A linguagem do respeito: a experiência brasileira e o sentido da cidadania nas
democracias modernas
Este texto objetiva mostrar que a análise da reivindicação de respeito, ponto
central do discurso social e político do brasileiro pobre que mora nas cidades,
permite destacar uma dimensão primordial do sentido da cidadania democrática
nas sociedades modernas contemporâneas1. Os problemas de acesso à cidadania que
as camadas populares enfrentam no Brasil podem lançar uma nova luz sobre certas
formas da necessidade de reconhecimento manifestada nas sociedades do
hemisfério norte, parecendo, assim, oportuno integrar a contribuição das
pesquisas efetuadas nas sociedades do Sul aos debates contemporâneos sobre a
modernidade.
Há de fato três maneiras principais de tratar a relação entre a teoria social e
o conhecimento sociológico produzido a propósito das sociedades do Sul. A
primeira aplica indiferentemente a todos os conjuntos sociais os conceitos e os
paradigmas elaborados no estudo de algumas sociedades ocidentais,
principalmente, Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra, com eventuais
incursões por Canadá, Itália e países nórdicos. Esta é a abordagem dominante,
que leva, como se sabe, a um olhar etnocêntrico (ou, mais precisamente,
centrado na visão norte-americano-européia) sobre as sociedades do Sul. Esquece
que a teoria social foi concebida sobretudo a partir de uma reflexão sobre um
número reduzido de sociedades ocidentais. A segunda maneira contrapõe-se à
primeira; apóia-se na recusa do que se convencionou chamar de ''idéias
importadas'' em nome de uma teoria local, que seria a única apta a explicar a
realidade nacional. Ela é defendida pelos que consideram conveniente construir
uma teoria social específica para compreender os países da modernidade
periférica. O problema é que uma proposta com essas características
impossibilita qualquer intercâmbio entre pesquisadores de sociedades nacionais
diversas, uma vez que as isola em uma alteridade irredutível. O terceiro
enfoque é, a meu ver, o único possível para se chegar a construir um espaço de
debate que incorpore a diversidade das experiências nacionais. Ele pressupõe o
reconhecimento, por um lado, de que todas as sociedades possuem interesse
sociológico equivalente e, por outro, de que o saber sociológico produzido
sobre o Sul é capaz de fornecer elementos para a compreensão dos fatos e
processos observados no Norte. É neste sentido que gostaria de trazer aqui uma
contribuição, mesmo que limitada.
Mostrarei, primeiro, como é fundamental o anseio por respeito e a denúncia da
humilhação que se verifica nos meios populares urbanos no Brasil. Veremos como
esse anseio por respeito oferece, por contraste, elementos para sustentar
empiricamente a necessidade daquilo que o filósofo israelense Avishai Margalit
(1999) denominou de ''sociedade decente'', entendida como uma sociedade cujas
instituições não humilham seus membros. Examinarei, em seguida, a tensão entre
hierarquia e igualdade que, no citadino brasileiro pobre, se expressa nesse
anseio por respeito. Evocarei ainda algumas representações sociais e políticas
das populações consideradas, o que me leva a inquirir sobre a relação entre
vida moral e direito à proteção jurídica. Veremos, enfim, como a importância
concedida à moralidade apresenta interesse para as discussões contemporâneas da
sociologia do reconhecimento.
RESPEITO E HUMILHAÇÃO
A pregnância do raciocínio utilitarista nas ciências sociais decorre da
incapacidade de seus pesquisadores para considerar algo além dos fatores
econômicos. Embora neguem e apresentem complexos sistemas de interpretação, o
tema que prevalece quando eles estudam questões de ordem política2 é o da
desigualdade econômica. No Brasil, a reflexão sobre os obstáculos que os
setores populares encontram ao pleno acesso à cidadania considera quase sempre
como fator primordial a questão da distribuição de renda, indubitavelmente uma
das mais desiguais do mundo. A pesquisa em ciências sociais, de modo geral,
adota uma via correta quando considera as desigualdades sociais, sem dúvida, um
entrave para o funcionamento da democracia e o exercício da cidadania. Por
outro lado, a definição do interesse geral tornou-se impossível pela
diversidade e, mais ainda, pela incomensurabilidade dos interesses
particulares. A precariedade das condições de vida também não permite aos mais
desfavorecidos uma participação ativa na vida política. É portanto inegável que
a prática da cidadania democrática pressupõe, no Brasil, uma melhor
distribuição da renda.
Mas o problema é que o enfoque quase exclusivo das ciências sociais sobre a
questão das desigualdades econômicas tende a ocultar dimensões essenciais da
cidadania democrática. Assim, em um país tão desigual como o Brasil, minhas
pesquisas em Recife e no Rio de Janeiro sugerem que, para o citadino brasileiro
pobre, o sentimento de pertencer à humanidade é muito mais importante que a
redução da desigualdade social. Esse homem quase nunca condena a desigualdade
social em si, mas sim o modo pelo qual, na vida cotidiana, os membros das
camadas médias e superiores o fazem sentir-se socialmente inferior, seja nos
espaços públicos ou no trabalho. O que ele deseja acima de tudo é ser
reconhecido como membro legítimo da sociedade. Respeito é a palavra-chave de
seu discurso sobre a injustiça social. Ponto central na avaliação da qualidade
das relações sociais, a noção de respeito ' e seu corolário, a denúncia da
falta de respeito' permite-lhe apontar os que lhe negam o direito de pertencer
plenamente à sociedade, pois raros são os brasileiros pobres que não tenham
experimentado alguma vez a imensa distância que os separa dos membros das
camadas superiores. Palavras cheias de subentendidos, um gesto de desconfiança
ou um olhar esquivo bastam muitas vezes para que eles se sintam profundamente
humilhados pela revelação de sua inferioridade social. Julgam-se também
rebaixados à posição infame de delinqüentes ou mendigos quando passam por
pessoas que, com medo de serem roubadas ou solicitadas a dar esmola, agarram
precavidamente suas bolsas e pacotes ou desviam rápido o olhar. O preconceito
racial aparece às vezes de modo flagrante nesses afastamentos. As manifestações
mais freqüentes, como a determinação do uso de elevadores de serviço nos
prédios residenciais e a proibição de entrada em certos estabelecimentos de
diversão, servem para lembrar o estigma que persegue o negro em uma sociedade
que ainda se ressente das categorias escravagistas.
A exigência de respeito não é assunto novo. A julgar pela freqüência com que
aparece nas discussões familiares, nas relações de trabalho ou nas brigas entre
vizinhos, pode-se dizer que é uma das coisas mais bem distribuídas do mundo. É
encontrada nas camadas populares de países com tradição democrática bem mais
consolidada que a brasileira como, por exemplo, entre os operários ingleses, os
jovens dos conjuntos populares periféricos, os negros dos guetos norte-
americanos ou os porto-riquenhos do East Harlem (Bourgois, 1995). Mesmo assim,
a noção de respeito não mereceu grande atenção dos cientistas sociais, ao passo
que para os filósofos (Audard, 1993) é há muito objeto de uma reflexão
específica. Talvez porque sociólogos e antropólogos não tenham tido interesse
em um tema que pode parecer banal ou polissêmico. Ou talvez pela confusão
freqüente que existe entre exigência de respeito e defesa da honra, tal como
esta foi estudada nas sociedades mediterrâneas. Nessa perspectiva, podem ser
citados com referência ao Brasil os trabalhos de Claudia Fonseca (1984) e de
Marcos Alvito (1996). Embora eu concorde com muitas de suas análises, acho que
não convém confundir essas duas noções em sociedades modernas e
individualizadas nas quais, ao contrário do mundo mediterrâneo, a identidade já
não é diretamente conferida pela estrutura social, mas se constrói quase sempre
mediante um processo de afirmação do indivíduo com relação aos papéis
institucionais3. Nos grupos rurais estudados no litoral do Mediterrâneo, a
honra supõe como contrapartida uma conduta imperativamente compatível com um
código de comportamento, sob pena de perda da identidade social. Por isso, ela
tem um papel fundamental na regulação dos comportamentos e na construção da
identidade pessoal.
Nas sociedades tradicionais pouco atingidas até há pouco tempo pela mudança
social, a honra apóia-se principalmente no controle da sexualidade da mulher
pelo homem e na importância da vingança. Ora, no Brasil urbano, o respeito não
é ameaçado pelas investidas contra a pureza sexual da mulher. Os homens, por
seu lado, não se sentem responsáveis pela preservação da virgindade de suas
irmãs e filhas, nem das outras mulheres do grupo familiar. Nas recomendações às
adolescentes, as mulheres, em especial as mães, procuram evitar às jovens os
inconvenientes da maternidade precoce, sobretudo o isolamento de quem, pobre,
deve criar sozinha o filho. Os conflitos referentes à sexualidade nas camadas
populares brasileiras parecem-me mais ligados aos temas da ''reputação'' e da
''respeitabilidade'', que, como mostram os trabalhos de Peter Wilson sobre o
Caribe, não correspondem aos da honra e da vergonha, centrais na antropologia
da honra que se elaborou a partir da observação das sociedades chamadas
mediterrâneas (ver, p. ex., Wilson, 1969).
Enfim, se nos meios populares brasileiros há referência constante a um código
de comportamento, há também distância entre o discurso sobre as prescrições
normativas que cada um deve observar e a prática efetiva dessas prescrições. Ou
seja, o respeito à brasileira não possui o caráter imperativo que aparece no
sentimento de honra entre as tribos da Cabília argelina, os camponeses
andaluzes ou os aldeões da Albânia.
Isso leva a pensar que a linguagem do respeito possui uma dimensão específica
nas camadas populares das sociedades modernas, tendo em vista que associa
intimamente a importância conferida ao reconhecimento da humanidade com o
sentido dado à idéia de cidadania.
A reivindicação de respeito formulada pelo citadino brasileiro pobre também nos
interessa na medida em que destaca um aspecto central da cidadania democrática
moderna. O vínculo entre a necessidade de respeito e a denúncia da humilhação
social é de fato um traço essencial das sociedades modernas que não tem
recebido, a meu ver, a devida atenção nas pesquisas contemporâneas sobre
democracia. Ao contrário das sociedades tradicionais em que hierarquias rígidas
determinavam o status de cada um dos diferentes grupos sociais, nas sociedades
modernas o sentimento de inferioridade é insuportável. Nestas, cada indivíduo
reclama o direito de ser tratado como igual ou, ao menos, de não ser
definitivamente classificado em uma posição de inferioridade. Na verdade, é o
fato de ver lembrada a sua condição de inferior que provoca o sentimento de
humilhação4.
O trabalho de Avishai Margalit apresenta uma perspectiva para interpretar a
preocupação com o respeito e a sensibilidade à humilhação do citadino
brasileiro pobre5. De acordo com este autor, é preciso levar em conta os
problemas suscitados pela experiência da humilhação para construir não apenas
uma sociedade justa, mas uma sociedade que não humilhe seus membros mais
fracos. Seus argumentos vão bem além da idéia de sociedade justa fundada no
equilíbrio entre liberdade e igualdade. Se não cabe aqui discutir a crítica que
Margalit faz à teoria da justiça proposta por John Rawls, nem as dificuldades
que a transposição empírica de sua filosofia social cria para o sociólogo,
digamos brevemente que ele considera que é mais fácil construir uma ''sociedade
decente'' do que uma sociedade justa. Segundo Margalit, sociedade decente é
aquela em que ninguém pode ser humilhado pelas instituições. Sob vários
aspectos, reconhece-se nesse conceito de humilhação aquilo que o habitante
pobre da cidade considera humilhante. Em seu discurso sobre a injustiça social,
esses indivíduos se referem constantemente à brutalidade policial, ao mau
atendimento que recebem no serviço público e a atitudes condescendentes por
parte de quem ocupa cargos importantes. As empregadas domésticas também se
queixam dos patrões que dão ordens e as repreendem como se falassem com um
cachorro e que lhes fornecem comida de má qualidade. Quando passam por esse
sentimento de humilhação, os brasileiros pobres falam de ''falta de respeito''
e costumam dizer que são tratados não como seres humanos, e sim como animais.
Isso faz pensar no conceito de humilhação de Margalit, que a define como ''a
recusa de formas específicas de vida pelas quais os seres humanos exprimem sua
humanidade'' (1999:15). Ora, é exatamente um sentimento desse tipo que a gente
do povo experimenta quando se diz humilhada.
Há uma forte ligação entre o sentimento de ser desumanizado e o de não
pertencer à sociedade. Certamente não é uma grande novidade. O direito a ser
tratado como ser humano está no âmago dos direitos civis. Apesar disso, muitos
problemas do acesso à cidadania nos países do Norte são decorrentes do fato de
um número crescente de indivíduos se achar privado da proteção da lei, como é o
caso dos imigrados clandestinos e dos sem domicílio fixo. Muitas pesquisas
mostram o sentimento de humilhação que esses indivíduos em situação precária e
sem proteção experimentam nas interações com as instituições dos países onde
tentam estabelecer-se. Para eles, o motivo desse sentimento de humilhação está
em não serem considerados como seres humanos. O mais difícil de suportar não
são as más condições de habitação ou de trabalho, mas a diferença de tratamento
por parte das instituições e repartições que não os vêem como vêem os outros
membros do corpo social.
O RESPEITO: ENTRE HIERARQUIA E IGUALDADE
Minha abordagem da noção de respeito entre os citadinos brasileiros pobres não
se baseia em um conceito de respeito tirado da tradição filosófica nem tenta
propor uma definição de respeito fixa e precisa6. Considero, na linha dos
antropólogos, a palavra respeito como uma categoria nativa sobre a qual é
preciso compreender o significado. Logo, a partir da análise dessa palavra tal
qual é utilizada, como categoria comum da linguagem corrente do citadino
brasileiro pobre, procuro mostrar quanto a diversidade dos usos desse termo
revela a ambivalência que domina esses setores sociais no Brasil contemporâneo.
Nessa perspectiva, cabe refletir sobre o que pode significar o emprego da
categoria respeito em frases como: ''Hoje em dia, não tem mais respeito'';
''Antigamente, o governo respeitava o pobre''; ''A pessoa que quer o respeito
tem que respeitar o outro''; ''Minha patroa não me paga bem, mas ela me
respeita muito''; ''Em casa de família, cada pessoa tem seu lugar, mas não pode
faltar o respeito''.
Seria possível sustentar, de modo geral, que esse pedido de respeito
corresponde à necessidade do indivíduo de ver reconhecido o lugar que ele julga
merecer em determinada ordem social, assim como às prerrogativas que parecem
adequadas ao papel a partir do qual se reivindica o respeito. A preocupação de
ver sua própria apresentação de si confirmada por outrem revela-se, sem dúvida,
em todos os pedidos de respeito. Mas em vez de propor uma noção reificada do
respeito, irei me deter nas tensões que atravessam essa reivindicação, pois a
precariedade das condições de vida nos meios populares favorece a persistência
de uma representação holística da ordem social à custa da plena aceitação do
ideal de igualdade da democracia moderna. A demanda por respeito expressa de
fato não só uma preferência pelas antigas formas de relações hierárquicas entre
dominantes e dominados, mas também um pedido de igualdade que é complexo.
Embora as ligações da noção de respeito com o princípio hierárquico e a idéia
de igualdade apresentem um aspecto movediço, segundo os contextos de interação,
é possível situar analiticamente três configurações distintas dentro da
subjetividade dos indivíduos.
A primeira remete a um significado do respeito que expressa a busca por
relações hierárquicas no âmbito de uma representação orgânica da sociedade.
Aqui não cabe a idéia de igualdade. Para os indivíduos em situação de
inferioridade, o sentimento de pertencer plenamente a uma sociedade depende da
proteção dos dominantes. O comportamento paternalista do empregador para com o
empregado é a melhor ilustração dessa expectativa. Tipo de relação herdado do
mundo rural, a vassalagem ao patrão como contrapartida a um lugar garantido
permite ao subalterno construir sua identidade pessoal em um universo no qual a
ameaça de rejeição social nunca o deixa. Nessa configuração, a relação
paternalista, forma de dominação e relação de dependência pessoal, chega a ser
preferida à ausência de vínculo com os dominantes.
A segunda configuração apóia-se na afirmação da humanidade comum de todos os
membros do corpo social, assertiva que procede da rejeição de tudo o que evoca
a condição de escravo. Enquanto o arranjo anterior é impermeável à idéia de uma
forma de igualdade entre dominantes e dominados, no agora em questão aparece,
em filigrana, uma idéia de igualdade cuja tela de fundo é o abalo de antigas
hierarquias em uma sociedade conquistada pelo imaginário igualitário da
democracia. Tal configuração pressupõe o reconhecimento de uma certa forma de
igualdade entre os indivíduos sem que com isto seja abandonada uma visão
hierárquica do social. Porque, que não haja engano ' e é o que distingue esta
segunda configuração da terceira ', a idéia de igualdade no sentido moderno do
termo ainda não se firmou definitivamente. O pedido de igualdade que ali se
expressa é mais parecido com a idéia de ''igualdade civil'', tal como foi
historicamente formulada na linha do princípio cristão de igual dignidade dos
homens diante de Deus. Nessa configuração, a reivindicação de respeito apóia-se
quase sempre no tema cristão da dignidade da pessoa humana, que aliás organiza
muitas denúncias do destino injusto que cabe aos mais desfavorecidos. Com a
instauração de um regime democrático, a ambivalência do apelo ao respeito
atinge talvez seu ponto mais elevado. Esse pedido de igualdade tanto pode
sustentar a afirmação da primazia do indivíduo sobre o todo social, afirmação
esta que está no fundamento da visão moderna de democracia, como traduzir o
vigor de uma representação orgânica e hierárquica da sociedade.
Em uma terceira configuração, a exigência de respeito traduz a recusa de uma
sociedade hierárquica na qual os lugares estão demarcados de antemão. Não se
trata de humanidade comum dos dominantes e dominados, e sim de ''semelhança dos
homens'' no sentido que Tocqueville deu ao termo7. O respeito não se manifesta
a partir de posições precisas, mas supõe que a identidade absoluta dos
indivíduos seja reconhecida, o que o autor de A Democracia na América chama de
igualdade de condições, isto é, o traço estrutural das sociedades democráticas
em que o trabalho permanente de redução da alteridade entre os homens deve
progressivamente apagar as distinções da natureza. A esperança de ascensão
social confirma esse anseio de mobilidade por parte de uma sociedade em que
nenhuma diferença essencial impede o acesso a uma posição desejada. Algumas
identificações com modelos culturais da sociedade global ' por exemplo, o
desejo de fazer um curso superior e de exercer uma profissão valorizada
socialmente, o de estar na moda, o de freqüentar os shopping centers ou a
penetração da world music nos meios populares ' atestam igualmente a busca de
uma uniformidade simbólica, marcando a semelhança de todos acima das
desigualdades econômicas. Quando os indivíduos se consideram assim membros de
uma sociedade que permite a mobilidade social, desligados de todos os vínculos
primeiros não escolhidos e radicalmente iguais por natureza, é uma
reivindicação de igualdade no sentido moderno do termo que se enuncia, e essa
forma de igualdade é que está no princípio da idéia de cidadania política da
democracia.
Nenhuma dessas três configurações se firma a ponto de apagar as outras. Sua co-
presença é a originalidade da noção de respeito entre indivíduos confrontados
com a mudança social e com a transformação política em um período de incerteza.
No âmago das relações fundadas tanto em um princípio hierárquico (''rico''/
''pobre'', empregador/empregado, patroa/empregada, marido/mulher, pai/filho)
quanto na igualdade (entre parentes colaterais, amigos ou vizinhos), a
referência ao respeito constitui, de acordo com os contextos, um princípio de
gestão da desigualdade ou a afirmação de formas diversas de igualdade entre os
indivíduos. O apelo ao respeito é um testemunho simultâneo do peso da história,
manifestado no vigor das formas de hierarquização social existentes na
escravatura, bem como da novidade do momento presente, revelada no
reconhecimento do indivíduo independentemente de suas origens. Central na
avaliação de muitas interações, a idéia de respeito expressa o que constitui um
vínculo social para indivíduos em situação de inferioridade. Tal noção lhes
permite denunciar aqueles que, por uma atitude ou palavra, parecem recusar-lhes
o direito de pertencer plenamente à sociedade ou não fazem distinção entre os
que têm um lugar na ordem social, mesmo que em posição subalterna, e os que
dela são rejeitados pelo comportamento infrator de regras que asseguram a
preservação do vínculo social.
Minha análise da ligação complexa entre a noção de respeito e as idéias de
hierarquia e de igualdade difere consideravelmente da efetuada pelo antropólogo
Roberto DaMatta. Em trabalhos de grande interesse, ele sugere que, no Brasil,
um código hierárquico e um código igualitário agem simultaneamente em inúmeras
práticas (DaMatta, 1979; 1985; 1993). Se DaMatta considera a coexistência
desses dois códigos como princípio central para explicar a sociedade
brasileira, minha interpretação insiste, ao contrário, na indeterminação da
noção de respeito no momento da proclamação dos ideais igualitários e
individualistas da democracia moderna em um contexto de desorganização e de
desestruturação das antigas formas de vínculo social. À abordagem nitidamente
anistórica de DaMatta, preferi sublinhar, pela consideração dos efeitos dessas
mudanças sobre as representações sociais e políticas da população estudada, a
fragilidade das configurações em que se encontram o princípio hierárquico e a
idéia de igualdade8. É sobretudo por isso que irei apresentar diferentes formas
de igualdade.
É isso que nos leva a um distanciamento da análise de DaMatta sobre as
conseqüências políticas da não-separação entre espaço público e privado. No
prolongamento de sua oposição entre o mundo da casa e o da rua, o autor explica
a difícil realização da cidadania democrática no Brasil pela presença da
''ética da casa'' no espaço público9. Porque o Brasil não passou por essa
revolução igualitária de que fala Tocqueville emA Democracia na América, a
pregnância das relações pessoais fundadas na vinculação a uma mesma família, a
lealdade e a amizade impediriam a formação de relações que supõem o
reconhecimento da igualdade de todos os membros do corpo social. Segundo
DaMatta, é por esse motivo que, em uma sociedade que proclama os valores
democráticos, um princípio hierárquico rege as relações entre ''superiores'' e
''inferiores'' pela troca recíproca mas desigual da proteção contra a
vassalagem. Mais uma vez, a abordagem anistórica do autor o impede de perceber
o desenvolvimento, certamente lento e contraditório, do imaginário das
sociedades democráticas igualitárias, o que vem confirmar os diferentes usos da
noção de respeito10. Pois, ao contrário do que ele afirma, tudo o que
representa o espaço público não é sistematicamente visto como perigoso pelos
membros das camadas populares. Esses indivíduos não se sentem necessariamente
em uma situação de despojamento e vulnerabilidade quando se encontram fora da
proteção que lhes seria garantida pela inserção no mundo da casa. Como mostram
inúmeras pesquisas empíricas, os jovens e as mulheres gostam muito de deixar a
pretensa segurança do espaço doméstico (Vaitsman, 1997; Vidal, 2000b). A rua, a
praia, os espaços comerciais ou o mundo do trabalho são para eles lugares onde
também se conquista a autonomia e se exprime a individualidade. Eis por que
gostam muitas vezes de freqüentar os espaços públicos, saindo do quadro
doméstico que tanto constrange quanto protege.
VIDA MORAL E DIREITO À PROTEÇÃO JURÍDICA
Seja qual for a diversidade de suas trajetórias e de seus níveis de renda e de
instrução, os moradores de Brasília Teimosa e as empregadas domésticas que
entrevistei em Recife e no Rio de Janeiro concordam em um ponto: o direito de
ser tratado como gente só pode ser pleiteado por quem age dentro de um conjunto
de obrigações ' pensadas como obrigações morais ' que definem a humanidade. As
palavras obrigação e dever perpassam seus discursos, desde que se trate de
julgar o comportamento de um indivíduo. E há também a idéia de que compete a
cada um se comportar de acordo com essas obrigações morais para ser considerado
como ser humano e ter a proteção do direito. Por isso, a grande maioria das
duas populações entrevistadas avalia que nada justifica o roubo do bem alheio;
que o papel do pai é prover, pelo trabalho, às necessidades da família; que a
função da mulher é cuidar da educação dos filhos e da vida do lar; que os
filhos, por sua vez, devem obedecer aos pais; que os vizinhos e amigos devem
ser solidários entre si diante das dificuldades que a vida apresenta; e que, no
campo das relações profissionais, o empregado deve aceitar as ordens do patrão
se este o tratar com ''o devido respeito'', não o insultar e o ajudar quando
ele estiver em dificuldades.
Mas convém que uma coisa fique clara: não se pode deduzir a realidade social
com base nesse discurso estereotipado, quase sempre distante da prática real,
pois o estudo do cotidiano revela uma distância considerável entre essas normas
repetidas incessantemente e a observação dos fatos. Os conflitos familiares são
muito freqüentes, a solidariedade nem sempre funciona e muitas empregadas
domésticas utilizam estratégias individuais bem afastadas da obediência, que
elas reconhecem como um atributo de uma relação de trabalho de qualidade.
Logo, o interesse desse discurso está no fato de ele exprimir o ideal de uma
sociedade harmoniosa e a necessidade de civilidade na vida social. Pois dessas
representações se extrai a idéia de que uma boa sociedade é aquela em que cada
um trata o outro com respeito, e que, além disso, quem dá provas de seu
respeito goza da proteção jurídica do Estado, isto é, usufrui da garantia de
sua segurança individual, do benefício da previdência social e do direito ao
trabalho. Com base nessas afirmações sobre as obrigações morais que devem reger
os supostos coletivos formados pelos parentes, vizinhos e amigos, pelos
empregadores e empregados, seria cabível pensar que eles vivem de acordo com o
modelo da Gemeinschaft, segundo o sentido dado a essa categoria por Ferdinand
Tönnies (1977:56), isto é, uma ''comunidade de sangue, de vinculação, de
espírito'' que se baseia no ''parentesco, vizinhança, amizade''. Quando seus
membros afirmam que cabe a cada um ''cumprir seus deveres'', que ''é a
obrigação [de alguém] fazer determinada coisa'', que ''ele pode'' ou ''não
pode'' fazer isto ou aquilo, ou que fulano ''está errado'' ou ''está certo'',
eles fazem referência a regras que se impõem a cada um. Tal como são
enunciados, esses diferentes códigos de comportamento parecem completar-se e
ter a força de governar o conjunto das relações possíveis. O vínculo social
parece provir da subordinação dos indivíduos às regras necessárias ao
funcionamento perene de uma totalidade orgânica preexistente, e não de um
contrato que fundamente o coletivo. Quando essas regras são evocadas, o sistema
jurídico só é mencionado se ele concerne a essas obrigações definidas quanto ao
social e se parece proveniente de uma lei natural.
Pode alguém pensar que não há nada de especificamente brasileiro nessas
representações sociais. Muitas teorias da cidadania democrática consideram que
o ''bom cidadão'' é o indivíduo que age de acordo com o sistema normativo
dominante na sociedade11. O que chama a atenção no caso brasileiro é a ausência
de qualquer menção à idéia de participação política nas representações da
inclusão social. De fato, o citadino brasileiro pobre quase nunca fala do voto
ou de outra forma de participação política quando se refere a seus
''direitos''; quando fala deles, é em alusão quase exclusiva ao direito do
trabalho e ao direito de ser tratado como ser humano (Caldeira, 1984). E pede a
garantia do benefício desses direitos em nome de sua qualidade de ser humano
ou, como se costuma dizer, ''de gente'', isto é, pede para ser tratado como ser
humano porque se comporta de acordo com um conceito do que deveria ser, segundo
ele, a humanidade.
Há uma conseqüência evidente desse conceito popular na associação entre
obrigações morais e direitos: é a negação da proteção dos direitos humanos para
quem é suspeito de crime. Para o citadino brasileiro pobre, quem infringe a lei
não merece ser tratado como ser humano, o que leva, sobretudo, à justificação
da tortura ou de assassinato de delinqüentes cometidos pela própria polícia.
Essa ausência de identificação ao ideal dos direitos humanos foi muitas vezes
apontada como um obstáculo à consolidação da democracia no Brasil, e não há
dúvida de que é um sério limite para aprofundar a cidadania democrática.
Mas, ao mesmo tempo, a íntima ligação entre civilidade e cidadania lembra que
esta última supõe um profundo sentido do bem comum e do compromisso entre os
cidadãos (Thompson, 1970). Como mostram muitos estudos sobre o enfraquecimento
da cidadania nos países do Norte, o declínio da civilidade nas relações sociais
desgastou a idéia política de uma sociedade democrática com base em indivíduos
livres protegidos por uma mesma lei (Banfield, 1992; Roché, 1998; Anderson,
1999). Parece-me, sob esse aspecto, que a linguagem do respeito dos brasileiros
pobres incita a prestar mais atenção nos países de tradição democrática mais
consolidada. Se for verdade que o aumento das desigualdades econômicas, o
declínio do Estado-Providência e o enfraquecimento da soberania nacional estão
fazendo com que as sociedades do Norte se assemelhem cada vez mais às do Sul,
também é verdade que elas estão mais parecidas na baixa de civilidade na vida
social bem como nos problemas que isso acarreta para o funcionamento da
democracia.
A LINGUAGEM DO RESPEITO E A SOCIOLOGIA DO RECONHECIMENTO
A importância das relações de reconhecimento na vida social e política originou
nas últimas décadas um grande número de trabalhos (Honneth, 1995; Todorov,
1995; Taylor, 1997; 1998; Chaumont e Pourtois, 1999). Nesse sentido, o discurso
que o citadino brasileiro pobre utiliza quando fala das obrigações parece
trazer elementos para essa discussão. Sugere, em primeiro lugar, que a
importância da moralidade nesse discurso não se confunde com a falsa
consciência, como pode sugerir a análise inspirada em um marxismo vulgar, nem
que é a mera conseqüência da violência simbólica exercida pelos dominantes
sobre os dominados, como é o caso da abordagem inspirada nas pesquisas de
Pierre Bourdieu. Pelo contrário, e embora os valores citados pelos brasileiros
desfavorecidos sejam quase sempre os da sociedade global, a referência à
moralidade parece-me antes de tudo um recurso essencial para a construção
identitária nos meios populares, mesmo que ela também reflita a interiorização
das categorias das camadas superiores. Sob esse aspecto, a linguagem do
respeito é uma resposta prática dada à dominação social. Essa resposta prática
insiste na conformidade social dos que estão em situação de inferioridade, os
quais, em nome dessa conformidade, reivindicam o reconhecimento de sua
existência pelos dominantes e a melhora de suas condições de vida pelos
governantes.
Em segundo lugar, a importância concedida à vida pautada por obrigações morais
contribui consideravelmente para contrabalançar a habitual opinião pessimista
quanto ao funcionamento da democracia no Brasil. Convém lembrar que o
imaginário de integração social do período de transição democrática ainda não
foi realizado e que a questão social, sob vários aspectos, até se agravou. Não
se pode esquecer que as demandas dos setores populares se baseiam não apenas no
fato de os seus membros pertencerem à humanidade (''A polícia trata a gente
como cachorro''; ''No hospital, o pobre não é atendido como gente''), mas
também à nação (''O governo tem a obrigação de ajudar todos os brasileiros''),
e que, nas representações do povo, o Estado é visto como a instituição que deve
garantir-lhe os direitos (''É dever do governo dar os direitos'').
A participação política dos setores populares não se realizou conforme haviam
anunciado os teóricos dos movimentos sociais no início da transição para a
democracia. O sindicalismo perdeu muita força desde o começo dos anos 80, e os
resultados das eleições foram surpreendentes: vitória de certos grupos com
formação progressista e de outros ligados ao antigo regime militar. Mas convém
lembrar que, no Brasil, a idéia de participação não é vista como a base dos
direitos. Isso porque, como mostrou José Murilo de Carvalho (2001), sob o
regime autoritário de Getulio Vargas, os direitos sociais foram concedidos
antes dos direitos políticos, o que originou o simbolismo sempre presente da
inclusão social pelo reconhecimento da miséria do povo pelos governantes. A
lembrança desse gesto vindo do alto explica amplamente a falta de referência à
participação política no sentido dado ao fato de pertencer à sociedade.
Convém assim mesmo fazer a distinção entre o que procede do funcionamento das
instituições e as mudanças mais gerais ocorridas nas relações sociais. Pois,
sejam quais forem as insuficiências do poder público, a necessidade de
reconhecimento do pobre brasileiro remete ao ideal de uma sociedade democrática
na qual a posição social não é predeterminada e, portanto, todos os seres
humanos têm o mesmo valor.
Aliás, essa importância conferida às obrigações morais oferece uma base
empírica para os textos de Axel Honneth (1995) sobre o reconhecimento. Vê-se,
de fato, como atitudes morais e normas estão ligadas a formas de reconhecimento
intersubjetivo. Ora, Honneth mostra como a partir da base desse vínculo é que
se garante mutuamente as condições intersubjetivas da formação de nossa
identidade. Há, além disso, um outro ponto da abordagem de Honneth que ajuda a
compreender o comportamento do brasileiro desfavorecido: a idéia de que a luta
pelo reconhecimento se apóia principalmente em uma gramática moral dos
conflitos sociais. Encontra-se, por exemplo, esse tipo de demanda na maioria
dos movimentos reivindicatórios urbanos: quando pedem a implantação de
programas sociais ou a criação de infra-estrutura, justificam sua ação em nome
da dignidade e do respeito devido aos pobres.
Ademais, ao contrário das abordagens utilitaristas, Honneth destaca que, na
maioria dos conflitos, o indivíduo não busca a satisfação de interesses
materiais, mas o respeito como ser autônomo e individualizado. Os conflitos
entre as empregadas domésticas e seus patrões são um exemplo dessa dinâmica.
Muitas das que encontrei no sindicato dos trabalhadores domésticos do Rio de
Janeiro afirmavam ter abandonado o emprego e entrado com uma ação na Justiça do
Trabalho não pela remuneração insuficiente, mas porque haviam sido desprezadas
ou humilhadas pelo patrão. As condutas que essas mulheres consideram, segundo
seus próprios termos, ''injustas'' ou ''humilhantes'' têm o caráter de ofensas
morais. Depois de ter passado por isso, já não conseguiam estabelecer uma
relação positiva consigo mesmas e se sentiam prejudicadas em sua capacidade de
agir. Tratava-se, porém, quase sempre de gestos ou palavras à primeira vista
insignificantes: um olhar irônico, um gracejo (''Você é mais rica do que eu, na
sua casa tem microondas''), uma alusão a quem não freqüentou a escola (''Você
não pode entender, você não tem estudo''), uma reprimenda sem motivo ou a ordem
para ficar na cozinha quando chegava visita. Mas, na maioria das vezes, era o
que bastava para marcar a deterioração da relação de trabalho, pois a doméstica
já não conseguia sentir-se respeitada em sua atividade e em sua dignidade.
Minha pesquisa sugere, entretanto, que o alargamento do acesso à Justiça do
Trabalho desde a Constituição de 1988 está mudando profundamente as relações
entre as domésticas e seus patrões. Pelo reconhecimento jurídico, elas
conseguem introjetar o sentido do que Axel Honneth denomina ''respeito de si''.
Segundo este autor, o reconhecimento jurídico é de fato a admissão das
características universais dos seres humanos. A necessidade de reconhecimento,
como escreve Emmanuel Renault na linha dos trabalhos de Axel Honneth,
''[...] não expressa apenas a exigência de um comportamento justo em
relação a mim, isto é, um comportamento que leve em conta minha
dignidade, meu valor universal como pessoa humana, responsável e
sociável; expressa também a necessidade de ser reconhecido como o
indivíduo específico que sou na vida corriqueira sob a aparência das
diversas identidades que apresento na interação social'' (2000:59).
Sob esse aspecto também se percebe quanto as mudanças no relacionamento entre
empregadas domésticas e patrões ' típico da sociedade brasileira ' podem ajudar
a compreender o que ocorre nas relações entre lei e identidade nas sociedades
do Norte e do Sul. É sabido que nos países do Norte a falta de documentos de
identidade priva os imigrantes clandestinos do sentido do respeito de si e, por
esse motivo, a sua legalização lhes oferece a possibilidade de construir sua
identidade pessoal diante da lei.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, desejo primeiro sugerir que, a despeito das diferenças
nacionais, os problemas de acesso à cidadania lembram que há um ponto essencial
no sentido dado a esta nas sociedades modernas contemporâneas: o sentimento de
pertencer plenamente à sociedade supõe que previamente tenham o sentimento de
pertencer à humanidade. Essa necessidade de reconhecimento da humanidade se
encontra nos três elementos do estatuto jurídico do cidadão: o civil, o
político e o social. Os direitos civis apóiam-se amplamente no reconhecimento
do direito a ser tratado como ser humano; os direitos políticos baseiam-se no
reconhecimento da igualdade de cada membro da comunidade política; os direitos
sociais fundamentam o reconhecimento da reivindicação de proteção social.
Os observadores e os militantes mostram-se às vezes surpresos com o aumento da
abstenção ou com o fraco interesse dos cidadãos pela política. Isso é ainda
mais chocante em um país como o Brasil, onde o recente restabelecimento do
processo democrático despertou muita esperança. Nesse ponto, também é
necessário distinguir dois níveis de análise: o acesso a um direito e o
exercício do mesmo. Os trabalhos de Judith Shklar a respeito dos Estados Unidos
e de Pierre Rosanvallon sobre a França mostraram quanto a luta pelo
reconhecimento da vinculação social foi, sob o aspecto histórico, bem mais
vigorosa que a participação política (Shklar, 1991; Rosanvallon, 1992). Nesses
dois países, o direito de voto foi de fato considerado mais como um símbolo da
plena vinculação social que um direito a participar do governo. O que
constitui, afinal, a especificidade do Brasil é que a importância conferida à
plena vinculação social parece desligada da idéia de participação política.
Em outra ordem de idéias, quero voltar rapidamente a um ponto mencionado no
início deste artigo: o enfoque excessivo das ciências sociais sobre as
desigualdades econômicas e a distribuição de renda. Embora sejam questões
fundamentais, convém não esquecer que os problemas das sociedades democráticas
não se reduzem à política econômica stricto sensu. Sentimentos sociais como
respeito e humilhação, dos quais vimos a importância, remetem a outras
dimensões da experiência democrática. Eles exprimem uma reivindicação de
reconhecimento no cerne da reflexão contemporânea sobre a cidadania democrática
moderna.
É verdade que esses sentimentos sociais não se encontram apenas no Brasil, mas
em todas as sociedades modernas, mas tudo indica que as tensões que
caracterizam a sociedade brasileira tornam ainda mais evidente essa exigência
de reconhecimento social. É possível até que a análise dos problemas de acesso
à cidadania no Brasil exija uma distinção entre as demandas de igualdade e as
de respeito. Como bem mostrou Harry Frankfurt (1997), trata-se de duas ordens
diferentes, e o enfoque excessivo sobre as desigualdades econômicas impede
muitas vezes que se veja o que essas demandas de respeito significam, sendo
elas essenciais para a construção da identidade pessoal e para o
estabelecimento de uma relação positiva do indivíduo consigo mesmo. As
reivindicações de respeito que encontrei em minhas pesquisas em Recife e no Rio
de Janeiro mostram, aliás, que a gestão prática dos problemas provocados pela
desigualdade social nas sociedades contemporâneas não passa necessariamente
pela realização da igualdade econômica. E, como sugere Richard Sennett (2003)
em seu último livro, o objetivo do respeito mútuo é provavelmente um dos
principais desafios das sociedades desiguais e diferenciadas com que nos
deparamos hoje.
Portanto, além das suas diferenças, as atuais sociedades do Norte e do Sul
devem enfrentar igualmente o enfraquecimento da capacidade de ação do Estado
nacional e a queda da identificação com objetivos comuns. A questão da
cidadania nas sociedades contemporâneas é, por esse motivo, indissociável
daquelas ligadas à coesão social e à complexidade das identificações sociais,
sobretudo étnicas. Os problemas que hoje os países do Norte enfrentam são, de
longa data, os do Brasil e de outras sociedades do Sul. É por isso também que
os dois principais campos para a compreensão da cidadania nas sociedades
modernas são, a meu ver, por um lado, o estudo das condições de uma cidadania
efetiva nos grupos sociais muito diversificados e, por outro, a reflexão sobre
sentimentos sociais tais como respeito, humilhação e desprezo, que ocupam
manifestamente lugar crescente na vida social e política.