Multiculturalismo, Estado e modernidade: as nuanças em alguns países europeus e
o debate no Brasil
Não há dúvida de que, no Brasil como em outros países, o termo "étnico" passou,
em poucos anos, do gabinete do antropólogo para a linguagem comum. Hoje, basta
folhear qualquer publicação periódica para nos depararmos com artigos, matérias
e propagandas com temas étnicos, que vão desde comida até produtos de beleza.
Resta a dúvida, porém, se ao uso e abuso dessa "nova" palavra corresponde uma
mudança real da sociedade na forma de lidar com a diferença, ou se, de maneira
paradoxal, as relações raciais mudaram relativamente pouco, embora a sociedade
política e até parte da sociedade civil tenham escolhido se definir como
multiétnicas. Este estudo se propõe a explorar um aspecto particular do que me
parece ser a crescente distância entre a linguagem em torno da etnicidade
formulada por alguns setores da sociedade e a realidade cotidiana das relações
raciais
No Brasil, o debate sobre o fenômeno do multiculturalismo tem mostrado essa
distância entre discurso e prática social (Fry, 2000). O objetivo deste artigo
é contribuir para a contextualização de tal discurso, histórica e
sociologicamente. Para tanto, descrevo como esse fenômeno surgiu enquanto ideal
de sociedade em países europeus que há muito estão tentando lidar com a
diferença étnica, racial e cultural, a partir de um conjunto de ações públicas.
Após enfocar a situação desses países, teço considerações sobre o
multiculturalismo no Brasil. Saliento a importância de analisar tanto o debate
como o olhar "de fora", evitando, porém, reduzir a reflexão comparativa
unicamente ao eixo Estados Unidos-Brasil. Em tempo, preciso fazer uma
confissão: embora me tenha tornado um pessimista com relação ao poder
supostamente libertador das identidades setoriais, como aquelas de cunho
étnico, já que não considero que elas sejam em si emancipadoras, estou
convencido de que é fundamental manter uma postura otimista a respeito do
multiculturalismo. Isto porque a correção das desigualdades raciais no Brasil
não pode ser esperada a partir da operação da "mão invisível do mercado". Na
verdade, são absolutamente necessárias tanto medidas compensatórias da
desigualdade social quanto ações reparatórias do racismo histórico, assim como
intervenções multiculturalistas ' no sentido de se criarem melhores condições
para a aceitação dos diferentes e para uma educação anti-racista.
Vou me ater aos países europeus que receberam uma forte imigração, sobretudo a
partir do segundo pós-guerra, as assim chamadas sociedades multiculturais, onde
se verifica uma relação orgânica entre discurso, lei e práticas
multiculturais1. Refiro-me concretamente à Alemanha, França, Bélgica, Holanda e
Inglaterra2, em cuja base do multiculturalismo se encontram três fontes
clássicas.
Em primeiro lugar, há o pacto social ' o compromisso do Estado e de parte das
elites de cuidar dos excluídos e pobres. Nesse sentido, pensa-se os pobres ' as
categorias de excluídos ' como passíveis de medidas legislativas particulares,
como a redistribuição de renda, por exemplo. Claro que se trata de um processo
de incorporação seletiva de uma parte deles: nem todos podem e devem ser
ajudados, somente aqueles que se submetem às regras do convívio estabelecidas
pelo pacto social. Na Holanda, o primeiro seguro-desemprego foi instaurado em
1522 e logo foi preciso definir quem era digno de recebê-lo (Swaan, 1988; Regt,
1978)3. Para isso, estabeleceram-se direitos especiais, mesmo no contexto de
uma legislação universalista. O objetivo substancial era, e ainda é, prevenir
ou, pelo menos, administrar o conflito.
A segunda fonte importante é o passado colonial, quer dizer, a forma pela qual
se procederam nas colônias a organização e, às vezes, até a militarização do
confronto em face da diversidade cultural. Nesse sentido, pode-se falar de
diferentes estilos de colonialismo: a) o sistema britânico do indirect rule ou
governo indireto; b) o sistema das sociedades plurais como, por exemplo, a do
Império Holandês, que se baseava na existência de um direito étnico. Assim, no
Suriname, até os anos 30, o direito civil e, em alguns casos, o penal variavam
de acordo com o grupo étnico. Existia o direito de propriedade para os
javaneses, diferente daquele aplicado aos hindustanos, que, por sua vez,
diferia da forma jurídica (ocidental) pela qual eram julgados os negros e
mestiços. Um sistema não muito diferente valia na África do Sul sob o regime do
apartheid ' não por acaso, uma palavra holandesa; e c) no extremo oposto, havia
a versão do colonialismo do Império Francês, baseada na noção de francité, de
universalismo na "boca do fuzil", e na atratividade de uma ocidentalização
possível, embora a altos custos (ou a duras penas), para uma parcela da
população "nativa" (Diouf, 1999). Com efeito, práticas e teorias divergiam em
muitos casos, e todo colonialismo, pelo menos na África, em algum momento
lançou mão de ambos os tipos de domínio, o direto e o indireto.
Todos esses estilos de colonialismo previam a institucionalização de algum tipo
de etnicização dos direitos e deveres, embora, depois da Segunda Guerra
Mundial, muitas vezes associados a um discurso de igualdade e de respeito à
diferença. De qualquer forma, os três estilos levaram a hábitos étnicos e
culturais e a consensos que se mostraram tenazes e capazes de influenciar
bastante a época pós-colonial. Nos últimos anos, porém, esses sistemas estão
sendo colocados em discussão pelo contexto da internacionalização, que altera a
relação entre colônia e metrópole a partir das grandes migrações e da
globalização das culturas. Depois da Segunda Guerra Mundial e, com mais
intensidade, nas últimas duas ou três décadas, é a colônia que vem para a
metrópole, enquanto, ao mesmo tempo, a metrópole permanece na colônia,
inclusive se enraizando ainda mais nela. Nunca se falou tanto o holandês no
Suriname e o francês no Mali como hoje em dia.
A terceira fonte clássica é a tradição, que diz respeito às formas de se lidar
com as diferenças étnicas e regionais internas desses países europeus (Lucassen
e Penninx, 1994). Trata-se do assim dito "regionalismo" de alguns deles que se
afirmam como Estados-nação na Europa a partir de um compromisso com as
diferenças culturais regionalizadas, redistribuindo recursos e poder político
para minorias e "colônias" internas. Refiro-me aos catalães, bascos, bretões,
galeses, sardos, corsos etc.
É evidente que nem todo país da Europa é atingido da mesma forma por esses três
fenômenos: pacto social, passado colonial e regionalismo. Um determinado país
pode dar provas de generosidade e tolerância com relação ao pacto social, mas
não ao regionalismo, e vice-versa. Há numerosas tentativas de entender essas
variedades dividindo a Europa em modelos. Castles e Miller (1993), importantes
sociólogos das migrações, muito presentes no debate sobre o multiculturalismo e
inspirados por Dumont, tentaram classificar os cinco países europeus
anteriormente mencionados, uns como mais, outros como menos, de
multiculturalistas. Fundamentalmente, eles insistiram no fato de que os
princípios da jus sanguinis, que estariam na base das Kulturnazion,e da jus
soli, que estariam na origem da Staatnazion,ainda são os verdadeiros
inspiradores das formas de lidar com as diferenças étnicas. Castles e Miller
dividiram os países europeus de grande migração em três modelos: de exclusão
diferencial ' a Alemanha; de assimilação ' a França; e de multiculturalismo ' a
Grã-Bretanha. A seguir, procuro argumentar que a situação européia é mais
complexa que isso.
O Conselho da Europa, em um esforço de pragmatismo e postura ecumênica, optou
por dividir de outra forma os países europeus com relação à multiculturalidade,
salientando o fator variedade. De um lado, estariam países como a França, onde
a nacionalidade é vista como o início da integração; de outro, países como a
Alemanha, onde a nacionalidade é tida como o resultado final do processo de
integração. Na Alemanha, Suíça, Bélgica e França, a ênfase seria na cidadania;
já na Holanda, Suécia, Noruega e Dinamarca, no pluralismo cultural. A
Inglaterra é um caso à parte, pois o realce não é no pluralismo cultural, mas
na luta contra o racismo. Nesse sentido, a Inglaterra é o único país europeu
onde as agências governamentais utilizam o termo relações raciais, em lugar de
relações interétnicas.
De qualquer forma, em todos esses países, a diversidade étnica, resultado da
imigração, colocou em discussão o pacto social. Uma coisa seria aceitar pagar
impostos para subsidiar os desempregados e os pobres nativos; outra seria fazê-
lo para beneficiar aqueles que, como os claimants, na Inglaterra, têm direito à
seguridade social mesmo sendo paquistaneses que nem ao menos falam inglês
corretamente, ou muçulmanos, que lidam de forma "diferente" com as tradições
culturais britânicas. A imigração em massa também coloca em discussão o
equilíbrio interno de um país tanto em relação às suas minorias regionais ' por
exemplo, alterando delicados equilíbrios demográficos e eleitorais entre
flamengos e valões na Bélgica ' como em relação às imagens desses "outros"
("não brancos") construídas ao longo da experiência colonial ' os que antes
eram os sujeitos coloniais, os selvagens, incivilizados, agora moram e até
trabalham conosco. Nesse sentido, a imigração tem tido um efeito quase
revolucionário sobre a realidade social dos países em questão. Diversas
variáveis contribuem para estabelecer diferenças na aplicação concreta de
medidas multiculturalistas: primeiro, há a diferença entre discursos e
práticas; segundo, a imigração manifesta-se em épocas e dimensões diferentes;
terceiro, os efeitos reais dessas medidas são diferenciados.
É importante lembrar que o tema da diversidade étnica e cultural relacionado
aos imigrantes se explicita em épocas distintas nos diferentes países
analisados. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra foi a primeira a
receber uma imigração maciça, já a partir dos anos 40 e 50. Ali, já no final
dos anos 60, chega à idade adulta a "segunda geração" de descendentes de
imigrantes do pós-guerra ' os filhos dos trabalhadores contratados no Caribe
anglófono. Na Holanda, somente no final dos 70 o governo reconhece, pela
primeira vez, que o país é de imigração. Na França, isso se dá na década de 80,
com Mitterrand. Na Alemanha, no final dos anos 90, finalmente, a legislação é
alterada para permitir a dupla nacionalidade e, sendo assim os imigrantes e
seus descendentes não mais seriam chamados de Gastarbeiter (trabalhador
hóspede).
Embora, segundo Dumont, cada grande Estado europeu disponha de uma noção
própria de cultura ' na maioria das vezes arcaica ', assiste-se, nos últimos
vinte anos, a uma convergência entre eles no que diz respeito às políticas de
imigração e às formas oficializadas de lidar com a diferença étnica. Isso vale,
inclusive, para os países do sul da Europa, que nestes tempos se transformaram
de países de forte emigração em países com uma crescente e específica
imigração. Aliás, a experiência dos países que somente agora estão vivendo o
impacto da diversidade cultural imigrada coloca em discussão as grandes teorias
que fazem da imigração parte constituinte da modernidade, esquecendo que a
globalização está colocando em movimento regiões inteiras, não apenas na
direção dos países mais desenvolvidos, mas também daqueles cujas fronteiras ou
economia informal permitem alguma inserção, mesmo que precária. De fato,
algumas das mais recentes migrações são Sul-Sul, rumo a novos centros que
surgiram próximo da periferia, onde a diversidade se explicita de forma
traumática, como as migrações do Sri Lanka para os Emirados Árabes ou as do
Mali para a Nigéria.
Além de se tratar de países com culturas distintas, é preciso acrescentar que
hoje as políticas que dizem respeito à diferença etnocultural mostram, em cada
país, com relação ao passado e às três fontes clássicas mencionadas antes,
tanto continuidade como descontinuidade. Um forte elemento de continuidade
depende do "enraizamento" do multiculturalismo na história do Estado social e
do ensino obrigatório. Se o serviço público é a esfera em que se experimentam
medidas em prol de minorias, como quotas, programas de treinamento e planos de
carreira, a escola pública é o palco principal do discurso pró-diversidade do
multiculturalismo. Sobretudo na Holanda, na Alemanha e na Inglaterra, os
respectivos Ministérios da Educação investiram muito dinheiro e recursos na
implementação de medidas multiculturalistas, executando políticas afins nas
escolas e estimulando os professores a formarem uma visão de mundo um pouco
mais tolerante e cosmopolita do que antes (embora segundo princípios que já
critiquei antes, por meio dos quais as culturas de maioria e minoria coexistem
em estilo mosaico ou
patchwork
)4. Na maior parte dos casos, trata-se de um esforço feito com grande
seriedade. Nestes cinco países, Holanda, França, Alemanha, Inglaterra e
Bélgica, o Estado gerencia as medidas e articula os discursos acerca do
multiculturalismo. De fato, este surge como vontade e resposta do Estado,
muitas vezes até contra os interesses da iniciativa privada, que chega a
boicotar medidas como a contract compliance(a obrigação, por parte das empresas
contratadas pelo Estado, de efetivar programas de ação afirmativa para
determinadas minorias).
Nesse sentido, hoje, a efetivação do multiculturalismo está, muitas vezes,
colocada em discussão pela própria crise da máquina estatal, característica
desta época nos cinco países mencionados. Embora, neles, o Estado continue
muito presente nas políticas sociais e não pareça estar transformando-se em uma
máquina punitiva com relação à pobreza ' ao contrário do que aparenta acontecer
nos Estados Unidos (Wacquant, 1998) ', seu poder de intervenção vem sendo
severamente afetado pelos cortes dos gastos públicos e a privatização de
serviços.
Nas últimas décadas, tem-se também percebido descontinuidades no que diz
respeito à noção de nacionalidade e à ordem geopolítica na Europa, o que levou
a uma alteração dos fluxos migratórios, com a intensificação destes na direção
Leste-Oeste. O sentido da nacionalidade mudou assim que se foi tornando
conhecida a possibilidade de opção pela dupla cidadania. Mesmo a concepção de
integração tem sido sujeita a transformações, no âmbito de uma modificação na
postura dos Estados. Por exemplo, nos últimos anos, o governo holandês
priorizou, nesta seqüência, as seguintes palavras de ordem: assimilação,
integração, direito a manter a própria cultura estrangeira e, finalmente,
inburgering(literalmente, adoção das normas da sociedade holandesa) associada
ao relaxamento das regras para concessão da dupla nacionalidade.
Outro motivo de descontinuidade é representado pela midiatização crescente das
sociedades, que tem obrigado os países hóspedes a reverem suas políticas
culturais. Por exemplo, hoje, a França possibilita transmissões radiofônicas em
línguas que não a francesa. Até o governo de Mitterrand, era difícil uma rádio
transmitir em línguas minoritárias, como o árabe ou o flamengo. Na verdade, se
esses novos meios de comunicação oferecem novos espaços, também criam algumas
contradições. Assim, a programação, geralmente semanal, produzida pelas
pequenas elites étnicas, formadas por porta-vozes das diferentes minorias '
como os jornalistas dos programas para imigrados das TVs estatais holandesa,
australiana ou canadense ' que se beneficiam das medidas inspiradas pelo
multiculturalismo tornou-se completamente obsoleta. As TVs a cabo, via
satélite, permitem que se assista, ao vivo, à programação, em italiano ou em
turco, transmitida em tempo real da Itália ou da Turquia. Inclusive, existem
programas de grupos fundamentalistas islâmicos que são proibidos na Turquia '
que, no sentido das minorias religiosas ou étnicas, ainda é um país de
legislação bastante conservadora ', mas que podem ser vistos pelas comunidades
turcas na Europa; e da Inglaterra transmite-se o único programa de TV em curdo.
Essas novas possibilidades tecnológicas ajudaram, em muito, para que algumas
comunidades, como a curda ou a sikh, fizessem de Berlim e de Londres,
respectivamente, suas "capitais políticas" e, em certo sentido, também
culturais (Appadurai, 1997).
Com relação à diferença entre discursos e práticas, temos, entre outros, o caso
da Inglaterra. Neste país o discurso multicultural é abertamente assumido pelo
Estado, que tem sido pioneiro na Europa em introduzir medidas legais contra o
racismo e fiscalizar sua implementação; porém, quando se trata de tomar
providências concretas de apoio à religião e às línguas das minorias, há países
menos abertos ao multiculturalismo do que a Inglaterra mas que, na realidade,
são bem mais generosos com suas minorias, como é o caso da Bélgica ' um país
visto por Castles como monocultural ou, no melhor dos casos, como bicultural
(francês-holandês) ', que permite às escolas islâmicas o ensino do árabe sem
nenhuma restrição. Então, com relação a que somos multiculturais e de que
minoria se fala?
Os resultados das medidas e práticas multiculturalistas, ademais, são
diferenciados. O efeito dessas práticas pode ser um para os trabalhadores
imigrados, outro para as minorias originárias das ex-colônias ' que, na maioria
dos casos, estão mais familiarizadas com a língua, a religião e a cultura da
metrópole ' e ainda um terceiro para as minorias regionais. Assim, um país pode
ser generosamente multicultural com uma minoria e pouco tolerante com outra.
Por exemplo, a Itália obteve o consenso da comunidade de língua alemã no sul do
Tirol, contribuindo para tornar essa província, que até os anos 60 era
relativamente pobre e palco de um violento terrorismo separatista, na mais rica
da Itália. Isso aconteceu por motivos geopolíticos, em conseqüência das
pressões da Alemanha. A Itália não tem seguido a mesma política em relação à,
mais numerosa, população da Sardenha, já que esta é politicamente menos
homogênea e também menos importante no contexto geopolítico da Europa
meridional.
Em geral, o ensino das línguas das minorias imigradas é mais facilitado e a
liberdade religiosa mais efetiva em países como a Holanda, que têm uma tradição
de divisão religiosa bem administrada para que não se transforme em cisão de
cunho étnico. Isso é mais difícil de ocorrer na Inglaterra, onde ainda se vive
uma relativa interconexão do Estado com a igreja anglicana, que cumpre os
ideais tradicionalistas da Coroa britânica. Embora hoje a Inglaterra seja mais
plural que antes, está longe de se equiparar à Holanda, onde existe, amparado
pelo Estado e dentro de uma tradição de liberdade religiosa subvencionada ' ou
mesmo de segregação religiosa subvencionada ', um bom número de escolas hindus
e islâmicas.
Ademais, as medidas inspiradas pelo multiculturalismo podem não ter a mesma
aceitação em todos os grupos para os quais elas são destinadas. Trata-se, em
substância, de quatro grupos com características, às vezes, bastante
diferentes: 1) os imigrantes das ex-colônias e seus descendentes, em particular
originários do Caribe ou de outros lugares onde a língua e a religião da
metrópole já eram enraizadas. Na maioria dos casos, trata-se de pessoas que
dispõem da cidadania do país hóspede ou que têm relativa facilidade em adquiri-
la; 2) os imigrantes de outros países da União Européia e seus descendentes (p.
ex., os italianos na Bélgica); 3) outros imigrantes e seus descendentes (p.
ex., os turcos na Alemanha, Suécia e Holanda); 4) os integrantes das minorias
"regionais" (p. ex., os alemães de origem russa ou romena e os irlandeses na
Inglaterra). Cada um desses agrupamentos expressa demandas e se relaciona com o
multiculturalismo de forma distinta. Um exemplo é o debate em torno da
disciplina escolar denominada "ensino na própria língua e cultura". As
comunidades afro-caribenhas na França, Grã-Bretanha e Holanda, países onde não
é prevista essa disciplina, com base no fato de que as comunidades seriam,
substancialmente, formadas por cidadãos negros com os mesmos direitos e línguas
dos brancos nativos (Grosfoguel, 1997; Sansone, 1999), chegaram em muitos casos
a se opor aos pedidos em prol desse tipo de ensino ' que era promovido
basicamente por grupos de imigrantes, como turcos e marroquinos ' no âmbito dos
conselhos escolares que reúnem docentes, alunos e pais (Vermeulen, 2001). Os
afro-caribenhos tendem, pelo contrário, a pedir um ensino multirracial, menos
"eurocêntrico" e declaradamente anti-racista e insistem na necessidade de
enfatizar o caráter universal do ensino básico.
Alguns conflitos entre "europeus" e "estrangeiros" ' por exemplo, aqueles em
torno do uso do véu na escola, da necessidade pedagógica de meninos e meninas
terem aula de natação juntos ou da educação sexual nas escolas ' têm oposto, de
fato, "ocidentalizados" (que incluem os afro-caribenhos) a "conservadores"
(que, além da maioria muçulmana, incluem "nativos" de fé cristã). Em outras
palavras, embora, muitas vezes, a ideologia em torno do multiculturalismo
suponha uma frente única de todos os "não-brancos" ou "étnicos", no conjunto
dessas minorias e no interior de cada grupo também há segmentação. Além disso,
os diferentes grupos étnicos reproduzem entre si muitos dos estereótipos que a
"maioria" utiliza em relação às minorias, aos quais se acrescenta toda uma
série de visões etnocêntricas herdada do país de origem ou mesmo criada no
âmbito do processo migratório. Assim, por exemplo, na Bélgica e na Holanda,
italianos e turcos consideram-se, em muitos casos, "melhores trabalhadores" do
que os marroquinos.
Ironicamente, outro fato também contribui para a variedade em termos de
práticas e medidas inspiradas no multiculturalismo: o esvaziamento do poder do
Estado, em conseqüência não somente da retração do gasto público, mas também da
internacionalização de parte da legislação. Isso leva a uma crescente
convergência de Estados-nação, como resultado da ação da União Européia em prol
da harmonização da legislação pertinente aos direitos e deveres dos imigrados e
das minorias étnicas em geral. As diferenças nacionais também diminuem em
virtude da reduzida influência da autoridade centralizadora do Estado e do
fortalecimento, na Europa norte-ocidental, das regiões urbanas com alcance ou
até mesmo território transnacional (Randstad, Ruhrgebied, Île de France, Grande
Milão etc.). Assiste-se assim a uma progressiva diferenciação entre cidades do
mesmo país: entre pequenas e grandes cidades e entre cidades de tradição
social-democrata e de tradição mais conservadora. Na Alemanha, a diferença
entre as políticas multiculturais em duas cidades como Munique e Berlim é
enorme, muito maior que entre dois países, muitas vezes tidos como
intrinsecamente diferentes no que diz respeito à noção hegemônica de cultura,
como a França e a Alemanha. Em um mundo que se globaliza e universaliza em
termos de direitos e leis, às vezes as práticas cidadãs são muito mais
diversificadas do que se acredita. Inclusive, as cidades competem entre si por
recursos e pela instalação de novas empresas. Nesse processo, uma cidade pode
atrair ou não as minorias étnicas mais pobres e menos qualificadas do ponto de
vista profissional. Ademais, já se consolidaram redes importantes que levam um
grupo particular a se concentrar em uma determinada cidade. Na Holanda, Roterdã
atrai os turcos; Amsterdã, os surinameses de origem creole; e Haia, os
surinameses de origem hindustana.
Finalizando esse tema, hoje, a integração dos "estrangeiros" nesses países se
dá em um contexto mais fluido do que no passado, definido por cidades e regiões
mais do que por Estados, e caracterizado tanto pela hetero quanto pela
homogeneização cultural.
O último problema sobre o qual vou discorrer é particularmente alarmante: as
categorias necessárias para a implementação de políticas multiculturais tendem
a ser construções rígidas e estanques que obliteram as diferenças de classe no
interior de uma determinada minoria étnica, escondem o que de comum essa
minoria pode ter com outras minorias ou com algumas camadas sociais da maioria,
fossilizam dinâmicas culturais internas a um grupo, fortalecendo divisões
históricas (os árabes versus os berberes; os turcos versus os curdos),
coletivizam indivíduos, transformando-os em "grupos étnicos", e tendem a ser
etnogenéticas ' elas "fazem" o grupo étnico e criam sua "problemática". Isso
porque, em um pacto que podemos chamar de faustiano, as culturas étnicas que
merecem apoio são aquelas de grupos tidos como pobres ou marginalizados. Na
Holanda, as agências do Estado tiraram os chineses, um grupo numericamente
importante, das categorias que merecem apoio, porque estes não estariam com
graves problemas sociais. Então, a liderança da comunidade chinesa, com medo de
o sucesso de uma parte de seus membros obscurecer a questão do desemprego de
uma outra parcela, declarou irada: "mas nós também temos graves problemas".
É irônico que todo esse processo ' em que os imigrados e seus descendentes são
sempre tratados como entidades coletivas e como integrantes de uma cultura, por
definição, mais "tradicional" ' aconteça no âmbito de sociedades avançadas que,
em muitos aspectos, estimulam o individualismo, e em trajetórias migratórias
nas quais, muitas vezes, os indivíduos são também motivados pelo desejo de
reconstruir uma existência em um contexto mais "moderno"que o do país de
origem.
Se as categorias mencionadas são estanques tanto quanto generalizadoras, elas
não dão conta da complexidade do tema. É suficiente entrar em qualquer escola
de Amsterdã ou Berlim para ver meninos turcos dançando hip-hop e entender que
aquilo nada tem a ver com a imagem da cultura turca fornecida pelas políticas
multiculturais. A prática desses jovens é muito mais poliétnica do que se
imagina, e eles se organizam com muito mais sagacidade do que essas imagens
mostram. As políticas multiculturais pressupõem uma coesão de classe e uma
homogeneidade social e étnica entre os grupos que são problemáticos. Por
exemplo, na Holanda e na Bélgica, foi introduzido o ensino do árabe e do turco
na escola pública. O corpo docente estimula (e até força) todos os alunos de
nacionalidade marroquina e argelina a acompanharem as aulas de "língua e
cultura" árabe, e os de nacionalidade turca, as aulas de "língua e cultura"
turca. Os berberes e curdos são, então, transformados em "árabes" e "turcos".
Trata-se, pois, de uma forma de engenharia etnossocial. Não por acaso, tal
prática está sendo colocada em discussão por vários agentes.
A fase antecedente à popularização do multiculturalismo caracterizava-se pela
crença na integração cultural como meio e resultado da ascensão social. Naquele
estágio, as culturas, tanto a do país de origem do imigrante como a do país
hóspede, eram vistas pelos policy makerscomo um mundo relativamente impermeável
à mudança, e o conhecimento de culturas e maneiras do país hóspede, enquanto
tal, era visto como algo absolutamente necessário para a ascensão social. Isso
indicava que o sucesso de um grupo étnico de minoria dependia, principalmente,
de seu capital cultural (ver Steinberg, 1988). Hoje, com base em muita teoria
em torno do multiculturalismo, há uma nova simplificação e reificação da noção
de cultura, pelas quais a manutenção da diferença e da singularidade cultural
seria a condiçãosine qua nonpara a ascensão social de um grupo de minoria
étnica no contexto da (pós)modernidade ' como se o encontro entre culturas
fosse, de fato, um conflito entre blocos, e como se, mais uma vez, a posição
social dependesse da vida cultural.
Com relação à facilidade com que hoje, no debate acadêmico, se evoca a
necessidade de sermos multiculturais, talvez minha opinião seja uma nota um
tanto dissonante da maioria das contribuições. Em primeiro lugar, porque tenho
profundas dúvidas sobre o que entendo como uma "reificação" do
multiculturalismo e o culto ao reconhecimento da diferença cultural. Dependendo
do contexto, a diferença cultural pode me interessar, seduzir ou até assustar.
Não acho que seja possível defender a diferença cultural como se defende, por
exemplo, a biodiversidade. Tenho minhas dúvidas acerca de medidas e políticas
públicas que consigam esgotar a complexidade da condição de minorias étnicas '
mais ainda no caso de minorias racializadas ' na sociedade hoje, pelo menos no
contexto europeu. Duvido que essas medidas consigam dar conta, por exemplo, da
variedade e mutabilidade de um fenômeno como aquele da eclética produção
cultural da segunda ou terceira geração de descendentes de imigrantes, ou do
surgimento de um número crescente de estilos juvenis multiétnicos, embora
marcados pela racialização da diferença (ver, entre outros, Hewitt, 1984;
Wulff, 1988; Alexander, 1996; Back, 1996). Essas novas formas, que podem ser
definidas como pós-étnicas, nos fazem deparar com um conjunto que mistura um
novo particularismo com hibridez.
Apenas acho que o mundo é muito mais interessante, plástico e sagaz do que os
"resumos do mundo" apresentados pelos teóricos do multiculturalismo: o mundo
real não cabe no imaginário multiculturalista. De acordo com isso, não me seduz
o discurso do reconhecimento, de politics of identity, de políticas
identitárias (Taylor, 1994; ver, para uma perspectiva crítica, Pierucci, 1999),
embora eu também, como muitos neomarxistas, nos anos 70, assim que começou a se
manifestar com todo o vigor a crise do pensamento marxista, tenha ficado
estarrecido com a etnicidade ou identidade étnica. Durante muito tempo,
pensamos ser a etnicidade aquela identidade coletiva que permitia recobrar a
humanidade e a subjetividade que não cabiam mais no discurso da emancipação do
homem por meio da luta de classe. A identidade étnica ofereceria mais e novos
espaços para a agency.Chegamos a pensar que ela fosse, como tal, de esquerda,
progressista. Hoje, não acho que o reconhecimento da diferença e a identidade
étnica contenham em si um discurso progressista. Nem que ela seja, em si, de
"esquerda" ou de "direita"5. Por outro lado, se a identidade étnica não
significa exatamente emancipação, muitas vezes tende a ser pouco tolerada pelos
não-étnicos ' tanto os de fora como os de dentro, que não se reconhecem na
versão hegemônica dessa identidade. É por isso que políticas ou medidas
compensatórias baseadas no reconhecimento étnico colocam fortemente o problema
dos (muitos) indivíduos que, embora potencialmente membros do grupo em questão,
não se reconhecem nas suas representações coletivas ou públicas '
representações, muitas vezes, construídas em um jogo que une porta-vozes e
pesquisadores, ambos preocupados em fornecer uma visão mais harmônica e
homogênea da "comunidade" do que muitos indivíduos percebem (ver Handler,
1988).
Se tivermos que reificar alguma coisa, que seja a tolerância para com o outro e
o anti-racismo6. Como cientistas sociais, temos um papel de responsabilidade.
Podemos, de fato, contribuir para abrir ou fechar espaços de negociação e
encontro entre culturas. Haveremos, como pesquisadores, que enfatizar a
hibridez ou, justamente, as fronteiras étnicas? Será que a emancipação de um
grupo étnico subalterno depende, de toda forma, de ele ser reconhecido enquanto
tal pelas políticas da identidade? Ou será que não há (mais) uma resposta
unívoca?
Nesse sentido, é importante historicizar e tornar circunstancial o discurso do
multiculturalismo, evitando fazer deste mais uma variante da globalização, como
nos alertam Bourdieu e Wacquant (1998), em um artigo recente sobre a
internacionalização da agenda política e de abordagens teóricas geradas no
âmbito das relações raciais nos EUA7. Não se pode falar em um multiculturalismo
global, porque seu sentido depende do contexto, da forma pela qual é percebido
pelo sujeito, da maneira como ele é empunhado pelas instituições. Não acredito
que exista um discurso universal sobre a diferença cultural, menos ainda que se
possa falar de universalidade nas tentativas de colocar em prática tais
discursos em contextos diferentes. Graças, sobretudo, à forma de operar das
Nações Unidas e suas agências, existe hoje, como resultado de cautelosas
formulações diplomáticas (World Commission on Culture and Development, 1995),
um discurso universal, subscrito pela maioria dos países, sobre o valor da
vida, da tolerância, dos direitos das minorias, mas não do respeito à diferença
cultural.
É evidente que as contradições do discurso multiculturalista, relatadas antes,
se tornam ainda mais marcantes na América Latina, onde as leis e medidas nessa
direção são relativamente novas e, por enquanto, pouco efetivas, embora haja
países, como a Bolívia e a Colômbia, que em suas recentes Constituições se
definem como países multiétnicos e multiculturais (Sansone, 1998; no prelo).
Como sempre, é muito mais fácil mudar o discurso oficial sobre a diferença do
que mudar a realidade de um país. Como se pode falar com tanta facilidade de
medidas multiculturalistas, por exemplo, no ensino básico, em um país como o
Brasil, onde a escola pública está em colapso? Não é a primeira nem,
infelizmente, será a última vez que se importam ideais e "soluções" que se
descontextualizam na viagem rumo ao Brasil. Trata-se de um processo que leva,
às vezes, à importação de produtos, aqui tidos como inovadores, que já saíram
de linha no país de origem. Produtos que, digamos assim, chegam aqui sem manual
de instrução e desprovidos de uma avaliação do "Procon" (Procuradoria de
Proteção e Defesa do Consumidor) do seu país de origem. A chegada do
multiculturalismo como modelo de sociedade e futuro desejável no meio acadêmico
brasileiro parece-me um acontecimento científico tão anacrônico e fora de
contexto como a chegada e a vulgarização, no mesmo meio, da noção de cidade
pós-moderna (cacofônica, eclética, desregulada, polivalente), não obstante a
histórica ausência de planificação urbana da América Latina.
A multiculturalidade desenvolve-se, de uma forma, quando aparece como um
fenômeno relativamente endógeno, em relativa sintonia com o contexto social '
sinuosamente, como a etapa mais recente de um processo antigo, parte integrante
da modernidade; de outra, quando a multiculturalidade e sua ideologia, o
multiculturalismo, surgem em um contexto como o latino-americano. Neste,
comparativamente a outras regiões do Ocidente, as fases históricas, como diz
Aníbal Quijano (1989), em lugar de seguirem umas às outras, parecem acumular-
se, possuindo, ao mesmo tempo, diferentes graus de modernidade. Assim, temos
universalismo, racismo, novo particularismo e nova cidadania, tudo junto.
Talvez outras regiões do mundo também apresentem isso, mas quero lembrar que,
no debate brasileiro sobre esses temas, as teorias que nos inspiram e os livros
que citamos se referem, quase todos, a países onde tanto a modernidade como,
depois, a multiculturalidade e o multiculturalismo se afirmaram mais
gradualmente. Penso nos países da Europa norte-ocidental e nos Estados Unidos.
Durante toda uma época, uma pletora de países fez o impossível para reclamar
sua dose de modernidade. Hoje, isso parece acontecer com o multiculturalismo e
a multiculturalidade. Tudo indica que todo país, para merecer um lugar digno no
panteão das nações modernas e civilizadas, tem que ter suas políticas
multiculturais ' mesmo sem possuir uma tradição de fricção interétnica ou de
diversidade cultural politicamente organizada, esquecendo que o mundo está
repleto de etnicidades potenciais e não-manifestas, de muita gente que vive,
perfeita e tranqüilamente, sem ser "étnica" ou, pelo menos, sem manifestar
sentimentos étnicos de forma continuada. Non-ethnic ethnics, diriam nossos
colegas anglo-americanos.
É evidente que, como no caso do modernismo e da modernidade, existe uma
diferença entre multiculturalismo e multiculturalidade. O primeiro é o ideal de
nacionalidade futura; a segunda é um dado que pode existir, como em algumas
camadas sociais brasileiras, sem o multiculturalismo. Pode haver práticas
multiculturais sem teorias ou consciência da multiculturalidade.
Às vezes, a multiculturalidade se dá de forma autônoma, em que não é preciso
teorizar as tradições culturais e a manutenção da diversidade cultural. É
quando nos deparamos com o fenômeno que alguns chamam de sincretismo ' e que
Fernando Ortiz e seu contemporâneo Gilberto Freyre8 chamaram de "hibridez" ',
formas de multiculturalidade em áreas de tolerância e espaços liminares. Nas
camadas populares brasileiras, isso não acontece nos moldes que os intelectuais
querem, mas de forma muito mais cacofônica e confusa, menos apolínea. Quem sabe
se possa dizer, a respeito de um certo culto ao multiculturalismo, a mesma
coisa que sabemos sobre as tradições ' estas se inventam ou se celebram quando
já estão em crise. Talvez isso ajude a entender por que, no meio acadêmico,
expressões como sincretismo, crioulização e hibridez são celebrados muito mais
nos países onde esses termos parecem se referir a um futuro tanto desejável
quanto longínquo, do que no contexto dos estudos das relações raciais e da
cultura negra no Brasil9 (Nederveen Pieterse, 2001).
O fato de a América Latina estar saturada tanto pelo pensamento católico ' em
si relativamente ecumênico com relação à liturgia e ao sincretismo religioso e
universalista em termos de apelo ao "povo" ' como por estamentos, de classes
"fortes" e em conflito entre si, tem sido explicado por alguns como um
obstáculo surgido para políticas identitárias centradas na etnicidade (Parsons,
1968). Na maioria dos casos, nas camadas populares brasileiras, as tensões e
contradições tendem a ser "explicadas" em termos de classe, mais do que de cor/
raça. Não que no cotidiano dessas camadas não se sinta o racismo, mas se notam
a saliência da classe e a interpenetração da cultura operária com a cultura
negra ' fortíssima ', contrariamente aos Estados Unidos, onde, nas últimas
décadas, o percentual de participação da população negra no mercado de trabalho
é relativamente baixo. Nesse sentido, é importante salientar que não é preciso
ter racismo para que se tenha etnicidade. Por isso é que temos essa situação,
que, para alguns, é um anacronismo, de um país racista, sem uma identidade
negra politicamente organizada e determinante em termos eleitorais.
Essa condição, de relativa subalternidade do fator étnico na consciência das
pessoas, embora a hierarquização da sociedade se alimente também de
"diferenças" etnorraciais, não se dá somente no Brasil ou no universo afro-
latino, mas em muitos outros países. De fato, na América Latina, não se
encontra o fenômeno que eu chamei de "teorema étnico" (Sansone, 1998), pelo
qual a existência de uma população definida como "negra" ou de descendência
africana deveria estar associada, de forma automática, à presença de uma black
community, um lobby negro e, por fim, uma black constituency que vota de forma
maciça em candidatos negros. Esse "teorema étnico" não se encontra na maioria
dos países do Atlântico Negro e, na sua forma mais completa, somente pode ser
constatado nos EUA.
A maioria dos pesquisadores da "nova etnicidade" ou de fenômenos de
revivescência étnica em países diferentes salienta que etnicidade e comunidade
étnica nem sempre se desenvolvem juntas. Às vezes, a etnicidade cresce
justamente quando a coesão interna de um grupo étnico está em crise; e podem
existir etnicidades sem comunidades e até sem territórios, e comunidades
potencialmente étnicas que lançam mão da etnicidade só esporadicamente. E o
processo de midiatização do mundo faz aumentar as oportunidades de surgimento e
crescimento de etnicidades simbólicas, desterritorializadas, intermitentes e
associadas a outras, igualmente mobilizadoras, identidades sociais ' por
exemplo, ser jovem (ver, entre muitos, Gans, 1979; Eriksen, 1997; Jenkins,
1997; Appadurai, 1997; Castells, 1997). Nesse sentido, pode-se sugerir duas
coisas: a) a cacofonia étnica ' que segundo alguns pertenceria à América Latina
e que tem contribuído para fazer desta região uma terra problemática para os
paladinos das políticas identitárias de cunho étnico ' é, na realidade, muito
mais universal do que se pensa; b) é preciso rever as teorias que postulam a
universalidade do sentimento étnico, pelo qual todo grupo social teria um
quantum de etnicidade a ser expresso, já que, muitas vezes, essas teorias são
sobretudo extrapolações da situação norte-americana para o resto do mundo
(Poutignat e Streiff-Fenart, 1997:21-32). A identidade negra, ou negritude,
dessa perspectiva, deixa de ser algo "natural" ou imanente nas relações entre
"brancos" e "negros", para ser vista como um processo discursivo (Fry, no
prelo) ' o resultado de contingências e vicissitudes que a levam a surgir, em
alguns momentos, assim como a diminuir de intensidade ou até sumir, em outros.
Em suma, acho necessário historicizar as práticas multiculturais e o
multiculturalismo ' insisto nessa diferença ' pesquisando-os em sua própria
contingência, não generalizando e evitando colocá-los simbolicamente sempre e
somente no contexto norte-americano, que nos domina em muitos aspectos. É útil
olhar também para o contexto europeu, porque variado e palco de debate entre
noções de cidadania diferentes. Ademais, parecem-me pouco saudáveis
generalizações internacionais sobre o multiculturalismo, referindo-se somente à
literatura sobre países de fala inglesa ou que já foram colônias britânicas.
Nesse sentido, é interessante um debate sobre as novas formas de cidadania e
políticas que visam o respeito à diferença etnocultural que estão sendo
experimentadas, com resultados variados, em países da América Latina, como
Nicarágua, Bolívia e Colômbia10. Inclusive porque o contexto dessa região se
distingue por ter (novas) demandas setoriais e particularistas, dentro de uma
situação em que direitos universais (básicos) nunca chegaram a ser garantidos
para a maioria.
Minha oposição não é, a princípio, às idéias que vêm de fora, porque todas as
idéias acerca das noções de diversidade e diferença encontravam-se fora de
lugar ou chegaram de fora em algum momento do seu percurso. Trata-se, mais do
que tudo, de uma insatisfação com a pouca metodologia e sistemática da
perspectiva comparativa que deveria estar na base da análise de sistemas de
relações raciais e/ou interétnicas de países ou regiões diferentes. Haveria que
se levar mais em conta que cada um desses sistemas reflete algum gênero de
"localismo" ou até de idiossincrasia, mesmo quando seus símbolos viajam pelas
ondas da globalização.
NOTAS
1. Reconheço, porém, que a situação de países que já foram colônias e que estão
tentando se tornar sociedades plurais, em vez de multiculturais, como a Índia,
a Malásia e a África do Sul, é também muito interessante (ver, a respeito,
Rockefeller Foundation, 1984).
2. Trata-se de países onde o Instituto de Estudos das Migrações e Etnicidades
de Amsterdã, do qual eu fui pesquisador, vem realizando uma grande pesquisa
comparativa financiada pelo Conselho da Europa e, depois, pela União Européia
(Vermeulen, 1997).
3. Formas incipientes de subsídios eram conhecidas também em sociedades
antigas, como no Império Romano, com os pretorianos, e no Império Otomano, com
os janízaros, mas tratava-se de grupos de inativos cuja função era formar um
grupo de consenso, e de proteção, em torno do palácio imperial, mais do que de
grupos de desempregados no sentido moderno do termo. Segundo Swaan (1988), o
primeiro subsídio de desemprego de cunho moderno foi instituído na Alemanha por
expressa vontade de um governo conservador e contra a opinião dos sindicatos.
4. Ver meu comentário ao relatório de Perez de Cuellar para as Nações Unidas
intitulado "Our Creative Diversity" na homepage http://kvc.minbuza.nl/uk/
archive/commentary/sansone.html.
5. Os Bálcãs mostram algumas versões de direita; a região dos Grandes Lagos, na
África, também. O que aconteceu na ex-Iugoslávia contribuiu bastante para minha
mudança. Minha primeira conferência internacional como antropólogo foi em 1984
em Dubrovnik, na antiga Iugoslávia, hoje Croácia. Publiquei o texto da palestra
em uma revista, Migracja Tema, editada em Zagreb, que não existe mais.
6. Penso que uma guerra a favor da tolerância seria mais proveitosa que uma
guerra a favor do multiculturalismo.
7. Sobre os avanços do debate e as limitações da proposta deste artigo, ver o
número especial da revista Estudos Afro-Asiáticos (vol. 24, nº 1, 2002)
dedicado ao tema da pesquisa sobre relações raciais no Brasil, as prioridades e
as agendas das fundações estrangeiras.
8. Hoje, estes são termos muito usados, na maioria dos casos, em um arcabouço
inspirado pelo pós-modernismo. A estes dois autores, porém, deve ser creditada
a primeira utilização sistemática, em linguagem acadêmica, dos termos hibridez
e transculturalismo. Não estou ciente de alguma referência a esse mérito nos
autores contemporâneos que mais usam tais termos. Felizmente, Bronislaw
Malinowski (1947), na sua introdução à tradução inglesa do livro de Fernando
Ortiz, Contrapunto Cubano del Tabaco y del Azucar, age de forma diferente,
reconhecendo os méritos do autor nesse sentido.
9. Em um artigo recente, Sidney Mintz (1998) critica de forma brilhante o uso
descontextualizado e a-histórico, por parte de muitos cientistas sociais que se
definem como pós-modernistas, de termos como crioulização, transnacionalismo e
até globalização.
10. Países cujas Constituições têm sido recentemente modificadas, incorporando
itens que definem o país como sendo multiétnico e multicultural.