Internet, democracia e República
A Internet exerce um crescente fascínio sobre as culturas humanas. A academia e
a indústria do entretenimento a descobriram há mais de uma década, em uma época
na qual os militares já a utilizavam para preparar guerras. Enquanto cientistas
de todo o mundo se maravilhavam com os novos recursos de pesquisa e comunicação
acadêmica introduzidos pela rede mundial de computadores, Atari, Sony e outras
empresas japonesas utilizavam-se dela para entreter um público jovem que
permaneceria em casa à frente da tela jogando seus RPGs (Role-playing Games)
prediletos, só que agora seus inimigos eram outros seres humanos em localidades
distantes. Ironicamente, o general Norman Schwarzkopf, líder das forças aliadas
na guerra do Iraque, anunciava para o mundo: "This is not a Nintendo game".
As grandes corporações do capitalismo internacional demoraram um pouco mais
para atinar aos efeitos benéficos da Internet nas suas atividades de comércio.
Enquanto elas estudavam maneiras de tornar suas transações financeiras seguras
no novo ambiente eletrônico de comunicação, pequenos empreendores arriscaram e
tornaram-se os pioneiros do e-commerce. Hoje, as ações de empresas como a
Yahoo! e a Amazon.com valem infinitas vezes mais que os investimentos feitos
por seus jovens fundadores. Mas a economia financeira hoje domina o
capitalismo, e, na medida em que a informação é o principal bem comercializado,
o e-commerce tende a se expandir e consolidar como principal meio de realizar
transações. Navegantes, cowboys, bandeirantes e aventureiros são os primeiros a
chegar às novas fronteiras da expansão, mas não nos iludamos sobre quem são os
verdadeiros conquistadores.
Enquanto isso, um número cada vez maior de pessoas comprava computadores
pessoais. Foram 38 anos até que o rádio atingisse 50 milhões de usuários no
mundo e 16 para que o computador atingisse o mesmo número. A televisão levou 13
anos, e a Internet somente 4. Hoje, aproximadamente 2,4% da população mundial
usa a rede mundial de computadores (Internet).
Seja para a comunicação pessoal ou institucional, com fins lúdicos,
profissionais ou estratégicos, seja para o comércio eletrônico, como atividade-
fim ou atividade-meio, a Internet é um novo meio de comunicação, uma nova
mídia, que com certeza está aí para ficar. Ela não substituirá a carta, o
telefone, o rádio e nem mesmo a televisão. Ela junta-se a todos estes outros
meios na escalada conjunta dos avanços tecnológicos do capitalismo e das formas
de vida que acompanham o seu desenvolvimento. Mas se a consolidação do impacto
da Internet sobre as interações privadas e sobre as atividades do mercado
globalizado já é visível, menos claro é o impacto que ela terá sobre atividades
e interações com fins públicos. Qual será o impacto da Internet sobre a vida
política das sociedades contemporâneas? Como ela afetará a organização do
Estado e da sociedade civil, e as atividades de representação e participação
cívica associadas a estes espaços políticos?
Pouco a pouco vão aparecendo novos experimentos sobre o uso da nova mídia para
fins políticos ' votações via Internet, propaganda política na rede, redes
virtuais de movimentos sociais organizados etc. ', mas o quadro geral ainda
permanece obscuro e indefinido. Se por um lado esta indefinição preocupa o
cientista social ocupado com fatos empíricos, já que neste caso os contornos do
objeto ainda não estão claros, é precisamente esse grau de incerteza que impõe
a necessidade de uma reflexão pragmática e normativamente orientada para
possíveis impactos da Internet, positivos e negativos, sobre a democratização
das sociedades contemporâneas. Talvez ainda seja cedo demais para tentar
formular uma teoria política da Internet, mas se esperarmos mais um pouco, dada
a velocidade dos desenvolvimentos nesse campo, talvez amanhã seja tarde demais.
Antes de assentar a fundação e os primeiros blocos dessa reflexão, precisamos
limpar o terreno das muitas ervas daninhas que nele cresceram. Boa parte da
literatura produzida na última década sobre a Internet está orientada (ou
obcecada?) por uma reflexão filosófica que confere ao novo meio de comunicação
o estatuto de agente revolucionário, capaz de transformar a própria condição
humana. Herdeiras de um arcabouço conceitual obscurantista que mistura o jargão
da cibercultura com o nominalismo pedante de certas vertentes da filosofia
francesa contemporânea, estas reflexões pós-modernas pouco contribuem e em
muito atrapalham a construção de um conhecimento fecundo sobre a Internet que
possibilite a formulação de novos questionamentos teóricos e novas instituições
sociais. Este artigo se orienta da premissa de que é preciso pensar como a
Internet se insere no projeto inacabado da modernidade, e não como ela sinaliza
ou cristaliza o inexorável fim daquele projeto. E antes que possamos fazer essa
reflexão, precisamos questionar dois conceitos que ganharam ampla popularidade
nos estudos sobre a Internet: o de ciberespaço e o de aldeia global.
CIBERESPAÇO? DA ONTOLOGIA DO VIRTUAL À FENOMENOLOGIA DA VIRTUALIZAÇÃO
O ciberespaço não existe. O dataspacevirtual de que falava William Gibson em
Neuromancer, o livro em que cunhou o termo, nada tem a ver com os espaços de
interação social que se utilizam dos meios de comunicação eletrônica da
Internet. O aparecimento de dados no dataspace' comparado às luzes da cidade,
às estrelas do céu ' constituía uma gride regular de objetos virtuais em um
espaço infinito, e, para acessar estes objetos, os usuários utilizavam a
interface de seus computadores. Suas operações nesse mundo virtual, portanto,
eram movimentos em um espaço infinito, e Gibson descreve-os com os mesmos
recursos lingüísticos utilizados pelas ficções científicas de navegação
interespacial e pelos romances do faroeste americano (lembremos que os
operadores do ciberespaço de Gibson são, afinal de contas, cowboys). Como toda
boa ficção científica que cria um novo mundo, a persuasão do elemento
fantástico de Neuromancerdepende de uma hesitação permanente entre realismo e
irrealismo da narrativa. O realismo, no caso do ciberespaço de Gibson, é
construído através das metáforas do desbravamento por territórios
desconhecidos.
Os operadores da Internet, conhecidos hoje como internautas, não vão a lugar
algum enquanto navegam na rede. Ainda que boa parte das metáforas utilizadas
pelos próprios internautas para explicar suas interações via Internet guarde
semelhanças com as metáforas espaciais de Gibson, a Internet não constitui um
espaço. Visitar uma homepage não é visitar alguém em sua casa; afinal, ninguém
está lá para recebê-lo. Participar de um chat também não é ir a um boteco, onde
você jamais se senta à mesa de desconhecidos para discutir um tema qualquer. Em
suma, parece haver algo de seriamente equivocado em conceber a Internet como um
espaço. Pelo contrário, na medida em que interações humanas via Internet são
completamente independentes de "onde" você está, devemos dizer que nela essas
interações são desterritorializadas1.
O que é virtual? A definição de virtual tem sido tema de extenso debate na
filosofia contemporânea francesa, destacando-se os trabalhos de Gilles Deleuze
(1994), Jean Baudrillard (1995) e Pierre Lévy (1996). Estes autores convergem
em sua preocupação em desmistificar a relação que haveria entre o virtual e o
real. O virtual não se opõe ao real, pois ele também é real, ainda que não seja
atual. Similar à definição oferecida por Pierre Lévy, o termo "virtual" é
definido no Dicionário Aurélio como aquilo "que existe como faculdade, porém
sem exercício ou efeito atual; o que é suscetível de se realizar, potencial;
[ou ainda, na filosofia, aquilo] que está predeterminado e contém todas as
condições essenciais à sua realização". De acordo com Lévy, ainda que o virtual
seja algo que existe como faculdade mas que não é atual, devemos distinguir
entre o virtual e o potencial, confundidos pela filosofia escolástica. Enquanto
o potencial contém as condições de sua realização (logo o potencial se opõe ao
real), o virtual é um complexo problemático indefinido cuja atualização depende
de circunstâncias que lhe são exteriores. Se o potencial mantém uma relação
lógica com o real, o virtual mantém uma relação histórica com o atual: "Por um
lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades [ ]. Por outro lado, o
virtual constitui a entidade." (Lévy, 1996:16). Lévy ilustra esse argumento com
o exemplo da semente, que seria uma árvore virtual, mas não em potencial, pois
sua atualização como árvore depende de contingências, externalidades que sua
essência não contém.
Do que consiste, então, um espaço virtual? Se seguirmos à risca a definição de
Lévy, temos que um espaço virtual é aquele cuja atualização depende de
circunstâncias que lhe são exteriores. Se existe algo chamado ciberespaço,
pergunto, ele é a árvore virtual de que semente e de que externalidades da
semente? Os defensores do ciberespaço caem muito facilmente nessa armadilha
lógico-retórica, e é o próprio Lévy quem tenta uma solução para esse dilema.
Além da atualização de entidades virtuais, existiriam processos inversos de
"virtualização" do atual. Lévy cita o exemplo de uma empresa que se virtualiza
ao abandonar a organização espacial de suas atividades para adotar estratégias
de teletrabalho. Ainda que não possamos negar a transformação radical das
rotinas de trabalho introduzidas por essa "virtualização", deixaria a empresa
de ser atual por não ter um espaço físico que define sua territorialidade? Em
uma formulação convoluta, Lévy argumenta que o principal efeito da
virtualização é "um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto
considerado" (idem:17-18). Não há dúvida que a posição geográfica da empresa
que se torna virtual decresce muito, mas, do ponto de vista ontológico, não me
parece que o centro de gravidade da empresa tenha mudado. Este centro nunca foi
sua localização física no espaço, e o conjunto de departamentos, postos de
trabalho, livros de ponto que constitui a sua sede. No capitalismo, o centro de
gravidade ontológico da empresa sempre foi o lucro, que por sua vez pode ser
descrito como a atualização de algo que pode ser legitimamente designado de
virtual, qual seja, a posição da empresa no mercado.
Assim, ainda que os conceitos de "virtual" e "virtualização" possam ser úteis
para compreender alguns fenômenos associados à Internet, eles não devem ser
tomados como vetores de uma transformação radical perpetrada pela rede nem como
produtores de um novo espaço desterritorializado. O próprio significado da
palavra espaço fica esvaziado quando adjetivado dessa maneira. A explicação
para esse conjunto de equívocos associados ao termo ciberespaço se encontra em
uma fixação ontológica que leva os seus defensores a buscar uma maneira de
reificar e delimitar um objeto cuja existência e especificidade seriam, de
alguma maneira, uma essência distinta dos objetos que compõem o mundo atual.
Uma biblioteca virtual, por exemplo, não apresenta nenhuma diferença essencial,
ontologicamente determinada, de uma biblioteca comum, já que continua sendo um
lugar para encontrar livros. O que a torna uma biblioteca virtual é o fato de a
sua atualização na forma de consulta depender de circunstâncias que lhe são
exteriores, quais sejam, que o internauta encontre o site da biblioteca e faça
o downloaddo arquivo que contém o livro que procura. Depende também de o
arquivo estar em um formato que os aplicativos possuídos pelo internauta saibam
ler. Enquanto a biblioteca comum é atual pois os livros a serem consultados são
atuais e se encontram na biblioteca, a biblioteca na Internet é virtual porque
seus livros são virtuais. A diferença entre o virtual e o atual, portanto, é
menos ontológica e mais fenomenológica, isto é, diz respeito à diferença entre
a experiência concreta daquele que entra em uma biblioteca para consultar um
livro e a experiência concreta daquele que entra em um sitepara o mesmo fim. O
que muda é o fenômeno "consulta à biblioteca". O mesmo pode ser dito com
relação ao termo "virtualização". A característica central do processo de
virtualização é a desterritorialização, não a produção de um novo espaço. A
virtualização da comunicação humana já estava presente, por exemplo, na
comunicação telefônica, uma vez que a interação nesse caso é
desterritorializada. O que muda na comunicação virtual, portanto, é o fenômeno
"interação".
O ciberespaço não existe, portanto. Do ponto de vista ontológico, a Internet
não cria nada de novo que não existisse antes a não ser ela mesma, uma rede
mundial de computadores conectados eletronicamente, com diversos instrumentos
de comunicação humana, modificando as interações já existentes e abrindo um
novo conjunto de interações antes impossíveis. Do ponto de vista
fenomenológico, por outro lado, a Internet altera de inúmeras maneiras as
experiências de interação humana, e muitas dessas transformações estão
associadas ao processo de virtualização associado a este meio. No tênue limite
que separa a realidade da ficção científica, é até possível conceber que, no
futuro próximo, as tecnologias de realidade virtual [VR] desenvolvam-se a ponto
de permitir que duas pessoas distantes uma da outra efetivamente se encontrem
em uma sala virtual e tenham todo tipo de experiência associada à interação
face a face. Mas esse é um problema para os cientistas da informática e não
(pelo menos ainda não) para os cientistas sociais. Hoje, a virtualização
operada pela Internet é mais bem compreendida se divorciada do esforço de
constituir esse novo objeto georeferenciado chamado ciberespaço.
Em particular, quando olharmos para a relação entre Internet e política,
veremos que o interessante sobre esta relação é a virtualização e
desterritorialização que ela implica e o fato de a política ser inerentemente
um complexo de interações humanas necessariamente territorializada. Não existe
uma política universal, mas somente uma política circunscrita a um determinado
território. Ninguém pode pedir exílio no ciberespaço se ficar insatisfeito com
a política de seu país. Como então pensar que a política possa se virtualizar,
ou mesmo utilizar-se de recursos eletrônicos ou virtuais?
A "GLOBAL VILLAGE"? INTERNET, TERRITORIALIDADE E POLÍTICA
Um termo comumente utilizado para analisar politicamente a Internet é a
expressão global village(aldeia global). Os recursos interativos da Internet,
ao aprofundar a interação cotidiana entre pessoas distantes umas das outras '
um processo característico do desenvolvimento mais geral das telecomunicações
neste século ' diminuem a distância efetiva entre as pessoas, aproximando-as e
dando a impressão de vivermos em uma enorme aldeia composta por todos os
internautas do planeta. Por um lado, a agilidade, o custo reduzido e os novos
recursos comunicativos das interações via Internet, quando aliados à
impessoalidade característica da comunicação eletrônica, incentivam as pessoas
a expandirem suas redes de interação cotidiana para além do círculo de pessoas
com quem normalmente se comunicavam através de contatos ao vivo, por telefone
ou por cartas. Por outro lado, essas novas interações via comunicação
eletrônica tendem a ser mais horizontais em decorrência da ausência de enlaces
institucionais as mediando. Dessa maneira, o globo terrestre parece tornar-se
uma grande aldeia e, ao mesmo tempo, o círculo mais próximo de interações de
cada pessoa se globaliza.
A expressão global village é de certa forma hiperbólica, já que a "aldeia
global" não é nem tão global assim, sendo restrita aos países desenvolvidos e
às elites dos países em desenvolvimento, nem tão aldeia assim, uma vez que os
recursos horizontais de interação que supostamente conferem o seu aspecto
comunitário são efetivamente controlados por instituições públicas e privadas
que imprimem sobre ela regras e hierarquias bastante similares àquelas que
estruturam a complexidade da vida urbana no mundo contemporâneo. Ainda assim, a
expressão aponta para dois aspectos importantes das transformações introduzidas
pelos meios de comunicação eletrônica2.
Por um lado, na medida em que interações humanas de uma determinada pessoa
deixam de ter referência na sua localização geográfica no planeta, as redes de
interação social expandem-se para fora das unidades políticas territorialmente
definidas pela organização do Estado moderno. Mas é importante lembrar que esse
processo de internacionalização das redes de interação social já se encontrava
presente de forma germinal no desenvolvimento do epistolário político a partir
do começo da era moderna, e foi amplamente expandido com o desenvolvimento do
telégrafo e da telefonia a partir do século XIX (ver Winston, 1998).
Por outro lado, a prolífera tematização dos debates públicos nas listas de
discussão da rede parece simular a organização dos espaços públicos urbanos,
onde as pessoas se encontram para discutir assuntos variados sem a mediação dos
meios de comunicação de massa que marcam a nossa experiência urbana do pós-
guerra. Em outras palavras, a Internet parece implantar mecanismos de debate
que mantêm um certo grau de independência em relação às mediações impostas pela
mídia, permitindo dessa maneira uma relativa recuperação de uma esfera pública
nos moldes dos cafés e praças característicos do século XVIII, cujo declínio
está vinculado ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massa3.
A pergunta mais interessante, no entanto, não diz respeito à combinação do
"global" e do "local" na instituição da Internet, e sim qual efeito ' o global
ou o local ' é preponderante na construção da experiência de interatividade
ocasionada pela Internet. Em outras palavras, a Internet faz com que o mundo
globalizado tome a feição de uma aldeia, ou são as interações pessoais de cada
um que se globalizam através dela? A aparente natureza retórica dessa pergunta
ofusca um problema real que surge quando a enfocamos sob a perspectiva da vida
política das sociedades modernas. Dado que a política no mundo moderno tem
necessariamente referência em certas unidades territoriais, qual é o impacto da
Internet sobre as organizações e formas institucionais da atividade política no
mundo contemporâneo?
COMUNICAÇÃO, TÉCNICA E POLÍTICA
Partindo do pressuposto de que a sociedade não é meramente uma coleção de
indivíduos nem uma coleção de instituições ou de estruturas (de que ela não é
nem mesmo uma combinação ad hocdestas três coisas), podemos afirmar que ela é
redutível somente a uma infinita coleção de práticas humanas cuja
especificidade é determinada pelas significações atribuídas a estas práticas.
Práticas sociais, portanto, são sempre e necessariamente eventos comunicativos.
Enquanto um conjunto infinito de comunicações, definidas como a síntese de três
processos de seleção de significação (uterâncias ' ou proferimentos ',
informação e compreensão), a sociedade é constituída pela totalidade infinita
de proferimentos atuais e possíveis (ver Foucault, 1972).
Falar de política significa falar de poder, e o primeiro fato fundamental nesse
sentido é que o poder é um aspecto central de toda e qualquer comunicação
social. O conceito de poder refere-se, por um lado, a um elemento negativo
relacionado à prática de eliminação de alteridades na interação comunicativa.
Ou seja, poder refere-se à prática unilateral de criação e/ou imposição de
identidades. Mas poder também se refere, concomitantemente, a um elemento
positivo gerador de novas alteridades. Ao impor identidades, o poder constrói
novas alteridades entre aqueles que se comunicam. Seja do ponto de vista
negativo ou positivo, o que importa é que o conceito de poder sempre se refere
ao aspecto unilateral de interações comunicativas, e que esta unilateralidade
é, ainda assim, sempre e necessariamente relacional, já que só pode consumar-se
em práticas interativas de comunicação.
Portanto, ao mesmo tempo que o poder elimina e/ou produz alteridade, ele é
gerado e/ou eliminado pela mediação recíproca da alteridade entre os partícipes
da interação. Em oposição à unilateralidade do poder, a alteridade refere-se à
reciprocidade presente em toda comunicação social, ou seja, ao nível de
compreensão mútua a que visa toda interação lingüística. Toda uterância
necessariamente busca, em algum nível, ser compreendida, e, nessa busca por
compreensão mútua, um sujeito nunca pode ser transformado em idêntico a outro,
já que a identidade absoluta entre os sujeitos e a compreensão que eles têm um
do outro eliminariam a necessidade da comunicação. A definição aqui apresentada
recusa produzir uma dicotomia entre atividades cognitivas de compreensão e
atividades normativas de buscar fins. Em última instância, toda ação
comunicativa é estratégica, pois visa um fim (compreensão mútua), e toda ação
estratégica é comunicativa (pois requer compreensão mútua para a realização do
fim proposto, caso contrário se torna violência, e não ação social)4.
No construtivismo epistemológico aqui proposto, portanto, os conceitos de poder
e alteridade, enquanto os elementos centrais de toda comunicação, constituem o
local da produção e reprodução de significações e, desta forma, aquilo que todo
sujeito social processa, cognitiva e normativamente, nas suas interações
sociais. Por um lado, o conceito de cognitividade descreve a habilidade que
todo sujeito tem de apreender significações e de produzir construções internas
(mentais) do mundo externo. O conceito de normatividade, por outro lado,
refere-se ao fato de que esses sujeitos necessariamente "se recusam" a
apreender certas significações nesse processo, pois a comunicação é não somente
o ato de apreender a mensagem emitida, mas também o processo de determinar
seletivamente aquilo que não precisa ou que não deve ser apreendido (Luhmann,
1988). Assim, sujeitos sociais são necessariamente sujeitos epistêmicos, já que
o que os diferencia um dos outros são os processos de seleção de significações
que eles realizam. O real é sempre imbuído de um "excesso de significações"; o
que diferencia os sujeitos sociais em suas práticas são quais significações
parciais eles escolhem apreender em suas interações com os outros (o
reconhecimento da alteridade, portanto) e quais eles se recusam a apreender (o
exercício do poder).
Agora, do ponto de vista do problema teórico colocado neste artigo ' entender o
impacto da Internet sobre a vida política das sociedades contemporâneas ',
precisamos resolver como essa interpretação do problema da comunicação se
adequa a uma compreensão do problema de sua mediação técnica. Necessitamos
saber como a comunicação é afetada pela introdução de uma tecnologia de
produção, transmissão e recepção de mensagens? John B. Thompson oferece uma
lista de atributos dos meios técnicos de comunicação que nos ajudarão a
responder essa questão.
O primeiro atributo da introdução da tecnicidade na interação comunicativa é a
fixação das manifestações lingüísticas. O meio técnico permite que mensagens
superem a efemeridade da uterância proferida oralmente. A fixação, portanto, é
um atributo do meio técnico que substitui a memória, produzindo dessa forma um
conjunto de registros da interação. Assim, do ponto de vista político, esta
fixação inscreve a dialética entre poder e alteridade em uma luta pelos meios
de fixação da mensagem, que podem agora ser manipulados politicamente por
aqueles que detêm o acesso aos meios de fixação. Quando somente um dos
interlocutores detém os meios de fixação de mensagens, o aspecto estratégico
(ligado ao elemento de poder) da comunicação social expressa-se de maneira mais
saliente, já que um dos interlocutores pode utilizar-se do registro da mensagem
enquanto o outro não. A capacidade de determinados sujeitos sociais em fixar
suas mensagens, portanto, sempre esteve relacionada a um exercício de poder,
pois permite que eles lembrem de suas comunicações, utilizando-se delas como
recurso que outros não detêm. Por outro lado, se os meios técnicos de fixação
são socialmente difundidos, o aspecto de compreensão mútua da interação social
(o elemento de alteridade) sobrepõe-se, já que a fixação permite que todos
lembrem do conjunto de mensagens proferidas publicamente e o acessem.
Por exemplo, pensem na escrita enquanto um meio de fixação. Em contextos nos
quais somente determinados sujeitos sociais detêm o recurso da escrita, como no
caso dos encontros do Novo Mundo, tal recurso rapidamente se converte em
instrumento de poder, pois através dele os europeus podiam produzir um
conhecimento etnográfico, dos povos que encontravam, que podia subseqüentemente
ser transmitido aos novos colonos que chegavam à América. Já para as populações
nativas, tal conhecimento do outro dependia da reprodução oral e, portanto, era
mais efêmera e sujeita a reinterpretações, esquecimentos e perdas
informacionais; para os europeus a escrita garantia a estabilidade das
descrições do outro, que podiam assim ser mobilizadas para produzir estratégias
de dominação.
O segundo atributo do meio técnico de comunicação é a reprodução, ou seja, sua
capacidade em produzir diversas cópias de uma mesma mensagem. A
reprodutibilidade da mensagem proferida confere ao emissor uma maior capacidade
de difundir sua mensagem, pois pode proferi-la simultaneamente a muitos
receptores. Como mostra Thompson, é esse atributo da tecnicidade da comunicação
que está mais diretamente relacionado à sua comodificação, pois tem-se, afinal
de contas, um ganho de escala. É este mesmo atributo, como mostrou Benjamin,
que valoriza o original no contexto da mensagem com fins estéticos. Ainda que a
reprodução esteja indubitavelmente conectada à mercantilização da comunicação,
do ponto de vista político, o que nos interessa nesse atributo é novamente o
problema de quem controla a reprodução. Se somente o emissor a controla, o
elemento estratégico da comunicação social sobrepõe-se não somente à medida que
ele pode reproduzir sua mensagem e emiti-la em diversas direções e para
diversos públicos, mas inclusive uma vez que elege não a reproduzir e dar
acesso a ela para somente determinados sujeitos sociais. Mas se, por outro
lado, é conferida ao receptor a capacidade de reprodução de mensagens, ela
adquire um aspecto democratizante relacionado à denúncia, à disseminação de
informação etc. Em suma, do ponto de vista político, a reprodução técnica da
comunicação intervém no nível da difusão e coloca, portanto, questões relativas
a quem a controla. A reprodução, desta perspectiva, é um instrumento que opera
no nível do controle e da dispersão de mensagens.
Os atributos da fixação e da reprodução estão intimamente ligados ao terceiro
atributo ' o do distanciamento espaço-temporal ocasionado pelo meio técnico.
Este distanciamento é espacial na medida em que permite que proferimentos
viajem pelo espaço sem o deslocamento do emissor (pensem na carta, no rádio, ou
mesmo no megafone). Este distanciamento é temporal, por outro lado, tendo em
vista que a mensagem pode ser fixada, emitida e recebida em momentos diferentes
(pensem na impressão e na gravação, por exemplo). Do ponto de vista político,
este distanciamento espaço-temporal amplia bidimensionalmente a comunidade
comunicativa. Dele depende a própria formação do Estado nacional enquanto
espaço político, assim como o estabelecimento de uma cultura política que possa
ser temporal e historicamente definida como "nossa" nessa comunidade. O
distanciamento espaço-temporal opera, portanto, no nível da ampliação e redução
dos horizontes de identificação da comunidade política.
Por fim, o meio técnico, na medida em que codifica mensagens em uma nova
linguagem, requer dos receptores capacidades cognitivas diferentes daquelas
associadas à compreensão da comunicação oral. Enquanto a compreensão oral de
uma língua resulta do inexorável processo de socialização lingüística, a
compreensão dos códigos do meio técnico requer uma socialização específica.
Assim, a fixação opera no nível da inclusão ou exclusão de sujeitos dos
processos comunicativos, tendo em vista que eles são ou não socializados na
técnica em questão. Hoje mesmo, o que é o analfabetismo a não ser um mecanismo
de exclusão social corroborado por uma apropriação privada dos mecanismos de
fixação controlados em sua grande maioria por instituições privadas de ensino?
Chegamos, dessa forma, ao Quadro_1:
Quando analisamos as diferentes mídias dessa perspectiva, descobrimos que é
impossível julgar a politicidade delas com chaves binárias progressista ou
conservadora. Todas contêm ambigüidades do ponto de vista de seu impacto
democratizante:
Essa análise da relação entre a técnica e a política dos meios de comunicação
ficaria incompleta, no entanto, se não introduzíssemos também o fato de a
política no mundo contemporâneo ser, antes de tudo, um conjunto de interações
sociais mediadas por instituições responsáveis pela produção e difusão da
informação que é considerada pública. Em outras palavras, a mídia não é
meramente uma técnica constituinte de um setor do mercado capitalista, ela é um
conjunto de agentes político-estratégicos responsáveis pela produção e difusão
de informação. Existem dois caminhos possíveis de investigação para o problema
dessa relação social entre mídia e política. O primeiro é atentar para o modelo
privatista de organização da indústria dos meios de comunicação de massa. Este
caminho implica compreender os mecanismos pelos quais a atividade política se
torna dependente desse mercado e como processos políticos são afetados,
portanto, pelas escolhas e posições políticas tomadas pelos agentes que o
controlam. Por causa de seu papel dentro da produção e difusão da informação
pública, os agentes que controlam a mídia não são meros grupos de pressão
comparáveis a outros setores de mercado. Sua posição estratégica implica em ela
ter uma posição vis-à-vis o Estado que só é comparável a outros setores
estratégicos privados como, por exemplo, a indústria bélica. Ainda assim,
enquanto a posição estratégica da indústria bélica é definida por seu papel em
eventos esporádicos, ainda que cruciais, da vida política ' afinal não nos
encontramos freqüentemente em guerra ou em situações de convulsão social que
requerem o uso das forças armadas ', a posição estratégica da indústria de
mídia é marcante no cotidiano da política.
Esse caminho de investigação que atenta para a interação entre atores e
instituições da mídia e atores e instituições políticas é crucial para uma
compreensão do impacto da Internet sobre as democracias contemporâneas.
Precisaríamos analisar os padrões econômicos de formação da indústria de
Internet e o espaço que ela vem ocupar na miríade de meios de comunicação que
compõem o campo midiático.
Mas é possível trilhar ainda um segundo caminho. A apropriação social de um
meio de comunicação é determinada não somente pela política feita por aqueles
que controlam o meio, mas também por características técnicas das formas de
comunicação permitidas por ele. Penso que a melhor forma de trilhar esse
caminho da perspectiva da Internet é tomar como ponto de partida a relação
entre tecnicidade e politicidade no caso daquele meio de comunicação que ocupa
hoje o centro do campo midiático, qual seja, a televisão.
O fato de a televisão ser a última inovação de impacto nas tecnologias de mídia
antes da Internet não é meramente um problema de antecedência histórica em uma
linha evolutiva de meios de comunicação. Enquanto o último grande veículo antes
da Internet, a TV é o meio que formata e determina o que a comunicação
eletrônica via Internet faz ou deixa de fazer. É em referência à televisão '
imitando-a ou distanciando-se dela ' que o modelo de comunicação da Internet se
institui.
O desenvolvimento do cinema, que, como todos sabem, nada mais é do que uma
técnica de projeção de fotografias sucessivas exibidas em uma velocidade que
simula movimento, dotava o homem na capacidade de produzir reproduções do mundo
visível que combinava, na expressão de Gilles Deleuze, imagem e movimento.
Podemos, portanto, dizer que o cinema foi a primeira mídia a realizar uma
virtualização completa do mundo da luz. Os olhos, filtrados pela lente da
câmera, têm acesso a uma projeção bidimensional de eventos reais captados pelo
cinegrafista. A utilização desses novos recursos técnicos a princípio esteve
vinculada à indústria do entretenimento, e rapidamente esta desenvolveu
técnicas (movimentos de câmera, cortes, planos e contraplanos) que passavam à
audiência a impressão de que ela testemunhava fatos verídicos. A indústria do
jornalismo não demorou a descobrir a nova técnica, e o século XX ficou marcado,
portanto, pelo jornalismo audiovisual. A televisão é hoje a lente do mundo. Ela
nos dá acesso às imagens do que acontece em lugares em que não estamos. Como a
fotografia, ela é reprodutível, suas imagens podem ser copiadas e mostradas
inúmeras vezes.
O jornalismo televisivo, portanto, é o principal instrumento de virtualização
do mundo contemporâneo, pois nele todo evento captado por uma câmera em algum
lugar do mundo é desterritorializado. A guerra contra Bin Laden ocorre dentro
da nossa casa, diante dos nossos olhos, sem nenhum dos riscos associados a
estar no campo de batalha. Candidatos a cargos públicos fazem comícios, sem
qualquer necessidade de irmos à praça pública ouvir seu discurso. Em suma, na
televisão, o mundo real da política, territorializado, torna-se virtual,
desterritorializado.
A desterritorialização da interação social perpetrada pela televisão tem
características específicas associadas à tecnicidade do meio. É verdade que
muitas delas originaram no rádio a primeira técnica de comunicação de massa, em
que uma única mensagem produzida atingia muitos receptores simultaneamente. Mas
erram aqueles que supõem que todas as grandes transformações da política
perpetradas pelos meios de comunicação de massa ocorreram com o rádio, ainda
que não seja possível retirar desse meio um papel central na produção de uma
nova forma de interação social que alterou significativamente a relação entre
discurso político e sua audiência (Graham, 1999:36-37). Existem outras
transformações da política perpetradas pela televisão que são específicas ao
meio audiovisual que, ou se originaram com o cinema, como a produção de um
espaço físico interno à tela, o estúdio ou a locação, ou são originárias do
próprio meio televisivo, na medida em que esse espaço cinematográfico é
deslocado para o "território" da casa. Em suma, qual é a natureza da
virtualização na comunicação televisiva? Como esta virtualização se relaciona
àquela da Internet, e como a tecnicidade do meio televisivo determina a
politicidade do campo midiático por ela dominado e do qual, devemos lembrar, a
Internet é apenas, pelo menos ainda, um elemento periférico?
John B. Thompson propõe o conceito de quase-interação mediada para descrever a
politicidade da televisão enquanto meio de comunicação de massa (Thompson,
1995, cap. 3). Este conceito é produzido no contexto de uma tipologia
tripartite de formas de interação, definida pelo tipo de mediação existente.
Primeiro, temos interações que não são mediadas tecnicamente, o que Thompson
denomina, seguindo E. Goffman, de interação face a face. Esta forma de
interação é caracterizada pela co-presença dos interlocutores, pela
dialogicidade de suas trocas lingüísticas, já que todos são, simultaneamente,
produtores e receptores de mensagens, e pela multiplicidade de formas
simbólicas que, combinando oralidade e teatralidade, operam na produção de
significação.
O segundo tipo de interação é aquela que é mediada por algum meio técnico, como
no caso da carta ou do telefone. Essa mediação da interação implica três
deslocamentos simultâneos em relação aos atributos da interação face a face. Em
primeiro lugar, ocorre o que descrevemos acima como desterritorialização (ou
virtualização) da interação, na medida em que a co-presença dos interlocutores
é substituída pela comunicação a distância. Em segundo lugar, ainda que a
interação continue sendo dialógica (todos os envolvidos são produtores e
receptores de mensagens), ela deixa de ser sincrônica, havendo sempre um hiato
entre o momento da produção e da recepção da mensagem, ainda que no caso da
televisão este hiato seja reduzido quase a ponto de simular a simultaneidade da
interação face a face. Por fim, na medida em que se introduz o meio técnico,
perde-se a multiplicidade de formas simbólicas na produção da significação, já
que toda a teatralidade desaparece da produção da significação.
A quase-interação mediada é definida por Thompson a partir desses dois outros
tipos de interação. Assim como a interação mediada, ela supõe
desterritorialização e perda de sincronia. Diferente da interação mediada, no
entanto, a quase-interação mediada permite a comunicação um a muitos, em
oposição à comunicação um a um das duas outras formas de interação, e o
conseqüente anonimato dos receptores da mensagem. A televisão, assim como o
rádio, é uma forma de quase-interação mediada ' ou seja, é um meio de
comunicação de massa ' tendo em vista que ela é um meio de difusão de
informações produzidas por um sujeito político (um órgão de imprensa), que são
dirigidas simultaneamente a uma enorme audiência.
Esta interação um a muitos, em oposição à interação um a um da carta com
destinatário definido, está associada ao surgimento do jornalismo de massa do
século XIX. Com a formação e consolidação dos estados nacionais, com
territórios englobando inúmeras localidades e populações que falam uma mesma
língua, surgem os meios de comunicação de massa. Mas o jornal, pela própria
dificuldade de difusão física do material impresso, tende a dirigir-se a
públicos locais, e não nacionais, fato este evidenciado pelos poucos jornais
mundo afora que conseguiram estabelecer-se como veículos nacionais de mídia (no
Brasil, temos na melhor das hipóteses dois ou três jornais nacionais, não?). A
comunicação de massa, portanto, consolida-se com o surgimento da radiodifusão,
que pode prescindir de meios físicos para transmitir a mensagem. O fato de o
produtor da informação comunicar sua mensagem a um enorme conjunto de
destinatários implica que esta mensagem, para ser compreendida, precise ser
dirigida a um destinatário médio, ou seja, o "um" que comunica simultaneamente
aos "muitos" deve padronizar e adequar a informação para que o máximo de
pessoas de seu público-alvo a compreenda. Este nivelamento tende a dar-se por
baixo, isto é, a mensagem televisiva, assim como a mensagem radiofônica,
utiliza-se de um vocabulário simples e direto, compreensível à maior parte da
audiência.
Mas a característica mais importante da quase-interação mediada que define a
televisão é a separação radical que esta introduz entre a produção e a recepção
da informação que ela circula. E o que a Internet faz é reintroduzir a
possibilidade da interação mediada e proliferar a capacidade de produção.
Entender o impacto da Internet (real, já existente, e potencial, normativamente
orientado à democratização) é entender como essas duas características que a
diferenciam da televisão definem o espaço que ela vem ocupar no campo
midiático.
As principais inovações da Internet em relação à televisão podem ser
compreendidas a partir do Quadro_3.
Enquanto forma de quase-interação mediada, a Internet representa uma importante
inovação em relação à televisão pelo fato de permitir uma proliferação de
produtores de mensagens. Enquanto os fatores da produção televisiva se agregam
em um complexo financeiro e infra-estrutural que praticamente determina a
natureza oligopolista da exploração econômica do meio, os fatores da produção
de sites na Internet são infinitamente mais baratos e menos complexos,
permitindo, portanto, uma ampliação estrondosa da capacidade de produção de
mensagens na forma de sites por parte de indivíduos e pequenas corporações.
Todavia, são os mecanismos de interação mediada que a Internet possibilita '
listas de discussão e chatrooms ' que têm (e podem vir a ter) um impacto mais
profundo sobre a política. Por quê? Porque possibilitam a ampliação dos fóruns
a públicos de debate e discussão, no sentido habermasiano da discussão da
ampliação da esfera pública.
O problema, no entanto, como aponta Cass Sunstein (2001) em seu livro
Republic.com, é que os ideais de participação e deliberação que definem um
conceito de esfera pública requerem, do ponto de vista da circulação de
informação, que os cidadãos sejam expostos não somente à informação e a
cidadãos com os quais eles escolhem interagir, mas também a informações e
pessoas inesperadas. Parte do papel positivo exercido pelos meios de
comunicação de massa consiste precisamente em produzir essas informações e
permitir os encontros inesperados, gerando, dessa forma, um caldo de
informações e argumentos que estão igualmente disponíveis a todos os cidadãos,
independente de suas redes particulares de interação social. O problema da
Internet, desta perspectiva, é que ela produz uma individualização
excessivamente radical dos mecanismos de filtragem de informações, argumentos e
encontros. Essa particularização dos filtros implica um potencial de
"guetização" (fragmentação) social. Do ponto de vista republicano, talvez o
aspecto mais grave da questão seja que esta fragmentação social é acompanhada
de uma diminuição do estoque de debates políticos que são travados em termos de
bens públicos, e de uma diminuição das liberdades cívicas, já que ser livre não
é somente a possibilidade de formar e satisfazer preferências sem
interferência, mas de formá-las e satisfazê-las depois de uma exposição pública
satisfatória à informação e aos argumentos relevantes a tais escolhas.
Enfim, para usar uma metáfora sugerida pelo próprio Sunstein, a Internet e os
discursos de soberania do consumidor que acompanham o seu desenvolvimento podem
eventualmente desembocar em um cenário no qual cada um de nós, em vez de ler um
jornal ou assistir a um telenoticiário comum, leremos o nosso Daily Mena
Internet, um diário de notícias totalmente costumizado às minhas preferências e
que, do ponto de vista republicano, implicaria uma drástica redução do espaço
público e de seu vigor enquanto lócus de convivência de diversidades e de
produção de bens comuns.
Como ocorreu com todos os outros meios de comunicação que antecederam à
Internet, o que existe é uma batalha política em curso pela definição dos
padrões de apropriação do meio. E ainda não sabemos se será a soberania do
consumidor ou a soberania do cidadão que será privilegiada nesse processo. Nos
casos do rádio e, particularmente, da televisão, nós sabemos o que aconteceu.
NOTAS
1. Algo que é verdade, diga-se de passagem, em interações humanas via telégrafo
ou telefone.
2. Vale notar que este desenvolvimento da idéia de aldeia global já estava
presente no contexto da mídia televisiva. (In)feliz coincidência que a TV Globo
tenha usado tal slogan. Para uma análise da aldeia global introduzida pela TV
ver Graham (1999:34).
3. Este é o argumento, já clássico, elaborado por Jürgen Habermas (1984).
4. Percebam que essa definição de comunicação enquanto poder + alteridade
aproxima-se da definição habermasiana por um lado, mas distancia-se em um
importante aspecto. Habermas divide atos de fala em ação comunicativa e ação
estratégia, referindo-as respectivamente a atos de fala que buscam entendimento
mútuo e a atos de fala que buscam realizar objetivos (ver Habermas, 1987).