Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América
Latina
As chamadas teorias da transição democrática constituíram, como se sabe, um dos
filões mais ricos das ciências sociais no Brasil e na América Latina nas
últimas décadas. Realizando uma ampla radiografia institucional dos países que
se democratizavam, trabalhos como aquele editado por O'Donnell et alii (1986)
constituíram, pelo menos até os anos 90, a forma por excelência de estudar e
interpretar o autoritarismo e o momento em que a incerteza sobre os resultados
do jogo político e a força reguladora de regras universais se impuseram
novamente sobre o poder de um ator único tal a definição de democratização
das teorias da transição. Mais ainda, as teorias da transição consagraram a
recém surgida ciência política, que na maioria dos países latino-americanos
somente a partir dos anos 70 se afirma como um campo de investigação
independente, com uma metodologia própria e paradigmas de análises distintos.
Ao longo dos anos 90, vai se consolidando, contudo, uma nova abordagem
sociológica da democratização, a qual, refuta a homologia entre os processos de
construção institucional e de democratização societária subentendida nas
teorias da transição. O que se procura mostrar é que, ao lado da construção de
instituições democráticas (eleições livres, parlamento ativo, liberdade de
imprensa etc.), a vigência da democracia implica a incorporação de valores
democráticos nas "práticas cotidianas" (Avritzer, 1996:143). Nesse caso, a
análise dos processos sociais de transformação verificados no bojo da
democratização não poderia permanecer confinada na esfera institucional,
deveria, ao contrário, penetrar o tecido das relações sociais e da cultura
política gestadas nesse nível, revelando as modificações aí observadas. Dessa
maneira, a crítica sociológica às teorias da transição indica a necessidade de
estudar, de forma reconstrutiva, o modelo concreto de relacionamento entre o
Estado, as instituições políticas e a sociedade, mostrando que nessas
interseções habita, precisamente, o movimento de construção da democracia. A
democratização, nesse caso, já não é mais o momento de transição, é o processo
permanente e nunca inteiramente acabado de concretização da soberania popular
(ver Costa, 1994; Olvera, 1999).
Para a construção de tal abordagem sociológica da democratização, a
incorporação de conceitos como sociedade civil e espaço público, desenvolvidos
mais adequadamente em outros contextos, desempenha uma função-chave. Eles
permitem a ressignificação da imensa gama de trabalhos particulares que, em uma
operação quase etnográfica, haviam estudado os diferentes atores surgidos ao
longo da democratização e suas formas de relacionamento com o Estado e as
instituições, permitindo que fossem contextualizados em um marco teórico amplo.
Essas categorias, não obstante, não são de uso exclusivo daquele campo que aqui
se denomina de tratamento sociológico da democratização. Elas apresentam, na
verdade, uso múltiplo e diverso, assumindo em cada contribuição uma conotação
própria. Dessa maneira, a adaptação de tais conceitos ao contexto latino-
americano implica a explicitação do sentido preciso que eles assumem. No que
diz respeito à idéia de sociedade civil, pode-se dizer que se processou nos
últimos anos, em consonância com o debate mundial sobre o tema, a construção de
uma teoria da sociedade civil latino-americana e de seus usos analíticos no
contexto de uma interpretação sociológica da democratização e das novas
democracias (ver, entre outros, Avritzer, 1996; Costa, 1997; Olvera, 1999, além
do estudo inter-regional sobre sociedade civil e governance publicado em
Dagnino, 2002a; Panfichi, 2002; Olvera, 2003).
Já a discussão das possibilidades de uso do conceito espaço público no contexto
dos estudos sobre a democratização latino-americana é mais recente e ainda
muito incipiente. O presente artigo pretende contribuir para este debate. Em
primeiro lugar, reconstruímos sumariamente a trajetória do conceito espaço
público na teoria crítica, mostrando como as definições e usos do conceito vão
se modificando ao longo do tempo, até chegar à forma, assumida nos anos 90, de
um modelo discursivo de espaço público. Em seguida, apresentamos algumas
críticas recentes a tal modelo, a nosso ver relevantes para o estudo do
contexto latino-americano, além de uma breve digressão sobre o conceito espaço
público mundial ou global, ao qual, malgrado vir merecendo um uso cada vez mais
freqüente também na América Latina , faltam consistência e plausibilidade
teóricas. Por fim, buscamos passar em revista crítica alguns usos do conceito
de espaço público na América Latina, concluindo que adaptações e correções ao
modelo discursivo podem fazer de tal concepção uma ferramenta útil para o
estudo de transformações recentes na América Latina.
TEORIA CRÍTICA E ESPAÇO PÚBLICO
Da Sociedade de Massas à Mudança Estrutural da Esfera Pública1
O conceito de esfera pública representou um elemento central no processo de
reconstrução da teoria crítica na segunda metade do século XX (Habermas, 1990;
Calhoun, 1992; Thompson, 1995; Melucci, 1996). Significou a continuação de uma
tradição crítica sobre a cultura de massas iniciada pela Escola de Frankfurt
(Jay, 1973) e, ao mesmo tempo, produziu uma grande mudança dentro desta
tradição, através da recuperação de um fundamento normativo que permitiu
estabelecer uma nova relação entre a teoria crítica e a teoria democrática.
Duas diferentes dimensões do conceito de esfera pública possibilitaram que a
categoria cumprisse a função de divisor de águas entre a análise da indústria
cultural de Adorno e Horkheimer e as contribuições à teoria democrática
contemporânea (Dryzek, 1990; Benhabib, 1995; Gutman, 1994; Habermas, 1992b). Em
primeiro lugar, através desse conceito se identificou, no advento da
modernidade, uma esfera para a interação legal de grupos, associações e
movimentos, o qual abriu um novo caminho dentro da teoria democrática, mais
além do debate entre os elitistas (Schumpeter, 1944; Downs, 1956; Sartori,
1987) e os democratas participativos (Pateman, 1970; Held, 1987). Introduziu-
se, assim, a possibilidade de uma "relação argumentativa crítica" com a
organização política, no lugar da participação direta. Dessa forma, abriu-se
espaço para uma nova forma de relação entre racionalidade e participação.
A segunda dimensão do conceito de esfera pública referida acima diz respeito à
tensão entre autonomia da crítica cultural e o caráter comercial do processo de
produção cultural (Habermas, 1990; Thompson, 1990). Tal tensão diz respeito à
infiltração mútua das esferas pública e privada (Habermas, 1990) e representa a
continuação da análise de Adorno e Horkheimer (1964) sobre a perda de autonomia
do campo cultural.
O conceito de esfera pública de Habermas levou ao desenvolvimento de duas áreas
de investigação na teoria social muito produtivas e, não obstante,
contraditórias: a primeira inclui as teorias sobre movimentos sociais e
sociedade civil (Melucci, 1985; 1989; 1996; Keane, 1988; Cohen, 1985; Goldfarb,
1989). Ambas as teorias, a despeito de suas diferenças, se inspiram na idéia do
desenvolvimento de uma esfera dialógica e interativa a que pertencem os
movimentos sociais e as associações voluntárias. Nesse âmbito se dá a
tematização de novas questões e o estabelecimento de fluxos de comunicação
característicos de uma forma de ação que suspende, temporariamente, os fins
imediatos de uma interação específica, interpelando a validade moral dos
assuntos em questão (Habermas, 1981; 1992a). No âmbito da teoria crítica, os
processos de legitimação democráticos relacionam-se com tal forma de ação
comunicativa.
A segunda área de desenvolvimento dentro da teoria crítica impulsionada pela
análise de Habermas no livro Mudança Estrutural da Esfera Pública é o estudo
dos meios de comunicação de massa (Deetz, 1992; Thompson, 1990; 1995).
Diferentemente do primeiro caso, o desenvolvimento da pesquisa sobre os meios
de comunicação de massa, baseando-se na suposição de que há uma semelhança
entre o consumo de bens materiais e culturais, mostrou-se, em um primeiro
momento, pouco produtivo. Tanto é assim que o próprio Habermas se veria forçado
nos anos 90, conforme mostramos abaixo, a revisar suas considerações sobre as
formas de recepção dos meios de comunicação de massa.
No livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, Habermas parte da análise do
desenvolvimento do capitalismo mercantil na Europa do século XVII, para mostrar
que este desenvolvimento provocou a emergência de um espaço entre a esfera
privada e o Estado, espaço este caracterizado pela discussão livre e racional
do exercício da autoridade política. Conforme o autor, há duas mudanças
fundamentais subjacentes à emergência dessa esfera. A primeira refere-se ao que
ele denomina de separação entre os interesses vinculados à economia doméstica e
a subjetividade. Assim, a emergência do espaço público encontra-se vinculada ao
desacoplamento da capacidade reflexiva do indivíduo da esfera dos interesses
materiais. Os públicos culturais estão, por isso, vinculados não apenas à
circulação comercial de idéias, mas também ao fato de que a família e a
subjetividade, ao se desvincularem das atividades "não reflexivas", permitem
aos indivíduos estabelecer relações "puramente humanas" uns com os outros
(Arendt, 1959).
A segunda transformação na antiga Europa burguesa sublinhada por Habermas
refere-se à mudança na relação da burguesia com o poder. A burguesia é a
primeira classe governante cuja fonte de poder é independente do controle do
Estado e que se localiza no nível privado. Sua relação com o poder é, nesse
sentido, estruturalmente diferente de outras classes na história, uma vez que
renuncia ao exercício direto do governo, reivindicando, contudo, o direito de
ter conhecimento do que faz o Estado. Tal demanda serviu, assim, para conferir
um caráter público às relações entre Estado e sociedade. Isto é, como resultado
da reivindicação por parte da burguesia da prestação pública de contas, emergiu
uma esfera constituída por indivíduos que buscam submeter decisões da
autoridade estatal à crítica racional.
A descrição de Habermas da emergência de uma esfera pública na modernidade não
constitui uma ruptura com a Escola de Frankfurt, como poderia parecer à
primeira vista. Seu argumento está relacionado com a idéia da decadência do
moderno em virtude da maneira como se tematiza a separação entre o público e o
privado. Com o desenvolvimento da modernidade, tal separação é substituída por
uma influência progressiva da sociedade sobre o Estado e por uma estatização
crescente da sociedade (Habermas, 1990). A tentativa de Habermas de localizar
as características de um público cultural e político no primeiro período
burguês, assim como sua ênfase nas atividades não comerciais dos públicos
culturais, rompe com a possibilidade de conectar o avanço da modernidade com
uma tensão crescente entre o mercado e a esfera pública. Com efeito, os
desenvolvimentos mais significativos da teoria crítica apontaram nessa direção,
destacando, principalmente, a emergência de públicos que interpelam
criticamente os meios de comunicação nas sociedades contemporâneas.
A Construção do Modelo Discursivo de Esfera Pública
Desde o importante prefácio à reedição alemã de 1990, Habermas explicita a
revisão das teses centrais do Mudança Estrutural da Esfera Pública, mostrando
que o espaço público continua estabelecendo, como órbita insubstituível de
constituição democrática da opinião e da vontade coletivas, a mediação
necessária entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema
político, de outro.
A revisão analítica realizada naquele prefácio pode, para nossos propósitos
presentes, ser desdobrada em três momentos distintos:
1) A partir das novas pesquisas da sociologia da comunicação e do comportamento
político, o autor relativiza a tese linear anterior de que os cidadãos, na
sociedade de massas, teriam se transformado, de politicamente ativos em
privatistas, de atores da cultura em consumidores de entretenimento. Não se
deve subestimar, segundo o autor, o potencial de crítica e de seleção de um
público capaz de preservar suas diferenciações internas e sua pluralidade, a
despeito da pressão cultural e politicamente homogeneizadora da mídia.
2) Partindo do modelo em dois níveis de sociedade (a diferenciação entre
sistema e mundo da vida) desenvolvido em sua Teoria da Ação Comunicativa,
Habermas mostra que a força sociointegrativa que emana das interações
comunicativas voltadas para o entendimento, próprias do mundo da vida, não
migra imediatamente para o plano político, pacificando aí as diferenças de
interesses e disputas de poder existentes. Recusa-se a fórmula rousseauniana,
segundo a qual a virtude cívica dos cidadãos individuais proporcionará per se a
constituição de um conjunto de cidadãos orientados para o bem comum. A fonte da
legitimidade política não pode ser, conforme Habermas, a vontade dos cidadãos
individuais, mas o resultado do processo comunicativo de formação da opinião e
da vontade coletiva. É esse o processo que, operado dentro da esfera pública,
estabelece a mediação entre o mundo da vida e o sistema político, permitindo
que os impulsos provindos do mundo da vida cheguem até as instâncias de tomada
de decisão instituídas pela ordem democrática (Habermas, 1990:37 e ss.).
3) Segue-se a percepção de uma ambivalência constitutiva da esfera pública:
nela desembocam tanto os fluxos comunicativos originados no mundo da vida
portanto gestados em relações voltadas para o entendimento quanto os esforços
de utilização dos meios de comunicação para a produção de lealdade política e
para influenciar as preferências de consumo. A canalização dos fluxos
comunicativos provindos do mundo da vida para a esfera pública é operada,
fundamentalmente, pelo conjunto de associações voluntárias desvinculadas do
mercado e do Estado a que se denomina sociedade civil. As chances de tais
associações influenciarem efetivamente a esfera pública, se contrapondo aos
atores sistêmicos, marcando-a com seus temas, permanecem grandeza a ser, em
cada caso, avaliada empiricamente (idem:45 e ss.).
Em trabalhos subseqüentes, Habermas (1992a; 1992b) desenvolve e amplia a
concepção aqui brevemente delineada, procurando detalhar o papel de uma esfera
pública "politicamente influente" dentro de sua concepção teórico-discursiva da
democracia. Nesses trabalhos, o autor detalha a forma como, nos contextos
democráticos, os procedimentos legais e políticos institucionalizados asseguram
que os processos espontâneos de formação de opinião sejam considerados nas
instâncias decisórias. Assim, a força sociointegrativa da solidariedade,
assente nos impulsos comunicativos do mundo da vida, contrabalançaria os outros
dois recursos que suprem a "carência de integração e coordenação" das
sociedades modernas, a saber, o dinheiro e o poder (Habermas, 1992b:23).
Cabe aos atores da sociedade civil nesse modelo discursivo de democracia um
papel duplo: de um lado, eles são responsáveis pela preservação e ampliação da
infra-estrutura comunicativa próprias do mundo da vida e pela produção de
microesferas públicas associadas à vida cotidiana. Ao mesmo tempo, tais atores
canalizam os problemas tematizados na vida cotidiana para a esfera pública,
tratando de
"[...] apresentar novas contribuições para a solução de problemas, de
oferecer novas informações e de corroborar os bons motivos,
denunciando os maus, de forma a introduzir um impulso nos ânimos
capaz de alterar os parâmetros constitucionais da formação da vontade
política e de pressionar os parlamentos, os judiciários e os governos
em favor de determinadas políticas" (Habermas, 1992a:448).
Ao mesmo tempo, Habermas insiste na necessidade de autolimitação da influência
dos atores da sociedade civil, sob dois aspectos fundamentais. O primeiro diz
respeito à complexidade, qual seja, para que possam funcionar como
catalisadoras dos processos espontâneos de formação da opinião, as organizações
da sociedade civil não podem transformar-se em estruturas formalizadas,
dominadas pelos rituais burocráticos. De outra forma, o ganho de complexidade
poderia significar a rendição aos imperativos organizacionais e o conseqüente
distanciamento da base (Habermas, 1985:423). A segunda autolimitação diz
respeito diretamente à questão do poder. Para Habermas, os atores da sociedade
civil não podem exercer poder administrativo, isto é, a influência destes sobre
a política se faz através das mensagens que, percorrendo os mecanismos
institucionalizados do Estado constitucional, alcançam os núcleos decisórios.
Dessa forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil possa assumir
funções que cabem ao Estado.
Correções e Complementações ao Modelo Discursivo: New Publics, Counter Publics,
Diasporic Publics, Deliberative Publics
Ainda que constitua, com larga margem, o modelo teórico de espaço público mais
detalhado e acurado presente no debate contemporâneo, a concepção discursiva de
esfera pública, conforme desenvolvida por Habermas ao longo dos anos 90,
mereceu críticas e complementações importantes, as quais nos parecem relevantes
considerar quando se pretende usar tal modelo fora de seu berço de origem na
Europa.
A primeira complementação vem de Cohen e Arato (1992), autores que desenvolvem
sua teoria da sociedade civil no contexto de um intenso diálogo com o autor da
teoria da ação comunicativa. Cabe destacar aqui a ênfase conferida por Cohen e
Arato ao desenvolvimento histórico dos chamados new publics. Conforme mostram
os autores, ao lado do crescimento incontrolado da grande mídia e da penetração
da cultura pelas lógicas do dinheiro e do poder que dele decorre, verifica-se
um processo coetâneo de desprovincialização e modernização do mundo da vida,
que culmina com a criação e expansão de novos públicos e novos loci de
realização de formas críticas de comunicação contextos de difusão de
subculturas, movimentos sociais, microespaços alternativos etc. Trata-se aqui
de meios culturais marcados pela produção e circulação de idéias e formas de
vida pós-tradicionais, as quais colocam em movimento dinâmicas de inovação
cultural e contestação dos padrões sociais estabelecidos no plano, por exemplo,
das representações de gênero, das relações étnicas etc.
As forças de renovação e transformação mobilizadas pelos novos públicos não se
restringem à esfera da cultura ou do comportamento, uma vez que eles pressionam
por mudanças no padrão da comunicação pública e podem gerar transformações
duradouras mesmo na política institucionalizada:
"[...] enquanto o núcleo da esfera pública política, constituída por
parlamentos e a grande mídia, mantém-se, antes (mas não da mesma
forma em todas as partes!) fechada e inacessível, uma pluralidade de
públicos alternativos, diferenciada mas inter-relacionada, revivifica
de tempos em tempos os processos e a qualidade da comunicação
pública. Com a emergência de novos tipos de organização política, até
mesmo a discussão pública nos parlamentos e nas convenções
partidárias tende a ser afetada [...]" (idem:460).
O argumento de Cohen e Arato ganha contundência na crítica de Fraser ao modelo
habermasiano e no apelo pelo reconhecimento da importância dos chamados
subaltern counterpublics (Fraser, 1992; 2002). Para a autora, a idéia de uma
esfera pública nacional única e abrangente não considera as relações
assimétricas de poder que marcam, historicamente, os processos de constituição
das esferas públicas contemporâneas. Ou seja, em sua própria formação, a esfera
pública apresenta mecanismos de seleção que implicam a definição prévia de quem
serão os atores que serão efetivamente ouvidos e quais serão os temas que
efetivamente serão tratados como públicos. Nesse contexto, minorias étnicas,
grupos discriminados e mulheres são excluídos a priori da esfera pública ou
merecem nela um lugar subordinado.
Os contrapúblicos subalternos, ao denunciarem os "vícios de origem" dos espaços
públicos nacionais, constituem, por isso, forças não de desestabilização, mas
de democratização e ampliação da política nacional.
Gilroy (1993) acrescenta um elemento importante à crítica de Fraser, ao estudar
uma forma de manifestação daquilo que gostaríamos de chamar de diasporic
publics. Refere-se aqui ao chamado espaço cultural do Atlântico Negro,
entendido como um contexto de ação transnacional, formado no âmbito da diáspora
africana iniciada com a escravidão moderna e a imigração forçada da África para
as Américas. A alusão ao Atlântico Negro implica mais que reivindicar a
igualdade de direitos e possibilidades de participação na política
contemporânea e no âmbito da esfera pública burguesa. Trata-se, em consonância
e complementarmente àquilo que fizeram as filósofas feministas, de colocar em
discussão o próprio processo de construção da política moderna enquanto espaço
privilegiado de representação dos interesses e das visões de mundo do homem
branco. Assim, na medida em que a política contemporânea se rege pelo império
da palavra, pela imposição da separação entre ética e estética, performance e
racionalidade, decide-se previamente o jogo político em contra àqueles que, por
força de sua inserção na história moderna, não puderam assumir o controle dos
mecanismos de produção e reprodução dos discursos de poder considerados
legítimos em cada Estado-nação particular.
A história da diáspora africana, ao contrário, desenvolve-se fora da órbita da
política formal, valendo-se, fundamentalmente, da performance, da dança e da
música como forma de sua constituição. Por outro lado, desde a sua origem, a
diáspora africana não pôde ser reduzida e retraduzida na dinâmica nacional da
política contemporânea. Ao contrário, sempre se verificou uma tensão entre a
busca de homogeneidade étnica no contexto de nações modernas e a presença de
escravos negros e, depois, de seus descendentes, tratados como inferiores e
ameaças aos projetos nacionais. Decorre dessa posição particular aquilo que
Paul Gilroy, referindo-se a Du Bois, chama de dupla consciência dos negros no
âmbito da modernidade. Trata-se de uma inserção ambivalente na história,
caracterizada, por um lado, pela inclusão efetiva no processo de construção da
modernidade e, por outro, pela exclusão sistemática da vida política no âmbito
dos Estados-nação.
A sugestão de Gilroy é que se tome a contracultura do Atlântico Negro não
simplesmente como mais um repertório de manifestações artísticas e culturais,
dissociadas da política, mas como um discurso filosófico que reinterpreta a
modernidade e reconta sua história, a partir da perspectiva de quem sempre
esteve fora das narrativas nacionais com seus heróis brancos.
As críticas de Fraser e Gilroy representam para o modelo discursivo, e seu
elogio implícito das possibilidades do diálogo e do universalismo, uma correção
importante: tais críticas implicam a necessidade de construir estruturas
específicas de captação dos interesses e públicos subalternos, além de
alertarem para o risco implícito da ênfase do modelo discursivo na comunicação
verbal. Com efeito, se o espaço público não se mostrar poroso à força
expressiva não apenas dos argumentos, mas também da performance e das formas
não-verbais de comunicação, este pode se prestar, indefinidamente, à reprodução
do poder daqueles que historicamente dominaram o processo de produção do
discurso verbal.
Uma última crítica ao modelo discursivo relaciona-se com a negligência de
Habermas no que se refere às possibilidades (e à necessidade) de ampliação dos
mecanismos institucionalizados de formação da vontade política, conferindo-se
poderes efetivos aos deliberative publics. De fato, a preocupação de Habermas
com a defesa do caráter institucional/constitucional do Estado de direito,
assim como a influência da teoria parsoniana sobre o autor, a qual enfatiza a
distinção e a necessidade de preservação de códigos de coordenação específicos
nos diferentes sistemas (a sociedade civil produz influência política, mas não
decide nem implementa políticas), levam-no a subestimar completamente as
estruturas de participação pública. Dessa maneira, em toda a sua discussão
sobre espaço público, faltam referências à necessidade de horizontalizar os
processos decisórios (Schmalz-Bruns, 1994) ou à necessidade de promover
processos de "alfabetização política", que permitam, no plano local, a vivência
da noção de poder (Epple-Gass, 1992:120 e ss.).
Vários autores têm buscado preencher tal lacuna no modelo discursivo,
insistindo na necessidade de conectar os processos de discussão e deliberação
pública, de sorte a permitir que o debate político gere não apenas
possibilidades de consenso, mas transparência no exercício do poder. Dessa
forma, "um sistema político legítimo deve promover a deliberação, aumentando
assim as possibilidades de decisões corretas (ou válidas, justas ou
verdadeiras)" (Bohman 1996:6; ver, também, Avritzer, 2002:48 e ss.). Não se
trata, naturalmente, de retomar os pressupostos teóricos dos democratas
participativos dos anos 70. Para aqueles, a participação era justificada ora
com o argumento pluralista que indicava a necessidade de fomentar formas
neocorporativistas de representação de interesses, ora com o argumento
republicano que apontava os atores participativos como legítimos per se. No
marco atual da democracia deliberativa, trata-se, diferentemente, de buscar
estender a racionalidade comunicativa aos processos decisórios, assegurando-se,
institucionalmente, a existência de fóruns deliberativos.
Esfera pública mundial: breve digressão sobre um conceito equívoco
O surgimento da esfera pública, em seu sentido moderno, é inseparável do
processo de constituição dos Estados-nação e da formação das comunidades
nacionais como um público integrado que, em geral, fala o mesmo idioma há
obviamente a exceção das nações multilíngües e compartilha, em alguma medida,
um cotidiano ou mundo da vida comum e uma cultura política construída
coletivamente. À construção institucional do Estado-nação corresponde,
portanto, no plano cultural, a formação das esferas públicas nacionais, no
interior das quais são produzidos e reproduzidos os signos identitários que
definem a nação. Tal processo de construção simbólica da nação se dá, conforme
Bhabha (1994:139 e ss.), com base na tensão entre uma ação pedagógica e outra
performativa. A ação pedagógica toma a comunidade nacional como objeto dos
discursos que enfatizam a origem comum e os laços supostamente primordiais que
unem os diferentes membros da nação. Por meio da ação performativa, os símbolos
nacionais são atualizados e reinterpretados, fazendo com que os membros da
nação se tornem assim sujeitos da reposição viva e permanente do que se
acredita ser o destino comum da comunidade nacional. Essa dupla operação
discursiva confere realidade à comunidade nacional imaginada, estabelecendo, ao
mesmo tempo, seu ser e seu provir, a essência que a ela vincula um povo, uma
cultura e um território, e o movimento, a transformação. Nesse contexto, a
esfera pública constitui a arena viva e dinâmica na qual permanente processo de
construção, desconstrução e reconstrução discursiva e simbólica da nação tem
lugar.
A formação das esferas públicas modernas dá-se historicamente, portanto, de
forma concomitante com a constituição dos Estados nacionais e a definição da
nação como uma comunidade política autônoma que define soberanamente seus
destinos. É também no âmbito nacional que radicam as bases da cidadania
moderna, concebida como o conjunto de direitos e deveres cabíveis àqueles que
fazem parte da nação.
O papel democrático e democratizante assumido pela esfera pública no âmbito das
fronteiras nacionais na política contemporânea tem levado alguns autores a
postular que só mesmo a constituição de uma esfera pública mundial poderia
construir as bases de uma ordem democrática no mundo globalizado (Fraser, 2002;
Brunkhorst, 2002). No âmbito dos processos de formação dos blocos regionais,
seja na Europa, seja nas Américas, a possibilidade de constituição de uma
esfera pública transnacional como resposta democrática à integração econômica
tem ocupado lugar igualmente importante nas discussões.
O próprio Habermas, ao discutir a unificação européia, aponta a necessidade de
constituição de uma esfera pública continental, capaz de funcionar como
plataforma de construção de uma identidade cultural européia. Se,
historicamente, se observa que "a cada novo impulso modernizante abrem-se os
mundos da vida compartilhados intersubjetivamente, para [depois] se
reorganizarem e novamente se fecharem" (Habermas, 1998:126; ver, também,
Habermas, 2001), faz-se necessário encontrar novas formas de acomodação social
compatíveis com a vertiginosa ampliação de horizontes pessoais e sociais
proporcionada pela globalização. Da mesma maneira que a identidade nacional se
superpôs, ao longo da história, às lealdades religiosas ou locais, fornecendo
uma plataforma para a integração social condizente com o contexto moderno, pós-
tradicional e secularizado, faltam hoje novas possibilidades de reconstituição
dos laços de integração e solidariedade social que, extrapolando as fronteiras
nacionais, correspondam à dinâmica econômica transnacional existente.
Mesmo no âmbito europeu, a proposta de Habermas de constituição de uma esfera
pública continental tem enfrentado críticas severas. Muitos autores têm
mostrado que não há plausibilidade empírica na proposta: não há indícios
palpáveis de que uma esfera pública européia se encontre em formação (Eder,
2000). Argumenta-se ainda que a diversidade das origens dos habitantes da
Europa contemporânea impede o recurso à história comum como fonte de
constituição de uma identidade cultural efetivamente abrangente e mesmo que se
chegasse a constituir algo como uma identidade comum, esta implicaria o
permanente estabelecimento das fronteiras simbólicas de uma european membership
e os processos de exclusão daí decorrentes (ver Costa, 2002).
De acordo com Eder, verifica-se, nos últimos anos, no espaço geográfico
europeu, a consolidação de diversos espaços comunicativos para além das
fronteiras nacionais, os quais não se encontram apoiados em mundos da vida
compartilhados e tampouco na pertença abstrata a um povo europeu. Segundo o
autor, ainda que a classe trabalhadora e os produtores rurais permaneçam um
fenômeno nacional, as classes médias européias teriam se transnacionalizado: já
existe uma cultura transnacional de movimentos sociais, de empresários e de
jovens que se comunicam através da música ou do aprendizado de idiomas na
internet. Também o cotidiano dos turistas e da comunidade científica mostra o
surgimento de espaços de sociabilidade e de comunicação pós-nacionais. Ainda
segundo Eder, a visão da comunidade comunicativa como a de um povo que fala o
mesmo idioma representa apenas um caso particular da teoria, mas não um
"requisito sistemático". Isto é, o coletivo nacional dotado de uma identidade
cultural, ainda que se apresente particularmente bem provido de capital social
para a comunicação, representa apenas uma das múltiplas teias comunicativas que
se podem formar. A comunicação transnacional assume formas diversas e se
efetiva em contextos variados: "no lugar da língua nacional aparecem
metaforizações polissêmicas do traço comum, novas metanarrativas processadas
através de conceitos como 'citizenship', 'comunidade de valores' ou sociedade
da informação [...]" (Eder, 2000:178).
Entre as diferentes formas de comunicação e sociabilidade transnacional,
aquelas estabelecidas pelas articulações de movimentos sociais de diferentes
origens geográficas parecem ser as mais visíveis publicamente2. Verifica-se
aqui, efetivamente, a circulação de temas e argumentos relacionados com a
eqüidade de gênero, direitos humanos ou proteção ambiental, de forma
simultânea, em contextos nacionais diversos. Contudo, não se trata da formação
de uma esfera pública transnacional que coloca em contato os diferentes
públicos nacionais. Tem-se, na verdade, fóruns transnacionais diversos,
segmentados e desarticulados entre si. Com efeito, discutidas
transnacionalmente por um grupo restrito de ativistas, é através das estruturas
das esferas públicas nacionais que as questões tratadas nesses contextos
comunicativos transnacionais ganham repercussão, apresentando em cada país uma
lógica nacional própria. Ou seja, os desenvolvimentos observados até o momento
apontam para o fato de que não há a consolidação de nada que lembre uma esfera
pública mundial, nos moldes em que foram constituídas as esferas públicas
nacionais. Quando, por ocasião, por exemplo, de uma conferência de cúpula,
determinados temas entram simultaneamente nas agendas das esferas públicas
nacionais, o que se verifica não é um intercâmbio comunicativo entre as
populações das diferentes regiões; há, nesses casos, uma troca de informações e
experiências entre um conjunto reduzido de ativistas políticos que se incumbem
então de fazer com que os temas debatidos com ativistas de diversos países
circulem nas respectivas esferas públicas nacionais. A forma como tais temas
são tratados internamente em cada país segue uma dinâmica própria, definida por
fatores nacionais, como o nível de articulação dos atores sociais responsáveis
pela difusão do tema, o grau de integração internacional da mídia nacional ou o
interesse do governo nacional em incorporar o tema em questão à sua agenda (cf.
Costa, 2002).
Usos na América Latina
O uso mais importante e generalizado do conceito de espaço público na América
Latina ocorre nas pesquisas sobre os meios de comunicação de massa. Predomina
aqui a visão herdada da sociologia da sociedade de massas e da recepção tardia
do conceito de indústria cultural, conforme foi elaborado pela primeira geração
da Escola de Frankfurt. Assim, esboça-se a imagem de um público atomizado e
disperso que, de produtores críticos de cultura, se transformaram, no âmbito do
processo mesmo de constituição da sociedade de massas, em consumidores passivos
dos produtos da indústria cultural.
Os autores que seguem tal orientação teórica mostram que todos os
desenvolvimentos históricos supostamente necessários para a transição à
modernidade, como a reforma religiosa, a ideologia liberal-universalista, as
revoluções burguesas etc., teriam faltado na América Latina (ver, entre outros,
Brunner, 1994; García Canclini, 1990). Logo, a modernidade dá-se, entre nós,
tardiamente, caracterizando a constituição de um plasma cultural híbrido, no
qual as reminiscências de formas culturais tradicionais vão sucumbindo, ao
longo do vertiginoso processo de urbanização e de fragmentação de identidades
preexistentes, diante dos valores do individualismo e do "desejo de ser
moderno" dos públicos educados. Essas visões de mundo seriam amplificadas e
difundidas pelos meios de comunicação às novas massas urbanas, constituindo-se,
nesse movimento, uma cultura:
"[...] que não reflete a alma de um povo, mas os desejos, anseios e a
sensibilidade e o trabalho de uma 'nova classe' os produtores e
mediadores simbólicos e o trabalho gerador de milhões de
receptores-consumidores que processam, interpretam, se apropriam e
vivem à sua maneira, individual e às vezes coletivamente, essa massa
de signos produzidos e transmitidos" (Brunner, 1994:181).
No que diz respeito propriamente à esfera pública política, pode-se postular,
seguindo tal visão, que as sociedades latino-americanas diferentemente do
contexto europeu, onde a fragmentação urbana e a emergência da sociedade de
massas teriam produzido a obliteração da esfera pública burguesa preexistente
seriam caracterizadas pela inexistência histórica de tal espaço comunicativo.
São os meios de comunicação de massa que ocupariam, desde os primórdios da
constituição de uma sociedade urbana na América Latina, o lugar das mediações
sociais, estabelecendo "uma nova diagramação de espaços e intercâmbios urbanos"
(García Canclini, 1990:49).
Não se espera obviamente que, nesse espaço público assenhoreado pela mídia,
argumentos racionais sejam esgrimidos, questões substantivas sejam levadas a
debate e posições doutrinárias e ideológicas claras e diferenciadas venham à
tona. Diante da lógica própria da mídia, com ênfase na televisão, em cuja
linguagem não cabem verdades matizadas nem longos exercícios argumentativos,
mas apenas enunciados bombásticos, a política veria se esvaírem seus conteúdos;
os próprios "personagens políticos não buscam distinguir-se por sua
experiência, ou sua capacidade de liderança, mas pela simpatia que seus
publicistas são capazes de suscitar entre os grandes auditórios" (Delarbre,
1994:48)3.
As análises da relação entre espaço público e democratização/democracia na
América Latina mostram igualmente um gap na consideração de aspectos
importantes que marcam a política no subcontinente. Os problemas manifestam-se
já na ampla recepção da teoria da modernização até o começo dos anos 80 e
implicam a assunção de três premissas básicas de tal teoria, quais sejam: o
postulado da endogenia, segundo o qual as sociedades nacionais constituem um
universo fechado no qual se dá inequívoca e linearmente a transformação
conduzida pelas elites modernas; a suposição de uma subordinação das
transformações políticas e culturais às mudanças econômicas; e a representação
antinômica entre tradição e modernidade (cf. Knöbl, 2001). Nesse sentido, a
modernização representaria, em cada uma das sociedades nacionais na América
Latina, o processo linear que levaria à transformação das estruturas sociais e
econômicas de tradicionais a modernas, entendidas como modernas as formas
existentes nas sociedades (ocidentais) de industrialização pioneira (para um
caso exemplar, ver Germani, 1981). Tal interpretação do processo de
modernização origina uma concepção evolucionista da política e do espaço
público: trata-se, fundamentalmente, da expectativa de que a modernização
construiria per se estruturas de discussão pública e negociação de conflitos
que se aproximariam progressivamente do similar "ocidental" (Avritzer, 2002:58
e ss.).
A teoria da dependência corrige a teoria da modernização em um ponto
fundamental, ao mostrar que, no lugar da modernização unilinear no interior de
uma sociedade isolada, há que se considerar, internamente, a multiplicidade de
forças pró e contra a modernização e, externamente, a inserção de cada
sociedade no contexto das relações de dependência entre centro e periferia no
plano mundial (Cardoso e Faletto, 1979). Em seu entendimento da dinâmica entre
economia e política, por um lado, e da relação entre tradição e modernidade,
por outro, a teoria da dependência repete os problemas da teoria da
modernização. Com efeito, os teóricos da dependência depreendem os atores
políticos exclusivamente da dinâmica econômica e acreditam que as
transformações na América Latina se dariam em um movimento cíclico: em um
primeiro momento, os autores acreditavam que a modernização e a conseqüente
democratização seriam conduzidas pela ação exclusiva das elites progressistas
que, em um segundo momento, tratariam de incluir no projeto da nação
modernizada o conjunto da população.
Os teóricos da transição (e da consolidação) democrática aprofundam a ruptura
com a teoria da modernização operada pela teoria da dependência, na medida em
que mostram que as elites não são, por definição, portadoras de valores
modernos e democráticos. Daí a ênfase que os autores colocam no papel
democratizante das instituições que devem assegurar a prevalência das
incertezas do jogo político, mesmo contra a vontade das elites antidemocráticas
(O'Donnell et alii, 1986; Diamond et alii, 1989). Em contrapartida, o papel da
esfera pública na construção da democracia não é adequadamente considerado por
tais autores, o que leva, no nosso entendimento, a pelo menos dois erros
analíticos recorrentes das teorias da transição.
O primeiro problema diz respeito ao papel dos novos atores sociais que emergem
no contexto da democratização (movimentos sociais, associações de vizinhos,
ONGs etc.). Ao mesmo tempo que os autores em questão reconhecem a importância
política desses, traduzem seu papel político sob a lente elite/massas do
elitismo democrático, o que leva os teóricos da transição a subsumir tais
atores ao jogo político entre as elites. Isto é, a contribuição dos novos
atores sociais para a democratização se resumiria a fortalecer a posição das
elites democráticas no jogo da política institucional, única arena em que a
construção da democracia efetivamente acontece4.
O segundo problema refere-se às relações entre política e cultura, entendida
pelos teóricos da transição como uma causalidade simples, ou seja, as mudanças
político-institucionais e a vitória, no jogo político competitivo, das elites
democráticas produziriam de imediato o enraizamento de valores e práticas
democráticas no seio societário. Mesmo quando constata, já nos anos 90, no
âmbito de sua reflexão sobre a "democracia delegativa", que a
institucionalização da democracia nas novas poliarquias latino-americanas não
havia abolido as práticas "clientelistas" e/ou "particularistas", O'Donnell
(1994; 1996) remete tais problemas a vícios da elite (Avritzer, 2002:32 e ss.).
Falta, no caso de ambos os déficits constatados, um conceito substantivo de
espaço público que permita, no primeiro caso, entender como, nessa esfera, se
constroem, pela comunicação pública, a legitimidade e o poder efetivo que
conquistam os novos atores sociais e, no segundo caso, mostrar como a
existência ou inexistência de uma esfera pública politicamente atuante tem
papel fundamental na construção de uma cultura democrática e na constituição de
mecanismos de fiscalização pública que inibissem o clientelismo e o
particularismo.
CONCLUSÕES: ESFERA PÚBLICA E AS NOVAS DEMOCRACIAS LATINO-AMERICANAS
As transformações recentes por que vem passando a esfera pública na maior parte
dos países latino-americanos no bojo daquilo que Dagnino (2002b; ver, também,
Alvarez et alii, 1999) chamou de convergência perversa, qual seja, a
coincidência entre os ciclos de democratização e de reformas neoliberais, são
múltiplas e ambivalentes. De um lado, observa-se que uma intensa pluralização
societária acompanha a liberalização dos mercados e a consolidação da
integração da América Latina no contexto mundial. Ao mesmo tempo, como
conseqüência de décadas de crescimento urbano não-planejado e de cortes de
investimento social impostos pelos programas de ajuste estrutural, assiste-se a
uma fragmentação sem paralelo dos espaços públicos locais, que sucumbem diante
do avanço da violência e da instrumentalização das relações sociais locais
pelas redes do crime organizado.
Do ponto de vista político, os processos de reforma do Estado, que impõem
cortes orçamentários em áreas vitais, coincidem com programas efetivos de
inovação institucional, capazes de dar transparência ao processo político e de
abrir esferas do Estado à participação e à deliberação públicas.
No campo dos meios de comunicação, os desenvolvimentos são igualmente
ambivalentes. Por um lado, os processos recentes de concentração da propriedade
e os mecanismos historicamente prevalecentes na distribuição de licenças de
operação nos forçam a reconhecer que a mídia conforma um campo no qual formas
tradicional-populistas de conquista de lealdade política se misturam a novas
estratégias de conquista de apoio das massas. Mas, simultaneamente, os meios de
comunicação apresentam um conjunto de mudanças positivas para a expansão da
democracia. Não há dúvida que o campo da esfera pública controlado pelos meios
de comunicação de massa mostra relativa porosidade para absorver e processar os
temas colocados pelos atores da sociedade civil. Ademais, desenvolvimentos,
como a difusão de um estilo de jornalismo investigativo e a própria preservação
do espaço de afirmação da autonomia de quem produz o material divulgado pela
mídia (jornalistas, produtores culturais etc.), fazem dos meios de comunicação
ator importante na construção do espaço público. Tais mudanças não podem ser
adequadamente identificadas por via de concepções baseadas na sociologia das
sociedades de massa, hegemônicas na investigação da mídia na América Latina.
As teorias da transição, por sua vez, mostram-se igualmente desprovidas de
instrumentos para identificar o potencial democrático tanto da pluralização
societária referida, quanto dos novos canais de comunicação entre a sociedade
civil, de um lado, e o Estado e o sistema político, de outro. Tais
desenvolvimentos concorrem para a construção daquilo que, seguindo a tradição
da teoria crítica descrita acima, chamamos de esfera pública. Malgrado a
metáfora espacial que sugere, equivocadamente, a existência de uma localização
específica na topografia social, a esfera pública diz respeito mais
propriamente a um contexto de relações difuso no qual se concretizam e se
condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes campos da vida
social. Tal contexto comunicativo constitui uma arena privilegiada para a
observação da maneira como as transformações sociais se processam, o poder
político se reconfigura e os novos atores sociais conquistam relevância na
política contemporânea.
Sem querer abreviar, ao contrário, com o intuito de estimular um debate que
apenas se inicia, gostaríamos de concluir insistindo que o uso de uma concepção
discursiva de espaço público na América Latina implica levar adequadamente em
conta as correções feitas a tal modelo, quais sejam:
* A incorporação dos new publics. Salta aos olhos o processo recente de
diversificação cultural e societária na América Latina. Observa-se a
emergência de uma multiplicidade de novos atores urbanos, novas
subculturas, novas etnicidades que contrastam com a imagem das nações
homogeneamente mestiças historicamente construídas. Socialmente, a
heterogeneização, para o bem e para o mal, não é menor. Os modelos
instituídos de famílias, os modelos tradicionais de relações de gênero,
as opções "convencionais" de sexualidade etc. vêm sendo crescentemente
confrontados com novas formas de vida e comportamento.
* A relevância dos subaltern counterpublics. Cabe destacar o papel daqueles
atores sociais que representam grupos tradicionalmente excluídos do
espaço público, mas que, ao mesmo tempo, denunciam os limites do espaço
político estabelecido e reivindicam seu direito de participar nele. As
Madres de la Plaza de Mayo na Argentina, o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra no Brasil ou o Ejército Zapatista de Libertación
Nacional no México são exemplos de tais contrapúblicos.
* A emergência de diasporic publics. Os novos atores diaspóricos não se
formam apenas naquele sentido original descrito por Paul Gilroy,
referindo-se à diáspora africana. De fato, os atores que reclamam a
herança africana e apresentam ao espaço público nacional sua estética
desafiadora daquilo que se constituiu, historicamente, como representação
nacional, ganham importância em várias regiões, em especial na Colômbia e
no Brasil. Não obstante, a idéia de públicos diaspóricos contempla todos
os novos públicos que apresentam uma inserção ambivalente no espaço
público nacional: ao mesmo tempo que partilham dele, compartilham redes
transnacionais e se constituem como agentes permanentes de introdução de
inovações sociais no contexto nacional. Estes são os casos das redes
transnacionais de movimentos sociais e dos imigrantes transnacionais.
Recorde-se que não se trata aqui da formação de um espaço público
transnacional, mas de contextos comunicativos transnacionais múltiplos
não necessariamente interligados.
* A multiplicação dos deliberative ou participatory publics. O modelo
discursivo de espaço público enfatiza a necessidade de separação clara de
funções entre a sociedade civil e a sociedade política e de autolimitação
dos atores civis. As reservas são compreensíveis se se considera que o
modelo foi formulado por referência empírica a um contexto em que há
mecanismos efetivos de controle do Estado pelos cidadãos e os partidos
políticos, a despeito do desencantamento dos últimos tempos, ainda
funcionam como estruturas eficientes de intermediação entre a sociedade
civil e o sistema político. Na América Latina, contudo, os partidos se
constituíram, historicamente, a partir de máquinas partidárias capazes de
distribuir, privadamente e por meio de acordos clientelistas, benefícios
públicos. Nesse sentido, cabe uma ênfase distinta nas articulações entre
os processos de deliberação pública e tomada de decisão na América
Latina. É preciso que, no seio de uma esfera pública porosa e pulsante,
temas, posições e argumentos trazidos pelos novos atores sociais
encontrem formas institucionais de penetrar o Estado e, por essa via,
democratizá-lo, tornando-o objeto de controle dos cidadãos.
NOTAS
1. O livro Mudança Estrutural da Esfera Pública publicado, originalmente, por
Habermas em 1962 foi traduzido dez anos mais tarde para o francês e o italiano
e somente nos anos 80 para o português, espanhol e o inglês (ver Sabato, 2000).
2. Estudando as redes de atores sociais no contexto latino-americano, Scherer-
Warren (2001) observou que várias delas se tornaram fóruns regulares de troca
sistemática de experiências de agentes provindos de diferentes regiões do
continente, diferenciando-se e constituindo suas identidades por meio dos temas
que tratam, destacando-se aqui: i) redes filantrópicas, dedicadas à
solidariedade material; ii) redes humanitárias, especializadas na defesa dos
direitos humanos e de minorias; iii) redes identitárias, integradas a partir da
defesa comum de identidades de gênero, étnicas etc.; iv) redes de ações
educativas, articuladas a partir de projetos educacionais com premissas comuns
desenvolvidos em partes distintas do continente; v) redes de defesa
transnacional da cidadania, que se articulam, sobretudo, em torno das ações de
oposição aos processos de integração econômica no continente.
3. Mesmo as abordagens mais diferenciadas constatam uma tendência inequívoca e
unilateral de obliteração das possibilidades de comunicação pública. O teórico
brasileiro mais importante da área da comunicação social, Moniz Sodré (1996),
reconhece, é verdade, limites ao poder dos meios de comunicação de massa,
mostrando que "as singulares estratégias de negociação simbólica que mantêm com
seus públicos não deixam que se tornem mecânicas caixas de ressonância das
empresas e do Estado". Não obstante, não abandona as premissas das teorias que
descrevem o espaço público unilateralmente como encenação política, quando
afirma que "seja pela criação de uma realidade social despolitizada, seja pela
estimulação de técnicas plebiscitárias de sondagem de opinião pública ou então
pela simples conversão das campanhas eleitorais em táticas mercadológicas",
minam-se as bases constitutivas da esfera pública e da política representativa.
4. Uma outra maneira equivocada de tratar os novos atores é aquela legada por
uma compreensão da democracia como um mercado político. Ela se manifesta, por
exemplo, na crítica de Reis (1994) às concepções comunicativas de poder e
democracia. Para o autor, o espaço público constitui a arena de disputa e
afirmação de interesses sociais particulares, sem que haja, neste jogo,
qualquer ator social altruísta ou capaz de representar questões relevantes para
o conjunto da sociedade: "Se se considera o caráter estratégico dos movimentos
[sociais] e sua busca de afirmação de objetivos próprios contra as disposições
de outros atores, é bastante claro que eles compartilham em alguma medida com
os grupos de interesse o caráter de particularismo tendencialmente aético
[...]" (idem:340). Para Reis, portanto, o espaço público é parte constitutiva
de um mercado político, no qual os diferentes grupos de interesse disputam as
atenções públicas, impondo-se não pela força mobilizadora dos argumentos que
trazem à luz, mas pelo poder de controlar as estruturas comunicativas públicas.