A economia política da reforma macroeconômica no Brasil, 1995-2002
INTRODUÇÃO
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso realizou muitas reformas, mas seu
governo deixou de resolver importantes problemas. A política fiscal é um dos
casos mais óbvios de sucesso de sua gestão: o Plano Real estancou a inflação,
estabilizou a economia e deu condições ao governo federal de conter os gastos
descontrolados dos Executivos estaduais e municipais, que tinham sido o
principal fator de instabilidade macroeconômica. A receita fiscal cresceu mais
rapidamente que o Produto Interno Bruto ' PIB, ajudando o governo a gerar
superávits orçamentários de cerca de 3% do PIB desde 1999 ' um feito
extraordinário para qualquer país, especialmente para o Brasil, onde os
governos têm pouca tradição de gastar com parcimônia.
Mas a política fiscal também é um dos mais permanentes desafios do país. Apesar
da bem-sucedida estabilização da economia, as políticas monetária, cambial e
fiscal que o governo FHC escolheu seguir criaram novos obstáculos com os quais
o presidente Lula já está se defrontando e que continuarão a se impor aos
governos posteriores. Apesar de grandes vitórias, essas políticas transferiram
os piores aspectos da crise fiscal brasileira do plano federal para o das
subunidades federativas ' o que possivelmente tornou o problema mais
administrável e impediu seu recrudescimento, mas não o eliminou. Assim,
enquanto um otimista poderia concluir que a economia brasileira adquiriu
estabilidade e credibilidade porque o governo federal estabeleceu controles
sobre a dívida e os gastos públicos dos estados e municípios, e centralizou as
dívidas dos Executivos regionais, um pessimista talvez concluísse que se o
governo Fernando Henrique Cardoso resolveu problemas de um lado, criou-os de
outro, transferindo-os às futuras administrações. O pessimista poderia ainda
acrescentar que, na realidade, as políticas públicas do governo FHC
contribuíram para aumentar a crise fiscal brasileira. O Brasil não se livrou do
que parece ser uma permanente ''crise fiscal do Estado''. Não a despeito, mas
por causa dos esforços do governo FHC, a dívida interna brasileira cresceu bem
mais rápido que o PIB em sua gestão, passando de R$ 60,7 bilhões, ou 28,1% do
PIB, em 1994, para R$ 633,2 bilhões, ou 50% do PIB, em 2001 (Brasil. Ministério
da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, 2002a).
Os próprios êxitos do Plano Real explicam a rápida acumulação da dívida. O
problema mais importante não é tanto o nívelda dívida, mas sua estrutura. Em
primeiro lugar, boa parte da dívida brasileira tem prazo relativamente curto, o
que deixa o país em uma posição de grande vulnerabilidade em face de crises de
liquidez que afetem a possibilidade de refinanciamento do governo. Em segundo
lugar, grande parte da dívida é vinculada ao dólar, e por isso, quando o real é
desvalorizado, a dívida aumenta proporcionalmente. Desde janeiro de 1999,
quando o Brasil desistiu de tentar manter a paridade do real com o dólar, até
junho de 2002, somente a desvalorização da moeda acrescentou R$ 72,8 bilhões à
dívida do país. Em terceiro lugar, outra parcela considerável da dívida é
vinculada à taxa básica de juros, atualmente de mais de 20% ao ano. Tanto a
equipe econômica de Fernando Henrique quanto a de Lula mantiveram taxas
elevadas de juros na intenção de controlar a inflação, evitar a desvalorização
do real e atrair investimentos em dólar. No entanto, somente a manutenção de
juros elevados acrescentou R$ 109,4 bilhões ao montante total da dívida (idem).
Em conseqüência disso, e apesar dos superávits primários que o país obteve
desde 1999, a dívida pública não diminuiu. O governo brasileiro não pode fazer
a economia crescer sem reduzir as taxas de juros e reformular o sistema
tributário, mas não pode cortar os juros sem despertar temores inflacionários;
além do mais, não há muita motivação para promover uma reforma tributária ampla
que poderia trazer uma diminuição da receita governamental. Por outro lado, o
governo não tem como prover as urgentes necessidades sociais sem aumentar suas
despesas, e a exigência de fazer superávits orçamentários dificulta a
transferência de recursos para programas sociais.
Os observadores do Brasil devem levar em conta os dois lados da questão ao
avaliarem a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Muitas vitórias foram obtidas,
mas é necessário reconhecer seus ônus e compreender seu impacto sobre a gama de
escolhas políticas disponíveis aos futuros governos. Este artigo pretende
examinar os fatores que contribuíram para as dificuldades macroeconômicas
enfrentadas pelo Brasil antes de 1995. Analiso, especialmente, como as
instituições federativas, cuja importância cresceu com a redemocratização do
país na década de 80, limitaram a capacidade do governo federal de atingir uma
situação de estabilidade econômica até meados dos anos 90. Analiso, depois,
como o Plano Real possibilitou ao governo FHC restringir a capacidade dos
Executivos subfederais de interferir na economia nacional. Em seguida, examino
como os próprios êxitos do Plano Real ataram o país em uma ''camisa-de-força
fiscal'', e termino discutindo o que é necessário para que o Brasil se livre de
tais limitações.
O FEDERALISMO E AS LIMITAÇÕES DO GOVERNO FEDERAL: 1985-1994
Durante a década de 80, o processo de democratização avançou no Brasil
simultaneamente ao fortalecimento do federalismo (Souza, 1996; Abrucio e
Samuels, 1997; Abrucio, 1998). No plano econômico, os anos 80 foram uma
''década perdida'' para o país devido ao lento crescimento do PIB e a uma
inflação desenfreada. Sucessivos planos de estabilização fracassaram até que
foi implantado o Plano Real. Não é possível compreender esses fracassos sem
entender o impacto do federalismo na economia brasileira (Sola, 1993). Em
conseqüência da redemocratização do Brasil, o federalismo deu aos atores
políticos das subunidades federativas e aos seus representantes no Congresso
Nacional o poder de determinar limites às iniciativas de reforma provenientes
do Executivo, como também ocorreu na Argentina. Essas restrições compensavam os
poderes presidenciais que a Constituição de 1988 havia consagrado. Explicarei
de que modo o federalismo limitou as reformas examinando as conseqüências da
descentralização fiscal e das dívidas dos governos dos estados e dos bancos
estaduais.
A Descentralização Fiscal
O regime militar de 1964-85 centralizou a receita pública e por isso não
surpreende que o processo de democratização no Brasil se tenha associado à
descentralização fiscal. De 1965 a 1980, o governo federal aumentou sua parcela
de alocação da receita fiscal de 54,8% para 68,2%, enquanto a parte
correspondente aos estados diminuiu de 35,1% para 23,3% e a dos municípios de
10,1% para 8,6% (Varsano, 1996). Porém, à medida que a democratização avançava,
os membros do Congresso procuraram desmontar as políticas do regime militar, de
forma que, no período entre 1980 e 1995, a quota da receita abocanhada pela
União voltou a representar 56,2% do total, enquanto a cota dos estados subiu
para 27,5% e a dos municípios cresceu para 16,2% (Brasil. Ministério da
Fazenda, Secretaria da Receita Federal, 2001b).
A descentralização fiscal interessava aos políticos recém-eleitos nos estados e
municípios, mas contribuiu para piorar os déficits primários, que aumentaram
sistematicamente em relação ao PIB durante toda a década de 80 e nunca
atingiram o equilíbrio até a posse de Fernando Henrique na Presidência da
República (World Bank, 2001). A razão disso é que as despesas do governo
federal aumentaram mais rápido que as receitas, como proporção do PIB, nos anos
80, visto que a nova Constituição, além de determinar a descentralização
fiscal, dificultou as reformas da Previdência e da Administração Pública e
obrigou a um aumento dos gastos em vários outros setores. Com a
descentralização, diminuíram os recursos disponíveis pelo governo federal para
fazer face às crescentes demandas do público em geral (Sola, 1993; Abrucio,
1998; Tavares de Almeida, 1995; Arretche, 2000). Os Executivos regionais
continuaram a pressionar o governo federal por serviços e verbas, enquanto os
presidentes se esforçavam para controlar as despesas públicas e transferir
responsabilidades para as administrações dos estados e municípios.
O crescente desequilíbrio fiscal no plano federal reduziu a capacidade do
governo de produzir estabilidade macroeconômica, fato que já era identificável
no início da década de 90 (Bonfim e Shah, 1992; Werneck, 1992; Rezende, 1995).
Entretanto, até 1994 nenhum presidente conseguira controlar os gastos ou o
endividamento público. Sarney, Collor e Itamar Franco manifestaram por vezes a
intenção de rever a descentralização fiscal, mas não lograram reverter o
processo. O governo federal também cogitou de introduzir medidas destinadas a
transferir responsabilidades do setor público para os estados e municípios, mas
não as pôs em prática de forma séria. Resumindo: a descentralização fiscal
criou obstáculos aos esforços do governo para equilibrar o orçamento, o que
acabou contribuindo para as dificuldades macroeconômicas enfrentadas pelo
Brasil no final dos anos 80 e começo dos 90.
As Dívidas dos Estados
Apesar da descentralização fiscal, a situação financeira dos estados e
municípios deteriorou-se ao longo da década de 80 e colaborou para a crise
econômica brasileira. À medida que o processo de democratização tomava impulso,
os novos governadores e prefeitos eleitos procuraram cumprir suas promessas de
campanha e conquistar apoios aumentando as despesas de seus governos. Por
exemplo, a folha de salários dos estados e municípios aumentou 77% em relação
ao PIB no período de 1985 a 1990 (Werneck, 1992:10). Em 1997, os governos
estaduais já acumulavam déficits da ordem de US$ 139 bilhões. Limitações
orçamentárias flexíveis estimularam esse comportamento, já que nenhum
governador jamais teve de arcar com as conseqüências de realizar despesas
deficitárias, pois o governo federal sempre assumia as dívidas dos estados
quando recebia pedidos de socorro. Em 1989, o governo federal tomou a si a
responsabilidade pelas dívidas dos estados com bancos estrangeiros, mas não
conseguiu obrigar os Executivos estaduais a aceitar as condições que poderiam
ter evitado mais uma crise da dívida; da mesma forma, em 1993 a União assumiu
outros US$ 28 bilhões de débitos estaduais. Os termos dos acordos entre estados
e governo federal, por outro lado, geralmente incluíam condições generosas de
pagamento, prazos extensos de amortização e taxas de juros abaixo das
praticadas no mercado. Mesmo assim, os governos estaduais freqüentemente
protelavam os pagamentos, obrigando a União a assumir, na prática, as dívidas
deles (Abrucio e Ferreira Costa, 1998).
Os estados podiam transferir suas dívidas para a União porque a democratização
havia atribuído considerável autonomia aos atores políticos regionais e também
porque os presidentes brasileiros recorriam com freqüência à influência dos
governadores para mobilizar apoio no Congresso aos projetos de interesse do
Executivo (Abrucio, 1998). Além disso, enquanto a inflação persistiu, os
déficits orçamentários gerados em qualquer nível de governo causaram,
contraditoriamente, poucos problemas políticos imediatos, já que os governantes
podiam reduzir o valor real das despesas postergando os desembolsos para
salários e contratos durante um tempo suficiente para que a inflação produzisse
seu efeito erosivo ' o chamado ''efeito Tanzi''. Mas é claro que a expansão da
dívida contribuiu para aumentar as pressões inflacionárias, criando-se portanto
um círculo vicioso.
Embora os economistas advertissem que o descontrole dos gastos públicos
estaduais contribuía decisivamente para as dificuldades do governo federal de
estabilizar a economia no longo prazo (World Bank, 1990; Werneck, 1992; Novaes
e Werlang, 1993; Dillinger, 1997), de Sarney a Itamar Franco nenhum presidente
empenhou suficiente capital político para obrigar os governantes estaduais a
conter seus gastos e pagar suas dívidas. Em vez disso, os presidentes quase
sempre negociavam operações de salvamento das dívidas estaduais em troca do
apoio dos governadores aos seus projetos no Legislativo. Em suma, a autonomia
política dos estados, aliada a presidentes relativamente fracos, impôs
obstáculos à solução dos problemas fiscais brasileiros e impediu o governo
federal de promover a estabilidade macroeconômica.
Os Bancos Estaduais
Outro fator que muito contribuiu para a irresponsabilidade fiscal dos
Executivos regionais foi o comportamento abusivo das instituições bancárias de
propriedade dos estados. Desde 1993, 25 dos 27 estados brasileiros (inclusive o
Distrito Federal) controlavam pelo menos uma instituição financeira (Novaes e
Werlang, 1993:16). Esses bancos contribuíram para o desequilíbrio fiscal dos
governos estaduais ' e, por extensão, para o agravamento da situação econômica
do país ', porque os governadores usavam politicamente ''seus'' bancos, tomando
pesados empréstimos para cobrir despesas deficitárias. No entanto, dados seus
horizontes políticos de curto prazo, eles geralmente se recusavam a pagar os
empréstimos, com o que arruinavam a saúde financeira dos bancos estatais e
contribuíam para a caótica situação fiscal do país. Entre 1982 e 1993, o Banco
Central teve de intervir em 60 das 97 instituições financeiras estaduais, que
estavam à beira da falência; em 1990, 45,3% dos empréstimos dos bancos
estaduais não estavam sendo pagos, em comparação com cerca de 1,7% dos
empréstimos de instituições privadas na mesma situação (Makler, 2000:46).
Apesar de muitos observadores perceberem que a autonomia dos estados para usar
e abusar de seus bancos prejudicava a implantação de medidas de estabilização
econômica, até 1995 o governo federal sistematicamente socorreu bancos
estaduais em troca de apoio político no Congresso.
Resumo
Uma característica das relações entre o governo federal e os Executivos
estaduais no período de 1982 a 1994 foi um ''federalismo predatório'' (Abrucio,
1997). Estados e municípios se aproveitavam da dificuldade ou da relutância do
governo federal em controlar as finanças dos Executivos subfederais. E os ônus
desse federalismo predatório atingiram proporções alarmantes: os gastos
públicos e a prática dos governos estaduais de transferir as dívidas
decorrentes para a União contribuíram para a incapacidade de sucessivos
presidentes de conter o déficit fiscal global do país e domar a inflação.
Despesas deficitárias em todas as esferas de governo foram as principais causas
da instabilidade macroeconômica anterior à introdução do Plano Real.
ORIGENS E CONSEQÜÊNCIAS DO PLANO REAL
Os políticos não deram ouvidos às advertências dos economistas até que Fernando
Henrique Cardoso tomou posse como ministro da Fazenda em 1993. A equipe
econômica nomeada pelo ministro foi a primeira a levar a sério a conexão entre
inflação, estabilidade macroeconômica e desregramento fiscal (em todos os
níveis de governo). O Plano Real, portanto, não teve como objetivo apenas o
''controle'' da inflação (como os planos anteriores, que efetivamente o
conseguiram por um curto prazo), mas também introduzir o equilíbrio fiscal nas
contas dos governos federal, estadual e municipal, e com isso manter um
controle sustentável da inflação.
Para dominar a inflação no curto prazo, o real foi vinculado ao dólar
americano, o que causou uma sobrevalorização da moeda brasileira e um aumento
do valor das importações, gerando déficits em conta corrente. Para financiar
esse déficit, manter o valor da moeda brasileira e sustentar um nível baixo de
inflação, o governo também se empenhou em atrair investimentos em dólar. Para
tanto, o Plano Real exigia taxas internas elevadas de juros. No entanto, o
Brasil somente podia atrair investimentos estrangeiros, cumprir seus
compromissos com o FMI e firmar uma credibilidade externa sustentável no longo
prazo se também reduzisse a dívida pública. Em outras palavras, o Plano exigia
austeridade fiscal em todas as esferas de governo (Souza, 1999:54).
Para gerar superávits nas contas do governo federal, a equipe econômica
instituiu primeiramente o Fundo Social de Emergência ' FSE, que desvinculou 20%
de uma grande parcela da receita da União constitucionalmente reservada a
determinadas despesas, com a finalidade de proporcionar ao governo federal
maior liberdade de ação na aplicação dos recursos orçamentários. A instituição
do FSE exigia uma emenda constitucional, porque a Constituição de 1988 vinculou
a determinados fins boa parte da receita tributária. A aprovação de uma emenda
constitucional exige, no Brasil, uma maioria de 60% dos membros das duas Casas
do Congresso, o que levou Fernando Henrique Cardoso a mobilizar apoio
parlamentar para esse aspecto essencial do Plano Real. Por essa época (outono
de 1993), já tinham começado as campanhas para as eleições presidenciais de
outubro de 1994. Como não haveria tempo de concluir a implantação do Plano Real
antes de meados de 1995, o programa econômico foi inevitavelmente associado a
um candidato comprometido em adotá-lo na futura administração.
Fernando Henrique Cardoso logo apareceu como óbvio candidato do ''governo'', de
modo que a articulação de uma base de apoio parlamentar ao FSE e o respaldo à
candidatura de FHC se tornaram inseparáveis. As dificuldades para fazer o
Congresso aprovar o FSE levaram Fernando Henrique, líder do PSDB, partido de
centro-esquerda, a cortejar os principais políticos do PFL, partido de centro-
direita. Aliados a Fernando Henrique e ao PSDB, os líderes do PFL perceberam
que se o Plano Real conseguisse estabilizar a economia brasileira poderia
trazer considerável apoio eleitoral para uma alternativa à candidatura
oposicionista de Lula, do PT, que naquele momento liderava, por considerável
margem, todas as pesquisas de intenção de voto (Dimenstein e Souza, 1994:130).
O Congresso aprovou o FSE em fevereiro de 1994. Com a aproximação da data das
eleições e a entrada em vigor do Plano Real, a inflação começou a despencar e o
nome de Fernando Henrique logo subiu nas pesquisas. Ao fim e ao cabo, Fernando
Henrique obteve uma vitória eleitoral irrefutável, já no primeiro turno.
O evidente sucesso do Plano Real não somente deu um impulso decisivo à eleição
de Fernando Henrique Cardoso, como lhe rendeu notável apoio popular e
parlamentar. E mais: ao contrário do que aconteceu com os outros presidentes
após a redemocratização, o Plano Real deu a FHC poder e legitimidade
suficientes para a construção de uma ampla e coesa coalizão governista, que
comandava mais de 70% das cadeiras nas duas Casas do Legislativo, ao longo de
seus dois mandatos ' feito notável para qualquer presidente de uma nação. A
legitimidade de Fernando Henrique e sua ampla coalizão de apoio lhe
proporcionaram condições para levar a efeito importantes reformas destinadas a
produzir estabilidade econômica no longo prazo e criar condições para o
crescimento.
Examino, a seguir, como o Plano Real concedeu a Fernando Henrique uma vantagem
estratégica sobre os Executivos regionais e potencializou as iniciativas de seu
governo para alcançar o equilíbrio fiscal nas contas públicas.
O controle sobre os gastos dos estados e municípios foi uma decorrência das
conseqüências políticas do Plano Real (Sola, Garman e Marques, 1997; Abrucio e
Ferreira Costa, 1998). Domando a inflação, o Plano Real eliminou o ''efeito
Tanzi'' e os governadores não puderam mais contar com a erosão inflacionária
para reduzir suas contas; muitos se depararam com folhas de salário que
comprometiam de 80% a 90% das receitas estaduais, tinham pouco dinheiro para
pagar suas dívidas e menos recursos ainda para patrocinar os projetos
clientelistas prediletos (Dillinger e Webb, 1999:23). O fato mais importante é
que as altas taxas de juros fizeram subir vertiginosamente os juros cobrados
sobre as dívidas dos estados, evidenciando a fragilidade da situação financeira
dos governos estaduais (Afonso e Mello, 2000:16).
Em resumo, os governos estaduais se viram, pela primeira vez depois da
redemocratização, em uma situação fiscal insustentável, o que deu ao governo
federal uma posição estratégica privilegiada para persuadir os governadores a
mudarem de comportamento e aceitarem alterações nas regras. Fernando Henrique
buscou então enrijecer as restrições aos gastos e ao endividamento dos estados
e municípios e forçar a venda ou a reestruturação dos bancos estaduais (Garman
et alii, 2000:40-61). Em outras palavras, o governo FHC utilizou os efeitos do
Plano Real para impedir os governantes dos estados e municípios de interferirem
no equilíbrio macroeconômico do país.
Seguindo a estratégia de análise usada nas seções anteriores, examino a seguir
as conseqüências do Plano Real para o gasto público dos governos e dos bancos
estaduais, e para a distribuição da receita entre as diferentes esferas
governamentais no Brasil.
As Despesas Estaduais
Logo depois que o Plano Real entrou em vigor, em 1995, a situação financeira
dos Executivos estaduais começou a deteriorar-se, tornando-os vulneráveis a
pressões do governo federal. A equipe econômica de Fernando Henrique tirou
partido dessa vantagem para renegociar as dívidas dos estados, arrancar de seus
governantes compromissos concretos com o resgate de suas dívidas e impor novas
restrições ao dispêndio e ao endividamento das futuras administrações. A ''Lei
Camata'', por exemplo, aprovada em 1995, estipulou que a partir de janeiro de
1999 os estados deveriam limitar suas despesas totais com pessoal a 60% das
receitas correntes líquidas, sob pena de retenção dos fundos federais. Quando o
governo FHC aceitou refinanciar as dívidas dos estados, em 1997-98, exigiu que
eles parassem de emitir títulos para cobrir suas dívidas até que o montante
total dos débitos representasse menos de um ano da receita tributária. Em junho
de 1998, o Conselho Monetário Nacional proibiu ainda os governos estaduais de
contrair novos empréstimos no exterior.
As restrições impostas pela União funcionaram: quando o Estado de Minas Gerais
suspendeu o pagamento de sua dívida, logo no início de 1999, Fernando Henrique
bloqueou os repasses federais e confiscou recursos dos bancos estaduais para
cobrir as parcelas não pagas, o que fortaleceu a credibilidade do governo
federal. Em maio de 2000 foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal ' LRF,
que buscava acabar de uma vez por todas com a visão de que os governos
estaduais e municipais gozam de ''restrições orçamentárias flexíveis'' (soft
budget constraints). A LRF determinou limites rígidos de endividamento para
todos os níveis de governo e proibiu expressamente a União de refinanciar
futuras dívidas de Executivos subfederais. A Lei procurou ainda aumentar a
''transparência da gestão fiscal'' ao exigir que os governos estaduais e
municipais publiquem uma prestação de contas de receitas e despesas, e
estabelecer punições às autoridades públicas que violem a Lei1. A LRF foi uma
das estratégias do governo Fernando Henrique Cardoso para controlar os gastos
dos Executivos regionais: embora de 1994 a 1998 as administrações locais e
estaduais tenham operado todos os anos com déficits primários, de 1999 em
diante, de modo geral, elas acumularam superávits orçamentários2.
Os Bancos Estaduais
O governo Fernando Henrique Cardoso também estabeleceu um controle mais
rigoroso sobre os bancos estaduais. Desde fins de 1994, quando interveio nos
bancos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, o governo federal
sinalizou que não iria mais salvar bancos falidos sem levar nada em troca.
Apesar da rejeição do Congresso à proposta inicial do presidente para resolver
a crise dos bancos estaduais, que obrigou o governo a pagar um preço muito
maior por uma solução do problema, a administração de Fernando Henrique Cardoso
conseguiu por fim intervir e organizar a privatização de quase todos esses
bancos, impedindo com isso um possível reaparecimento do problema. Para
compensar os governadores pela perda do controle sobre os bancos estaduais, a
União refinanciou as dívidas dos estados com seus bancos, os quais também foram
transferidos para o governo federal em condições favoráveis (Garman et alii,
2000). Em conseqüência dessas mudanças, os governos estaduais não podem mais
usar as instituições bancárias estatais como fontes ilimitadas de empréstimos
para cobrir gastos deficitários, e os bancos não podem mais enfraquecer o
controle do Banco Central sobre a política monetária nacional.
Uma Recentralização Fiscal?
As políticas macroeconômicas instituídas pelo governo FHC não se limitaram a
acabar com a hiperinflação e a conter as prodigalidades das administrações
estaduais e municipais. O governo também se empenhou em gerar superávits
orçamentários anuais, ainda que tivesse de enfrentar críticas por não gastar
mais com programas sociais ou com o desenvolvimento da infra-estrutura do país.
Para tanto, buscou principalmente aumentar a receita tributária3, no que foi
bem-sucedido: invertendo a tendência predominante no período 1980-95, a receita
da União cresceu no governo FHC, passando de 56,2% para 59,9% da totalidade da
receita governamental entre 1995 e 2000, enquanto a parcela dos estados caiu de
27,5% para 25,1% e a dos municípios, de 16,2% para 15% (Brasil. Ministério da
Fazenda, Secretaria da Receita Federal, 2001b; 2001c). Esse fato levou alguns
observadores a sugerir que a gestão de Fernando Henrique Cardoso inverteu o
sentido da descentralização fiscal (Kugelmas, 2001). Contudo, esses dados dizem
respeito apenas aos níveis relativos da receita, não aos níveis absolutos. Na
verdade, em termos absolutos, a receita dos estados e municípios aumentou
durante a década de 90, mas não tão rapidamente quanto a da União. Em todas as
esferas de governo, a receita aumentou de 25,2% do PIB em 1991 para 34,2% em
2001 (uma alta até então inédita) (Lavoratti, 2002). Nesse período, a receita
da União cresceu 37,4% em relação ao PIB, a dos estados, 19,2% e a dos
municípios, 25,6% (Brasil. Ministério da Fazenda, Secretaria da Receita
Federal, 2001b).
Uma disposição constitucional explica a razão de a receita da União ter
crescido mais rapidamente que a dos demais níveis de governo, dando a impressão
de uma recentralização. A receita da União pode ser proveniente de
''impostos'', de ''contribuições'' ou de uma variedade de taxas e multas.
Segundo a Constituição de 1988, se a receita tributária do governo federal
aumentar, as transferências para as subunidades federativas também devem
aumentar. Mas a União não tem de repartir com estados e municípios a receita
proveniente de contribuições, ao contrário da receita tributária. A parcela
relativa da receita da União aumentou porque o governo federal dispôs-se
conscientemente a elevar muito mais a arrecadação de contribuições do que a dos
impostos. As contribuições passaram de 27,2% da receita da União em 1990 a
46,7% em 2001 (idem, 2001a). Isto é, o governo federal conseguiu elevar sua
parcela relativa da receita ' e cumprir suas metas de superávits anuais '
devido, em grande parte, ao crescimento da arrecadação de ''contribuições'', e
não por reduzir suas transferências para governos estaduais e municipais ou
porque a receita destes tenha diminuído em termos absolutos.
Resumindo: as conseqüências políticas das medidas econômicas adotadas por
Fernando Henrique Cardoso permitiram-lhe recuperar o controle sobre as finanças
dos estados e municípios e eliminar muitos incentivos políticos
contraproducentes que eram estimulados pelas instituições federativas
brasileiras (Abrucio e Ferreira Costa, 1998; Afonso e Mello, 2000; Montero,
2001). Ademais, o governo usou com astúcia os instrumentos de que dispunha para
incrementar sua receita. Na verdade, essas mudanças não constituem uma
recentralização política, mas a restauração de um Poder Executivo coeso na
política brasileira, como contrapeso necessário às instituições federativas
nacionais (Samuels e Mainwaring, 2004). Seja como for, essa combinação de
medidas atacou as razões essenciais do caos econômico anterior e serviu de
alicerce para a estabilidade macroeconômica durante a maior parte dos dois
mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Os Custos do Plano Real
A despeito de suas realizações, o governo de Fernando Henrique teve de pagar um
preço para ''limpar a área'', um preço que as futuras administrações federais
terão de continuar pagando. A próxima seção examina o ''outro lado'' do sucesso
da gestão FHC, discute como suas políticas acabaram criando uma ''camisa-de-
força fiscal'' para a economia brasileira e avalia as chances de futuros
governos realizarem novas reformas políticas.
TOMA-LÁ-DÁ-CÁ: NEGOCIANDO O FSE EM TROCA DAS DÍVIDAS DOS ESTADOS
A gestão FHC conseguiu deter a interferência das administrações estaduais e
municipais na estabilidade da economia nacional, mas para isso o governo
federal teve de arcar com uma parte desproporcional dos custos. Em troca do
apoio dos governadores ao FSE, que ajudou a aprová-lo no Congresso, o governo
federal concordou em assumir as dívidas dos estados e refinanciar os débitos
dos bancos estaduais numa escala ainda maior do que foi feito anteriormente. No
início de 2002, a União já assumira R$ 297,7 bilhões de dívidas dos estados,
representando aproximadamente 25% do PIB nacional (Brasil. Ministério da
Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, 2002a). Embora os estados tivessem de
comprometer parte das receitas para pagar suas dívidas, na realidade uma boa
parte dos custos ficava com a União, que oferecia taxas de juros abaixo do
mercado e prazos longos de amortização. O subsídio direto da União aos estados
foi estimado entre US$ 32 bilhões e US$ 46 bilhões (em valores de 1977)
(Rigolon e Giambiagi, 1998:15). Este subsídio reduziu o montante da dívida dos
estados ao mesmo tempo que elevou a dívida da União, impondo restrições ao
orçamento do governo federal por um futuro indeterminado.
O Custo Total
A tentativa de sanar as finanças dos estados foi somente um aspecto da política
fiscal do governo Fernando Henrique Cardoso. De modo geral, as medidas então
adotadas contribuíram para elevar a relação da dívida com o PIB brasileiro, de
28% em 1994 para 56% em 2001 (Brasil. Ministério da Fazenda, Secretaria do
Tesouro Nacional, 2002a). O aumento total foi de R$ 563,2 bilhões. A Tabela_1
detalha as origens da dívida acumulada durante o governo FHC.
Mais da metade do aumento da dívida pública mobiliária do país proveio da
reestruturação e refinanciamento das dívidas dos estados e municípios4. Algumas
fontes não têm relação direta com o Plano Real ou com as negociações envolvidas
em sua aprovação. Por exemplo, R$ 128,2 bilhões devem-se ao reconhecimento de
dívidas acumuladas por bancos e órgãos federais não contabilizadas durante
anos. Outros R$ 45,2 bilhões correspondem a subsídios e isenções fiscais
concedidos pelo governo federal ' por exemplo, através da Lei Kandir, que visa
promover a competitividade das exportações brasileiras isentando-as do
pagamento de ICMS estadual. Isso pode ser vantajoso para as exportações, mas o
fato é que a Lei custou muito caro à União, porque os governos estaduais são
reembolsados pela receita que deixam de arrecadar.
A Tabela_1 indica que o governo abateu R$ 76,1 bilhões da dívida com os
superávits orçamentários anuais obtidos desde 1999, ao que se acrescentaram R$
58,9 bilhões provenientes das privatizações5. Esses ganhos impediram um
crescimento ainda maior da dívida pública, mas é preciso olhar esses valores
com cautela: os ''ganhos'' não igualam os aumentos da dívida gerados pela
política cambial e de juros do próprio governo, que foram responsáveis por um
acréscimo de R$ 182,2 bilhões no endividamento total.
O governo manteve um patamar elevado de taxa de juros para afastar o medo de
uma volta da inflação e também para atrair investidores estrangeiros. Contudo,
a taxa de juros determina o montante de juros sobre a dívida que o governo paga
todos os anos (e certamente também interfere no conjunto da economia). Os
pagamentos de juros aumentaram anualmente desde que o Plano Real entrou em
vigor. O Brasil destina atualmente 8% do seu PIB ao pagamento de juros, quase
três vezes mais que a média de outros países latino-americanos (2,6%). Outros
20,5% de todas as despesas governamentais correspondem a pagamentos de juros,
duas vezes a média do restante da América Latina (10,9%) (International
Monetary Fund, 2002). Quanto ao impacto das flutuações cambiais, a
desvalorização do real elevou ainda mais a dívida na segunda gestão de Fernando
Henrique Cardoso, depois que o governo resolveu abandonar a paridade com o
dólar, em janeiro de 1999. A dívida brasileira aumenta quando o real perde
valor em relação ao dólar, porque uma parte dela deve ser paga em dólares e não
em reais.
Em muitos outros países a relação dívida/PIB é semelhante à do Brasil, só que
aqui essa proporção é mais problemática, uma vez que 80% da dívida está
vinculada ao valor do dólar ou à taxa interna básica de juros, e também porque
os títulos públicos têm, em média, prazos de vencimento mais curtos. Esses
fatores deixam o Brasil numa situação especialmente vulnerável aos
acontecimentos internacionais e a possíveis problemas de financiamento de curto
prazo (Batista, 2002). Dessa maneira, criou-se um círculo vicioso: para manter
o real em níveis estáveis, conter a inflação e atrair investimentos em dólar, o
governo precisa fixar taxas elevadas de juros; isso aumenta a dívida, o que,
por sua vez, reduz a confiança no real e, em conseqüência, diminui a
atratividade de investir dólares no Brasil. O resultado é uma pressão maior
para a desvalorização do real, o que acaba fazendo crescer o nível da dívida.
Em suma, o crescimento da relação dívida/PIB no Brasil durante a gestão de
Fernando Henrique Cardoso não foi uma conseqüência do desregramento dos gastos
públicos, mas da própria política de juros e de câmbio do seu governo, e
decorreu dos esforços para sanar as finanças da União e dos estados e
municípios. Ao contrário do que se poderia esperar, embora a responsabilidade
fiscal fosse um objetivo básico do Plano Real, as políticas do governo federal
provocaram a explosão da dívida pública. E o que é mais grave, certos
obstáculos políticos impediram o governo de obter mais vitórias na gestão da
política fiscal, conforme examino nas próximas seções. Pressões provenientes
principalmente dos governos dos estados e dos municípios limitaram o alcance da
centralização da receita pública na gestão FHC, e os próprios objetivos do
governo federal impediram a tentativa de realizar uma ampla reforma fiscal que
poderia estimular o crescimento econômico no longo prazo.
As Limitações da Reforma (1): Os Governos Estaduais e Municipais Não Podem
Perder Receitas
Apesar de o Plano Real estar centrado no aumento da capacidade do governo
brasileiro para formular e levar a cabo seus objetivos, a gestão FHC não impôs
de pronto o Plano Real ou algum de seus aspectos às demais unidades da
Federação. A implantação do Plano Real envolveu extensas negociações entre
governos, bem como entre o Executivo e o Legislativo. O governo federal
realmente conseguiu seu importante objetivo de restringir a interferência dos
Executivos subfederais na gestão macroeconômica do país, mas apesar de Fernando
Henrique ter tido a intenção inicial de cortar as transferências fiscais para
essas regiões, sua administração não conseguiu fazê-lo. Além de subsidiar as
dívidas locais e estaduais para obter a aprovação do FSE, Fernando Henrique
também teve de aceitar que os Executivos regionais não recebessem menos
recursos na forma de repasses federais do que tinham recebido em 1993. Assim,
embora o FSE ''liberasse'' até 20% da arrecadação da União das vinculações
determinadas pela Constituição, o governo federal não cortou suas
transferências na mesma proporção.
Em dezembro de 1993, o governo propôs que o FSE ''desvinculasse'' 15% de toda a
receita da União, inclusive a receita a ser transferida para os estados e
municípios conforme determina a Constituição. Governadores, prefeitos e até
membros da coalizão parlamentar do presidente se opuseram à proposta, e
partidos da base aliada do governo obstruíram uma votação do projeto em janeiro
de 1994. Em razão disso, o governo propôs três medidas: (a) um aumento das
alíquotas do imposto de renda; (b) que 5,6% de toda a arrecadação do imposto de
renda e 100% da receita proveniente do imposto de renda dos servidores públicos
federais deixassem de ser incluídos no cálculo do montante a ser transferido
para estados e municípios (sem o FSE, a Constituição determina que toda a
arrecadação do imposto de renda seja consolidada e que as subunidades
federativas recebam cerca de 45% do total); (c) como compensação pela não
''liberação'' pura e simples de 15% da arrecadação total do imposto de renda, o
governo propôs que o FSE liberasse até 20% das demais receitas do governo. O
Congresso aprovou a proposta um mês depois e promulgou o Fundo Social de
Emergência (Motta, 1997; Landim, 1999).
Entretanto, o projeto não reduziu em 5,6% as transferências para estados e
municípios ' esse número corresponde à porcentagem estimada do aumento da
receita do imposto de renda decorrente da elevação das alíquotas da tabela.
Isto é, com o aumento da tabela, estados e municípios somente teriam de
renunciar a 5,6% de sua parcela futura do imposto de renda, mais a receita do
imposto dos funcionários públicos federais. Mesmo com essas concessões, estados
e municípios acabaram recebendo mais transferências da União depois da
implantação do Plano Real. Já observei que a receita de impostos, em todas as
esferas de governo, aumentou muito em relação ao PIB durante os dois mandatos
de Fernando Henrique Cardoso, principalmente o imposto de renda das pessoas
físicas, que passou de 2,61% para 4,01% do PIB entre 1994 e 2001 (Brasil.
Ministério da Fazenda, Secretaria da Receita Federal, 2001a), devido ao aumento
geral da tabela e à estratégia de permitir a mudança de uma faixa de renda ou
de salário para uma alíquota mais alta por efeito da inflação, com o que mais
brasileiros tiveram de pagar imposto de renda. A conseqüência de tudo isso é
que as transferências constitucionais para estados e municípios aumentaram 124%
em valores reais entre 1994 e 2001. Nesse mesmo período, o PIB real cresceu
apenas 18,2% (Brasil. Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional,
2002b; 2002c).
Apesar de todo o prestígio do presidente e da ampla coalizão que o apoiava, o
governo federal não pôde simplesmente impor sua vontade na área tributária:
teve de negociar o Plano Real com o Congresso e, em conseqüência, precisou
ceder às pressões dos governadores e prefeitos, que defenderam ardorosamente no
Legislativo os interesses fiscais de suas regiões. Por sua natureza especial, o
FSE atribuiu aos legisladores uma considerável margem de manobra para defender
seus interesses, revelando em que medida o êxito do Plano Real dependeu das
negociações entre o Executivo e o Legislativo. O Plano Real distinguiu-se dos
programas anteriores de reforma econômica no Brasil em dois aspectos
essenciais: por descartar a estratégia de depender exclusivamente de decretos
presidenciais e por adotar uma combinação de decretos e emendas
constitucionais. Dessa forma, Fernando Henrique Cardoso comprometeu muito mais
o Legislativo no processo de estabilização da economia. Obter apoio do
Congresso a uma emenda constitucional é muito difícil no Brasil: os presidentes
têm de negociar, fazer concessões e oferecer compensações pessoais para
conseguir aprová-la.
Contudo, a natureza peculiar da emenda constitucional que criou o FSE permitiu
um comprometimento ainda maior do Legislativo. Quando se observa a aprovação de
uma emenda constitucional em determinado país, geralmente pensamos que os
políticos optaram por uma alteração permanente de um dispositivo político
fundamental. Entretanto, a emenda constitucional que instituiu o FSE é de outra
natureza: ela contém uma cláusula de vigência limitada, que já expirou e foi
renovada por três vezes (em 1955, 1997, 1999), devendo expirar novamente em
dezembro de 2003. Isso ajuda a explicar por que o Congresso aceitou de início o
FSE: porque não era e não é uma reforma permanente das relações fiscais entre
esferas de governo.
A cláusula de vigência limitada significa não só que os presidentes têm de
negociar a aprovação original do Fundo a um custo substancial (os subsídios às
dívidas e a garantia de manutenção dos níveis das transferências federais), mas
também que deveriam voltar a negociar periodicamente a aprovação da mesma lei.
Dessa forma, estados e municípios ganhavam novas oportunidades de obter
vantagens adicionais em troca do apoio ao programa macroeconômico do governo,
e, naturalmente, o presidente tem de fazer mais concessões do que se a emenda
tivesse sido permanente desde o começo.
Toda vez que o prazo de vigência do FSE se aproximou do limite de expirar,
Fernando Henrique teve de oferecer incentivos aos membros do Congresso para
renovar a lei, e esses incentivos sempre incluíram fundos adicionais para os
Executivos regionais. No ano 2000, por exemplo, todos os dispositivos do FSE
que diziam respeito às transferências do imposto de renda para estados e
municípios já tinham sido completamente removidos (Samuels, 2003:186-188).
Embora os futuros presidentes não tenham garantia alguma de que o Congresso irá
prorrogar o Fundo indefinidamente, a dívida do país permanecerá até ser paga. O
governo Fernando Henrique Cardoso jamais conseguiu realizar seus grandes
objetivos ' inverter de modo permanente a descentralização fiscal e desvincular
permanentemente as receitas das transferências constitucionais para os estados
e municípios. O Congresso sempre rejeitou essa mudança e se utilizou da
cláusula de vigência limitada para arrancar concessões que pudessem beneficiar
os estados e municípios. Tais concessões, junto com a assunção das dívidas dos
estados, ilustram como os interesses dos Executivos subfederais condicionaram o
espectro de opções do governo FHC, mesmo quando este mais reivindicava
autonomia política. Os futuros governos provavelmente continuarão a depender do
Congresso para manter programas de estabilização econômica.
As Limitações da Reforma (2): O Fracasso da Reforma Tributária
As medidas macroeconômicas do governo FHC não tiveram apenas um custo fiscal
direto. A política fiscal do governo impediu, ademais, que se fizessem reformas
mais amplas em outras áreas, especialmente no sistema tributário brasileiro6.
Reforma tributária pode significar muitas coisas. No Brasil, os esforços
concentraram-se no aperfeiçoamento da ''qualidade'' da tributação, na redução
do chamado ''custo Brasil'', que torna os produtos brasileiros menos
competitivos. Algumas metas específicas da reforma fiscal incluem a eliminação
de impostos cumulativos, a ampliação da base tributária, a redução do número de
impostos, a criação de incentivos para aumentar a receita, o fim dos incentivos
(isenções fiscais) estaduais para atrair investimentos industriais e a mudança
do modo de tributação da produção e do consumo7.
Desde antes da posse de Fernando Henrique Cardoso havia no Brasil um amplo e
forte apoio à reforma fiscal. Os economistas concordavam que esta iria melhorar
a eficiência e atrair investimentos. Ainda na função de ministro da Fazenda,
Fernando Henrique dizia que o país necessitava urgentemente de uma reforma
fiscal e durante sua campanha para presidente da República declarou que ela
seria uma prioridade de seu governo; depois de empossado, repetiu inúmeras
vezes essa declaração (Veja, 31/1/2001:42-43). Durante a década de 90,
circularam no Congresso mais de sessenta projetos de reforma fiscal, sugerindo
um grande interesse dos parlamentares nesse assunto (Azevedo e Melo, 1997:81).
As principais associações empresariais do país também fizeram intenso lobby em
favor da reforma tanto no Legislativo quanto no Executivo (Confederação
Nacional da Indústria, 2000). O próprio Fernando Henrique enviou ao Congresso
um projeto de reforma fiscal sete meses após sua posse (Proposta de Emenda
Constitucional nº 175). Entretanto, apesar da aparente convergência de
pensamentos e interesses, e ao contrário de outros importantes projetos de
reformas que lograram aprovação, a reforma fiscal ampla não prosperou durante
os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Uma explicação dessa inércia
está na relutância do governo em alterar um sistema que, apesar de oneroso e
ineficiente, ajudou-o a realizar suas metas fiscais.
Toda reforma fiscal, especialmente num país com um sistema tão complexo como o
do Brasil, implica um alto grau de incerteza sobre os fluxos futuros da receita
(Ascher, 1989). Por esse motivo, muito embora a maioria dos atores seja, em
princípio, favorável à reforma, também receia que os modelos de projeção dos
economistas estejam errados e que eles venham a perder receita. Assim, apesar
de afirmar repetidas vezes que a reforma fiscal era uma alta prioridade de seu
governo, a principal prioridade de Fernando Henrique Cardoso foi sustentar o
Plano Real, o que exigiu o conservadorismo fiscal: já que a receita vinha
aumentando regularmente, o governo posicionou-se, por instinto, a favor da
manutenção do status quo e jamais empenhou os recursos políticos necessários à
aprovação de seu próprio projeto.
Acima de tudo, as normas constitucionais foram responsáveis pela estratégia de
FHC de opor-se à reforma. Todos os projetos de reforma fiscal implicavam a
redução ou extinção das chamadas ''contribuições'', devido a uma suposta
ineficiência econômica8. No entanto, o governo precisa da receita das
contribuições para gerar superávits orçamentários. Se as contribuições fossem
transformadas em impostos, o governo teria de enfrentar um princípio
fundamental do federalismo brasileiro estabelecido na Constituição de 1988: a
partilha da receita tributária com os estados e municípios. Assim, as normas
constitucionais que permitem ao governo arrecadar toda a receita das
contribuições, mas o obrigam a dividir a receita proveniente de impostos,
deixaram o governo FHC entre a cruz e a caldeirinha no tocante à reforma
fiscal: se as contribuições prejudicavam o crescimento econômico no longo
prazo, eram essenciais para a estabilidade da economia no curto prazo. O
governo optou por evitar o que, de sua perspectiva, parecia ser a pior
conseqüência do sistema de distribuição de receita do Brasil ' a repartição da
receita tributária ', e escolheu ficar com o que lhe parecia ser um sistema
menos pior e lhe permitia não só cumprir suas obrigações internacionais como
também sustentar seu programa macroeconômico. O desejo de evitar os efeitos das
instituições de partilha da receita obrigou-o a essa escolha estratégica9.
O Brasil precisa superar a visão de que suas instituições estimulam a
ineficiência econômica para poder gerar investimentos e aumentar a
competitividade internacional dos seus produtos. A reforma fiscal teria ajudado
nesse sentido. Entretanto, a despeito das repetidas declarações do presidente
da República, da atuação de congressistas bem-intencionados e do pesado lobby
empresarial, a reforma fiscal não avançou muito durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso. A rigor, a perspectiva de uma ampla reforma fiscal parecia
menos provável ao final da gestão FHC do que no começo: a dependência crescente
do governo federal em relação às ''contribuições'' levou-o a interessar-se
menos pela reforma, e a eliminação de outros mecanismos de política industrial
(por meio da privatização dos bancos estaduais e outros órgãos governamentais,
bem como das limitações impostas aos níveis de endividamento dos estados)
induziu os governadores a relutarem em abrir mão do poder de manipular impostos
estaduais (ainda que o poder de conceder isenções tributárias como instrumento
para atrair investimentos tenha custado aos estados uma perda de no mínimo US$
9 bilhões no início da década de 90) (Abrucio, 1998:233).
Resumo
A análise das negociações políticas realizadas para a aprovação e manutenção do
Plano Real mostra que o governo Fernando Henrique Cardoso pagou um alto preço
por seus êxitos, não fez tudo o que queria,e que suas escolhas políticas
exacerbaram o problema fiscal brasileiro, assim como criaram obstáculos a
reformas profundas em outras áreas. Em primeiro lugar, o governo concordou em
subsidiar as dívidas dos estados e municípios porque não tinha outra saída para
manter a credibilidade de todo seu esforço de estabilização da economia. Em
segundo, embora tivessem realizado outros objetivos, as políticas de câmbio e
de juros do governo também contribuíram para o crescimento da dívida,
enfraquecendo, contraditoriamente, os princípios do Plano Real. Em terceiro,
Fernando Henrique não pôde introduzir o Plano Real sem negociar seus pontos
essenciais com o Congresso, onde os representantes dos governos locais e
estaduais exigiam compensação por terem abdicado de elementos fundamentais da
autonomia contraproducente que haviam conquistado durante a transição para a
democracia. Em quarto lugar, o governo negociou o projeto original para o FSE
de forma que os estados e municípios não perdessem receita (na realidade, eles
acabaram ganhando). O caráter ''temporário'' dos principais pontos da política
de estabilização implica que os futuros governos terão de ser tão habilidosos
na negociação com o Congresso quanto Fernando Henrique se quiserem manter a
estabilidade macroeconômica. Finalmente, a estratégia escolhida pelo governo
impediu o avanço de reformas indispensáveis em outras áreas, especialmente a
reforma tributária. Essas escolhas não implicam que o Brasil se encaminha para
uma crise do tipo argentino, mas é preciso estar atento às suas conseqüências
políticas e econômicas. O crescimento da dívida brasileira impõe ao governo
federal um pesado ônus que vai restringir a gama de opções políticas de que
poderão dispor os futuros governos para solucionar novos problemas.
CONCLUSÃO
O esforço do governo FHC em eliminar os problemas fiscais brasileiros foi bem-
sucedido. O Plano Real encurralou a inflação e deu ao governo federal
flexibilidade suficiente para gerar superávits orçamentários; além disso, as
conseqüências econômicas do Plano puseram os Executivos regionais numa posição
mais frágil, o que permitiu ao governo federal negociar controles fiscais mais
estritos sobre as finanças dos estados e municípios. Os avanços mais
significativos talvez tenham ocorrido na disciplina fiscal dos Executivos
subfederais: o governo FHC conseguiu resolver muitos problemas originários do
período 1985-1994. De modo especial, a Lei de Responsabilidade Fiscal instituiu
uma série de mecanismos de controle da dívida e das finanças dos Executivos
regionais e impôs sanções a futuros abusos.
O governo FHC também conseguiu aumentar de modo notável a capacidade do governo
federal para gerar receita tributária, alcançando níveis de arrecadação
recordes. Aumentos da base tributária, novos impostos, melhora da eficiência
administrativa e crescimento econômico lento mas constante ' tudo isso ajudou a
incrementar a arrecadação da União. O governo empenhou-se ainda em tornar a
dívida brasileira mais manejável, apesar de seu aumento. Sobretudo durante o
segundo mandato de FHC, o Tesouro e o Banco Central esforçaram-se para alongar
os prazos de resgate dos títulos da dívida brasileira, o que reduz a pressão
diária sobre as contas do governo. Em 1994, o prazo médio de resgate dos
títulos da dívida interna era de dois meses, mas no final de 2002 estimava-se
que somente 27% de toda a dívida tinha prazos de resgate inferiores a doze
meses (Nassif, 2002:67).
Entretanto, esse esforço também demonstrou a extensão dos problemas fiscais
remanescentes. Embora a situação do Brasil ao final do segundo mandato de
Fernando Henrique Cardoso não fosse tão difícil quanto a da Argentina antes do
colapso de sua economia, em fins de 2001 (entre outros motivos, porque a moeda
brasileira é flutuante, a dívida não é integralmente em dólares, e as receitas
tributárias vêm crescendo e não caindo), o nível dos investimentos continuou
baixo, porque os investidores temem que a dívida do país acabe se tornando
inadministrável e que por isso um futuro governo seja obrigado a declarar uma
moratória implícita ou explícita. Em outras palavras, o êxito do governo FHC em
algumas frentes significou, necessariamente, a criação de problemas em outras
frentes. Gostaria de refletir um pouco sobre os futuros problemas.
O Brasil assinou um acordo com o FMI em outubro de 1998 que tinha duas metas
fiscais: um superávit primário superior a 3% do PIB a partir de 1999 e uma
redução da relação dívida/PIB de 50-53% para 46,5% no final de 2001. O primeiro
objetivo foi alcançado a um custo social elevadíssimo ' esse dinheiro poderia
ter sido gasto em educação, saúde, desenvolvimento da infra-estrutura ou outros
programas sociais. A política fiscal do governo FHC também onerou os
contribuintes e a indústria ' uma carga tributária pesada não atrai
investimentos e torna os produtos brasileiros menos competitivos no mercado
internacional. Entretanto, os futuros governos terão de sustentar essa política
apenas para manter a dívida estável (O Estado de S. Paulo, 10/6/2002, p. B4).
Se não mantiverem superávits orçamentários, a dívida poderá expandir-se, tendo
como resultado um aumento da pressão sobre o real e, conseqüentemente, uma
elevação dos preços e das taxas de juros, o que acabaria perpetuando ou mesmo
agravando o círculo vicioso da dívida.
É importante notar que a gestão FHC gerou superávits primários sem manter
controle sobre as despesas anuais; isto é, o superávit baseou-se mais no
crescimento da receita do que em cortes no orçamento. Esse fato sublinha a
distância entre a retórica da ''austeridade fiscal'', da ''responsabilidade
fiscal'', e a ''realidade fiscal'' na gestão orçamentária do governo. A dívida
não só cresceu vertiginosamente como houve um aumento considerável do gasto
governamental em todas as áreas: 6% anuais em média, enquanto o PIB cresceu
apenas 2,4% ao ano. Os gastos públicos não financeiros do governo passaram de
16,5% do PIB em 1994 para uma estimativa de 21,8% em 2002 (O Estado de S.
Paulo, 14/4/2002, p. A4). E mais: as despesas com amortização da dívida e
pagamento de juros aumentaram de modo ainda mais acelerado, e em todas as áreas
os gastos com pessoal e com investimentos cresceram bem mais rápido que o PIB
(Nassif, 2002:67).
O governo não tinha como controlar seu gasto. O FSE ajudou a manipular a
distribuição relativa da receitadentro do orçamento, mas não podia ajudar o
governo a reduzir o nível absoluto do gasto público. Há dúvidas sobre se uma
futura administração será realmente capaz de cortar gastos de modo substancial,
principalmente porque apenas uma pequena parcela do orçamento pode ser cortada
a cada ano. Em 2001, aproximadamente 75% do orçamento anual foi gasto com
salários, aposentadorias e transferências diretas para indivíduos, rubricas em
que não cabe veto presidencial (O Estado de S. Paulo, 10/6/2002, p. B4). O
total dessas despesas vinculadas chegou a quase 51% do orçamento em 1987
(Nassif, 2002:47). O crescimento da receita vinculada foi uma conseqüência,
entre outras coisas, da expansão da burocracia (especialmente na década de 80)
e dos aumentos dos salários dos servidores públicos (de 1995 a 2001 os gastos
com pessoal no Executivo subiram 80,9%) (O Estado de S. Paulo, 18/5/2002, p.
A2). Dos 25% restantes do orçamento, a Constituição vincula 40% (isto é, 10% do
orçamento global) à saúde. Portanto, o presidente não pode recorrer aos seus
poderes constitucionais para obter superávits fiscais. Os cortes de gastos
terão de ser realizados mediante reformas sistemáticas que o governo FHC não
fez ou que foram deturpadas quando tentou fazê-las, como a reforma
administrativa e a reforma da previdência do setor público (Melo, 2001). Pode-
se prever que as questões fiscais ainda ocuparão uma posição de destaque na
agenda política de futuros governos.
A gestão macroeconômica, baseada no Plano Real, foi o maior êxito do governo de
Fernando Henrique Cardoso. Contudo, o sucesso não foi completo. Os ganhos
obtidos pelo governo federal custaram muito caro, principalmente pelo
incremento dos encargos de uma dívida que ainda imporá por muito tempo
restrições ao manejo flexível do orçamento público e às opções de política dos
futuros presidentes. As próprias políticas de câmbio e de juros adotadas pelo
governo FHC limitaram essa flexibilidade em outras áreas e deixaram o Brasil
mais vulnerável às oscilações financeiras internacionais. Por fim, elementos
fundamentais das políticas macroeconômicas continuam a depender de negociações
pacíficas entre Executivo e Legislativo. Os desafios à estabilidade
macroeconômica do Brasil continuam a localizar-se na área da política fiscal.
As medidas tomadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso consolidaram os
problemas no plano federal, revelando toda a extensão das perdas, mas não
livraram o país do dano causado por governos anteriores.
NOTAS
1. Apesar de restringir a autonomia das subunidades federativas, os
governadores foram favoráveis à Lei de Responsabilidade Fiscal. O fato de esta
ter levado apenas um ano para ser aprovada no Congresso é um indicador da
pequena oposição ao projeto. Os governadores não se opuseram à LRF pois o
governo federal já tinha resolvido seus problemas fiscais em 1999, e porque a
lei deixa claras as condições em que eles podem demitir funcionários ou reduzir
os salários dos servidores estaduais. Após a adoção do Plano Real e o controle
da inflação, os governadores já não tinham motivos para usar o governo estadual
como programa de emprego e passaram a relutar mais na concessão de aumentos
salariais, porque podiam ficar sem recursos para investir em obras públicas.
Mais informações sobre a LRF encontram-se em Mendes (1999), Afonso e Mello
(2000), Cavalcanti e Quadros (2000), Kopits, Jiménez e Manoel (2000).
2. O crescimento da receita tributária nos estados e municípios ajudou (além do
aumento das transferências do governo federal), principalmente o da receita do
ICMS. Detalhes em Nassif (2002: 45-46).
3. O governo também estimulou os Executivos regionais a aumentarem a eficiência
de seus sistemas tributários e a buscarem elevar suas receitas, em vez de
ficarem na dependência exclusiva das transferências federais.
4. O momento em que se deu a solução da crise da dívida dos estados foi
decisivo: o custo para o governo federal aumentou muito porque a operação
somente foi concluída depois que a política de juros altos do próprio governo
já inflacionara enormemente o valor das dívidas dos estados. Isso poderia ter
sido evitado, mas com certeza elevou sobremaneira o ônus do governo federal.
5. As privatizações também ajudaram a reduzir as pressões sobre os orçamentos
estaduais (e a eleger vários governadores em 1998): os estados ficaram com
cerca de US$ 34,7 bilhões provenientes das privatizações entre 1996 e 2001
(Nassif, 2002: 51). No entanto, assim como no plano federal, restaram poucas
empresas e órgãos de relevo para vender.
6. A extensão da reforma administrativa também foi limitada pelas políticas
fiscais do governo (Bressan, 2002).
7. Um detalhamento das propostas de reforma tributária e fiscal encontra-se,
entre outros, em Afonso et alii (1998) e Lima (1999).
8. O FMI, por exemplo, acha que a Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira ' CPMF é uma das formas menos eficientes de tributação em todo o
mundo. Cf. ''Fundo Vê Riscos na Manutenção do CPMF'', O Estado de S. Paulo, 18/
6/2001, p. B4.
9. Setores empresariais dos estados e municípios também foram veementemente
contrários à reforma fiscal, e sua influência contribuiu para o fracasso das
propostas de ampla reforma. Veja em Samuels (2003, cap. 9).