Política distributiva na Federação: estratégias eleitorais, barganhas
legislativas e coalizões de governo
Muitos cientistas políticos concordariam com a famosa afirmação de Harold
Lasswell (1936) de que o estudo da política freqüentemente se resume a questões
de distribuição: quem ganha o que, quando e por que.Quando o governo usa sua
autoridade para taxar, gastar e regular, quem são os principais beneficiários?
Um objeto empírico promissor para a análise da questão levantada por Lasswell
está no campo das transferências fiscais, mais especificamente na análise do
impacto distributivo do gasto público sobre unidades geográficas.
Esse tipo de análise é particularmente relevante para o estudo do federalismo
brasileiro, descrito como historicamente soldado por coalizões cuidadosamente
construídas entre e com as elites regionais (Camargo, 1993), alianças estas nas
quais o gasto público ocupa um lugar central (Affonso, 1995). A percepção
dominante entre os cientistas políticos é a de que as instituições políticas
desenhadas a partir da Constituição de 1988 não alteraram essas características
da federação brasileira (Almeida, 2001). A visão comum é a de que elites
poderosamente instaladas nos estados controlam recursos que lhes permitem
cobrar um alto preço para que quaisquer mudanças no status quo sejam
realizadas.
O objetivo deste artigo é trazer uma contribuição ao debate sobre "como se
governa o Brasil" (Palermo, 2000), testando empiricamente hipóteses da
literatura sobre o funcionamento do federalismo brasileiro. O exame da
distribuição regional de recursos fiscais permitirá testar hipóteses sobre
estratégias eleitorais e legislativas dos governantes brasileiros.
No campo das estratégias eleitorais, o artigo procura identificar os estados
para os quais os líderes políticos preferencialmente destinam recursos. Uma
destas estratégias, avessa a riscos, seria a de investir nas regiões onde os
líderes partidários sabem que seu apoio já é forte (Cox e McCubbins, 1986). Uma
estratégia alternativa consistiria em eleger como distritos eleitorais
preferenciais aqueles nos quais um número expressivo de eleitores indecisos
poderia ser conquistado através de gastos localizados (Dixit e Londregan, 1996;
Lindbeck e Weibull, 1987).
Um limite dessas interpretações é seu suposto de que o partido do governo tem
inteira autoridade sobre a agenda política. Conflitos entre os membros de uma
coalizão de governo ou entre o Executivo e o Legislativo são ignorados. Em
primeiro lugar, o próprio processo orçamentário pode constranger a autonomia do
Executivo, ao conferir poder de veto ou emendas a comissões, líderes
partidários ou outros atores. Em segundo lugar, em vez de usar sua autoridade
sobre o processo orçamentário para conquistar eleitores ou influenciar futuras
eleições, o partido do governo pode ter preocupações mais imediatas, tais como
sobreviver ao voto de confiança ou aprovar uma dada legislação. Em outras
palavras, quando a disciplina partidária é relativamente fraca ou o governo se
apóia sobre uma coalizão, a necessidade de obter votos parlamentares pode ser
superior ao interesse por premiar eleitores cativos ou conquistar os indecisos.
Comparativamente, os presidentes brasileiros têm grande poder sobre o processo
de elaboração e execução do orçamento. A possibilidade do uso estratégico de
recursos fiscais para premiar antigos eleitores ou conquistar novos é, assim,
uma hipótese plausível de ser examinada, particularmente com relação a Fernando
Henrique Cardoso, o primeiro presidente brasileiro a concorrer à reeleição. Por
outro lado, os presidentes brasileiros enfrentam a tarefa de obter aprovação
legislativa em um parlamento com oito partidos efetivos, em que o partido do
presidente usualmente controla menos de 20% das cadeiras, com a dificuldade
adicional de que as emendas constitucionais têm sido um componente central na
agenda dos governos, requerendo maiorias de dois terços para aprovação.
Assim, as barganhas legislativas são um segundo componente central deste
artigo. A idéia de que os presidentes brasileiros trocam gastos localizados por
apoio legislativo não é nova. Entretanto, este trabalho contraria a visão de um
"mercado caótico" de votos legislativos em favor de uma visão de que há acordos
de longo prazo e relativamente estáveis entre o presidente e sua coalizão de
sustentação legislativa (Figueiredo e Limongi, 1999). Apoiado nos trabalhos de
Samuels (2000) e Abrucio (1998), este trabalho testa ainda o papel dos
governadores de Estado nas barganhas legislativas e na política de distribuição
de recursos fiscais.
A primeira seção revisa abordagens teóricas sobre a distribuição espacial de
recursos e explora implicações empíricas para o caso brasileiro, dando especial
atenção às estratégias eleitorais e legislativas dos líderes partidários. A
segunda, apresenta as hipóteses de trabalho, bem como a metodologia empregada
para a análise empírica. A terceira apresenta os resultados do trabalho.
TEORIAS DE REDISTRIBUIÇÃO APLICADAS AO BRASIL
As teorias sobre a distribuição espacial de recursos fiscais evoluíram
lentamente a partir da tradição da Economia do Bem-Estar. A literatura
tradicional sobre federalismo fiscal concebia o governo central como um ditador
benevolente, que opera transferências de modo a internalizar externalidades
entre as jurisdições (Musgrave, 1959; Oates, 1972). Um outro enfoque de análise
sobre o problema da redistribuição nos Estados modernos é ver o governo central
não como um ator individual benevolente, mas como uma arena pela qual
preferências são transformadas em políticas. Um exemplo clássico dessa
abordagem é o trabalho de Meltzer e Richard (1981), os quais afirmam que os
pobres são capazes de extrair transferências dos ricos por meio do processo
democrático. Uma outra abordagem da redistribuição considera que esta é o
resultado da decisão de indivíduos ricos e altruístas que preferem ajudar os
pobres (Becker, 1974; Coate, 1995). De acordo com esta visão, seria de se
esperar que, dada a elevada desigualdade na distribuição da renda entre as
regiões brasileiras, a distribuição de recursos fiscais operasse em favor das
regiões relativamente mais pobres.
Nessas teorias, contudo, a política e as instituições estão completamente
ausentes. Nenhum observador atento da vida política e da política fiscal
brasileiras concordaria com a afirmativa de que o governo central pode ser
descrito como um déspota benevolente ou um conjunto vazio através do qual o
eleitor médio expressa suas preferências. Alguns formuladores de políticas
podem de fato ser motivados pelo desejo de internalizar externalidades ou mesmo
por altruísticas preocupações com os mais pobres. Ainda assim, esse ator será
constrangido pelo contexto político em que está obrigado a atuar. Para
viabilizar sua agenda política, terá de reunir maiorias legislativas, manter-se
no cargo e sobreviver politicamente.
Assim, esse artigo adota a suposição de que o interesse por conquistar cargos,
permanecer no poder, controlar o executivo ou integrar coalizões legislativas
majoritárias é um objetivo central dos atores políticos. De acordo com esta
visão, a distribuição de transferências intergovernamentais pode ser uma
ferramenta extremamente valiosa não apenas para atingir objetivos de política,
mas também para premiar antigos e persuadir novos colaboradores, bem como
construir e manter coalizões majoritárias no parlamento. Levando em conta a
influência das instituições políticas sobre o processo decisório, este artigo
assume que dois países com idênticas estruturas de distribuição da renda podem
apresentar padrões inteiramente distintos de redistribuição fiscal se as regras
que estruturam os processos legislativo e eleitoral forem diferentes.
O Processo de Distribuição de Recursos: Orçamento e Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço ' FGTS
Para a análise política da distribuição de recursos fiscais, é importante
identificar os principais atores e seus constrangimentos institucionais. O mais
importante ator no processo orçamentário brasileiro é o presidente. Comparado
com outros sistemas presidencialistas, o sistema brasileiro confere grande
autoridade legislativa e orçamentária ao presidente (Figueiredo e Limongi,
1999), mas o papel dos líderes partidários no processo orçamentário também é
central (idem; Souza, 2003).
O processo inicia-se com a apresentação da proposta orçamentária ao Congresso,
que passa então a ser examinada pela Comissão Mista do Orçamento ' CMO,
composta por membros do Senado e da Câmara dos Deputados1. A composição
partidária da CMO e de suas subcomissões é proporcional à distribuição
partidária das cadeiras nas duas Casas. Os líderes partidários desempenham um
importante papel nesse processo, devido à sua autoridade para indicar os
membros de seus próprios partidos que integrarão a Comissão, as subcomissões e
as relatorias. O cargo mais importante é o de relator geral ' que é sempre um
parlamentar-chave na coalizão de apoio ao presidente ', que desempenha o papel
de negociar emendas ao orçamento entre os líderes partidários e o presidente.
Os estudos sobre as políticas de distribuição de recursos governamentais no
Brasil concentram-se no processo de proposição de emendas ao orçamento. As
emendas podem ser apresentadas por parlamentares individuais, bancadas
estaduais, bancadas regionais ou comissões. A visão clássica sobre o processo
de barganha legislativa no Brasil destaca a apresentação de emendas ao
orçamento como uma estratégia de parlamentares individuais para conseguir
projetos para seus distritos eleitorais (Ames, 1995). Na verdade, mudanças nas
regras de proposição das emendas a partir de 1995 criaram fortes incentivos
para que estas sejam apresentadas coletivamente, particularmente pelas bancadas
estaduais em detrimento das estratégias individualistas (Figueiredo e Limongi,
2002; Souza, 2003)2. Além desses incentivos, o sucesso de um parlamentar na
aprovação de emendas individuais depende de negociações com os líderes
partidários e os relatores para obter aprovação nas comissões.
A apresentação de emendas é apenas o início do processo. Mesmo depois de
aprovadas, o presidente tem inteira autoridade sobre sua execução. No primeiro
governo Fernando Henrique, pouco mais da metade das emendas aprovadas foi
executada (Figueiredo e Limongi, 2002). O presidente tem ainda autoridade sobre
o timing de liberação dos recursos, isto é, a data em que as emendas aprovadas
serão efetivamente executadas. Finalmente, embora raramente empregado, o
presidente tem poder de veto sobre as emendas aprovadas (Souza, 2003). Em suma,
o processo orçamentário começa e termina sob a autoridade do presidente; os
líderes partidários têm grande controle sobre a indicação de cargos
estratégicos na formulação do orçamento, e estratégias individuais de inserção
de emendas de caráter particularista têm tido seu espaço crescentemente
reduzido.
O Executivo federal também tem grande autoridade sobre a distribuição dos
empréstimos do FGTS, recurso extra-orçamentário cuja política de distribuição
também será examinada neste artigo. O processo inicia-se com a avaliação pela
Caixa Econômica Federal ' CEF da capacidade de endividamento de cada
instituição que queira solicitar um empréstimo. Nessa etapa, a CEF tem poder de
veto sobre a aprovação do projeto. Em seguida, instâncias colegiadas estaduais
têm autoridade para definir as áreas prioritárias de alocação dos empréstimos
dentro de cada unidade federativa, com base em um orçamento anual. Os critérios
de alocação de recursos de tais instâncias estaduais são definidos pelo
ministério encarregado da gestão da política habitacional e urbana e pelo
Conselho Curador do FGTS, órgão federal em que governos estaduais e municipais
não têm representação. O ministério tem ainda autoridade para avaliar a
qualidade técnica do projeto aprovado, acelerando ou retardando o processo de
liberação dos recursos. A CEF tem ainda grande autoridade sobre o timing da
liberação dos recursos. Finalmente, caso a arrecadação do FGTS não se comporte
de acordo com o previsto quando da elaboração dos orçamentos estaduais, a
liberação de recursos aprovados pode ser postergada para o ano seguinte.
Conquistando votos para as eleições presidenciais
A descrição acima sugere que há espaço na formulação e execução do orçamento e
na distribuição dos recursos do FGTS para que os presidentes brasileiros usem
estes recursos para conquistar eleitores.
Duas interpretações da literatura podem ser úteis para analisar esse fenômeno.
Cox e McCubbins (1986) sugerem que governantes avessos a riscos tenderão a
investir nas regiões das quais receberam apoio nas eleições mais recentes. Uma
explicação alternativa sustenta que esta estratégia desperdiçaria recursos
valiosos em distritos eleitorais já cativos. Uma estratégia mais eficiente
seria destinar recursos para aqueles distritos em que os resultados das
próximas eleições seriam mais incertos, onde os eleitores estejam eventualmente
divididos. Mais explicitamente, Dixit e Londregan (1996) argumentam que o
partido que controla o governo central escolheria destinar recursos para os
distritos em que um grupo relativamente grande de eleitores indecisos e com
frágil identidade ideológica seria mobilizado eleitoralmente por meio de gastos
localizados.
O mais óbvio problema para o emprego dessas teorias no caso brasileiro reside
no fato de que até 1998 os presidentes não podiam concorrer à reeleição.
Entretanto, é plausível supor que os presidentes no poder tenham tentado
favorecer a eleição dos candidatos de seus próprios partidos. Uma segunda
cautela deve levar em conta que estas teorias assumem explícita ou
implicitamente regras eleitorais em que o "vencedor leva tudo". Por exemplo,
nas eleições presidenciais norte-americanas, faz sentido "mirar um distrito-
chave", como é a Flórida, para a composição do colégio eleitoral (Strömberg,
2001). No caso do Brasil, os votos de todos os eleitores são igualmente
válidos. Nesse caso, pode não fazer tanto sentido concentrar recursos em um
estado-pivô, mas favorecer o gasto em estados ou regiões com maior número de
eleitores.
A despeito dessas hesitações, essas duas hipóteses serão testadas empiricamente
neste trabalho.
Conquistando votos no Parlamento
Os presidentes brasileiros enfrentam uma complexa tarefa para construir suas
coalizões de sustentação parlamentar nas duas Câmaras. O sistema partidário
brasileiro é altamente fragmentado (Kinzo, 1993; Nicolau, 1996). As coalizões
eleitorais são freqüentemente diferentes das coalizões de governo. As regras
eleitorais não criam incentivos para que os parlamentares dêem suporte à agenda
legislativa do presidente, porque seus mandatos não são mutuamente dependentes.
Os parlamentares têm fortes incentivos para conseguir que os gastos
governamentais se dirijam para as suas regiões de origem.
De acordo com a literatura, a tarefa seria dificultada pela fragmentação
política derivada do federalismo. Os governadores de estado são importantes
jogadores na construção das coalizões eleitorais. Estudos empíricos sugerem que
os candidatos a postos eletivos no nível federal dependem do apoio dos
governadores, que têm um papel relevante na montagem das listas eleitorais
(Samuels, 2000). Portanto, os governadores teriam mecanismos de controle sobre
a sobrevivência eleitoral dos parlamentares ' particularmente no Senado ',
dificultando os esforços dos presidentes para construir coalizões de
sustentação parlamentar (Mainwaring, 1997; Abrucio, 1998). A própria unidade do
Executivo federal seria ameaçada pela lealdade dos ministros às suas regiões de
origem em detrimento da lealdade à agenda legislativa do presidente (Ames,
2001).
Essas dificuldades para a construção de coalizões de governo seriam as
responsáveis por diversos dos problemas brasileiros, que vão do desequilíbrio
fiscal, déficit público, inflação (Dillinger e Webb, 1999) à estagnação
econômica (Lopes, 1996), passando pela paralisia decisória (Ames, 2001).
Entretanto, os presidentes brasileiros, de Sarney a Lula, têm governado sob o
"presidencialismo de coalizão" (Figueiredo e Limongi, 1999) e não encontraram
barreiras intransponíveis ao cumprimento de sua agenda, mesmo em questões que
contrariam os interesses imediatos de governadores de Estado, aí incluído o
grau mais exigente de sucesso parlamentar que é a aprovação de emendas
constitucionais (Arretche, 2002; Melo, 2002).
Os presidentes brasileiros têm de fato grande autoridade sobre uma série de
programas associados a transferências fiscais e fortes incentivos para trocar
gastos federais por votos legislativos. Trata-se de saber como eles têm
construído suas coalizões de sustentação parlamentar.
Acordos aleatórios caso a caso
A interpretação que sugere que as maiorias legislativas são construídas a cada
votação parlamentar considera, de um lado, um presidente que deseja usar um
conjunto limitado de recursos para comprar votos em uma variedade de
tramitações legislativas durante seu mandato e, de outro lado, parlamentares
que desejam se reeleger distribuindo benefícios a seus distritos eleitorais.
Pode ser racional para um presidente construir diferentes coalizões
majoritárias para a aprovação de diferentes projetos de lei. Nessa situação,
cada votação engendraria um mercado de votos parlamentares e, portanto, as
relações do presidente com o parlamento pautariam-se por acordos aleatórios. Em
face da tarefa de alocar limitados recursos a regiões específicas, o presidente
poderia identificar as preferências e os pontos fracos de cada parlamentar com
relação a cada projeto de lei e "mirar" aqueles parlamentares cuja indiferença
em relação ao resultado da votação em questão os tornaria dispostos a serem
comprados.
Se preferências e pontos fracos variam de acordo com o assunto em pauta, os
presidentes fariam melhor uso de seus recursos construindo as coalizões menos
caras para cada projeto sob tramitação legislativa. Para construir a coalizão
menos cara neste método do caso a caso, o presidente deveria "comprar" o número
mínimo de parlamentares necessário para obter vitória nas votações. A compra de
parlamentares em número superior ao necessário à aprovação da lei em questão
significaria desperdiçar preciosos recursos que precisariam ser preservados
para batalhas futuras.
Todos os distritos eleitorais poderiam vir a ser beneficiados caso tivessem o
mesmo número de votos, isto é, igual poder de barganha no mercado de compra de
votos parlamentares. Entretanto, as bancadas estaduais podem ser de tamanho
diferente, de acordo com as leis eleitorais que definem as regras de
distribuição das cadeiras por estados. No caso brasileiro, os estados menores
são sobre-representados nas duas Casas federais. Na estratégia de poupar
limitados recursos de uso discricionário, o presidente buscaria os votos
parlamentares que podem ser comprados por mais baixo preço. Assim, os
representantes dos estados menores poderiam tornar-se particularmente atraentes
no mercado de votos parlamentares, dado que seus votos seriam menos caros. Se
isto for verdade, poder-se-ia esperar que os estados menores, sobre-
representados, acabariam por obter um valor per capita maior na distribuição
das transferências fiscais.
Contratos de longo prazo
A estratégia de construir maiorias legislativas a cada votação parlamentar pode
ter custos proibitivos, sobretudo os que envolvem reunir informação e organizar
diferentes grupos parlamentares para a compra de votos (Weingast e Marshall,
1988). Além disto, a não-simultaneidade das ações pode dificultar
significativamente a manutenção dos compromissos. Os recursos não podem ser
liberados no mesmo momento em que ocorrem as votações; assim, o primeiro a
cumprir sua parte no acordo pode temer que o segundo não venha a honrar o
compromisso assumido3.
Esses problemas engendrariam incentivos para que sejam criadas estruturas de
negociação que vão além do tratamento caso a caso. Nos EUA, por exemplo, o
sistema de comissões desempenha esse papel. No Brasil, essa estrutura pode ser
a coalizão legislativa. Ao invés de firmar acordos aleatoriamente, o presidente
pode estabelecer compromissos de longo prazo no início de seu mandato,
premiando os membros de sua coalizão de sustentação parlamentar com um fluxo
regular de recursos.
Entretanto, essa estratégia pode apresentar problemas. Em primeiro lugar, em
uma legislatura grande, pode ser difícil para o presidente supervisionar
diretamente um grande número de desembolsos. Além disso, a construção de uma
coalizão parlamentar não elimina o problema da não-simultaneidade. Para
resolver este problema, o presidente pode delegar a tarefa de distribuição de
recursos aos seus ministros, oferecendo-lhes autonomia. Os ministros agiriam,
assim, como intermediários na troca de votos por transferências (Ames, 2001). O
presidente distribui quotas de recursos entre seus ministros, na expectativa de
que estes as utilizem nas negociações com os líderes partidários e
parlamentares de modo a assegurar uma oferta estável de votos4.
Esse arranjo não seria preferível somente para o presidente, mas também para os
parlamentares os quais estariam, acima de tudo, garantindo recursos para seus
próprios distritos. A capacidade de firmar compromissos de longo prazo que
garantam recursos para suas bases eleitorais pode ser vista como superior a um
imprevisível mercado aleatório de votos no qual tais recursos não estariam
garantidos. De acordo com essa linha de interpretação, os partidos têm
incentivos para permanecer na coalizão de governo porque seus membros são
premiados com recursos políticos sobre os quais o presidente tem grande
autoridade, assim como parlamentares têm incentivos para migrar para os
partidos da coalizão, caso as regras partidárias o permitam5.
Alternativamente, ou talvez adicionalmente aos ministros e líderes partidários,
os presidentes podem usar os governadores como intermediários. Dado que estes
jogam um importante papel na sobrevivência eleitoral dos parlamentares, podem
ter instrumentos que lhes permitam influenciar o comportamento parlamentar,
tornando-se, assim, úteis ao presidente (Samuels, 2000). O presidente pode
delegar recursos federais aos governadores de sua própria coalizão, e estes por
sua vez distribuem esses recursos aos parlamentares cujos votos são
necessários.
As análises mais recentes sugerem um conflito entre a interpretação centrada no
poder dos líderes partidários (Figueiredo e Limongi, 1999) e a visão centrada
na supremacia dos governadores (Samuels, 2000). Entretanto, Carey e Reinhardt
(2003) afirmam que estas não são mutuamente exclusivas, e que de fato
governadores tendem a competir com os líderes partidários como intermediários
entre o presidente e os parlamentares, bem como influir nas decisões
legislativas. Uma contribuição do trabalho em questão consiste em testar
empiricamente essas duas possibilidades.
Hipóteses
Diversas teorias do federalismo fiscal prevêem que as transferências
intergovernamentais tenderão no longo prazo a beneficiar os estados mais
pobres. Uma outra perspectiva sugere que os presidentes podem usar as
transferências intergovernamentais para conquistar eleitores e vencer as
eleições, ou conquistar parlamentares e construir coalizões legislativas
vitoriosas. A estratégia de conquistar eleitores pode tanto "mirar" regiões
onde o partido do presidente já é muito forte quanto regiões em que o
presidente não recebeu a maioria dos votos na última eleição, mas que contam
com um grande contingente de eleitores.
A estratégia de conquista de votos parlamentares pode ser tanto de firmar
compromissos caso a caso ou de longo prazo. Na primeira estratégia, todas as
coalizões são igualmente prováveis de serem formadas. Disciplina partidária,
ideologia ou vínculos regionais não são importantes para que os acordos sejam
firmados. Se esta visão estiver correta, partidos ou coalizões não terão um
impacto importante na distribuição das transferências, mas estados pequenos,
sobre-representados nas câmaras federais tenderão a receber maiores valores per
capita. Se a interpretação centrada nos compromissos de longo prazo estiver
correta, pode-se esperar que distritos controlados pelos partidos ou pelos
governadores pertencentes à coalizão do presidente receberão montantes per
capita mais elevados. Neste caso, o objetivo não seria de comprar a coalizão
vitoriosa mais barata, mas de conservar uma coalizão de governo.
Análise Empírica
Esta seção tenta estimar a influência das políticas eleitoral e legislativa na
distribuição de transferências intergovernamentais. Do melhor de nosso
conhecimento, este é o primeiro esforço analítico nesta direção. Ames (2001)
analisou as propostas de emendas ao orçamento, embora freqüentemente menos da
metade destas sejam executadas. Figueiredo e Limongi (2002) e Pereira e Mueller
(2002) examinaram os itens executados do orçamento de investimentos de Fernando
Henrique Cardoso e mostraram que os parlamentares da coalizão do presidente têm
maior probabilidade de ter suas emendas aprovadas e executadas. O foco
analítico desses estudos, contudo, era o processo orçamentário e os desembolsos
analisados que representam menos que 5% do orçamento total. Pensamos que
examinar as transferências intergovernamentais efetivamente executadas é uma
forma mais adequada de analisar as implicações da política sobre a distribuição
espacial de recursos em uma federação.
Dado que todos os argumentos teóricos acima supõem uma razoável dose de
autoridade do presidente, é necessário examinar transferências cuja natureza
permita testar o uso dessa autoridade. Os efeitos políticos que pretendemos
analisar são mais discerníveis com transferências discricionárias do que
automáticas ou constitucionais6. É assim útil distinguir as transferências
totais (incluindo as constitucionais) daquelas sobre cuja distribuição o
Executivo federal tem algum grau de discricionariedade. Assim, coletamos
informações anualizadas sobre três tipos de fluxo de transferências federais:
empréstimos do FGTS (de 1995 a 1998)7; transferências voluntárias para estados
e municípios (de 1996 a 2000)8 e todas as transferências (distinguindo as
constitucionais das não constitucionais (1991-2000)9.
Para facilitar as comparações, os valores absolutos foram corrigidos pela
população e deflacionados; todos os cálculos foram feitos em Reais per capita
de 1995, tomando os estados como unidade de análise10.
Diversas variáveis foram criadas para avaliar a possibilidade de uso
estratégico das transferências discricionárias pelo presidente. Para testar a
hipótese de que as transferências foram usadas com objetivos eleitorais,
simplesmente empregamos uma variável dummy para os anos eleitorais e, além
disso, calculamos o número total de votos recebidos pelo presidente eleito em
cada estado na eleição mais recente. Caso o presidente tenha premiado o apoio
recebido, deveríamos encontrar maiores montantes per capita de transferências
para aqueles estados em que este obteve maior votação. Para testar a hipótese
contrária, de que a estratégia dos presidentes tenha sido de "conquistar os
estados divididos", calculamos a diferença entre os dois candidatos mais
votados em cada estado na última eleição presidencial, esperando encontrar um
coeficiente negativo nas correlações11. Em terceiro lugar, para testar a
hipótese de que os estados mais favorecidos são aqueles que contam com maior
número de eleitores, calculamos a participação efetiva nas eleições
presidenciais mais recentes.
Para testar a hipótese de que os estados menores ' sobre-representados ' são os
mais beneficiados pelas transferências federais, foi calculado o número de
cadeiras por milhão de habitantes de cada estado, na Câmara dos Deputados e no
Senado. Como estas são altamente correlacionadas, usamos a média das duas
Casas, em vez de colocá-las separadamente nas regressões. A média das duas
Câmaras varia entre cerca de 1 para São Paulo e 35 para Roraima.
Para testar a hipótese de que o pertencimento ao partido da coalizão de
sustentação do presidente favorece o acesso às transferências federais,
calculamos o número de deputados em cada estado que pertencem à coalizão de
sustentação do presidente em relação ao total de cadeiras legislativas,
separadamente para a Câmara dos Deputados e o Senado. Novamente, dado que os
poderes legislativos das duas Casas são bastante semelhantes no processo
legislativo, calculamos a média das duas Casas. Essas medidas nos permitiram
medir a importância de cada estado na coalizão de sustentação parlamentar do
presidente. Essas variam entre cerca de 0,001 para Goiás no início dos anos 90
e cerca de 0,05 para Minas Gerais no primeiro governo Fernando Henrique.
É possível que os efeitos da sobre-representação e pertencimento à coalizão do
presidente sejam interativos antes que aditivos. Isto é, os estados menores
podem ser parceiros mais atraentes quando o presidente forma sua coalizão de
governo. O valor de ter um número de cadeiras legislativas per capita pode ser
fortalecido quando estas cadeiras são parte da coalizão de governo. Assim,
incluímos um termo de interação dessas duas variáveis.
Para testar a hipótese de que os governadores da coalizão do presidente operam
como intermediários entre este e as bancadas parlamentares dos estados,
simplesmente construímos uma variável dummy atribuindo valor um se o governador
era membro da coalizão de governo e valor zero no caso de não-pertencimento,
bem como uma variável dummy separada para os governadores que pertencem ao
mesmo partido do presidente. Se essa hipótese se confirmar, os estados
governados por aliados do presidente devem receber mais recursos per capita que
os demais.
Finalmente, consideramos necessário testar as proposições das teorias que
prevêem resultados redistributivos em direção às regiões mais pobres. Seja por
motivos altruísticos, seja pelo poder eleitoral dos pobres, as transferências
são em grande parte apresentadas como tendo entre seus objetivos a finalidade
de redistribuir recursos para as regiões mais necessitadas. A mais importante
variável de controle é o log do Produto Interno Bruto ' PIB per capita
estadual. O coeficiente deve ser negativo se o governo central empregar as
transferências para redistribuir renda às regiões mais pobres. Incluímos ainda
uma bateria de variáveis demográficas de controle, tais como pobreza,
analfabetismo, urbanização, bem como o Índice de Desenvolvimento Humano ' IDH
estadual. Esses dados, entretanto, não variam significativamente ao longo do
tempo; assim, foram deixados de fora dos modelos de séries temporais cross-
section. Finalmente, incluímos a população dos estados e uma variável dummy
para os anos de eleições presidenciais12.
Resultados
Transferências constitucionais e não constitucionais
A Tabela_1 apresenta os resultados para o total das transferências:
constitucionais e não constitucionais. Nos Modelos 1 e 2, a variável dependente
é o total de transferências per capita (incluindo as constitucionais); nos
Modelos 3 e 4, esta é o total de transferências sobre as quais há algum grau de
discricionariedade do Executivo federal (isto é, total das transferências '
transferências constitucionais). Os Modelos 1 e 3 não incluem o termo de
interação, ao passo que os modelos 2 e 4 o incluem.
O primeiro grupo de variáveis independentes examina as teorias rivais de
conquista de eleitores em eleições presidenciais. Esses coeficientes não são
significativamente diferentes de "zero" nos dois primeiros modelos, mas os
resultados dos modelos 3 e 4 são interessantes. A diferença dos votos recebidos
pelos dois candidatos mais votados tem um efeito negativo sobre as
transferências não constitucionais. Mantidas todas as médias das variáveis,
cada desvio padrão a menos na margem de vitória está associado a um ganho per
capita de R$ 7 nas transferências não constitucionais. O coeficiente seguinte '
de vitória do presidente na última eleição ' sugere que, outros valores
mantidos iguais, os estados que deram mais votos ao presidente na eleição mais
recente receberam maiores montantes de transferências não constitucionais per
capita. Cada desvio padrão a mais em votos para o presidente está associado a
um acréscimo de R$ 17 nas transferências não constitucionais.
Do mesmo modo, estados com maiores taxas de participação eleitoral (isto é, com
maior número absoluto de eleitores) receberam maiores transferências não
constitucionais per capita. Entretanto, um plot residual revela que esse
resultado é fortemente influenciado por Tocantins. Quando este estado é
retirado, o coeficiente não é mais significativamente distinto de "zero".
O fato de que os coeficientes são significativos tanto para a margem de vitória
eleitoral quanto para a vitória do presidente requer explicações adicionais.
Assim, testamos a influência de outliers e examinamos a estabilidade dos
coeficientes ao longo do tempo. Descobrimos que ambos os coeficientes são
puxados pelo período de Fernando Henrique Cardoso, não sendo significativos até
1995. Este resultado indicaria que a motivação da reeleição ' plausível somente
para Fernando Henrique ' explicaria a redistribuição estratégica de recursos
discricionários.
Entretanto, permanece o problema de que os resultados favorecem ambas as
teorias ' de favorecimento aos distritos cativos e de conquista por distritos
indecisos. A inserção de um termo de interação (margem x votos para o
presidente) no Modelo 4 ajuda a resolver a questão. A interação e seus
componentes são significativos conjuntamente. O coeficiente condicional para
voto no presidente' isto é, estado em que o presidente eleito foi o mais votado
na última eleição ' é significativo e eleva-se lentamente com a margem de
vitória' isto é, a distância em relação ao segundo candidato mais votado.
Entretanto, o coeficiente para margem de vitóriasó é negativo nos estados em
que o presidente obteve menos do que um milhão de votos; e mesmo nestes, o
coeficiente não é estatisticamente significativo para toda a amostra. Quando o
presidente recebeu mais do que 1 milhão de votos, o coeficiente condicional
para margem de vitóriatorna-se na verdade positivo; e é significativo quando o
número de votos passa de 2 milhões13. Assim para os estados maiores, o efeito
da margem de vitóriaé positivo; e o presidente ganhou as eleições nestes
estados em 90% dos casos (a maior margem de vitória foi a sua própria). Tudo
indica que Fernando Henrique Cardoso premiou os estados nos quais foi o
vitorioso na última eleição.
Com relação às variáveis que explicariam a estratégia dos presidentes com
relação ao parlamento, a representação per capita nas duas Casas legislativas
tem um efeito sobre a redistribuição. No Modelo 1, cada desvio padrão a mais na
representação per capita ' de São Paulo a Tocantins ' representa um acréscimo
de R$ 265 per capita no total das transferências de cada estado. Esses
resultados não são puxados exclusivamente pelos estados menores ' o coeficiente
é praticamente o mesmo se retiramos Roraima, Amapá e Acre ' e a relação é
razoavelmente linear. Observe-se, entretanto, que o efeito da sobre-
representação é mais de três vezes maior para as transferências não
constitucionais (Modelo 3). Assim, o efeito da sobre-representação não é
meramente um artefato das regras que regem as transferências constitucionais.
Ele parece emergir do poder de barganha dos estados menores.
O coeficiente seguinte ' percentual de cadeiras na coalizão de governo '
indica, além disso, que as barganhas não são aleatórias, negociadas caso a
caso. De todas as variáveis independentes testadas, o pertencimento à coalizão
de governo do presidente apresenta os mais elevados índices de correlação. Os
estados com maior representação na coalizão de sustentação legislativa do
presidente recebem maiores montantes de transferências per capita. Cada desvio
padrão a mais na representação do estado na coalizão do presidente (por
exemplo, Rio Grande do Norte passando de sete para oito cadeiras na Câmara dos
Deputados e de dois para três senadores na coalizão de governo depois de 1994)
está associado a um ganho de R$ 10 per capita no total das transferências de
cada estado. Se o presidente troca transferências por votos legislativos, ele
parece fazê-lo mais freqüentemente com os deputados e senadores de sua própria
coalizão. Testes adicionais revelaram-nos que o efeito de pertencimento à
coalizão sobre as transferências não constitucionais per capita cresce com a
sobre-representação para toda a amostra, embora com decrescente precisão para
os estados maiores. Em outras palavras, os benefícios de pertencer à coalizão
de sustentação legislativa do presidente são maiores para os estados menores,
sobre-representados.
O coeficiente seguinte ' pertencimento do governador à coalizão de governo '
não é significativo em nenhuma estimativa. Mesmo o pertencimento do governador
ao partido do presidente não obteve nenhuma correlação significativa. Esta
constatação não é suficiente para rejeitar a visão de que os governadores agem
como intermediários entre o parlamento e o presidente ou de que têm um papel
importante nas relações federativas, mas todas as variáveis mantidas iguais, os
estados controlados por governadores que fazem parte do partido ou da coalizão
de governo do presidente não recebem mais transferências per capita do que
aqueles controlados pelos partidos de oposição.
Passemos às variáveis de controle. Enquanto os anos eleitorais não têm qualquer
impacto sobre as transferências constitucionais, os Modelos 3 e 4 revelam que
as transferências não constitucionais são bem mais elevadas nestes anos. O
Modelo 4 indica que a média destas transferências salta para R$ 100 per capita
em anos eleitorais14.
Examinemos agora a veracidade dos freqüentes argumentos acerca do caráter
redistributivo das transferências intergovernamentais. Neste caso, o PIB per
capita estadual é a variável de controle mais importante. Observe-se que esta
nem sequer se aproxima de algum nível de significância em nenhum dos modelos
apresentados na Tabela_1. O total das transferências (constitucionais + não
constitucionais) não favorece os estados mais pobres, e o coeficiente para as
transferências não constitucionais é, na verdade, positivo, isto é, quanto mais
pobre o estado, menos ele recebe.
Testes adicionais revelaram-nos que, no longo prazo, crescentes níveis de
riqueza estão associados a maior volume de transferências. Um por cento de
acréscimo no PIB per capita está associado a 0,65% de acréscimo no total de
transferências per capita e mais de 2% de acréscimo nas transferências não
constitucionais. Entretanto, o coeficiente é negativo com relação às
transferências constitucionais. Em suma, estas de fato se destinam aos estados
mais pobres; mas a distribuição de transferências discricionárias não se pauta
por critérios de necessidade.
Transferências voluntárias
A Tabela_2 apresenta os resultados para as transferências voluntárias no
período 1996-2000 ' excluindo o Distrito Federal ' e confirmam com maior
precisão os resultados encontrados com relação às transferências totais e não
constitucionais para o período 1991-2000. Nossa variável dependente aqui se
refere a desembolsos efetivamente executados de recursos com maior
possibilidade de uso discricionário, em um período que cobre parte dos dois
mandatos do presidente Fernando Henrique.
Em primeiro lugar, a média das transferências voluntárias aumentou no ano
eleitoral de 1998. O coeficiente para "ano de eleição presidencial" é altamente
significativo, positivo e elevado (0,659), o que indica que essas
transferências voluntárias são de fato empregadas como um recurso de estratégia
eleitoral.
A constatação de que o presidente premiou com as transferências voluntárias os
estados que lhe deram maior apoio nas eleições de 1994 e de 1998 é confirmada.
Cada desvio padrão a mais em "votos para o presidente na última eleição" está
associado a um ganho de R$ 19 per capita em transferências voluntárias.
Passemos às estratégias parlamentares. O poder de barganha dos estados menores
é confirmado com relação às transferências voluntárias. Mas os estados
efetivamente favorecidos com transferências voluntárias foram aqueles cuja
representação parlamentar era estratégica na coalizão de governo do presidente.
Os mais elevados índices de correlação de nosso estudo referem-se a esta
variável independente. Pertencer à coalizão de governo do presidente aumenta
exponencialmente as chances dos parlamentares obterem recursos para seus
estados ou municípios de origem. Os governadores que pertenciam à coalizão do
presidente, entretanto, não foram beneficiados com transferências voluntárias.
Essa variável nem sequer se aproxima de alguma correlação significativa.
Empréstimos do FGTS
A Tabela_3 apresenta os resultados com relação aos desembolsos do FGTS. Este
tipo de desembolso não está sujeito ao mesmo grau de discricionariedade das
transferências voluntárias, pois existe uma regulamentação para a definição dos
orçamentos estaduais, isto é, o montante global de recursos que cada estado
pode alocar em cada ano. Uma vez estimada a arrecadação líquida anual do Fundo,
é calculado o montante de recursos de que disporá cada estado com base em
critérios de distribuição diretamente proporcionais à população urbana e às
carências habitacionais e de saneamento e inversamente proporcionais à
capacidade de arrecadação do FGTS. Adicionalmente, a partir de 1995, a alocação
dos recursos no interior dos estados passou a ser feita por comissões estaduais
fortemente controladas pelos governadores (Arretche, 2000).
Observe-se, assim, que essas regras favorecem os governadores dentro de seus
respectivos estados, mas limitam o grau de discricionariedade na distribuição
de recursos entre eles, favorecendo os mais pobres e mais populosos. A nosso
juízo, são estas regras que limitaram o uso desse tipo para fins eleitorais,
explicando que a variável "votos para presidente na última eleição" nem sequer
se aproxime de algum grau de significância.
Similarmente, são essas regras que explicam a elevada correlação da variável
"taxa de participação efetiva" bem como a correlação negativa da variável
"cadeiras por milhão de habitantes". Em outras palavras, as regras para
definição dos orçamentos estaduais do FGTS favorecem os estados maiores e
penalizam os estados menores. Quanto mais populoso o estado, mais recursos do
FGTS este tende a receber. Neste sentido, tais regras tendem a limitar o uso
desses recursos como uma estratégia de obtenção de apoio eleitoral e/ou
parlamentar.
Entretanto, é muito interessante como confirmação dos resultados encontrados
com relação aos demais tipos de transferências que a variável "percentual de
cadeiras do estado na coalizão de sustentação do presidente" seja mais uma vez
a variável independente que apresente os mais elevados índices de correlação.
Lembremos que a distribuição de recursos entre os estados é limitada pelas
regras. Isto significa que, uma vez alocados os empréstimos no interior dos
estados, a etapa seguinte do jogo consiste na efetiva liberação dos projetos
aprovados. Assim, para os parlamentares, pertencer à coalizão do presidente
aumenta exponencialmente as chances de que o compromisso de liberação de
recursos se torne crível.
Mais uma vez, confirma-se a constatação de que essa é uma relação entre a
representação parlamentar dos estados e o Executivo federal. O "pertencimento
do governador à coalizão" não se aproxima de qualquer nível de significância,
sendo o índice na verdade negativo. Os governadores da oposição tinham, na
verdade, mais chances de obter a efetiva liberação desses recursos.
CONCLUSÕES
Esse trabalho pretendeu caracterizar e avaliar os resultados de estratégias
eleitorais e legislativas sobre a distribuição espacial de recursos, em uma
federação com presidente forte, sobre-representação parlamentar nas duas
Câmaras e parlamentares que têm incentivos para obter recursos para suas bases
eleitorais. Os presidentes brasileiros contam com considerável poder sobre a
execução de recursos de transferências e usam estes recursos para superar o
desafio de preservar sua coalizão de sustentação parlamentar. Para tanto,
canalizam os recursos de que dispõem para os estados que contam com maior
número de parlamentares na coalizão. Os parlamentes, por sua vez, têm fortes
incentivos para integrar a coalizão de governo, pois daí deriva a credibilidade
de que seus estados e municípios de origem receberão recursos adicionais. Essa
estratégia revela que os acordos entre os presidentes e o parlamento tendem a
ser de longo prazo, e não aleatórios, em torno de cada votação legislativa. A
noção de que os parlamentares e o Executivo federal estão envolvidos em
generalizada negociação por recursos, na qual este último tem que construir uma
maioria parlamentar para cada questão legislativa, revelou-se claramente
equivocada. Além disso, não encontramos evidências de que o presidente favorece
os governadores que pertencem ao seu partido ou à sua coalizão.
Consistentemente com outros trabalhos recentes15, nossos resultados sugerem que
o presidente usa seus recursos para manter uma coalizão legislativa claramente
identificada.
NOTAS
1. O número de membros da Comissão Mista do Orçamento cresceu ao longo do
tempo. Em 1988, eram 60 (Pereira e Mueller, 2002). Em 1999, eram 84 (Souza,
2003).
2. Em 1995, a Resolução nº 2/95 estabeleceu um teto tanto para o número de
emendas individuais ' 20 ' quanto para seu valor ' R$ 2 milhões. Com relação às
emendas coletivas, são permitidas até 5 para as comissões, 5 para as bancadas
regionais e 10 para as bancadas estaduais.
3. O elevado grau de autonomia dos presidentes brasileiros com relação a "se" e
"quando" as emendas parlamentares serão executadas pode, contudo, permitir-lhes
assumir compromissos simultâneos.
4. Ames (2001) afirma que esta delegação de autoridade pode engendrar
problemas. Os ministros podem ter as suas próprias agendas que não são
necessariamente compatíveis com a do presidente. É importante, contudo,
observar que o presidente não abdica de sua autoridade em favor dos ministros;
a delegação pode ser retirada caso estes últimos não desempenhem adequadamente
sua tarefa.
5. É possível que estes incentivos expliquem as taxas de migração partidária
apresentadas por Melo (2000).
6. É importante, contudo, observar que mesmo as fórmulas empregadas para a
distribuição das transferências automáticas são elas mesmas o resultado de
barganhas políticas.
7. Dados obtidos junto à Caixa Econômica Federal.
8. Dados obtidos do site do Banco Federativo do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social ' BNDES. As transferências voluntárias são
aquelas sobre as quais não há critérios constitucionais ou legais de partilha.
Estas vêm crescendo em termos absolutos e relativos. Em 1995, envolveram R$ 5
bilhões, representando 18% do total das transferências constitucionais. Em
2000, foram R$ 13,5 bilhões, representando 36% das transferências
constitucionais. Entretanto, parte significativa deste crescimento está
associada aos desembolsos com o Sistema Único de Saúde ' SUS, cujos critérios
de partilha evoluíram de modo a que não mais fossem classificados como
transferências voluntárias. Excluídas as transferências vinculadas ao SUS, as
transferências voluntárias representaram R$ 4 bilhões e 10% das transferências
constitucionais em 2000 (Prado, 2001:36).
9. Dados obtidos da publicação oficial do Ministério da Fazenda. Os dados
publicados pelo Ministério da Fazenda distinguem entre transferências
constitucionais e "outras transferências", bem como transferências de capital.
É possível separar as transferências constitucionais, as não constitucionais
(para custeio e investimento) e o total das transferências (constitucionais +
discricionárias para custeio + discricionárias para investimento).
10. Como os dados de transferência são desviados para a direita, utilizamos uma
transformação com logaritmo natural.
11. Esta proxy não é suficientemente adequada para testar as teorias
apresentadas. Seria preferível usar informações de survey para medir
disposições ideológicas dos estados e calcular a intensidade das disputas, mas
não dispomos desta informação.
12. Os dados incluem observações para todos as 27 UFs. Testes de especificação
de Hausman sugerem que o estimador de aleatoriedade é inapropriado. De qualquer
modo, estamos cientes de que há importantes fatores não-mensurados que variam
entre os estados; assim, todas as regressões mencionadas abaixo incluem efeitos
fixos dos estados. Além disso, estamos preocupados com variações anuais e
possíveis tendências; como uma matriz de dummys anuais é conjuntamente
significativa em cada modelo, estas também foram incluídas. Desvios padrões
corrigidos são calculados para lidar com a heteroscadasticidade de grupo. Para
lidar com a correlação na série, modelos dinâmicos incluindo a defasagem à
variável dependente estão registrados. A inclusão de uma variável dependente
defasada, especialmente na presença de efeitos fixos, pode introduzir bias.
Assim, especificações estáticas alternativas também foram exploradas usando a
transformação de Prais-Winsten, as quais levaram a resultados similares.
13. Relação similar pode ser estabelecida pela simples interação entre margem
de vitóriae tamanho da população.
14. O teste para anos das eleições municipais também apresentou resultados
significativos para as transferências não constitucionais.
15. Bevilaqua (1999) encontrou resultados similares para as negociações das
dívidas estaduais no Brasil. Cheibub, Figueiredo e Limongi (2002) constataram
que estados com mais forte representação na coalizão legislativa do presidente
recebem maiores volumes per capita de investimento no Orçamento. Gibson e Calvo
(2000) chegaram a conclusões similares para a Argentina, assim como Rao e Singh
(2000) para a Índia.