A reforma da previdência em dois tempos
INTRODUÇÃO
Este texto pretende comparar o processo de reforma da previdência nos governos
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Como ponto de partida,
assumimos que: 1) em razão das suas próprias características, reformas como
essa são de difícil aprovação; 2) o resultado do processo, na arena
congressual, só pode ser devidamente compreendido quando se considera a
situação nas demais arenas envolvidas no jogo; 3) a combinação de elementos
conducentes tanto à dispersão quanto à concentração de poderes, típica do
desenho institucional brasileiro, limita as chances de sucesso do Poder
Executivo em empreitadas desse tipo.
O primeiro ponto baseia-se na afirmativa feita por Arnold (1990), segundo a
qual proposições de políticas públicas que imponham custos concentrados e gerem
benefícios difusos e, além disso, sejam submetidas a um processo decisório no
qual os representantes se vejam obrigados a assumir publicamente suas posições
podem ser caracterizadas como "politicamente inviáveis". No caso da proposta de
reforma da previdência no Brasil, como já ressaltaram Figueiredo e Limongi
(1999) e Melo (2002), tal problema é ainda agravado por, pelo menos, dois
fatores. Em primeiro lugar, pelo fato de que, enquanto o custo imposto a
determinados setores é significativo e imediato ' o que tende a ocasionar
movimentos dotados de preferências intensas ', os benefícios gerados para a
sociedade, se de fato o forem, o serão a médio e longo prazo. Situações como
essa costumam gerar alto grau de incerteza entre os atores, seja porque não se
confia nas promessas do Poder Executivo, seja porque se sabe que esse não
controla uma série de fatores que, uma vez introduzidos no jogo, são capazes de
anular os benefícios prometidos. Em segundo lugar, é preciso levar em conta o
alto grau de desconstitucionalização exigido por tal tipo de proposta (idem).
De um lado, a retirada de direitos individuais abre a possibilidade de
intervenção do Poder Judiciário. De outro, qualquer negociação é sempre
complexa e novamente coloca em jogo a confiança no Executivo: afinal, a
situação daqueles que tiveram seus direitos revistos passa a depender da
condução, futura, do processo de regulamentação.
O segundo aspecto ressaltado baseia-se em Tsebelis (1998), para quem, nos jogos
em múltiplas arenas, as recompensas a serem auferidas na arena principal são
influenciadas pela situação prevalecente nas demais. O número de arenas
"aninhadas" e a importância do jogo em cada uma delas dependem não apenas do
conteúdo da política em questão, mas também das características do processo
decisório. No caso da reforma da previdência, pelo menos mais quatro arenas,
além da parlamentar, devem ser consideradas: a que engloba os diversos níveis
do Poder Executivo, uma vez que se encontra em jogo o ajuste das contas
públicas, desiderato em torno do qual o presidente pode mobilizar importantes
recursos de patronagem e orçamentários, com vistas a influenciar o
comportamento dos parlamentares na arena principal; a do Poder Judiciário, que
pode ser acionado como ator com poder de veto dado o grau de
desconstitucionalização exigido para a aprovação da proposta; a societal, na
qual públicos "atentos" se estarão mobilizando como decorrência direta da
imposição de custos concentrados; e a eleitoral, que, para além de sua
importância "ordinária", ganha especial relevo em decorrência de o processo
nominal de votação tornar impossível ao congressista "apagar os rastros" de sua
participação em decisões impopulares.
No que se refere ao desenho institucional, é preciso levar em conta que a
tendência à dispersão de poderes é largamente predominante no processo de
constituição dos órgãos decisórios. O eleitorado brasileiro compõe, a partir de
métodos eleitorais distintos, duas casas legislativas. Os deputados são eleitos
de acordo com um sistema de representação proporcional de lista aberta,
distritos de grande magnitude e um tipo de cláusula de barreira ' o quociente
eleitoral ' que pode facilmente ser driblado com a realização de coligações.
Seja no plano eleitoral seja no parlamentar ' Senado inclusive ', o sistema
partidário é altamente fragmentado, caracterizando-se pelo grande número de
partidos pequenos e médios. Finalmente, a estrutura federativa abre espaço para
que, a partir da arena estadual, e até mesmo da municipal, outros atores
adquiram legitimidade para a vocalização das preferências do eleitorado no
cenário nacional.
Entretanto, no que tange às regras que presidem o processo decisório nacional,
a tendência inverte-se, ainda que possam ser observados elementos conducentes à
dispersão, quais sejam: a) a existência de simetria entre as duas casas
legislativas, o que as transforma em instâncias revisoras; b) a exigência de
maioria qualificada para a modificação da Constituição, o que concede poder de
veto à minoria; c) a possibilidade de se recorrer ao Poder Judiciário contra
decisões que remetem à Constituição. Apontam no sentido inverso aqueles
elementos que, na opinião de Figueiredo e Limongi (1999), seriam os
responsáveis pelo fato de o presidencialismo brasileiro operar em bases
bastante distintas do período 1945/64: a concentração de poderes legislativos
nas mãos do Executivo e a centralização dos trabalhos do Congresso nas dos
líderes partidários. Articulados, tais fatores configurariam um cenário no qual
o presidente deteria recursos suficientes para determinar a agenda e o ritmo
dos trabalhos no Congresso, e os líderes, por sua vez, conseguiriam obter de
suas bancadas um comportamento disciplinado e cooperativo, o que minimizaria,
se não anularia, o poder de veto do Legislativo sobre as ações do Executivo. Em
suma, os dois elementos acima mencionados seriam capazes de "blindar" o
processo decisório nacional, impedindo, ou inibindo de forma significativa, a
atuação dos fatores tendentes à dispersão.
Como se sabe, o trabalho pioneiro de Figueiredo e Limongi deu início a uma
fecunda controvérsia: alguns autores argumentam que a disciplina dos partidos
na Câmara dos Deputados depende de fatores como a ideologia (Nicolau, 2000) ou
de variáveis como a soma de recursos de patronagem e o tempo de mandato do
presidente (Amorim Neto e Santos, 2001). Pereira e Mueller (2002), analisando o
processo orçamentário no Congresso, sustentam que o Executivo se vê
constrangido a realizar mais concessões do que gostaria para obter o apoio de
sua base. Melo (2000; 2004), estudando as migrações partidárias, argumenta que
não se pode falar em coesão para a maioria dos partidos na Câmara e que os
deputados têm uma outra opção que não aquela de seguir o líder para obter o seu
"naco de patronagem": buscar um líder melhor posicionado no processo decisório.
Carvalho (2003), por sua vez, procura mostrar, com base em dados atitudinais
dos deputados, que tanto a perspectiva partidária quanto a distributivista
devem ser mobilizadas para se entender a atuação dos deputados no Congresso.
Finalmente, autores como Mainwaring e Pérez-Linãn (1998), Mainwaring (2001) e
Ames (2003) contestam a tese de que o presidencialismo brasileiro "funcione".
De acordo com o último, a tese de um Congresso cooperativo e disciplinado peca:
a) ao não computar as iniciativas que o Poder Executivo deixa de encaminhar por
temer a derrota; b) por basear-se exclusivamente na observação das votações
nominais, quando o locus da desunião pode ter se expressado anteriormente, ou
seja, no processo de negociação que antecede à votação em plenário; c) ao não
perceber que o comportamento dos deputados seria multideterminado, o que torna
incorreto pretender explicá-lo apenas como efeito do poder dos líderes. Ainda
segundo o autor, o que melhor caracteriza o arranjo institucional brasileiro é
o excessivo número de veto players, traço que emerge do sistema eleitoral e do
federalismo1.
Na opinião dos signatários deste texto, ainda que não haja dúvida quanto ao
grau de concentração de recursos nas mãos do presidente da República e dos
líderes partidários, não parece prudente ignorar que a ação combinada do
conjunto de fatores tendentes à dispersão do poder pode tornar extremamente
complexa a aprovação da agenda política estabelecida por esses atores. Qual
seria então a variável-chave para entendermos para que lado tende a balança no
processo decisório brasileiro? A distribuição de preferências e recursos entre
os diversos atores relevantes, algo que (e este é o ponto relevante) pode
variar conforme o contexto, ou seja, como se posicionam esses mesmos atores nas
diversas arenas que, "aninhadas", constituem o jogo. Figueiredo e Limongi
(1999) argumentam, e com razão, que mesmo um presidente minoritário, como
Collor de Mello, conseguiu aprovar a maioria de suas iniciativas no Congresso.
Mas certamente seria outro o cenário se Lula tivesse ganhado as eleições
presidenciais em 1989. Também minoritário, Lula ver-se-ia diante de um
obstáculo inexistente para Collor: a distância entre as suas preferências, bem
como as de seu partido e suas bases ' arenas que no caso do ex-governador de
Alagoas podiam ser desprezadas ' e aquelas prevalecentes no Congresso2.
Na discussão a seguir, procuraremos utilizar tal argumento para explicar por
que mudou o comportamento dos congressistas no processo de reforma da
previdência, quando são comparados os governos Fernando Henrique e Lula. Nosso
argumento é que uma alteração de caráter contextual, qual seja, a troca de
lugares entre situação e oposição, acarretou uma mudança na distribuição das
preferências e dos recursos entre os atores, interferindo no comportamento do
plenário. De um governo para outro, partidos como o PT**, o PC do B, o PSDB e o
PFL passaram a viver uma situação que pode ser caracterizada pelo fato de suas
antigas preferências no que se refere à política previdenciária terem se
tornado contraditórias com suas posições nas arenas parlamentar e
governamental.
O artigo encontra-se estruturado em quatro partes. Na primeira, procuraremos
comparar os contextos nos quais foram apresentadas e discutidas as propostas de
reforma, com o objetivo de mostrar os fatores responsáveis pela significativa
diferença verificada entre os dois processos. Na segunda, nos voltaremos
especificamente para a comparação dos padrões de comportamento em plenário. Na
terceira, mostraremos como a troca de posições entre situação e oposição afetou
as respectivas preferências, qual foi o impacto de tal troca nas diversas
arenas em que se jogava o jogo, e em que medida estratégias e recursos
disponíveis em um contexto deixaram de sê-lo em outro. Finalmente, na
conclusão, retomaremos a discussão sobre o arranjo institucional brasileiro à
luz da análise levada a cabo no artigo.
A REFORMA DA PREVIDÊNCIA EM DOIS CONTEXTOS
Segundo Arnold (1990), o exame dos padrões de interação entre três atores
principais ' legisladores, líderes de coalizão e cidadãos ' permite explicar
por que um mesmo legislador, em uma mesma legislatura, ora age orientado pela
consecução do interesse geral, ora apóia iniciativas a favor de interesses
particulares de determinados grupos, ora volta-se para o atendimento de
demandas clientelistas, de constituenciesgeograficamente definidas. Partindo da
indagação ' "como os legisladores decidem sobre qual lado apoiar quando uma
proposta política é apresentada ao Congresso?" ', Arnold afirma que, nas
diversas circunstâncias em que tem que tomar uma decisão, o legislador sempre
pergunta quais são os impactos prováveis das alternativas a seu dispor sobre
suas chances de reeleição e escolhe o curso de ação que lhe parece mais
coerente com a consecução dessa meta.
A escolha da estratégia maximadora dos objetivos eleitorais dos parlamentares,
entre aquelas disponíveis, envolve cálculos relativamente complexos referentes
aos laços entre recursos e preferências ' efetivas e potenciais ' dos cidadãos
e as ações dos legisladores. O legislador deve procurar avaliar a capacidade de
os cidadãos ' "públicos atentos e desatentos" ' reconstituírem a cadeia causal
que liga suas demandas às políticas aprovadas pelo Congresso e estas aos
resultados efetivamente produzidos.
Portanto, fica claro, a partir do argumento acima, que qualquer decisão tomada
no cenário legislativo estará sempre "nested" (Tsebelis, 1998) com o jogo em
curso na arena eleitoral, que é, para os legisladores, a arena principal.
Arnold argumenta que, ao tomar uma decisão, o legislador deve: a) identificar
todos os públicos atentos e desatentos que podem preocupar-se com a questão em
pauta; b) estimar a direção e a intensidade de suas preferências reais e
potenciais; c) avaliar a probabilidade de que as potenciais se transformem em
reais; d) pesar todas essas preferências de acordo com o tamanho dos vários
públicos atentos e desatentos; e) dar um peso especial às preferências dos seus
apoiadores consistentes (Arnold, 1990:82).
O jogo da reforma da previdência, nos dois tempos em que foi jogado no Brasil,
é um "nested game" na dupla acepção conferida à expressão por Tsebelis: é um
jogo em múltiplas arenas e, ao mesmo tempo, um jogo que envolve inovação
institucional, já que o que estava em questão era a desconstitucionalização das
regras e dos direitos previdenciários (Melo, 2002). Assim sendo, a explicação
do comportamento dos atores, dos padrões de interação entre eles e dos
resultados do jogo requer o exame de suas preferências, de seus recursos e das
estratégias a eles disponíveis nas diversas arenas compreendidas pelo jogo, nos
dois períodos aqui considerados.
Ao presidente interessa aprovar, com o menor custo possível ' o que inclui
considerações sobre o timing da decisão ', suas propostas de reforma. Para
tanto, ele estará disposto a mobilizar recursos de que disponha em outras
arenas, tais como os de patronagem e de natureza orçamentária
(distributivismo), na arena executiva, e recursos de popularidade na arena
societal. As especificidades do processo decisório que caracterizam a
tramitação e a aprovação de emendas constitucionais redundam em uma agenda
presidencial que envolve altos custos de transação, dada a necessidade de
organização de supermaiorias na arena legislativa (Anastasia, Melo e Santos,
2004).
Aos governadores, interessa organizar condições favoráveis para o exercício do
que eles consideram "um bom governo". Trata-se de atores com preferências
intensas relativamente ao problema das contas públicas estaduais, o que confere
relevância à questão da previdência. Tal relevância será ainda maior se, como
veremos logo a seguir, o jogo da previdência compuser uma matriz de jogos
"aninhados", de forma que o comportamento cooperativo com o Executivo central
nessa questão possa ser recompensado no âmbito do jogo da reforma tributária.
Aos legisladores, interessa "jogar para a platéia", a qual engloba os públicos
atentos e desatentos. Para eles, o jogo principal é o da reeleição e suas
interações com os demais jogadores nas outras arenas estarão informadas por
estratégias que maximizem a consecução de seus objetivos na arena considerada
por eles a principal: a eleitoral. Claro está que são diferentes as estratégias
e os recursos disponíveis para os diferentes legisladores, a depender de suas
persuasões ideológicas, filiações partidárias e pertencimento à coalizão
governativa ou às forças de oposição.
Aos líderes de coalizão, dentro e fora do Congresso, importa influir o máximo
possível na formação da agenda pública e nas decisões a ela relativas. São
eles, os militantes e as lideranças partidárias da base governista e da(s)
oposição(ões); a mídia; os líderes sindicais e de outros grupos de interesse
afetados. Aos públicos atentos da reforma previdenciária ' que, como veremos,
são distintos nos dois momentos considerados ', importa pressionar os
legisladores para que eles vocalizem na arena parlamentar. Já os cidadãos
esperam que os representantes eleitos ' seja no âmbito do Poder Executivo, seja
no do Poder Legislativo ' ajam orientados pela consecução de "seu melhor
interesse". No entanto, a percepção, por parte dos cidadãos, de qual é e onde
está o seu "melhor interesse" depende de sua estrutura de preferências e do
grau de assimetria informacional existente entre os diferentes atores '
representantes eleitos, líderes de coalizão e cidadãos ', variável crucial na
definição da capacidade de os cidadãos reconstituírem a cadeia causal que
vincula demandas a políticas e estas aos resultados produzidos pelos
governantes.
O jogo da reforma da previdência teve início, no Brasil, com o envio em abril
de 1995, pelo governo Fernando Henrique, da Proposta de Emenda Constitucional '
PEC nº 33 ao Congresso. Depois de atribulada passagem pela Câmara e de ser
parcialmente reconstituído no Senado, o projeto do Executivo foi finalmente
aprovado na primeira Casa em dezembro de 1998. O segundo passo foi dado no
governo Lula, com o envio da PEC nº 40, que deu origem à Emenda Constitucional
nº 41 promulgada pelo Congresso Nacional em 19 de dezembro de 2002.
Entre um passo e outro a linha de continuidade é clara; mas a simples
necessidade de uma nova PEC, logo nos primeiros meses do governo Lula, mostra o
quão limitado havia sido o sucesso de Fernando Henrique no enfrentamento da
questão. Lula partiu do ponto em que seu antecessor parou e conseguiu aprovar
no Congresso medidas que significam severas perdas para servidores, aposentados
e pensionistas do setor público, tais como: a) a definição de requisitos, no
caso dos atuais servidores, para a obtenção de aposentadoria integral; b) o fim
da integralidade e estabelecimento de um valor máximo a ser pago ' R$ 2.400,00,
o mesmo valor para os trabalhadores da iniciativa privada ' àqueles que
ingressarem após a promulgação da emenda, deixando aos que quiserem obter um
benefício maior a possibilidade de recorrer a fundos de previdência
complementar fechados; c) a diferenciação nos reajustes de ativos e inativos
para os futuros servidores e a manutenção da paridade, no caso dos atuais,
apenas para aqueles que obtiverem a aposentadoria integral; d) o fim da
aposentadoria proporcional e instituição de um redutor ' 5% ao ano a partir de
2006 ' para aqueles que desejarem se aposentar antes da idade mínima; e) a
instituição da cobrança de contribuição aos inativos, no valor de 11% do
salário, para os servidores da União que ganharem acima de R$ 1.440,00 e para
os estaduais e municipais com ganho acima de R$ 1.200,00; f) o desconto de 30%
no valor das pensões concedidas após a promulgação da reforma; g) a definição
da maior remuneração de um ministro do Supremo Tribunal Federal ' STF como teto
salarial para o funcionalismo federal3. Na opinião de Zylberstajn (2003),
"nenhuma tentativa de reforma da previdência conseguiu tanto, em tão pouco
tempo".
Na comparação entre os dois processos reformistas parece evidente que: 1) Lula
enfrentou menores obstáculos e obteve maior grau de sucesso do que Fernando
Henrique; 2) atores relevantes tiveram seu comportamento alterado, o que
incidiu fortemente sobre os processos de tramitação e votação das duas
propostas de emenda constitucional.
A reforma aprovada em 1998 mantinha "pouca relação com a inicialmente divisada
pelo Executivo" (Melo, 2002:146). O processo revelou-se extremamente longo, e o
Executivo sofreu oito derrotas em plenário ' todas em votações de Destaque para
Votação em Separado ' DVS e três na Comissão de Constituição e Justiça.
Derrotado na PEC, o governo convocou extraordinariamente o Congresso e
conseguiu a aprovação da contribuição dos inativos na forma de Projeto de Lei,
contando, para tanto, com a colaboração de muitos deputados não reeleitos
(Figueiredo e Limongi, 1999; Melo, 2002). Lula, por sua vez, não sofreu nenhum
revés em votações importantes, e a proposta apresentada, depois de percorrer
rapidamente os caminhos do Congresso, foi aprovada sem sofrer significativas
alterações.
Como explicar a diferença se, em ambos os casos, temos o mesmo tipo de proposta
"politicamente inviável" com os parlamentares tendo que levar em conta as
mesmas arenas e o mesmo arranjo institucional, à exceção das regras para
utilização dos DVSs? Acrescente-se a isso o fato de ambos os presidentes terem
dado a partida no processo reformista em condições igualmente favoráveis, do
ponto de vista conjuntural: início de mandato, elevada popularidade e ausência
de constrangimentos eleitorais.
A diferença poderia estar no apoio obtido pelo presidente no Congresso em cada
um dos períodos. A coalizão eleitoral de apoio a Fernando Henrique, formada
pelo PSDB, PFL e PTB, conquistou 182 cadeiras no pleito de 1994, número
insuficiente, portanto, para garantir apoio majoritário à agenda do presidente.
Uma vez empossado, Fernando Henrique organizou seu ministério, utilizando
recursos de patronagem para ampliar sua coalizão governativa. O PMDB foi
incorporado ao governo Fernando Henrique ainda em 1995 e o então PPB, em 1996,
durante o processo de votação dos DVS da reforma da previdência na Câmara dos
Deputados. Dessa forma, levando em conta as bancadas eleitas em 1994, a
coalizão governativa de Fernando Henrique chegava a 377 deputados, ou 73,5% dos
votos, facultando ao governo a maioria qualificada necessária para a aprovação
de emendas constitucionais. Na realidade, a bancada governista ainda cresceu um
pouco mais, uma vez que, ao longo da legislatura, 39 deputados aderiram aos
partidos do governo, ao passo que nove migraram em direção à oposição (Melo,
2004).
Lula, em 2002, a despeito do crescimento eleitoral de seu partido e da
esquerda, também não logrou conquistar, via eleições, uma coalizão majoritária.
Os partidos que lhe deram sustentação ao longo da campanha ' PT, PC do B e PL
', somados ao PDT, PSB, PPS, PV e PTB, que aderiram à sua candidatura no
segundo turno, obtiveram, no conjunto, 218 cadeiras. Já na posse dos deputados,
em fevereiro de 2004, a bancada governista havia crescido para 248 cadeiras,
por causa das migrações partidárias na Câmara. Para garantir a maioria
qualificada, Lula tratou de recorrer à patronagem, atraindo o PMDB para o
governo4. Como o fluxo migratório continuou favorável aos partidos governistas
' em 2003, foram 52 os deputados que aderiram ao governo, optando em especial
pelo PL e PTB, contra cinco "desertores" ' no início das votações da PEC nº 40
na Câmara, a bancada possuía 327 componentes, tendo chegado a 332 deputados por
ocasião da votação em segundo turno. Se for computada a bancada do PP, que se
declarava independente, mas cuja liderança orientava o voto no governo, a base
de Lula no processo de votação da PEC chegou a 379 deputados. A Tabela_1 mostra
o quadro na Câmara dos Deputados, para os dois governos, sem computar o impacto
das migrações sobre as bancadas.
Pelo que se percebe, ainda que nos dois casos o presidente eleito se tenha
revelado capaz de transitar de uma coalizão eleitoral minoritária para uma
coalizão parlamentar majoritária, a posição de Lula no Congresso mostrava-se
mais frágil. Sua base no Congresso só alcança, em termos numéricos, aquela de
Fernando Henrique, uma vez considerados os votos do PP, partido que, no
entanto, não foi formalmente incorporado à coalizão e, como se verá adiante,
apresentou um comportamento altamente indisciplinado. Além disso, a base
composta por Lula revelou-se mais heterogênea do que aquela organizada por
Fernando Henrique, percorrendo todo o espectro ideológico. Tal tendência
começou a configurar-se já no primeiro turno, com a aliança entre o PT e o PL,
e foi se consolidando com a adesão do PTB, antigo aliado de Fernando Henrique,
no segundo turno, e com a aproximação, ao longo de 2003, com o PMDB e o PP.
Não tem sentido, portanto, querer que a explicação para o melhor desenlace do
processo reformista com Lula guarde relação com o processo de montagem da
coalizão de governo no Congresso. Na nossa opinião, tal explicação exige que se
leve em conta a série de fatores elencados a seguir:
1. A composição da agenda do Executivo. A agenda proposta por
Fernando Henrique ao Congresso em 1995 encontrava-se muito carregada.
Além da previdência, entraram em discussão as PECs referentes às
reformas no campo econômico, administrativo e tributário, tendo o
governo se saído vitorioso nos dois primeiros casos e retirado a
proposta no terceiro. Ademais, no primeiro semestre de 1996, o
governo teve sua atenção totalmente concentrada na aprovação da
emenda da reeleição, a qual, é bom lembrar, havia sido apresentada
pelo PFL no primeiro dia de funcionamento do ano legislativo de 1995
e que acabou por tornar-se "a mais importante das reformas". A
"limpeza do terreno" beneficiou o governo do PT que, dessa maneira,
pode concentrar suas atenções em apenas dois pontos: as reformas da
previdência e a tributária.
2. A proposta originalmente apresentada. Uma das características
centrais da PEC apresentada por Fernando Henrique estava na sua
multidimensionalidade. Subestimando a resistência a ser enfrentada no
Congresso e na sociedade, "a reforma implicava mudanças nos fundos de
pensão, no regime geral da previdência social, e no dos servidores
públicos" (Melo, 2002:134). A iniciativa do Executivo, logo
desmembrada pelo relator do processo na Comissão de Constituição e
Justiça ' CCJ em quatro diferentes emendas constitucionais
(Figueiredo e Limongi, 1999; Melo, 2002), contribuiu para que os
diversos líderes de coalizão se unissem em uma ampla frente contra a
reforma e dificultou a exploração, pelo governo, das diferenças entre
as centrais sindicais e o conjunto do funcionalismo. Lula, por sua
vez, concentrou suas atenções na questão da previdência do setor
público, isolando dessa forma os servidores, que já haviam perdido um
velho aliado ' o próprio PT ', e atraindo a Central Única dos
Trabalhadores ' CUT e a Força Sindical para seu lado, no combate aos
"privilégios" e na defesa da eqüidade. Assim, enquanto Fernando
Henrique uniu os diversos públicos atentos contra sua proposta, Lula
procurou dividi-los.
3. A articulação com os governadores. Aqui se trata não apenas de
destacar que Lula descartou o projeto originalmente formulado pelo
ministro Ricardo Berzoini convergindo, em troca, para um outro,
formulado em comum acordo com os governadores ' o que os tornou
sócios de primeira hora na empreitada. Talvez ainda mais importante
tenha sido o fato de que o jogo da reforma da previdência foi
deliberadamente "nested" com o jogo da reforma tributária. A
estratégia, organizada pelo Poder Executivo federal, contribuiu
sobremaneira para que o presidente obtivesse, desde o início da
apresentação de ambas as PECs ao Congresso, o apoio irrestrito de
todos os governadores, independentemente de sua filiação partidária.
Tal estratégia não se encontrava disponível para o Executivo no
primeiro tempo da reforma previdenciária, já que a reforma tributária
foi transformada em "não-agenda" pelo governo Fernando Henrique, que
optou por retirar a proposta de pauta.
4. A composição da Comissão Especial. O governo Fernando Henrique
pagou elevado preço por não conseguir o controle da Comissão Especial
designada para apreciar a PEC nº 33. O cargo de relator na Comissão
foi entregue a Euler Ribeiro, deputado do PMDB pelo Amazonas e
possuidor de vínculos com entidades do serviço público, enquanto a
presidência coube a Jair Soares (PFL/RS), que por diversas vezes se
havia pronunciado contra o projeto (Melo, 2002). No governo Lula, a
Comissão foi presidida por um parlamentar claramente favorável à
proposta reformista, o deputado mineiro pelo PFL Roberto Brant,
enquanto a relatoria coube a um parlamentar do PT, José Pimentel.
5. As regras para a utilização do DVS no processo legislativo. Como
se sabe, na discussão de uma PEC, as chances de a oposição aprovar
emendas ao texto enviado pelo Executivo são muito reduzidas, dada a
necessidade de se arregimentar 3/5 dos votos nominais nas duas Casas.
A situação, no entanto, altera-se por completo no caso do DVS. Por
meio desse instrumento, os partidos oposicionistas podem destacar
partes do texto aprovado e obrigar o governo a expor sua base em
votações polêmicas. Como cabe ao Executivo confirmar a maioria
qualificada, aumentam as chances de sucesso da oposição, que passa a
necessitar de 2/5 + 1 dos votos para exercer seu poder de veto. No
governo Fernando Henrique, ao longo de todo o primeiro turno da
votação da reforma na Câmara, foi esse o principal elemento da
estratégia parlamentar dos partidos oposicionistas. Encerradas as
votações e após a contabilização de seus reveses, relatam Figueiredo
e Limongi (1999:78), o governo aprovou a resolução nº 60-A/95, por
meio da qual se previa "um número máximo de destaques por partido de
acordo com o tamanho da bancada". Evidentemente, a alteração, a única
de cunho institucional entre os dois períodos aqui analisados,
limitou de forma significativa o poder de fogo da oposição e mostrou-
se benéfica ao governo Lula.
6. As relações entre governo e oposição. Logo após sua proposta
inicial ter sido desmembrada em quatro emendas, o governo Fernando
Henrique sinalizou na direção de uma negociação com a oposição, mas
teve sua rota bloqueada pela reação do PT (Melo, 2002). Situação
muito distinta experimentou Lula, que obteve o apoio dos governadores
eleitos pelos dois partidos da oposição, PFL e PSDB, além do apoio
formal deste último nas votações do Congresso. Apenas a liderança do
PFL manifestou encaminhamento contrário ao governo nas votações
realizadas no Congresso, o que, não impediu, como se verá, que parte
expressiva de seus deputados ajudassem a aprovar a proposta de
reforma.
Dos seis fatores apresentados, o último foi, certamente, o mais relevante.
Levando-se em conta as características da proposta reformista e as regras para
tomada de decisão no que se refere a emendas constitucionais ' processo
bicameral em dois turnos com quórum de 3/5 para votação e aprovação, votação
nominal e impossibilidade de veto por parte do Executivo ', dificilmente poder-
se-ia esperar uma férrea disciplina na base de qualquer dos governos aqui
analisados. Sendo assim, a possibilidade de angariar votos junto à oposição
tornou-se decisiva para o maior ou menor sucesso do Executivo na implementação
de sua agenda.
COMPARANDO O COMPORTAMENTO DOS DEPUTADOS EM PLENÁRIO
Ao contrário do que ocorreu no governo Fernando Henrique, Lula enfrentou poucas
votações até a aprovação de seu projeto de reforma e não foi derrotado em
nenhuma delas. Dois fatores contribuíram para que o governo petista enfrentasse
um número bem menor de desafios em plenário. De um lado, a já mencionada
alteração na regulamentação dos DVSs diminuiu o poder de fogo da oposição. De
outro, o encaminhamento divergente entre PSDB e PFL, cabendo a este último o
enfrentamento quase solitário ' ressalva feita ao pouco expressivo Prona ' da
proposta governista. Isso não significou que a PEC nº 40 tenha passado incólume
pelo Congresso. Na Câmara dos Deputados, foram três as concessões importantes
feitas pelo governo: a) diminuição de 50% para 30% do redutor aplicado sobre a
parcela das pensões deixadas pelo servidor público, sempre que estas superarem
o teto de R$ 2.400,00; b) abrandamento das condições para aposentadoria
integral, reduzindo, de dez para cinco anos, o tempo de permanência no último
cargo; c) aumento de R$ 1.200,00 para R$ 1.440,00 no teto de isenção do
pagamento de contribuição para os servidores públicos aposentados e
pensionistas da União. No Senado, para que a proposta enviada pela Câmara fosse
aprovada na íntegra, o governo concordou com a elaboração da chamada PEC
paralela5.
A Tabela_2 apresenta dados que permitem avaliar o comportamento dos deputados
em plenário no processo de votação da reforma da previdência durante o governo
Lula. Como indicador de disciplina partidária, foi utilizado o índice de
fidelidade à posição do líder6.
O primeiro turno das votações transcorreu entre os dias 6 e 13 de agosto. Além
das votações procedimentais, sempre vencidas com folga pelo governo, foram
apreciadas seis Emendas Aglutinativas ' EAs, uma apresentada pelo governo (a
Emenda Aglutinativa Global ' EAG nº 4), e quatro DVSs, dois apresentados pelo
PTB e dois pelo PFL. Na elaboração da tabela, as votações procedimentais não
foram consideradas. Além disso, foram relacionadas apenas as votações em que as
propostas da oposição conseguiram pelo menos 10% dos votos em plenário, o que
eliminou as EAs nos7, 8 e 11 (vencidas pelo governo pelos placares de 481 a 10,
461 a 5 e 444 a 7, respectivamente). Os dois DVS apresentados pelo PTB também
não foram considerados. O DVS nº 2 porque foi aprovado por 436 votos contra 3 e
19 abstenções. Já o DVS nº 3, que pretendia excluir as chamadas "verbas
indenizatórias" do cálculo do teto salarial do funcionalismo, foi derrotado por
403 a 27, com encaminhamento favorável ao governo do PFL e do PSDB. A tabela
inclui, ainda, a votação da PEC em segundo turno, ocorrida no dia 27 de agosto
de 2003.
Em todas as votações, o percentual de deputados que seguiu a orientação do
partido foi calculado sobre a bancada e não apenas sobre os presentes. Entre o
início e o final das votações na Câmara, em função da ocorrência de migrações
entre os partidos, PSB e PSDB perderam oito e quatro deputados,
respectivamente. Do outro lado, PMDB ganhou oito membros em sua bancada e PTB
quatro. Tais variações foram consideradas nos cálculos efetuados.
O governo, por meio de sua liderança na Câmara, encaminhou posição contrária no
caso das EAs nos 1 e 3, assim como para os DVS nos7 e 9, ambos apresentados
pelo PFL ' no primeiro caso, propondo a supressão da contribuição dos inativos
e, no segundo, sugerindo que fosse mantido o pagamento integral das pensões
deixadas pelos funcionários públicos. A posição do governo foi favorável à EAG
nº 4 ' apresentada como um substitutivo para a PEC nº 40 ' e ao projeto no
segundo turno. Dos partidos que inicialmente compunham a base do governo, o PDT
encaminhou posição contrária à do Executivo nas votações do DVS nº 7 e do
segundo turno. O PC do B liberou sua bancada na votação referente à
contribuição dos inativos. Apesar da condição oposicionista do partido, a
liderança do PSDB encaminhou posição favorável ao governo em todas as votações
aqui consideradas. O mesmo aconteceu com o PP, embora nesse caso a posição do
partido perante o governo houvesse sido de independência. Por sua vez, PFL e
Prona recomendaram o voto não a seus deputados nas seis ocasiões.
Como já mencionado, o governo venceu todas as votações aqui consideradas. Os
placares foram: 378 a 76 (EA nº 1); 356 a 54 (EA nº 3); 358 a 126, com 28
abstenções (EA nº 4); 326 a 163, com 23 abstenções (DVS nº 7); 361 a 104, com 9
abstenções (DVS nº 9); 357 a 123, com 6 abstenções (segundo turno). Em todas as
votações, o governo contou com votos do PFL e PSDB, os quais foram decisivos na
aprovação da EA nº 4, na derrota do DVS nº 7 e na aprovação definitiva da PEC
no segundo turno. Nessas ocasiões, o governo contou com 62, 57 e 60 votos,
respectivamente, dos dois grandes partidos da oposição (PFL e PSDB). Por outro
lado, as defecções em sua base foram igualmente expressivas: 65, 89 e 82
deputados ou votaram contra ou se ausentaram nos três momentos decisivos para o
projeto do Executivo.
O exame da Tabela_2 mostra que foram baixas as taxas de disciplina apresentadas
por quase todos os partidos no processo de votação da PEC nº 40. Do lado do
governo, a disciplina média, medida pelo índice de fidelidade, foi de 80,7%,
com o percentual de deputados que seguiram a posição do Executivo oscilando
entre 72,7% e 88,7%. O pior desempenho da base aliada, como seria de se
esperar, pode ser verificado na votação da contribuição dos inativos. Nas
igualmente decisivas votações da EA nº 4 e do segundo turno, a performance dos
partidos melhorou sem, no entanto, impedir que cerca de 20% dos deputados
deixasse de cooperar com o governo.
Até aqui não existe propriamente uma novidade: no processo de votação da PEC nº
33, no governo Fernando Henrique, segundo dados apresentados por Figueiredo e
Limongi (1999), a disciplina média da base aliada foi de 77,1%7. No período do
governo Fernando Henrique, os membros da coalizão eleitoral comportaram-se de
modo mais disciplinado do que os partidos que posteriormente aderiram ao
governo: PFL, PSDB e PTB apresentaram índices de fidelidade mais elevados do
que PP e PMDB: 82,4%, 80,4% e 79,7% para os três primeiros e 74,6% e 70,3% para
os dois últimos8. No governo Lula, a distinção perde um pouco da nitidez, dado
o comportamento do PDT e dos deputados do PV. Mas, feita a ressalva, é notória
a diferença entre o índice apresentado pelo PMDB, que adere à base aliada
durante 20039, e os partidos que apoiaram Lula, seja no primeiro ou no segundo
turno. Já o PP, talvez em razão do seu status de partido independente, mostrou
uma bancada ainda mais indisciplinada no governo Lula do que no período do
governo Fernando Henrique.
O ponto que efetivamente chama a atenção do pesquisador se refere à mudança no
comportamento dos deputados eleitos pelos partidos de esquerda, de um lado, e
daqueles eleitos pelo PSDB e pelo PFL, de outro. No caso da esquerda, é sabido
que PT, PDT e PC do B sempre se notabilizaram por apresentar bancadas altamente
disciplinadas no plenário da Câmara. Dados apresentados por Figueiredo e
Limongi (idem:112) para o período 1989/1999 mostram um índice de fidelidade de
97,1% e 91,8% para os dois primeiros partidos. Já o PC do B, de acordo com
Nicolau (2000:716), apresentou uma taxa de disciplina de 98,8% nas votações
nominais registradas entre 1995 e 1998. Nas votações aqui analisadas, o
tradicional comportamento da esquerda não se repetiu. Apenas na votação do DVS
nº 7, depois de forte pressão sobre os nove deputados que se haviam abstido na
EA nº 4, o PT conseguiu apresentar um padrão de votação semelhante ao de seus
tempos de partido oposicionista. O PC do B enfrentou dificuldades ainda maiores
para obter a cooperação de seus parlamentares: na votação dos inativos (DVS nº
7), com a bancada liberada, apenas 36,3% dos deputados comunistas mostraram-se
favoráveis à proposta do Executivo. O PDT chegou a protagonizar um episódio
peculiar: membro da bancada governista durante o processo de tramitação e
votação da PEC, o partido só conseguiu apresentar um comportamento disciplinado
na votação do DVS nº 7, ocasião em que sua liderança encaminhou contra o
governo. Ao final do processo, na votação do segundo turno, a divisão dos
pedetistas ficou evidente: apenas 42,9% dos deputados (seis em uma bancada de
quatorze) acatou a posição da liderança que, sob pressão direta de Leonel
Brizola e da Executiva Nacional, encaminhara pela rejeição da PEC.
Se Fernando Henrique enfrentou uma oposição coesa e disciplinada durante a
votação da PEC nº 33, com Lula, exceção feita ao Prona10, o quadro foi muito
distinto. PSDB e PFL apresentaram-se cindidos ao meio, independentemente da
orientação estabelecida pelo líder. O contraste é nítido não apenas quando
consideramos que, ao longo de todo o período do governo Fernando Henrique, os
dois partidos mantiveram bancadas bastante disciplinadas, mas mesmo se a
comparação for feita apenas para a votação da previdência. PFL e PSDB, que
apresentaram índice de fidelidade de 82,4% e 80,4%, respectivamente, por
ocasião da PEC nº 33, chegaram a 44,9% e 51,6% nas votações ocorridas no
governo Lula. Em apenas três ocasiões a liderança do PSDB conseguiu o apoio da
maioria de seus deputados para a proposta do Executivo. O deputado José Carlos
Aleluia, do PFL baiano, obteve ainda menos sucesso como líder oposicionista:
sua orientação revelou-se majoritária no partido em duas das seis votações
computadas e em ambas por escassa margem.
O posicionamento do PFL abre espaço para que se retome a questão da arena
estadual. Como já foi mencionado, a orientação adotada pelo partido no
Congresso passou a colidir com a posição dos seus governadores, que apoiavam a
proposta do governo. Desagregando-se por estado a votação da bancada do PFL,
pode-se observar que em cinco das seis votações consideradas ' a exceção é a EA
nº 1 ', o fato de o partido estar ou não à frente do Executivo estadual teve
influência marcante no comportamento de seus deputados na Câmara. Nos estados
em que o PFL tinha o governo estadual, 84,5%, em média, dos membros de sua
bancada federal alinharam-se com o governador, votando com a proposta do
governo Lula e contra a orientação do partido. Por outro lado, nos estados em
que o PFL não era governo, o percentual dos que apoiaram a proposta reformista,
contra a orientação partidária, foi de apenas 18,9% em média11. Apenas na
votação da EA nº 1, o fato do PFL estar à frente do Executivo estadual não teve
qualquer influência no comportamento da bancada federal: nessa ocasião, o
partido conseguiu se posicionar de forma relativamente disciplinada, seguindo a
orientação do líder na Câmara.
No caso do PSDB, o controle do governo estadual também teve impacto, ainda que
menor, sobre o comportamento da bancada federal em duas das seis votações ' as
exceções foram as EAs nos 1 e 3. Nas demais votações, a bancada federal seguiu
majoritariamente a orientação partidária ' que coincidia com a posição dos
governadores e mostrava-se favorável à proposta apresentada pelo governo Lula '
apenas nos estados governados pelo partido. Nos demais estados, a maioria da
bancada preferiu jogar o jogo na arena eleitoral, desacatando a orientação
partidária e posicionando-se contra o governo federal12.
Finalmente cabe mencionar o quadro no Senado, onde o projeto enviado pela
Câmara tramitou por quatro meses e foi aprovado, em segundo turno, em dezembro
de 2003. Novamente, o governo teria sido derrotado, não fossem os votos de
treze senadores do PSDB e do PFL. À exceção do PTB, as bancadas partidárias
mostraram-se mais disciplinadas do que na Câmara. Na votação mais importante,
ocorrida no dia 26 de novembro e que aprovou por 55 votos contra 22 o texto
básico, os partidos que apoiaram o governo obtiveram os seguintes percentuais
de adesão entre seus senadores: PSB, PL e PPS, 100,0%; PT, 92,9%; PMDB, 85,7%;
PTB, 66,7%; PSDB, 54,5%. PDT e PFL encaminharam contra o governo e obtiveram a
concordância de 100,0% e 58,8% dos membros de suas respectivas bancadas. Nos
estados governados pelo PFL, todos os senadores votaram contra o partido.
AS ELEIÇÕES DE 2002 E A MUDANÇA NAS PREFERÊNCIAS E RECURSOS DOS ATORES
A nosso ver, as mudanças observadas no comportamento dos legisladores podem ser
explicadas a partir dos impactos provocados pelas eleições de 2002 sobre a
distribuição dos atores no interior dos sistemas de solidariedade e de
interesses organizados nas diferentes arenas decisórias. Ao promoverem uma nova
correlação de forças políticas no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo,
as eleições de 2002 redistribuíram preferências e recursos entre os atores,
redefiniram as estratégias disponíveis para cada um deles e reestruturaram as
relações entre representantes eleitos, líderes de coalizão e cidadãos.
A análise da mudança no comportamento dos atores, de um tempo a outro no jogo
da reforma, pode ter início com uma qualificação: a PEC nº 40, encaminhada por
Lula, expressava uma proposta de reforma mais radical do que a PEC nº 33, de
Fernando Henrique, contra a qual a bancada petista votou, coesa e disciplinada,
em todas as circunstâncias em que foi instada a se manifestar. O que mudou?
Quem mudou?
O comportamento da bancada do PT, relativamente à PEC nº 33, torna-se fácil de
explicar ao se considerar duas variáveis, uma de natureza programática e outra
de natureza posicional. Do ponto de vista programático, basta lembrar que o
partido, seus militantes e o conjunto de apoiadores consistentes, com ênfase
para seus públicos atentos, constituídos majoritariamente de assalariados, e em
grande parte de assalariados do setor público, estavam todos alinhados contra a
direção proposta por Fernando Henrique para a reforma da previdência. Ainda que
já houvesse sido construído um certo consenso, na sociedade brasileira, quanto
ao fato de que alguma reforma era inevitável, havia controvérsias quanto ao seu
alcance, seu timing e sobre a distribuição de seus custos entre os setores
afetados.
Além disso, o PT era, à época, o maior partido de oposição e, portanto, tratou
de fazer oposição em um contexto no qual tal estratégia não apenas estava
disponível para ele, como, também, era a mais racional, pensando nos impactos
que ela provocaria nas arenas societal e eleitoral, dada sua coerência com a
cartilha petista.
Mais complexa é a explicação requerida para o comportamento da bancada
governista, no contexto da votação da PEC nº 33: ainda que a proposta fosse
totalmente compatível com o ideário dos maiores partidos da coalizão de apoio a
Fernando Henrique ' PSDB e PFL ' e, portanto, de fácil assimilação por
militantes e por apoiadores consistentes, sua defesa esbarrava nos cálculos
eleitorais dos legisladores, especialmente na presença de "instigadores" ' os
petistas e companhia ' que facilmente poderiam fazer chegar aos ouvidos das
constituencies desses parlamentares informações relativas ao seu apoio a uma
proposta "politicamente inviável". Em que pesem os esforços e os recursos
mobilizados pelo presidente, prevaleceu, para muitos deputados, a lógica das
urnas, acarretando a cisão da coalizão governista e os resultados pífios
produzidos no Congresso, relativamente à matéria.
Quando do exame, pelo Congresso, da PEC nº 40, as cadeiras tinham,
literalmente, mudado de lugar! Vale, em primeiro lugar, indagar por que um
presidente, eleito por uma legenda que já havia rejeitado, coesa e
disciplinadamente, a reforma proposta por Fernando Henrique apresenta aos
legisladores um projeto ainda mais distante das preferências dos petistas do
que a de seu antecessor. E, ainda mais instigante: como espera vê-la aprovada
e, de fato, logra esse objetivo!
Para responder a essa questão, é preciso, em primeiro lugar, levar em conta que
o governo Lula não é, e nem poderia ser, exclusivamente, o governo do PT. Ainda
que tenha que ser ouvido e levado em conta, enquanto partido do presidente e
dono da maior bancada no interior da coalizão governista, o PT sabe que não
governa sozinho e que precisa dos votos dos parlamentares das legendas que dão
sustentação ao Executivo.
Em segundo lugar, ao tornar-se governo, o PT mudou. Para vencer a eleição
presidencial, a estratégia seguida pelo partido deixou clara a opção pela
flexibilização de sua agenda. Em uma carta dirigida à nação, o então candidato
à Presidência proclamou, em alto e bom som, que, se eleito, não lançaria o país
em aventuras heterodoxas, no plano da economia, e que governaria para o
conjunto dos brasileiros, e não exclusivamente para a sua base de apoiadores
consistentes. Ajoelhou, tem que rezar. Ao contrário do que muitos afirmam, a
condução imprimida à política econômica pelo governo Lula não se configura como
uma policy switch, mas sim, para desgosto dos petistas mais ortodoxos, como o
cumprimento de compromissos de campanha, sem os quais Lula não teria obtido
apoio eleitoral suficiente para sair vitorioso do segundo turno.
Interessante notar que a mudança experimentada pelo partido, ao trocar de lugar
' da oposição para o governo ', não foi digerida da mesma forma pelo conjunto
dos seus legisladores. A compreensão da lógica que informa tais diferenças
requer, mais uma vez, a mobilização do modelo dos jogos aninhados: aqueles
parlamentares cujos apoiadores consistentes e cuja base eleitoral são
constituídos, majoritariamente, pelos públicos atentos mais atingidos pelos
resultados da reforma foram os que mais relutaram em alterar sua pauta de
preferências, às custas, em alguns casos, de punições sofridas por indisciplina
e da expulsão do partido. Portanto, o partido coeso e disciplinado, quando
oposição, "rachou" no governo. Vale assinalar que, nesse caso, ademais dos
custos eleitorais, os dissidentes levaram em conta os custos que o apoio à
agenda do presidente traria na arena societal ' em que se teria que explicar,
aos militantes e apoiadores consistentes, por que os "companheiros" de ontem
teriam de ser, hoje, jogados aos leões. Feitas as contas, alguns preferiram
marchar com os "companheiros" para essa outra "arena".
O caso do PT permite retomar a distinção entre coesão e disciplina proposta por
Tsebelis (1997:103). Coesão, segundo o autor, "refere-se à diferenciação de
posições políticas dentro de um partido antes que se proceda à discussão e a
votação da posição em seu interior", ao passo que disciplina diz respeito "à
capacidade do partido para controlar os votos de seus membros no parlamento".
Mais do que disciplinado, o PT ' e o raciocínio vale também para o PDT e o PC
do B ' mostrou-se coeso ao longo de todo o tempo em que esteve na oposição, o
que vale dizer que o comportamento de seus deputados em plenário não dependia
da operação de mecanismos institucionais externos ao partido. A chegada ao
governo, e a conseqüente adoção da agenda reformista, provocou um abalo na
coesão do partido que, dessa forma, teve que lançar mão dos instrumentos de
disciplina disponíveis ' o que explica a mudança de posição dos nove deputados
que, tendo se abstido na votação da Emenda Substitutiva Global ' ESG nº 4,
alinharam-se ao Executivo por ocasião do DVS nº 7.
E quanto aos partidos de oposição? A primeira questão a esclarecer é a de por
que o PSDB não se comportou como oposição, dando o troco, na mesma moeda, ao
comportamento pregresso do PT, a exemplo do que fez o PFL, ao instruir sua
bancada para votar contra a PEC nº 40. Simplesmente porque tal estratégia não
estava disponível para o partido. Sabe-se que, na oposição, é sempre mais fácil
para qualquer partido ser coerente com seu próprio programa e com seus ideais.
Ora, sabe-se, também, que, diferentemente do PT, o PSDB sempre teve na reforma
da previdência uma das pedras de toque de seu programa partidário. Como então
explicar para militantes e apoiadores consistentes que, na oposição, o partido
passe a se opor ao que sempre apoiou? Ele não tem que barganhar, não tem que
ceder, não tem que flexibilizar, nem tem que negociar em nome da
governabilidade e de outros desideratos que assombram os governantes. Os custos
de se opor por se opor, ao que tentou e não conseguiu realizar, seriam, sob
essa ótica, mais altos do que aqueles de, consistentemente com sua orientação
programática, instruir sua bancada para apoiar a PEC do presidente Lula. E foi
o que fez o PSDB, ainda que seus legisladores se tenham comportado de forma
mais indisciplinada do que quando da votação da PEC nº 33, principalmente, como
se viu, nos estados em que o partido não estava à frente do governo.
E por que tal estratégia estava disponível para o PFL? Provavelmente porque, no
espectro ideológico, a forte identificação do PFL como um partido de direita
permitia que ele se colocasse, de forma mais confortável e sem maiores custos
políticos, junto a sua própria base, do lado oposto ao do PT, onde, aliás,
sempre esteve. É possível supor que o apoio do PFL ao governo do PT provocaria
mais estragos à sua imagem partidária do que a guinada realizada por ele
relativamente a uma política substantiva. Portanto, as eleições de 2002 foram
responsáveis por um fato inédito na política brasileira: colocar as forças que
hoje se abrigam sob a legenda do PFL e que há décadas são governistas, pela
primeira vez, na oposição!
O principal problema enfrentado pelos líderes pefelistas junto a sua base no
Congresso foi a estratégia utilizada pelo governo Lula, tornando os
governadores sócios da reforma da previdência e concertando-a com a reforma
tributária, o que fez com que os deputados tivessem que optar por seguir sua
liderança no Congresso ou se aliar a seus respectivos governadores ' talvez de
olho nas recompensas que poderiam advir dessa arena. Como se mostrou, na seção
anterior, o PFL "rachou" ao meio e, sintomaticamente, no estados em que o
partido controlava o Executivo estadual, o alinhamento com os governadores foi
amplamente majoritário.
Finalmente, cabe ressaltar que a cisão verificada no interior dos dois maiores
partidos de oposição ' PSDB e PFL ' permite aventar que o comportamento dos
deputados de ambas as legendas, no período do governo Fernando Henrique, fora,
ao contrário daqueles eleitos pela esquerda, fortemente influenciado pelos
mecanismos institucionais externos aos partidos e pouco nos dizia sobre o seu
grau de coesão.
Ao longo de todo o processo de votação da reforma da previdência, em suas duas
etapas, PSDB, PFL e PT tiveram que se haver, concomitantemente, com os atores
colocados no Executivo, com seus públicos atentos, apoiadores consistentes e
eleitores. No entanto, a distribuição dos atores pelos sistemas de
solidariedade e de interesses, no interior das arenas decisórias, acarretou que
diferentes estratégias estivessem disponíveis para situação e oposição nos dois
contextos decisórios examinados, dada a redistribuição de preferências e
recursos entre os atores, decorrente das eleições de 2002.
CONCLUSÃO
No Brasil, o método de formação dos órgãos decisórios é consistente com a
dispersão do poder: presidencialismo, com representação proporcional e
multipartidarismo; federalismo e bicameralismo, o que torna muito difícil, para
não dizer impossível, para os presidentes eleitos já disporem, ao fim do
processo eleitoral, de uma bancada partidária majoritária.
Como se sabe, tal problema tem tido sua solução no modelo do "presidencialismo
de coalizão": se a coalizão não sair das urnas suficientemente robusta (ou
seja, majoritária), pode ser ampliada no processo de formação do gabinete, por
intermédio da mobilização dos recursos de patronagem. Tal recurso tem sido
fartamente utilizado pelos presidentes brasileiros e tem lhes permitido gozar
de confortável maioria no Congresso. Portanto, a formação da coalizão
majoritária, geralmente, dá-se em duas etapas: a primeira é a etapa eleitoral e
a segunda é a da organização do gabinete. Claro está que, quanto mais
coincidentes forem ambas as coalizões ' a eleitoral e a governativa ', tanto
melhor será não apenas para a estabilidade política, mas, também, para a
representatividade e a accountability.
Uma vez constituída a coalizão majoritária, trata-se de fazê-la operar. Nesse
momento, passam a valer as modificações nas relações Executivo/Legislativo e no
Regimento Interno da Câmara dos Deputados, sancionadas após 1988 (Figueiredo e
Limongi, 1999); modificações conducentes à concentração dos poderes de agenda e
de veto nas mãos do presidente e das lideranças partidárias e, portanto,
capazes de restringir significativamente o poder dos demais atores. Tais
fatores, como enfatizam os autores citados, possibilitam que o arranjo
institucional brasileiro se torne coerente com a estabilidade da ordem
democrática: as bancadas partidárias comportam-se de forma disciplinada, a
disciplina afeta positivamente as chances de aprovação da agenda do presidente
e o Congresso deixa de operar como um veto player.
A dinâmica em curso é, aproximadamente, a seguinte: a democracia é um jogo
iterativo, jogado em múltiplas arenas. Para os tomadores de decisões '
representantes eleitos e burocracias, no âmbito dos Poderes Executivo e
Legislativo ', ele desenrola-se, rotineiramente, em um contexto decisório
contínuo13, o que propicia um fluxo de decisões interdependentes e a produção
de recompensas recíprocas retardadas (Sartori, 1994).
Operando em um contexto decisório contínuo, os legisladores inclinam-se ao
comportamento disciplinado, porque lhes parece que ' como afirmam Figueiredo e
Limongi 'votar com o líder é a opção de menor custo, especialmente nas ocasiões
em que são utilizadas estratégias procedimentais para "encobrir os rastros" das
ações dos parlamentares e, assim, impedir que os cidadãos reconstituam a cadeia
causal que liga demandas a políticas e estas aos resultados. Nessas
circunstâncias, a agenda do presidente é aprovada, e a estabilidade política é
preservada, ainda que tal fato possa acarretar déficits de representatividade e
de accountability.
O contexto decisório, porém, é drasticamente modificado pela introdução na
agenda do Legislativo de propostas de mudanças constitucionais. O jogo do
desenho institucional ' propostas de reforma e/ou emenda constitucional '
implica um momento de descontinuidade do contexto, dada a excepcionalidade das
regras que presidem o processo decisório: exigência de maiorias qualificadas,
de voto nominal e de dois turnos em ambas as Casas Legislativas. Em contextos
como esses, a produção da disciplina partidária torna-se mais difícil. Os
cálculos dos parlamentares, orientados para os impactos de seu comportamento na
arena eleitoral, podem resultar na percepção de que os custos da indisciplina
são mais baixos do que os custos de accountability vertical, já que o voto
nominal permite a reconstituição da cadeia decisória e a responsabilização
individualizada pela aprovação de "propostas politicamente inviáveis".
Em outras palavras, ocasiões como essas sinalizam que trair o seu partido e/ou
o governo pode ser menos oneroso do que trair a própria base eleitoral. Se,
para os legisladores, os custos da disciplina partidária crescem, em contextos
decisórios desse tipo, para o presidente, os custos da deserção de
parlamentares de sua base crescem exponencialmente.
Dessa forma, o "superlegislador"14, no momento da proposição de matéria
relacionada a modificações constitucionais, torna-se, a seguir, refém das
regras estritas de tramitação da proposta que, inclusive, não lhe permite
exercer poder de veto caso a tramitação desande e redunde em decisões em
desacordo com a sua agenda. Com a descontinuidade do contexto, os legisladores
podem começar novos cálculos e concluir que os custos da indisciplina diminuem,
quando considerados os impactos, provocados na arena eleitoral, de decisões
legislativas resultantes de votações nominais. Ao presidente, resta mobilizar
outros recursos de que disponha em outras arenas: recursos de patronagem e
orçamentários, com os quais ele possa acenar para os legisladores de forma a
fornecer-lhes "incentivos seletivos" à cooperação.
Os dois tempos da reforma da previdência analisados neste texto compartilham
todas as características de contextos decisórios descontínuos acima elencadas.
Ademais, foram verificadas significativas variações nos resultados do jogo e no
comportamento dos atores de um momento para outro. Lula saiu-se melhor do que
Fernando Henrique e, ainda que uma série de fatores tenha sido levada em conta
para explicar tal diferença de desempenho, a questão crucial ' concordando-se
com a premissa de que dificilmente se poderia esperar uma férrea disciplina de
qualquer das coalizões governistas ' parece ter sido a capacidade de angariar
votos junto à oposição. Dessa forma, ao lado de procurar saber por que os
partidos de esquerda, e o PT em especial, deixaram de apresentar o grau de
coesão que os caracterizou ao longo de todo o período do governo Fernando
Henrique, tratou-se de responder por que a oposição, agora representada pelo
PSDB e pelo PFL, não foi capaz de cerrar fileiras, como faziam os petistas,
contra o governo.
Nosso argumento foi de que a troca de lugares entre situação e oposição, uma
alteração de caráter contextual provocada pela eleição de 2002, ao alterar as
posições no interior das diversas arenas que, "aninhadas", compõem o jogo da
reforma, terminou por afetar as preferências, o estoque de recursos e
estratégias disponíveis, bem como o comportamento de cada um dos principais
atores.
Estratégias que se mostraram disponíveis para alguns atores no tempo um ' por
exemplo, o PT agir como oposição coesa e disciplinada ' não estavam disponíveis
para outros atores no tempo dois ' o PSDB não pode seguir a mesma estratégia,
dados os custos que ele incorreria junto a seus militantes, apoiadores
consistentes e públicos atentos. Quando no governo, o PSDB não pode, como fez o
PT no tempo dois, "aninhar" o jogo da previdência àquele da reforma tributária
e, dessa forma, obter o apoio do conjunto dos governadores, independentemente
de suas diferentes persuasões partidárias.
NOTAS
1. Um outro tipo de crítica ao funcionamento do presidencialismo brasileiro foi
feito por Anastasia e Melo (2002) e Anastasia, Melo e Santos (2004). Para estes
autores, o atual arranjo institucional é incapaz de propiciar um equilíbrio
entre os atributos desejáveis de uma democracia, quais sejam, estabilidade,
representatividade e accountability, de forma que a prevalência do primeiro tem
levado a um baixo desempenho da democracia brasileira no que se refere aos
últimos.
2. Para uma análise da opinião dos congressistas na legislatura 1991/1995, ver
Almeida e Moya (1997). Os dados apresentados pelos autores mostram uma
acentuada prevalência de opiniões favoráveis às reformas orientadas para o
mercado, algo que, à época, era combatido de forma veemente pelo PT.
3. A chamada PEC paralela nº 227/04, alternativa negociada com o governo para
que os senadores pudessem alterar pontos da reforma sem mexer no projeto
aprovado na Câmara, propõe, entre outros pontos, a alteração dos critérios para
a integralidade no caso dos atuais servidores, a possibilidade de que cada ano
a mais de contribuição diminua o equivalente na idade mínima e manutenção de
paridade plena para futuros aposentados que cumprirem os requisitos da
integralidade. A PEC foi aprovada no Senado e encontrava-se em tramitação na
Câmara quando este artigo estava sendo escrito. A contribuição dos inativos
foi, posteriormente, considerada constitucional pelo STF.
4. À época o PMDB já não tinha os seus 74 deputados; apenas 69 tomaram posse
pelo partido. Posteriormente, com a adesão de Anthony Garotinho, a bancada
voltou a crescer, mas sem que isso tivesse impacto favorável sobre o governo,
uma vez que a maioria dos novos deputados vinha do PSB.
5. A PEC paralela foi aprovada no dia 17 de dezembro de 2003 pelo Senado e
remetida à apreciação da Câmara, onde o relator da Comissão Especial ' o
deputado José Pimentel (PT/CE) ' optou pela apresentação de um substitutivo,
por meio do qual são incorporados apenas os dispositivos "compatíveis com a
Emenda Constitucional nº 41" (Parecer do Relator, site da Câmara dos
Deputados). A matéria ainda não foi votada.
6. Outros indicadores possíveis são o índice de Rice, o índice de unidade
partidária e o índice de lealdade (Mainwaring e Pérez-Liñan, 1998 e Nicolau,
2000). O índice de fidelidade foi escolhido para facilitar a comparação uma vez
que foi o indicador adotado por Figueiredo e Limongi (1999) em seu trabalho
sobre a votação da reforma da previdência no governo Fernando Henrique.
7. Cálculo feito pelos autores com base na tabela apresentada em Figueiredo e
Limongi (1999:216). Utilizando-se o índice de Rice teríamos 54,2.
8. Utilizando-se o índice de Rice: 64,8, 60,8 e 59,4 para PFL, PSDB e PTB; 49,2
e 40,6 para PP e PMDB.
9. A incorporação do partido ao Ministério, no entanto, só ocorreu em 2004, na
primeira reforma promovida pelo governo.
10. A quase perfeita disciplina do Prona não permite, no entanto, um elogio à
coesão do partido: logo após as votações, quatro dos seis deputados eleitos
migrariam para o PP paulista.
11. O PFL, nas eleições de 2002, conquistou os governos de Sergipe, Tocantins,
Bahia e Maranhão. Nestes estados, nas votações referentes à EA nº 3, à EA nº 4,
ao DVS nº 9, ao DVS nº 7 e ao segundo turno, o percentual de deputados do PFL
que votou com o governo federal e contra a orientação partidária foi de 69,2%,
89,3%, 88,9%, 85,7% e 89,3%, respectivamente. Nos demais estados, os
percentuais para as mesmas votações foram de 17,2%, 19,5%, 20,5%, 18,4% e
18,9%.
12. O PSDB, nas eleições de 2002, conquistou os governos do Pará, Ceará,
Paraíba, Goiás, Minas Gerais e São Paulo. Nestes estados, nas votações
referentes à EA nº 4, ao DVS nº 9, ao DVS nº 7 e ao segundo turno, o percentual
de deputados do PSDB que seguiu a orientação partidária e votou com o governo
federal foi de 59%, 53,6%, 66,7% e 62,5%, respectivamente. Nos demais estados,
os percentuais para as mesmas votações foram de 39%, 35%, 15,8% e 40%. Como se
percebe pelos dados, o impacto dos governadores sobre o posicionamento da
bancada tucana foi menor do que o verificado na bancada do PFL.
13. Já para os cidadãos, em sua maioria, o jogo democrático configura-se como
um contexto decisório descontínuo, no qual suas intervenções ficam, no mais das
vezes, restritas ao processo eleitoral.
14. Um aspecto pouco notado pelos analistas é o de que, na questão das emendas
constitucionais, verifica-se um significativo incremento do poder de agenda do
presidente, uma vez que este é o único ator que não tem que enfrentar pesados
custos de transação para apresentar ao Congresso proposta de modificação
constitucional: uma proposta oriunda da Câmara dos Deputados ou do Senado
Federal tem que ser apresentada por, no mínimo, um terço de seus membros; a
outra alternativa é o encaminhamento por mais da metade das Assembléias
Legislativas, por manifestação da maioria relativa de seus membros.