Florestan Fernandes, que originalmente utiliza as
análises marxista e weberiana para tratar a questão. No livro A Revolução
Burguesa no Brasil (1976), Fernandes afirma que os grupos economicamente
dominantes no país estão condicionados a três características básicas. A
primeira, já denunciada por Faoro, é a fraqueza e dispersão histórica do setor
popular; a segunda é o que Fernandes chama heteronomia, um capitalismo de cunho
fortemente dependente dos centros capitalistas internacionais e associado a
eles; por fim, esses grupos fazem uma apropriação peculiar e ambígua das
ideologias políticas estrangeiras do liberalismo e da democracia que não se
reduz a imitações grotescas, mas também não absorve completamente tais
ideologias.
Dessa conjunção de fatores resulta o Brasil não possuir uma dinâmica de
classes. A heteronomia (a introjeção de valores e razões exógenos) conduzida
por forças sociais autóctones configura uma associação destas - os setores
industrial e comercial - com a oligarquia rural e com as burguesias dos países
centrais, e veicula, internamente, uma situação de superexploração capitalista
para compensar a adversidade da posição da burguesia interna como um sócio
menor do capitalismo internacional; por outro lado, a debilidade histórica de
um povo formado na condição escrava ou de profunda dependência pessoal e
submetido a tal grau de exploração impossibilita uma dinâmica de luta de
classes. Tudo isso faz das camadas proprietárias mais um estamento que
instrumentaliza o Estado do que propriamente uma burguesia. Esse estamento, em
um caminho inverso ao trilhado pela burguesia anglo-americana, se consolida
controlando o poder político e, a partir daí, estabelecendo a dominação
socioeconômica.
Este último aspecto é bastante próximo ao diagnóstico de Faoro (diretamente
inspirado em Weber) do capitalismo politicamente orientado. Entretanto,
Fernandes diverge de Faoro e, em alguns pontos, vai além, particularmente na
questão da apropriação interna das ideologias modernizadoras liberais e
democráticas e no resultado que tal apropriação terá em uma efetiva, porém
lenta e gradual, modernização do Brasil.
Faoro enxerga em tais impulsos externos um vetor de mudanças econômicas e
sociais, mas tanto os impulsos externos quanto as mudanças não conseguem tocar
a estrutura política de dominação, pois são operados pelo estamento, que
instrumentaliza, descaracteriza e domestica a agressividade inovadora das
ideologias alienígenas e das mudanças socioeconômicas internas. Já Fernandes
percebe em nosso liberalismo e em nossa democracia uma essência também
política, melhor dizendo, político-ideológica, que, embora limitada, desempenha
papel ambíguo diante da dominação política patrimonial - ao mesmo tempo que a
reforça, a deslegitima. Ele, por exemplo, encara o liberalismo no Brasil como
tendo, desde a Independência, uma funcionalidade importantíssima, isto é, de
ser o vetor de veleidades, ideologias e ações modernizantes e antiestamentais.
Na interpretação de Florestan Fernandes, nosso liberalismo tem validade
política não só no momento da constituição do Estado nacional. A questão é que
ele possui um campo socialmente restrito - só tem validade política efetiva
"entre os iguais", ou seja, entre o senhoriato -, que funciona,
concomitantemente, como construção, justificativa e reforço do poder desse
senhoriato em face do restante do povo. Esse senhoriato, assim, tira vantagem
tanto do moderno quanto do atraso, e veicula um tipo especial de democracia
restrita10.
De qualquer forma, o estamento, em Fernandes, não "deglute" simplesmente, como
em Faoro, a ideologia liberal e/ou democrática, filtrando novidades exógenas e
colocando-as a serviço de justificar uma dominação tradicional, mas estabelece
com ela uma relação dinâmica e contraditória em que ela é usada tanto a seu
favor, quanto contra, ou seja, tanto para manter quanto para solapar o atraso
da sociedade brasileira.
Outro autor que nega a predominância absoluta de valores pré-capitalistas em
nossa sociedade é Jessé de Souza, que critica as idéias de uma "sociologia da
inautenticidade" no Brasil. Faoro, junto com Sérgio Buarque de Holanda e
Roberto DaMatta, é, de acordo com Souza, um dos mais destacados representantes
dessa sociologia, cuja importância e ascendência são tão marcantes que
influenciam o senso comum e a imagem que o brasileiro tem de si, cuja
característica principal é enxergar o Brasil como uma alteridade atrasada e
patrimonialista em relação, especialmente, ao modelo norte-americano.
Faoro veicula a "versão institucionalista" dessa sociologia, afirma Souza,
consubstanciada na noção de patrimonialismo. Tendo como pano de fundo uma
perspectiva liberal clássica e mediante um uso estático e tendencialmente a-
histórico do conceito de patrimonialismo, Faoro esquematiza o desenvolvimento
ocidental e transforma o exemplo norte-americano - em que a sociedade se forma
antes do Estado e o florescimento das liberdades públicas e econômicas é
concomitante - em uma regra, quando na verdade é uma excepcionalidade do
desenvolvimento ocidental. O fato de os EUA terem formado a sociedade
anteriormente ao Estado e não terem experimentado uma dominação tradicional
transforma-o no grande parâmetro para caracterizar nosso subdesenvolvimento,
uma contraposição que cega autores como Faoro para outras alternativas de
desenvolvimento político e econômico a partir do Estado.
A força do exemplo norte-americano, transformando exceção em regra, desemboca,
segundo Souza, na crença de uma excepcionalidade paulista dentro da história
nacional. A defesa da "são-paulização" do Brasil como vetor do modelo americano
de desenvolvimento capitalista perpassa a "sociologia da inautenticidade" e
consolida-se na obra de Simon Schwartzman, cujo ponto central é a dicotomia
entre São Paulo, com seu modelo político de representação, e o restante do
Brasil, especialmente Nordeste, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do
Sul, com o modelo de cooptação baseado no patrimonialismo. São Paulo, por ser
capitania pobre e esquecida no período colonial, teria tido a sorte de se
livrar do abraço sufocante do patrimonialismo português e teria se configurado
como um desenvolvimento comparativamente mais igualitário. Essa noção,
desenvolvida por Schwartzman, já está implícita em Faoro.
Em Os Donos do Poder,o conceito de patrimonialismo estamental transmuda-se na
noção pura e simples de Estado interventor, acusa Souza. A presença ubíqua do
estamento configura um elemento de intencionalidade e de fundo moralista - e
empobrecedor - na teoria de Faoro, responsável pela própria força de
convencimento de sua explicação: nossas mazelas seriam obra de uma "elite má"
que controla o Estado. Assim, qualquer política estatal, mesmo de conteúdos e
intenções díspares ou até opostos, recebe a chancela de estamental, e o Estado,
como estimulador ou condutor da vida social, é, irremediavelmente, um mal em
si. "A grande oposição ideológica do livro será aquela entre uma sociedade
guiada e controlada pelo Estado, de cima, e as sociedades onde o Estado é um
fenômeno tardio e o autogoverno combina com o exercício das liberdades
econômicas" (Souza, 2000:172).
A crença liberal clássica do Estado como um amortecedor da vitalidade social
fica patente, segundo Souza, quando Faoro enxerga na transmigração da Corte
lusa em 1808 apenas o velho estamento sob novo disfarce, não percebendo a
verdadeira revolução política, econômica e social que aquele fato histórico
teria posto em marcha. É na análise dos desdobramentos desse momento histórico
tão importante que Souza, utilizando parcialmente o arsenal teórico de Gilberto
Freyre, especialmente a obra Sobrados e Mucambos, vai acentuar a "europeização"
do Brasil no século XIX como um processo de "modernização seletiva".
A modernização das sociedades capitalistas significa, para Souza, o processo
pelo qual os indivíduos passam a ter sua conduta social regulada internamente,
mediante a introjeção de regras de "civilidade", de imperativos de
autocontenção. São vários, de acordo com a sociedade em que ocorra, os caminhos
de construção da "civilidade". Seu impacto sobre elas não é uniforme nem se dá
ao mesmo tempo; ao contrário, sucede de maneira seletiva, por meio da
estratificação social - quer dizer, em cada país, é uma classe ideologicamente
hegemônica que define o que é "moderno" ou "civilizado". Portanto, não há o
Ocidente, mas vários.
Além de não perceber esse fato, de que o complexo político-cultural ocidental é
multiforme, a "sociologia da inautenticidade" é, para Souza, presa de um
"culturalismo atávico", isto é, não vincula os valores culturais às questões da
dinâmica institucional, que reproduz e consolida esses valores, e da
estratificação social, que explica por que determinados valores se tornam
dominantes em uma sociedade. As instituições e a estratificação social
brasileiras jamais foram, declara Souza, mera continuação de Portugal, nem
mesmo no início da colônia - o colono do Brasil, neto, filho ou mesmo nascido
em Portugal, não era aquele lusitano que tinha sua quinta nos arredores de
Lisboa. Valores não se transportam como a roupa do corpo, Souza escreve várias
vezes, e os homens não os impõem ao seu meio; ao contrário, os atores são
determinados pelo meio, reagindo, antes de tudo, a estímulos sociais, os quais
não controlam.
Defendendo, pois, a singularidade de uma civilização que se formou "reagindo"
ao seu contexto histórico particular, Souza afirma que houve, a partir de 1808,
uma revolução modernizadora em nosso país, e que, já a partir do século
passado, tem prevalecido apenas um código valorativo entre nós: o do
individualismo moral universal, que é a base cultural da modernidade ocidental.
Isso não quer dizer que o Brasil seja rico, moderno e democrático como os
países centrais do Ocidente, que não haja códigos valorativos concorrentes e
que o acesso a essa modernidade cultural seja igual para todas as classes e
indivíduos. Significa que
"[...] tende a ser considerado justo, legítimo ou valorável, no nosso
país, apenas as premissas, comportamentos, atitudes, leis, enfim,
projetos coletivos de toda sorte, que sejam justificáveis segundo as
normas que regem o código valorativo do individualismo moral
ocidental [...] o único discurso legítimo capaz de unir as vontades é
o discurso modernizador. Modernos são [...] os princípios do
individualismo moral" (idem:254).
Admitindo a tese freyriana do patriarcalismo como o elemento determinante da
sociedade brasileira colonial, Souza afirma que, com a Independência, os
valores personalistas do patriarcalismo escravocrata foram sendo gradualmente
sepultados. Aquela sociedade "difusamente oriental" em que os donos de terra e
escravos tudo podiam vai sendo ocidentalizada. Entretanto, é por conta de uma
característica dessa sociedade, apontada por Freyre em Casa-Grande &
Senzala, que surge a brecha para a ascensão social de um elemento "médio" -
tanto em termos econômicos quanto raciais, o mulato -, para este se afirmar e
ser um vetor de modernidade impessoal. Essa característica é a forma muçulmana
de escravidão, que, embora veicule uma atitude psíquica generalizada de
sadomasoquismo entre senhores e escravos, possibilita uma aproximação entre
ambos, particularmente sexual, e, portanto, uma superação pessoal da dureza da
condição escrava. Além disso, o tipo mouro de escravidão faz com que os lugares
sociais do patriarcalismo sejam funcionais e não essencialistas, ou seja, mais
importante que ser branco e homem é sentir e agir como branco e homem, o que
permite mulheres na função de patriarca ou filhos ilegítimos, geralmente de
senhores com escravas, tratados como legítimos herdeiros.
A modernização do país, com a constituição de um Estado nacional e de um
mercado incipiente em que mercadores e industriais europeus, sobretudo
ingleses, trazem nova mentalidade, abre espaço para que alguns mestiços
ascendam socialmente, vindo a participar da banda privilegiada da nova clivagem
social que se formava, não mais separando brancos e senhores, de um lado, e
negros e escravos, de outro, mas distinguindo entre quem partilha ou não
valores ocidentais. A segregação e a marginalização sociais continuam, mas em
outros parâmetros. Se antes de 1808 "branco" era quem funcionava como tal,
após, "branco" passa a ser quem é "ocidental", "civilizado". Em ambos os casos,
há um dado importante, traço da escravidão de tipo mouro: não importa tanto a
cor e/ou as características propriamente biológicas do indivíduo.
Assim, o Brasil, para Souza, é Ocidente, sim. É Ocidente porque uma classe
ideologicamente dominante incorpora o individualismo moral ocidental e
transforma-o não só em parâmetro preponderante na sociedade, mas também em
critério de diferenciação e exclusivismo social. Um Ocidente, como os outros,
sui generis, por causa da sua herança escravista, e seletivo na esfera da
estratificação social. Embora não faça, de forma alguma, juízo positivo da
desigualdade social, Souza argumenta que o Brasil é moderno mesmo com ela; o
problema é direcionar essa modernidade, já instalada entre nós, para o fim da
desigualdade, já que o modo como o país se tornou moderno veiculou sua
permanência.
Concordei com as seguintes idéias, basicamente interligadas, de Souza: 1) que a
modernidade ocidental apresenta várias particularidades importantes conforme o
local onde se desenvolva e instale; 2) que não há só um caminho para essa
modernidade, pois se nos EUA a sociedade civil se conformou antes do Estado,
isto não aconteceu em nenhum outro país, nem mesmo na Inglaterra, onde o
patrimonialismo dos Stuarts foi batido política e militarmente no século XVII,
que dirá na França, Japão, Alemanha, onde a via política e o Estado foram
fatores importantes de modernização; 3) que não se deve, portanto,
generalizadamente e a priori, envilecer a política e o Estado e enaltecer a
economia e a sociedade civil.
Entretanto, quanto à modernidade (específica) brasileira, Souza usa o enfoque
cultural dos valores sociais para defender tal conceito. O Brasil seria moderno
porque é culturalmente moderno, embora não de maneira uniforme. Ataca o
"culturalismo atávico" da sociologia da inautenticidade. Provavelmente seu
principal contraponto seja Sérgio Buarque de Holanda, que ele define como a
figura mais influente, se não o fundador, dessa sociologia, e que tem uma
posição essencialmente culturalista. Mas, ao aceitar o conceito de Freyre de
"escravidão moura" para explicar nosso escravismo, Souza parece cair nesse
mesmo culturalismo atávico que critica. Ele reitera que valores não cruzam
oceanos nem se transportam como a roupa do corpo. Então, como aquele colono
que, ao pisar na América, já não era o português das quintas lisboetas, pois já
estava em contexto diferente, lança mão de um modo escravista típico da cultura
muçulmana? (Uma civilização há tanto tempo enfraquecida na Ibéria, presente
apenas subterrânea e secundariamente.) E note-se que essa herança cultural da
escravidão muçulmana, para ele, permanece até o presente, tem a idade do
Brasil: "a seletividade [da modernização brasileira] tem um vínculo secular, de
quinhentos anos, com a escravidão muçulmana que se estabelece aqui" (idem:267).
O interessante é que o próprio Sérgio Buarque de Holanda (1995:53) (e Souza o
admite) também vincula a peculiaridade e a plasticidade de nosso escravismo - e
de nossa cultura como um todo - à influência muçulmana, responsável, aliás,
pelo europeísmo incompleto dos lusitanos. Nesse sentido, por que Sérgio Buarque
de Holanda é um culturalista atávico e Gilberto Freyre e Jessé de Souza não o
são?
Talvez Souza respondesse que a razão é dada pelo fato de ele, vinculando os
valores da cultura à dimensão institucional e à seletividade ditada pela
estratificação social, enxergar mudanças culturais no Brasil - apesar de a
"escravidão muçulmana" influenciar até hoje. Nisso, no afã de apresentar uma
revolução cultural, há outra impropriedade de sua teoria, ou melhor, um
exagero, na medida em que, na substituição do personalismo patriarcal pré-
moderno pelo individualismo moral burguês moderno, ele qualifica um processo de
mudança cultural lento e ainda incompleto como uma guinada brusca e definitiva.
É um exagero dizer que os valores do personalismo foram radicalmente
contestados no século XIX, especialmente pela ascensão social do "mulato
habilidoso", e que, já nessa época, "o vínculo de dominação passa a ser
impessoal por referir-se a valores inscritos dentro da lógica do funcionamento
das instituições fundamentais do mundo moderno, especialmente do mercado
capitalista" (Souza, 2000:261, ênfases no original).
O personalismo, se realmente sofreu um abalo com o desiderato moderno/
ocidental, não se tornou, de forma alguma, um valor secundário na vida
brasileira por conta de alguns mulatos conseguirem ascender socialmente. O
próprio Souza admite que essa ascensão era uma questão individual:
"[...] esse acesso das camadas desfavorecidas é individual[...]
indivíduos mestiços e mulatos tinham acesso a oportunidades efetivas
de ascensão social, mas não os mestiços ou mulatos como grupo [...]
isso acarretava uma 'cooptação' impessoal e objetiva do sistema
enquanto todo, na medida em que possibilitava o ingresso dos membros
mais capazes das classes subordinadas" (idem:262).
A questão é: como eram definidos, quais eram esses membros mais capazes? Por
critérios objetivos ou pela cultura do favor? Para Weber, a promoção de
indivíduos das classes subordinadas na escala social não configura, por si,
superação do personalismo de sentido patriarcal ou patrimonial, pelo contrário,
é uma atitude recorrente do poder central patrimonialista buscar diretamente na
camada social dos despossuídos os seus favoritos pessoais, já que estes
costumam ser bem mais fiéis que nobres e potentados. Não só o sistema racional-
burocrático, mas também o patrimonialista se caracterizam por uma elegibilidade
ampla de elementos dos estratos inferiores ao acesso social:
"[...] a burocracia, e também os funcionários puramente patrimoniais,
baseiam-se na 'nivelação' social, no sentido de que, em seu tipo
puro, só exigem capacidades pessoais - a primeira de caráter objetivo
e especializado, os segundos, de caráter puramente pessoal - e
desprezam toda diferenciação estamental" (Weber, 1992:819, tradução
minha).
Há que salientar que, em Weber, a racionalidade técnico-formal não sepulta a
aferição do valor pessoal, mas a transforma, na medida em que a submete a
critérios universais e objetivos de mensuração de eficiência, contrários aos
parâmetros particularistas e casuísticos da racionalidade material. Ou seja, o
valor pessoal ainda é a tônica - a grande diferença encontra-se entre critérios
particularistas e universalistas de sua aferição social. Há que definir,
portanto, se os mulatos eram "habilidosos" no sentido particularista ou
universalista. Souza afirma a segunda opção:
"[...] o conhecimento, a perícia, torna-se o novo elemento, que passa
a contar de forma crescente na definição da nova hierarquia social.
Nesse sentido, servindo de base para a introdução de um elemento
efetivamente democratizante, pondo de ponta-cabeça e redefinindo
revolucionariamente a questão do status inicial para as oportunidades
de mobilidade social na nova sociedade. Uma 'democratização' que
tinha como suporte o mulato habilidoso" (Souza, 2000:242, ênfases no
original).
Não é exatamente esse predomínio de qualidades pessoais para a ascensão social
aferíveis de modo formal e universal o que atestam, na sociedade brasileira de
ontem e hoje, Maria Sylvia de Carvalho Franco (que nega a sociedade de classes
justamente pelo predomínio do particularismo definido pelo latifúndio
autárquico), José Murilo de Carvalho (para quem a burocracia estatal imperial,
um dos espaços de ascensão do mulato bacharel de Freyre/Souza, era marcada pela
cultura do favor), Florestan Fernandes (que sublinha a prática das classes
dominantes de tirar vantagem tanto do moderno quanto do atraso, ou seja, da
dependência pessoal), Guillermo O'Donnell (que no artigo "Uma Outra
Institucionalização: América Latina e Alhures" assegura que o particularismo e
o clientelismo representam hoje, no Brasil e na América Latina, uma
institucionalização paralela que impede o aprofundamento democrático), para não
falar do próprio Faoro e de Sérgio Buarque de Holanda. Não é exatamente o que
se vê hoje, para qualquer canto ou setor que se olhe da sociedade brasileira,
urbanizada, industrial e capitalista, essas normas generalizantes de ascensão
social por critérios universalistas preponderarem - não que estejam ausentes,
mas dividem espaço e competem, corpo-a-corpo, com as normas (implícitas, muitas
vezes) da cultura do favor.
Jessé de Souza jungiu, erroneamente, o personalismo (ou melhor, o
particularismo) ao patriarcalismo despótico - daí, dessa arbitrariedade
patriarcal, o caráter difusamente oriental que ele viu no Brasil colonial - e
decretou, junto com o declínio do patriarcalismo havido com a Independência, o
golpe de morte no personalismo, sem notar a continuidade deste com o
patrimonialismo que se instauraria a partir de então.
Como ressalta Florestan Fernandes, no Brasil do século XIX, o antigo senhoriato
rural escravista colonial viu-se incumbido da tarefa de construir um Estado e
de negociar diretamente com o restante do mundo e foi nesse momento, e só a
partir dele, que começou a vigorar, em sentido estrito, o patrimonialismo entre
nós - juntamente, é certo, com princípios ideológicos liberais/burgueses, que
tinham vigência ambígua e limitavam o patrimonialismo, mas não o anulavam.
Patrimonialismo é um conceito referente ao poder estatal. É preciso haver um
Estado para haver patrimonialismo. Antes de 1808, patrimonialista, em sentido
estrito, era o Estado português; a sociedade brasileira era patriarcal, Estado
brasileiro não havia. Após essa data, o poder patriarcal certamente decai, pois
passa a existir um Estado e um mercado instilando suas lógicas próprias
naqueles "donos de pequenos mundos", mas essa decadência não veicula
necessariamente uma modernidade racional-burocrática, justamente porque o mesmo
destino não tem o personalismo. O enfraquecimento do patriarcalismo não
pressupõe, de forma alguma, que o patrimonialismo terá o mesmo destino, pelo
contrário, para Weber, o patrimonialismo, embora análogo ao patriarcalismo, no
sentido de que o poder político se legitima na relação pessoal de piedade,
representa uma superação deste. Souza não parece perceber isso, pois afirma que
o Estado imperial
"[...] foi também um 'locus' importante dessa nova modernidade
híbrida, já burguesa, mas ainda patriarcal, se bem que de um
patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na figura do
imperador pai de todos, e agora mais afastado portanto do
patriarcalismo familístico dominante na colônia" (ibidem).
Ora, um patriarcalismo sublimado e estilizado no Estado e em um chefe político
paternal é, precisamente, patrimonialismo. Admitir patrimonialismo, porém,
seria, para Souza, admitir atraso, o atraso, absoluto, unívoco - e o intuito de
sua teoria é justamente relativizar o atraso, assim como a modernidade.
Relativizar tanto no sentido de desabsolutizar quanto no de relacioná-lo a
conceitos definidos, discerníveis. Para ele, a noção de atraso, de não-
modernidade brasileira, veiculada por Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda
e Roberto DaMatta é algo que adquiriu a força de um axioma, vago, indefinido,
mas avassalador e que, além de não corresponder à realidade, tem conseqüências
deletérias sobre a auto-estima coletiva do brasileiro.
Outro autor que se recusa a absolutizar o atraso e, especialmente, a não-
ocidentalidade brasileira é Luiz Werneck Vianna. Para ele, a apropriação que
Faoro - e outros, como Schwartzman - faz da obra de Weber termina por advogar
que, para pôr fim à ordem neopatrimonialista brasileira, a dinâmica dos
interesses individuais, manifestados na sociedade civil, seria fundamental. A
sociedade, e não o Estado, seria o lugar da renovação. A principal crítica de
Werneck Vianna, então, é que a instância do interesse individual, em um
contexto não republicano, não cívico e antiestatal, não induz necessariamente a
um círculo virtuoso social. A história recente brasileira é, para ele, o melhor
exemplo. O interesse sem República e sem Estado "não veio a encantar o mundo
dos brasileiros, pondo-os em um faroeste idílico propício à livre-iniciativa e
à realização de trajetórias individuais venturosas" (Werneck Vianna, 1999:46).
A agenda republicana, portanto, é crucial para a efetiva democratização da
sociedade brasileira, uma democratização que não deve menosprezar o papel do
Estado, mas reformulá-lo, e que deve rever a avaliação histórica que apresenta
a herança ibérica de maneira unilateralmente negativa e termina por pedir a
superação do atraso pela liberação pura e simples do interesse individual.
"Nessa hora em que se esgotam as perspectivas de boa sociedade
contidas nas promessas feitas pelas interpretações hegemônicas sobre
o Brasil, em que cabia ao moderno, no 'mercado' político e no mercado
propriamente dito, dar passagem à liberdade e à igualdade, a relação
entre atraso e República pode apontar um recomeço. Em primeiro lugar,
porque os seus temas de fundo são o da ampliação da cidadania e o da
defesa da sociabilidade [...] em segundo, porque importa uma
reabertura da avaliação da nossa história [...] do que foi a nossa
Ibéria, certamente uma república de poucos, embora tenha se mostrado
apta à incorporação dos setores emergentes na sociedade brasileira,
como se verificava no imediato pré-64" (ibidem).
O ARGUMENTO DE FAORO E O ESTADO BRASILEIRO NOS ANOS 90
Na conjuntura político-ideológica dos anos 90, contudo, o que prevalece é,
inspirada, entre outras fontes, no patrimonialismo faoriano, a satanização do
Estado e a estratégia de reorganizá-lo e refundá-lo sobre bases pretensamente
"modernas", em que a categoria do "interesse individual" tem importância
fundamental.
O Estado brasileiro, patrimonialista, sufocador das forças produtivas
nacionais, é duramente atacado. O chamado neoliberalismo brasileiro dos anos 90
tem em comum com o liberalismo da República Velha e mesmo da Regência o fato de
ser essencialmente depurado de conteúdo democrático. Liberalismo, em sentido
estrito e em sua origem histórica, é bem diferente de democracia. A liberdade
dos indivíduos, no liberalismo clássico, é entendida fundamentalmente como
liberdade, perante o Estado, dos indivíduos proprietários. É a ideologia de
libertação de uma classe social, a burguesia, em face do Estado patrimonialista
aristocrático, absolutista e mercantilista. Já na democracia, a liberdade dos
indivíduos é interpretada como liberdade de todos, diante não só do Estado como
de outros indivíduos e grupos econômicos - neste último caso, postula-se a
liberdade individual mediante a redução da desigualdade socioeconômica, via
Estado.
Originalmente, os liberais burgueses eram opostos aos democratas. A fusão
histórica liberalismo/democracia entre o final do século XIX e início do XX dá-
se, principalmente, como resposta ao avultamento dos movimentos populares de
inspiração socialista e comunista, que lutavam pela liberdade através da
igualdade11. É significativo que, nas duas últimas décadas do século XX, o
arrefecimento do contraponto ideológico socialista/comunista para com a
liberal-democracia seja acompanhado de um esvaziamento do conteúdo democrático
e de um aumento do conteúdo liberal desse arranjo sociopolítico.
A aliança liberalismo/democracia, portanto, tem a ver com pressões sociais das
camadas populares. Como estas são fracas no Brasil, a associação do liberalismo
com a democracia e com o estabelecimento universal de direitos e garantias
fundamentais é, quando muito, uma mera promessa, "para depois que as coisas se
ajeitarem". O liberalismo, retomando a argumentação acima, segue, em linhas
gerais, o mesmo caminho tomado na República Velha e na Regência: é um bom
instrumento e uma boa justificativa para o domínio avassalador do poder privado
de oligarquias econômicas sobre a massa da população. À oligarquia rural do
regime pré-30 segue-se a oligarquia financeira do final do século: o despotismo
privado substituindo o estatal12.
Embora a explicação do liberalismo como máscara para o oligarquismo retire
suporte ideológico do livro de Faoro, nosso autor nunca deixou de ser um
crítico ferrenho do Estado brasileiro dos anos 90 e de apontar insistentemente
seu caráter farsesco, recorrente na história brasileira, de patrimonialismo
disfarçado de modernidade, utilizando a "modernidade" no que lhe interessa e
desprezando sua característica fundamental, ainda não implantada neste recanto
da América do Sul: o estabelecimento efetivo do Estado de direito, com seus
elementos de previsibilidade e calculabilidade e sua racionalidade formal.
Dessa forma, o que ocorre, argumenta ele, é uma modernização do país, que se
opõe à verdadeira modernidade e a recobre - na primeira, o benefício é auferido
apenas pelos setores dominantes; na segunda é que ocorre, como nos EUA e na
Europa Ocidental, uma revitalização de toda a sociedade, revitalização ausente
e/ou tolhida no Brasil.
O Brasil dos anos 90, afirma Faoro, vem sendo conduzido de forma patrimonial
por uma elite dissidente, porém conservadora, que desconhece a categoria
fundamental que é o Outro. Por não entender a alteridade, falta-lhe o
componente ético em sua conduta, pautada apenas pelo sonho de ter acesso, a
qualquer custo, aos padrões de consumo do Primeiro Mundo e pela defesa
egoística de seus privilégios. No Brasil, a construção da cidadania e a defesa
da coisa pública passam, necessariamente, pela anulação desses grupos.
Ironicamente, entretanto, são provavelmente tais grupos que se utilizam da
recepção (canhestra) da obra de Faoro para defender uma "redução" do Estado que
se configura, na prática, na redução de seu papel de distribuidor de renda e
promotor da inclusão social, pela venda (criminosa pelo método, não por ela, em
si) de suas empresas e pela colocação desse Estado à mercê dos rentistas
(nacionais e internacionais) que vivem de financiá-lo a juros assombrosos.
Embora a utilização do argumento faoriano seja, por um lado, distorcida,
considero que este tipo de recepção do argumento se deve também a elementos
nele presentes, especialmente a idéia de que uma sociedade de classes, com
pleno predomínio do mercado, é o fio condutor da democratização. Faoro parece
idealizar o potencial igualitário da sociedade de classes e do mercado e, ao
mesmo tempo, desconsiderar que, se o Estado no Brasil atuou basicamente em prol
da oligarquização, isto não quer dizer que não tenha sido, por vezes, vetor de
inclusão e desenvolvimento social e, mais importante, que nunca possa sê-lo.
Embora, na minha opinião, o grande vilão da história brasileira no argumento de
Faoro seja o estamento - os donos do poder -, este é apresentado tão imbricado
com o Estado que respinga para este último, o "instrumento de trabalho" desse
patronato, muito dessa vilania, o que acaba contribuindo para as críticas
rasteiras e indiscriminadas ao Estado que grassaram nos anos 90. Quanto ao
papel da sociedade estratificada em classes econômicas, está certo que a
dinâmica histórica dos países ricos ocidentais apresentou o Estado de direito e
a redução das desigualdades sociais após um processo que se iniciou com o
liberalismo burguês e suas liberdades burguesas, passou pelo estabelecimento de
classes populares que denunciavam a estreiteza do alcance dessa ordem e pela
pressão e incorporação dessas classes à nova ordem liberal/democrática e,
posteriormente, social/democrática. Entretanto, este foi um desenvolvimento
histórico particular, não necessariamente tem que se repetir em outra época ou
lugar. Se, no exemplo histórico, o estabelecimento de uma sociedade dominada
pelo econômico, em que o primado é do "interesse particular", desembocou na
democracia moderna, isto não quer dizer que esse amplo exemplo histórico nos
deva levar a implantar a democracia somente através da primazia do mercado e do
interesse particularista. Afirmar, como Faoro o faz, que na sociedade de
classes o poder invariavelmente se projeta de baixo para cima, é generalizar e
idealizar um caso histórico que poderia ter tido outro desfecho, contribuindo
para a fetichização do mercado que assolou a vida brasileira nos anos 90.