Processo orçamentário e comportamento Legislativo: emendas individuais, apoio
ao Executivo e programas de governo
INTRODUÇÃO
Nas análises das relações entre o Executivo e o Legislativo, a prerrogativa
congressual de emendar o orçamento tem um papel de destaque. Essa prerrogativa
resumir-se-ia, a se crer nessas análises, às emendas individuais. Não é difícil
compreender a atração que esse aspecto do processo orçamentário exerce sobre os
analistas: as emendas individuais permitem resgatar elementos cruciais das
interpretações correntes acerca do modus operandi do sistema político
brasileiro. Forneceriam, sobretudo, as evidências necessárias de que esse
sistema se alicerça no individualismo dos políticos, dando lugar a uma
distribuição clientelística e localista dos recursos públicos.
Essas emendas seriam as engrenagens centrais de um complexo sistema de trocas
de apoio que garantiria, na arena legislativa, o apoio "da base do governo" ao
Executivo e, na arena eleitoral, os recursos que os deputados carreariam para
as suas bases eleitorais. A execução das emendas individuais seria a "moeda de
troca" a selar acordos que envolveriam eleitores, legisladores e Executivo.
Nesses termos, a incorporação das emendas individuais à análise tem sido vista
como o "elo perdido" que permitiria reunir em um único corpo analítico a arena
eleitoral e a legislativa.
No que se refere à arena eleitoral, o argumento baseia-se naquela que seria a
necessidade básica de todo e qualquer político: encontrar os meios necessários
a fim de garantir sua reeleição. Para tanto, de acordo com a cartilha vigente,
existiria uma estratégia que garantiria aos políticos maior retorno eleitoral,
qual seja, a de levar benefícios tangíveis a redutos claramente definidos. O
eleitor, em reconhecimento ou, melhor dizendo, como pagamento aos serviços
prestados, retribuiria com seu voto. Dito de outra maneira, as emendas
individuais ao orçamento seriam usadas como parte de uma estratégia eleitoral
identificada pela literatura especializada como "voto pessoal" (Cain, Ferejohn
e Fiorina, 1987). A "conexão eleitoral" ' para usar outro termo em voga ' à
brasileira dependeria da execução dessas emendas1. Na realidade, as referências
aos modismos correntes na ciência política norte-americana são dispensáveis. A
visão folclórica e caricata de nossos políticos não é outra: individualistas e
interessados tão-somente em obter votos, sacrificariam, para tanto, o bem
público.
No que tange à arena legislativa, o ponto de partida do argumento é a separação
de poderes própria ao presidencialismo, e a conseqüência usualmente derivada
dele, qual seja, a ausência de mecanismos ' em contraste com o que ocorreria no
parlamentarismo ' que garantam ao chefe do Executivo o apoio político à sua
agenda legislativa. O Executivo precisa de votos dos parlamentares, mas não
disporia dos meios para obtê-los. Já os primeiros-ministros obteriam esse apoio
por meio da ameaça de dissolução do Parlamento e da antecipação das eleições, o
que colocaria em risco os mandatos dos legisladores. No entanto, como o
presidente controla a execução orçamentária, o Executivo poderia trocar os
recursos que os parlamentares querem levar às suas bases eleitorais pelos votos
que necessita para aprovar sua agenda. A liberação de recursos do orçamento,
portanto, seria o meio utilizado pelo Executivo para obter o apoio dos
parlamentares.
A relação entre a liberação de recursos para execução das dotações previstas
nas emendas individuais e o apoio ao Executivo em votações nominais é sugerida
com insistência pela imprensa e por parte da comunidade acadêmica. Em 27 de
novembro de 2003, dia em que este texto começou a ser redigido, a manchete de O
Estado de S. Paulo relativa à aprovação, pelo Senado, da reforma tributária
encaminhada pelo governo informava que os parlamentares receberiam a sua
contrapartida, pois, tendo atendido as pretensões do governo, solicitariam como
recompensa a liberação de recursos públicos para atender às demandas das suas
clientelas eleitorais.
As análises acadêmicas não divergem dessa visão. Para Santos et alii (1997):
"No jogo orçamentário [...] identificam-se claramente duas lógicas
distintas: a do Executivo, cujas ações são voltadas para a aprovação
dos projetos na agenda governamental e, no atual contexto de
estabilização da economia, para o corte de gastos; e a do
Legislativo, a quem interessa em primeiro lugar a maximização dos
ganhos eleitorais de seus membros, dirigindo suas ações, apenas
secundariamente, para a aprovação de projetos que, encarnando o bem
público, não trariam ganhos individuais imediatos. [...] [Na fase de
apreciação da proposta do Executivo] predomina no jogo a lógica do
Legislativo, obrigando o Executivo a negociar na CMO os projetos de
seu interesse.
Na fase da execução orçamentária, entretanto, o Executivo vira o
jogo. [...] mesmo decidindo em última instância sobre o conflito
distributivo, o Executivo não é o soberano absoluto, obrigado que é a
negociar os vetos, os cortes, os créditos adicionais em troca de
apoio parlamentar às políticas prioritárias da agenda governamental."
(idem:118-119)
Segundo Pereira e Mueller (2002), a execução das emendas individuais é "um dos
mecanismos mais importantes de que o Executivo dispõe para negociar suas
preferências com sua coalizão no Congresso". O controle do processo
orçamentário pelo Executivo acaba por dotá-lo de uma "'moeda' política de baixo
custo e extremamente útil para ser trocada por apoio político da sua coalizão
no Congresso" (idem:267). Para esses autores:
"As evidências apresentadas [...] demonstram que o presidente da
República recompensa os parlamentares que sistematicamente votam a
favor dos projetos de interesse do governo, autorizando a execução de
suas emendas individuais, e, ao mesmo tempo, pune os que não votam
nesses projetos simplesmente não executando as emendas propostas por
eles" (idem:274).
Neste artigo, procuramos discutir esses argumentos examinando não só os
aspectos empíricos envolvidos, mas também as suas suposições teóricas. Em
primeiro lugar, cabe ressaltar que, qualquer que seja o prisma através do qual
sejam vistas, as emendas individuais estão longe de ser o meio mais importante
de participação do Congresso no processo orçamentário. Isso porque, além das
emendas individuais, o Congresso pode apresentar dois outros tipos de emendas:
as coletivas ' que podem ser apresentadas por bancadas estaduais e regionais ou
por comissões ' e as dos relatores, que podem ser de autoria do relator geral
ou dos relatores parciais. As emendas individuais também não são privilegiadas
pelo próprio Legislativo, pois, em termos de recursos alocados, as emendas
coletivas e as de relatores têm precedência sobre as individuais. Como a
definição do volume de recursos para as emendas individuais é uma decisão
interna do Poder Legislativo, tal constatação é suficiente para colocar sob
suspeição a noção de que o processo orçamentário é orientado exclusivamente
para atender os interesses individuais dos parlamentares.
Porém, a despeito dessa suspeição, dado o papel que normalmente se atribui à
liberação de recursos por meio de emendas individuais nas relações entre
Executivo e Legislativo, examinamos a fundo a tese de que votos seriam trocados
por execução de emendas, mostrando que não é possível estabelecer a relação
causal pretendida. Para tanto, analisamos a aprovação e a execução das emendas
individuais no período de 1996 a 20012. Emendas são executadas sem que os votos
esperados sejam dados, e votos são dados sem que a contrapartida ' ou seja, a
liberação de recursos ' ocorra. Há casos, inclusive, em que, dada a
rotatividade dos membros do Legislativo, a troca de votos pela execução de
emendas sequer seria possível. Há um sem-número de deputados que votam a favor
dos interesses do Executivo sem participarem do processo orçamentário, e há os
que participam e têm suas emendas executadas apesar de não mais exercerem
mandatos.
Discutimos ainda os supostos comportamentais envolvidos. A tese de que as
emendas são "moedas de troca" pressupõe que os legisladores têm um interesse
comum, qual seja, o da promoção de políticas distributivistas. Políticas desse
tipo são tidas como as mais apropriadas para aumentar as chances de que os
parlamentares obtenham sua tão almejada reeleição. Implicitamente, as emendas
individuais são tomadas como contrárias aos interesses do Executivo,
entendendo-se que, se este contasse com total liberdade para alocar recursos,
não patrocinaria as políticas defendidas pelos parlamentares. De acordo com
este argumento, quando o presidente executa recursos alocados por emendas
individuais, o faz às expensas de suas próprias prioridades. No que tange à
alocação de recursos públicos, as relações entre o Executivo e o Legislativo
seriam caracterizadas por um jogo de soma zero.
Mostramos que tal visão desconsidera a realidade partidária que divide os
parlamentares entre os que apóiam e os que se opõem ao governo. Do ponto de
vista político, essa determinação é anterior e mais ampla do que a participação
no processo orçamentário e a execução das emendas individuais. No que se refere
especificamente ao orçamento, essa relação implica, em primeiro lugar, a
aceitação da centralização da condução do processo orçamentário na sua fase
congressual. Há uma delegação de poder das bases para as lideranças
partidárias, representadas, nesse caso, pelo relator geral e seus colaboradores
diretos (Figueiredo e Limongi, 2002; 2003).
Quanto às prioridades de um e outro poder expressas na alocação de recursos
orçamentários, mostramos que as diferenças são muito pequenas. Ou seja, não há
agendas conflitantes. Mais especificamente, ao executar recursos alocados pelos
parlamentares por meio de emendas individuais, o Executivo não está cedendo a
pressões e deixando de executar a sua agenda. A alocação de recursos feita
pelos legisladores é complementar, e não contrária, à do Executivo. Isso porque
o controle que o Executivo detém sobre o processo orçamentário é maior do que
usualmente se supõe. O Executivo é capaz de canalizar as demandas dos
parlamentares e acomodá-las no interior do seu programa. Por isso mesmo,
executa também emendas de parlamentares da oposição e/ou da situação que não
votam segundo os interesses do governo.
EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA E APOIO AO EXECUTIVO
As emendas individuais são apenas uma das formas pelas quais os congressistas
alteram a proposta orçamentária preparada pelo Executivo. As resoluções do
Congresso Nacional que regulamentam a participação dos parlamentares no
processo orçamentário ' isto é, os regulamentos internos da Comissão Mista de
Planos, Orçamento e Fiscalização ' CMPOF3 ' prevêem ainda emendas coletivas e
emendas dos relatores.
O peso relativo das emendas individuais em relação ao total de recursos
alocados pelo Legislativo é pequeno. No período considerado, a participação das
emendas individuais no total das emendas aprovadas pelo Congresso foi de 17,4%.
Dito em reverso, para enfatizar o ponto: 82,6% dos recursos alocados pelo
Congresso para investimentos são fruto de emendas coletivas ou de atores
institucionais (relatores). E essa é uma decisão que foi tomada pelos
congressistas. Do total de recursos que aloca do orçamento, o Congresso optou
por reservar a maior parte para as emendas coletivas. Não é fácil
compatibilizar tal fato com a ênfase que normalmente se atribui ao "voto
pessoal" e ao individualismo dos políticos brasileiros. Se as emendas
individuais são tão importantes para a reeleição, por que destinar a "parte do
leão" para os outros tipos de emendas?
Cabe observar ainda que o Executivo, quando da liquidação do orçamento, também
não dá prioridade às emendas individuais dos parlamentares. As emendas
individuais são as que têm menor taxa de execução: a média do período é de
59,6%, contrastando com os 78% executados das emendas propostas por comissões,
os 62,2% das emendas apresentadas pelas bancadas estaduais e os 65,4% das
emendas do relator geral. Se os parlamentares tivessem o poder de barganha que
a eles se atribui, deveriam obter maiores concessões do que de fato obtêm. E se
as emendas individuais são tão decisivas para suas carreiras políticas, por que
não se rebelam contra as baixas taxas de execução? Ou, argumentando em outro
sentido, se o governo tivesse a dificuldade usualmente alegada para
arregimentar e garantir apoio à sua agenda seria de esperar, então, que
dispensasse maior atenção às demandas individuais dos parlamentares.
Em suma, quer olhemos para as alocações feitas pelo Congresso, quer para as
decisões do Executivo quando liquida os gastos alocados pelo Legislativo, não
encontramos respaldo para a suposição de que as emendas individuais ocupam
posição central nesse processo. Nas duas pontas do processo, as emendas
coletivas e aquelas apresentadas pelos relatores são priorizadas. No entanto,
ainda que esses números sejam públicos e conhecidos, a opinião pública, a
imprensa e os cientistas políticos consideram as emendas individuais como os
eixos centrais sobre os quais se estrutura o processo orçamentário. Essas
interpretações baseiam-se em concepções teóricas e premissas equivocadas sobre
a lógica do funcionamento do sistema político brasileiro, o que mostraremos
adiante.
Dada a importância que lhes é geralmente conferida, deixaremos de lado as
demais emendas e nos concentraremos apenas nas emendas individuais. Nosso
objetivo é mostrar que, mesmo quando tratadas isoladamente ' isto é, quando se
abstrai o restante do processo orçamentário ', ainda assim a execução das
emendas individuais não permite que essas sejam caracterizadas como moeda pela
qual o apoio parlamentar é obtido.
A partir de 1995, o regulamento interno da Comissão Mista do Orçamento ' CMO
definiu os tetos para as emendas individuais, fixando tanto o número máximo de
emendas a serem apresentadas por cada parlamentar, como também o valor total
máximo para as emendas aprovadas por cada parlamentar. Assim, quanto a esse
aspecto, não há distinção entre os parlamentares. Ao longo de todo o período, o
número de emendas permitido por cada parlamentar foi de 20 emendas anuais.
Quanto aos valores aprovados, o teto estabelecido variou com o tempo. Entre
1996 e 1999, foi de R$ 1,5 milhão, passando a R$ 2,0 milhões em 2000. No
orçamento de 2001, esse valor foi novamente corrigido, passando para 2,5
milhões4. Isso significa que, tomado individualmente, cada parlamentar tem a
mesma capacidade de influir na alocação final dos recursos orçamentários. O
partido ao qual é filiado, o número de mandatos exercidos, a posição na
hierarquia interna do Poder Legislativo, a região ou o estado de origem, os
vínculos com o Executivo, enfim, nenhuma característica do parlamentar afeta a
sua capacidade de alocar recursos.
Como os recursos são distribuídos de maneira uniforme, não cabe investigar que
grupo de parlamentares, qualquer que seja a sua natureza, perde ou ganha com a
alocação feita. A regra adotada para a distribuição de recursos neutraliza a
influência de qualquer outro fator que distinga politicamente os parlamentares.
Assim, não faz qualquer sentido falar em log-roll entre parlamentares para a
aprovação de emendas. Não há apoios ou interesses a trocar. Cada um tem seu
quinhão assegurado de antemão e não precisa dos votos dos demais para ter seus
interesses atendidos. A norma adotada é a do universalismo, garantido por força
dos preceitos estabelecidos pelo parecer preliminar elaborado pelo relator
geral.
Deve ser observado que a adoção dessa regra tem implicações nas relações dos
parlamentares entre si e deles com os relatores. Todos são tratados como
iguais, fato que neutraliza ou pelo menos diminui o grau de conflito que o
acesso a recursos escassos ocasiona. Pelo que se conhece do processo
orçamentário, antes da adoção dessa regra a divisão de recursos entre os
parlamentares era bastante desigual, favorecendo aqueles subgrupos de
parlamentares que tinham acesso privilegiado às instâncias de poder no interior
do próprio processo orçamentário. Com isso, ganhava o grupo que gravitava em
torno dos parlamentares que controlavam as relatorias do orçamento, e que
vieram a ser conhecidos como os "anões do orçamento".
A divisão uniforme dos recursos pelos parlamentares deve ser entendida, então,
como um dos capítulos da racionalização da participação legislativa no processo
orçamentário, racionalização que conferiu às relatorias um papel mais
institucional, colocando-as sob maior controle das lideranças partidárias e
garantindo, assim, a prevalência dos interesses da coalizão majoritária que
apóia o Executivo. Ao assegurar a distribuição uniforme dos recursos pelos
parlamentares, o trabalho do relator geral ganha maior liberdade, na medida em
que se vê livre da necessidade de arbitrar a disputa interna por verbas. Dessa
forma, o princípio adotado reduz os custos da aprovação da proposta encaminhada
pelo relator.
Na realidade, o conflito interno é transferido para um outro momento do ciclo
orçamentário, o da execução das dotações. Na aprovação, a distribuição de
recursos é uniforme, mas a execução não obedece à mesma regra. Isto é, o
Executivo, que conta com ampla margem de liberdade para executar o orçamento,
sobretudo no que se refere aos gastos alocados para investimentos, diferencia '
ou pode diferenciar ' os parlamentares. Por isso, a execução está longe de
resguardar a distribuição de recursos feita pelo Legislativo.
Há uma diferença profunda na participação dos parlamentares no que diz respeito
à aprovação e à execução de recursos. A Tabela_1 mostra que as taxas
individuais de execução das emendas parlamentares apresentam variação
significativa5. Por exemplo, no orçamento de 1996, dos 444 parlamentares que
tiveram recursos alocados em investimentos por meio de emendas individuais,
20,3% deles foram contemplados com uma execução inferior a 10%. Nesse mesmo
ano, no outro extremo da distribuição, somente oito parlamentares (1,8% dos
parlamentares com emendas aprovadas) tiveram o valor integral de suas emendas
executadas pelo Executivo. Vê-se, assim, que a execução, ao contrário da
aprovação, discrimina os parlamentares.
A participação final dos parlamentares na alocação de recursos é bastante
heterogênea, e essa heterogeneidade é decorrente das decisões tomadas pelo
Poder Executivo ao contingenciar ou liberar os recursos alocados. Dados os
amplos graus de liberdade deixados à discrição do Executivo, cabe indagar quais
os critérios utilizados por esse Poder em suas decisões6. Cabe notar que a taxa
média de execução variou ano a ano. O ano com a menor taxa de execução foi o de
1996, quando menos de 40% do valor das emendas individuais foram executados, e
mais de 50% dos parlamentares tiveram menos do que 40% dos valores que
definiram no orçamento executados. O ano de 1998 foi outro ano de recursos
escassos para os parlamentares, enquanto 2001 foi o mais profícuo. Como
argumentamos em outras oportunidades, acreditamos que essa variação anual da
taxa de execução atende às necessidades da política econômica perseguida pelo
Executivo e em nada depende, ou depende muito pouco, do poder de pressão dos
parlamentares7.
Quando as taxas de execução são organizadas por grupos de partidos, como na
Tabela_2, temos uma indicação de um dos critérios usados pelo Executivo para
orientar suas decisões. Os parlamentares filiados a partidos de centro e de
direita que apóiam o Executivo8 são beneficiados, ao passo que os de esquerda '
os de oposição no período analisado ' são prejudicados. A conclusão óbvia
parece se impor: a execução das emendas individuais é ditada por critérios
político-partidários.
O apoio à agenda do Executivo em votações nominais segue as bases partidárias
de forma similar à captada na execução das emendas. Foram consideradas como
parte da agenda do Executivo as votações de emendas constitucionais em que a
posição do Executivo era conhecida. Trata-se de um critério mais exigente do
que o normalmente utilizado e que permite um teste mais acurado das hipóteses
em consideração. Como a aprovação das emendas constitucionais exige quórum
qualificado, o voto dos parlamentares tem "maior valor" para o Executivo. As
faltas nas votações foram tratadas como votos indisciplinados quando o
Executivo indicou voto "sim"9. Somente parlamentares que votaram mais de 10
vezes ao ano foram incluídos na análise. O número de votações consideradas
variou a cada ano. Para manter a consistência nas análises que se seguem, a
amostra incluiu apenas os parlamentares que emendaram o orçamento e que não
migraram entre partidos da situação e oposição, ou vice-versa.
A Tabela_3 não deixa margem a dúvidas: a probabilidade de um deputado votar
favoravelmente à agenda do governo está relacionada à sua filiação partidária.
A taxa média de apoio de um membro da bancada da base do governo girou em torno
de 75%, variando por partidos10. Os deputados filiados ao PFL e ao PSDB
tenderam a votar de forma mais coesa e consistente do que os parlamentares do
PPB e PMDB. Nesses dois últimos partidos, em algumas matérias ou áreas, há
alguns poucos deputados cujo comportamento se assemelha ao dos deputados de
oposição, o que explica a queda nas médias.
Observa-se, portanto, que há uma correlação entre a execução das emendas
individuais e o comportamento nas votações nominais. A execução dos recursos
alocados pelas emendas individuais ao orçamento favorece, justamente, os
membros daqueles partidos que votam favoravelmente à agenda legislativa do
Executivo. Há, assim, fortes indícios de que exista uma relação entre ambas. A
tese de que a execução das emendas individuais é usada como "moeda de troca"
sugere que essa relação seja fruto de uma negociação individual em que o
presidente recompensa ou pune os parlamentares de acordo com o seu voto ' a
favor ou contra o governo (Pereira e Mueller, 2002:274). Se de fato for assim,
devemos concluir que a correlação partidária é espúria. Em si mesmos, a
filiação partidária não determinaria o comportamento em plenário ou a execução
das emendas. Os parlamentares seriam punidos ou premiados individualmente pelo
Executivo. Contaria, para isso, o seu comportamento em plenário,
independentemente do partido ao que o parlamentar estivesse filiado.
Como se sabe, uma correlação, seja ela expressa por meio de análises de
regressão ou por comparação de médias, não é suficiente para demonstrar a
existência de uma associação causal entre as duas variáveis. O problema é
definir se existe uma relação entre o comportamento em plenário e a execução de
emendas que não dependa da filiação partidária. Se encontrarmos baixa execução
e baixo apoio apenas entre parlamentares filiados a partidos de oposição, e
alta execução e alto apoio apenas entre membros da base do governo, será
difícil distinguir entre as explicações calcadas em relações individuais e as
determinadas pela filiação partidária. Negociações individuais ou centralizadas
nos líderes dos partidos levariam a resultados similares. A questão, portanto,
é a de distinguir essas duas explicações. Dada a correlação de ambas as
variáveis com a filiação partidária, importa distinguir o que pode ser
creditado ao partido e o que se deve às negociações individuais. Se
encontrássemos casos de deputados filiados a partidos de esquerda com altas
taxas de execução e com altas taxas de voto favorável ao Executivo, e/ou
membros da coalizão do governo que votam contra o governo e têm baixas taxas de
execução, teríamos fortes evidências favoráveis da hipótese de que as
negociações são individuais. Casos como estes indicariam a presença de
barganhas individuais, construídas ao largo das filiações partidárias.
Quanto à primeira possibilidade, como mostra o Gráfico_1, não há casos de
parlamentares de partidos de oposição que tenham votado sistematicamente com o
governo. A variação na taxa de execução é bem maior do que a observada para o
apoio ao Executivo. Entre esses parlamentares, a norma é o registro de baixos
valores em ambas as variáveis. Ainda assim, podemos verificar alguns poucos
casos de execução de média a alta sem a esperada correspondência nas votações
nominais ' há, até mesmo, deputados com taxa de apoio ao governo nula que
tiveram suas emendas integralmente executadas. Podemos concluir desses dados
que a liberação de verbas, ao menos entre aqueles deputados filiados a partidos
de esquerda, não está associada positivamente à votação em favor do Executivo.
Emendas são executadas sem que sejam recebidos votos em contrapartida. Para
esse subgrupo de parlamentares, as variáveis apresentam um razoável grau de
independência. No entanto, o que definitivamente não ocorreu no período
analisado foi o fato de deputados filiados a partidos de esquerda votarem a
favor do governo.
Quando passamos a considerar os deputados filiados a partidos que fazem parte
da base do governo, como pode ser visto no Gráfico_2, encontramos um número
maior de casos que atenderiam aos requisitos do argumento da "moeda de troca",
pois há um número considerável de casos com baixo apoio e baixa execução. No
entanto, existe um número semelhante de casos em que a execução é alta a
despeito do apoio baixo ' isto é, há deputados que votaram sistematicamente
contra o governo e que tiveram verbas liberadas. Mais inquietante é o acúmulo
de casos em que se observa alto apoio e baixa execução. Ou seja, há deputados
que têm votação favorável ao Executivo sem que esse retribua com a liberação
orçamentária. Como esses casos não são excepcionais, podemos concluir que as
trocas tão propaladas pela crônica política nacional não constituem o padrão da
relação Executivo-Legislativo.
O exame do Gráfico_2 revela a distribuição dos casos por todo o espaço do
gráfico. Há, por certo, uma concentração de casos no quadrante superior
direito, mas é evidente que a distribuição do apoio ao Executivo é mais
homogênea e concentrada em altos valores do que a que se verifica em relação à
execução das emendas. Uma vez mais, temos indicações de que o comportamento das
duas variáveis segue determinações próprias, e que a filiação partidária
possibilita prever com mais acerto qual será o voto dos parlamentares do que o
grau de execução das emendas individuais.
A partir da análise dos Gráficos_1 e 2, testamos a hipótese de que a lógica
partidária determina tanto o comportamento em plenário quanto a execução de
emendas. Essa hipótese pode ser demonstrada recorrendo-se a comparações dos
resultados de diferentes modelos de regressão logística (Quadro_1). O primeiro
modelo conta com uma única variável explicativa, uma variável dicotômica (uma
dummy), que identifica se o parlamentar pertence ou não à base do governo. O
segundo modelo usa a taxa de execução como variável independente. O terceiro
combina os dados dos dois modelos anteriores, isto é, a taxa de apoio ao
Executivo é explicada tanto pela filiação partidária quanto pela taxa de
execução de emendas.
Nos três modelos, os coeficientes têm o sinal esperado e são estatisticamente
significantes, algo perfeitamente previsível para os familiarizados com esse
tipo de análise, considerando-se as evidências já apresentadas e o número de
casos incluídos na análise. O que se deve comparar é a capacidade explicativa
de cada modelo, expressa por sua capacidade de prever o voto dos parlamentares
em plenário. Portanto, a comparação deve ter por referência o fato de que os
votos que seguem a indicação do Executivo nas votações consideradas representam
60,3% do total (40.459/67.055). Logo, não é necessário qualquer modelo
estatístico para chegar a essa taxa de acerto: basta "chutar" que todos os
deputados votarão com o governo, para acertar 60,3% dos casos.
O primeiro modelo, que conta apenas com a variável que identifica se o
parlamentar é membro da base do governo, prevê corretamente 75,36% dos votos.
Já o segundo modelo, cuja variável independente é a taxa de execução das
emendas individuais, prevê corretamente 67,86% dos votos. Quando se
desconsidera a informação da filiação partidária, a taxa de execução das
emendas é, portanto, um preditor inferior dos votos na agenda do Executivo.
Essa variável tampouco serve para melhorar significativamente o desempenho do
primeiro modelo, uma vez que a diferença entre os resultados alcançados com o
primeiro e o terceiro modelo são equivalentes11.
Essas análises indicam que a filiação partidária explica tanto a votação em
plenário quanto a execução de emendas. Essa conclusão é reforçada quando
consideramos os casos de deputados que votam sem ter emendas a ser executadas e
os que têm emendas executadas sem votar. Em ambos os casos, a filiação
partidária pode ser usada como variável explicativa. Para sermos mais claros:
há um grupo de parlamentares para o qual a tese da "moeda de troca" é,
simplesmente, inaplicável. O orçamento é emendado e aprovado em um ano, mas
executado ao longo do ano seguinte. Logo, em virtude da flutuação da composição
da Câmara dos Deputados, o conjunto de deputados que apresenta e aprova emendas
não é o mesmo que exerce mandatos no ano de execução do orçamento. Assim, há
deputados que emendam o orçamento e não exercem mandatos (logo, não votam) no
ano de sua execução, e há deputados que votam, mas não participaram da
elaboração do orçamento e, conseqüentemente, não têm emendas para serem
liberadas. Esse último grupo deveria se constituir em um problema para o
Executivo. Se a liberação de recursos das emendas individuais é o meio pelo
qual o Executivo obtém votos favoráveis à sua agenda, como obter apoio desses
parlamentares? Nesses casos, o Executivo careceria do instrumento a que
usualmente recorreria para obter apoio.
Em anos pós-eleitorais, como é o caso, no interior da nossa análise, do ano de
1999, a diferença na composição da Câmara que aprova e naquela que implementa o
orçamento é levada a extremos, uma vez que, como se sabe, a taxa de renovação
da Casa é relativamente elevada. Do ponto de vista do Executivo, esse deveria
ser um ano extremamente difícil na arena legislativa12.
Portanto, a comparação do comportamento em plenário dos dois grupos de
parlamentares ' os que têm emendas a serem executadas, mas não foram reeleitos,
e os que não têm emendas a serem executadas por não terem participado da
aprovação do orçamento, realizada antes de sua posse ' deveria revelar
diferenças significativas. Como mostra a Tabela_4, porém, o comportamento dos
dois grupos não difere radicalmente. Vale observar ainda que o número de
parlamentares com mandato e que não participaram do orçamento é considerável13.
Isso ocorre, sobretudo, em 1999, início de uma nova legislatura, quando, de um
total de 370 parlamentares da base do governo, nada menos do que 154 não
tiveram oportunidade de apresentar emendas ao orçamento14. Não obstante, esses
parlamentares votaram de acordo com suas filiações partidárias. Deputados
filiados aos partidos da base do governo seguem a orientação do líder do
governo, independentemente de terem ou não emendas a serem liberadas. Quais
teriam sido os meios utilizados pelo Executivo para obter esses votos? Se o
governo dependesse da liberação de verbas para governar, não poderia ter
governado em 1999. Esses dados indicam que as votações em plenário são
determinadas pela lógica partidária.
A situação reversa também deve ser considerada, isto é, a dos parlamentares que
têm emendas aprovadas, mas não têm assento na legislatura quando da execução do
orçamento. Se não há votos a obter, seria de esperar que o Executivo não
executasse essas emendas. A Tabela_5 compara os dois grupos de parlamentares,
mostrando que as taxas de execução de emendas daqueles deputados que estão
exercendo mandatos são superiores aos que não se reelegeram. No entanto, a
diferença está longe de ser radical. Causa espécie, sobretudo, que as emendas
de parlamentares que não votaram uma vez sequer sejam executadas. Para nosso
argumento, é essencial notar que as taxas de execução das emendas de deputados
que pertencem à base do governo são muito próximas, quer estejam ou não
exercendo mandatos. Ou seja, uma vez mais concluímos que as relações
partidárias são cruciais para entendermos as relações entre o Executivo e o
Legislativo.
Tanto as emendas liquidadas sem os correspondentes votos quanto o apoio dado
sem a contrapartida da execução de emendas são ocorrências que não podem ser
acomodadas nas explicações que procuram no processo orçamentário o elo entre a
arena eleitoral e a legislativa. São casos em que, por definição, as trocas
postuladas não têm como ocorrer. Em ambos os casos, as variáveis partidárias
explicam tanto o apoio ao Executivo quanto a execução das emendas individuais.
Na realidade, a noção de que o apoio legislativo é trocado pela liberação das
verbas orçamentárias parte do princípio de que os parlamentares e o Executivo
têm, necessariamente, agendas conflitantes. Nesse caso específico, as emendas
individuais atenderiam apenas e tão-somente aos interesses dos deputados, e o
Executivo liberaria recursos para executá-las somente sob pressão.
Parlamentares, de sua parte, só apoiariam o Executivo se recebessem algo em
troca.
A divergência entre o Executivo e o Legislativo expressar-se-ia em alocações
desiguais de recursos, ditadas pela "conexão eleitoral", isto é, pelos vínculos
específicos de cada um dos poderes com o eleitorado. Nesse argumento, os
legisladores são tratados como se tivessem interesses homogêneos ' isto é, como
se todos quisessem patrocinar o mesmo tipo de políticas ', que os colocariam em
conflito com o Executivo. Esse poder seria o único ator político a ter em mente
o interesse geral. Cada parlamentar teria diante de si o seu e apenas o seu
eleitorado, o seu reduto. E todos visariam a beneficiar os seus redutos por
meio do mesmo tipo de políticas, "entregando" a eles benefícios tangíveis. As
emendas individuais seriam os veículos mediante os quais essa estratégia
eleitoral se viabilizaria. Nesses termos, a execução de emendas parlamentares é
vista como uma concessão do Executivo, que atende os interesses particulares
dos parlamentares a fim de obter em plenário, como contrapartida, os votos
necessários para aprovar a sua agenda.
No entanto, por que devemos assumir que o Executivo e o Legislativo estão
condenados a uma disputa? O fato de os partidos desempenharem um papel nessa
relação, ou seja, de existir uma coalizão partidária que apóia o governo e
outra que a ele se opõe, nos leva justamente a constatar que os parlamentares
não têm interesses homogêneos, quer no que se refere às políticas que preferem,
quer no que se refere ao sucesso do governo.
Antes de passarmos à discussão mais aprofundada desse ponto e de suas
implicações para a compreensão do papel desempenhado pelas emendas individuais,
cabe frisar as conclusões já alcançadas. A relação entre as variáveis estudadas
' execução de emendas e apoio ao Executivo na arena legislativa ' está longe de
ser direta. Claramente, uma variável não explica a outra. Ambas são ditadas por
uma causa comum: a posição do partido em relação ao governo. Ainda assim, a
filiação partidária não prediz perfeitamente o apoio ou não ao Executivo. O
perfil partidário fica mais evidente no caso das votações nominais do que na
execução de emendas. O fato é que o Executivo não liquida as emendas
individuais como retribuição ao comportamento parlamentar. Da mesma forma, os
parlamentares não apóiam o governo apenas quando são recompensados com verbas
para suas emendas.
EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA E PREFERÊNCIAS POLÍTICAS
Quando cientistas políticos afirmam que os recursos orçamentários são alocados
com vistas aos retornos eleitorais dos parlamentares, eles têm em mente um
modelo específico de estratégias eleitorais perseguidas pelos políticos. Nesse
tipo de argumento, os políticos só se interessariam por seus mandatos ou
cargos. As políticas públicas seriam apenas o meio empregado para alcançarem
esse fim. Ou seja, os políticos são office seeking e não policy seeking, para
usarmos os termos consagrados pela literatura. Segue dessa premissa que as
políticas promovidas por parlamentares serão aquelas que melhor atendam a esse
objetivo.
A literatura norte-americana convencionou chamar essa estratégia de "voto
pessoal". Os políticos privilegiariam, ao perseguirem essa estratégia, a
construção de vínculos personalizados e individualizados com seus eleitores,
vínculos cimentados pela provisão de políticas públicas que distribuem bens
tangíveis a grupos específicos. Assim, a premissa de que deputados visam à sua
reeleição leva à suposição de que todos os parlamentares usarão sua
prerrogativa de emendar o orçamento de forma homogênea. Todos usariam as
emendas de acordo com o que prevê a "cartilha" da ciência política norte-
americana, isto é, promovendo políticas distributivistas para receber em troca
votos cruciais que assegurariam a reeleição.
Se todos adotassem esta estratégia, seguiria que os parlamentares já não
poderiam ser distinguidos por suas filiações partidárias. Interesses e
políticas comuns, distributivas, os uniriam e os colocariam em campo oposto ao
do Executivo. Este, em razão da sua conexão com o eleitorado nacional e da
necessidade de prestar atenção aos efeitos macroeconômicos dos gastos públicos,
seria forçado a levar em conta o interesse geral.
Portanto, nos termos desse argumento, a execução das emendas individuais em
nada contribuiria para a implementação do programa do governo. Toda e qualquer
emenda individual executada implicaria a subtração de dotações de aplicações
preferidas pelo Executivo. Ao executar a emenda de um parlamentar, o Executivo
transferiria recursos de suas prioridades para atender os interesses
necessariamente parciais e locais dos parlamentares. Não haveria, assim, ganhos
a auferir, apenas perdas a computar. Tornando esse ponto mais claro, ainda com
o risco de nos tornarmos repetitivos: o Executivo só executaria emendas
individuais se forçado a fazê-lo, ou seja, como um meio para obter os votos
necessários à aprovação da sua agenda legislativa. O Executivo e o Legislativo
teriam prioridades mutuamente excludentes.
Essa tese depende ainda de que o Executivo tenha duas agendas, a legislativa e
a orçamentária, e que elas sejam suficientemente independentes para permitir
que o apoio a uma possa ser compensado pelas perdas na outra. Compra-se apoio
na esfera legislativa sacrificando-se a agenda orçamentária. A agenda
legislativa é tratada como se pertencesse à esfera das escolhas de política,
enquanto as decisões referentes ao orçamento são tratadas como transferências
de utilidades sem que seja feita uma conexão entre ambas.
Para que esse argumento fosse válido, ou as duas agendas, legislativa e
orçamentária, teriam de ser independentes ' isto é, as preferências em uma não
afetariam as preferências na outra ', ou os atores não perceberiam as inter-
relações entre ambas. É difícil crer em qualquer dessas duas alternativas. Como
os deputados não perceberiam que a agenda legislativa do Executivo que eles
aprovam ' por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal ' tem conseqüências
para a liberação de verbas orçamentárias? Ou como acreditar que o Executivo
liberaria recursos para pequenos projetos particularistas sem perceber que a
soma dessas pequenas benesses geraria déficit e, conseqüentemente,
comprometeria a sua agenda de políticas? Achar que o Executivo e o Legislativo
vêem a agenda orçamentária de forma independente de sua agenda legislativa é
supor que um ou outro, ou ambos, ajam de forma irracional.
Não há trocas entre uma agenda ditada pelos legisladores e outra ditada pelo
Executivo. Não há trocas porque não existem duas agendas. Se existem duas
agendas, essas são a do governo e a da oposição. Do ponto de vista da execução
das emendas individuais, há, na verdade, uma agenda única a considerar: a do
governo. As emendas individuais ocupam um lugar restrito no interior dessa
agenda, mas, e isto é o que importa para este texto, são parte dessa agenda. Ao
executar emendas individuais, o Executivo está implementando a sua agenda, à
qual uma parte dos legisladores está associada politicamente, o que inclui,
obviamente, a arena eleitoral. É o que discutiremos a seguir.
A prerrogativa de apresentar emendas é uma oportunidade para que o parlamentar
participe da alocação de recursos orçamentários, expressando suas prioridades
quanto às políticas públicas. No entanto, ainda que contem com uma dotação fixa
e assegurada, os parlamentares não expressam suas prioridades sem restrições. A
estrutura do orçamento define os programas e atividades passíveis de receberem
recursos. Não é possível alocar recursos para programas ou atividades não
previstos pelo governo em sua proposta original. Mais importante, se há
intenção de ver a emenda executada, o parlamentar deve levar em conta as
prioridades do governo, e os legisladores podem saber quais são essas
prioridades no interior do próprio processo orçamentário. Basta analisar a
execução do ano anterior ou a proposta enviada, para conhecer as prioridades do
Executivo.
Para além das restrições constitucionais que protegem a proposta enviada pelo
Executivo, deve-se considerar ainda a forma como o próprio Congresso organiza a
sua participação no processo orçamentário. Conforme discutimos em outros
artigos (Figueiredo e Limongi, 2002; 2003), as decisões que realmente afetam '
ou podem afetar ' o perfil do orçamento são tomadas pelo relator geral e pelos
relatores adjuntos. Isto é, a apreciação congressual do orçamento é altamente
centralizada e segue linhas partidárias. No que se refere especificamente às
emendas individuais ' a parte descentralizada do processo ', as dotações para
acolhê-las são definidas pelo relator geral no parecer preliminar. Como essas
dotações são formadas, em grande parte, pela aplicação de cortes lineares na
proposta enviada pelo Executivo, a distribuição das emendas individuais por
programas (ou por qualquer outra unidade em que o orçamento seja estruturado) é
definida nesse momento15. Em uma palavra, os deputados têm poucas opções para
decidir como alocar os recursos que lhes são reservados.
Assim, não se nota grande diferença entre os partidos quando as emendas
individuais são analisadas tendo em vista a sua distribuição por órgãos
responsáveis pela execução assim como pelos programas de governo. A Tabela_6 a
seguir apresenta a distribuição das emendas pelas diferentes unidades
orçamentárias (em geral, um ministério). As primeiras quatro colunas referem-se
à porcentagem do valor das emendas aprovadas por cada um dos grupos de partidos
(do governo, de direita e de esquerda) sobre o total. Indicam, portanto, a
prioridade que cada grupo político deu a esses órgãos. Comparando-se as
entradas para cada um dos grupos de partido, é visível a convergência entre os
parlamentares. As prioridades orçamentárias dos membros dos partidos de
esquerda não são diferentes daquelas feitas pelos membros da bancada do
governo.
As quatro últimas colunas da Tabela_6 trazem as taxas de execução das emendas
individuais para cada um dos grupos e órgãos considerados. A comparação linha a
linha da tabela revela que o governo favorece os parlamentares de sua base em
quase todas as unidades orçamentárias. Há unidades em que essa discriminação é
muito inferior à média. É esse manifestamente o caso dos gastos com o
Ministério da Saúde (Fundo Nacional de Saúde e Fundação Nacional de Saúde), em
que as taxas médias de execução das emendas de cada grupo são as mais
equilibradas. Vale notar que essas unidades orçamentárias concentram em torno
de 20% dos recursos alocados por meio de emendas individuais. De outra parte, o
Ministério do Planejamento, onde se concentram 37,6% do valor total das emendas
individuais, registra forte discriminação política na execução das emendas.
Nesse órgão, os parlamentares do governo têm 72,1% de suas emendas executadas,
em contraste com 38,7% dos parlamentares de oposição. Cabe assinalar, no
entanto, que as taxas de execução das emendas dos parlamentares que apóiam o
governo dependem fortemente dos totais de execução no órgão.
O mesmo quadro emerge quando os dados são organizados por programas. As
diferenças entre os grupos de partidos são menores do que a convergência entre
eles. Observa-se, uma vez mais, que, em todos os programas, as taxas de
execução são maiores para os deputados filiados aos partidos que apóiam o
governo. No entanto, as diferenças maiores se dão quando se consideram os
totais por programas.
Como os dados acima deixam claro, não há divergência maior de agendas entre os
parlamentares quando esses são agrupados segundo sua relação política com o
Executivo. Isso mostra a capacidade do Executivo e dos relatores de direcionar
as emendas individuais para nichos específicos. Os graus de liberdade de que os
parlamentares podem dispor são pequenos. A oposição não tem espaço para usar o
processo orçamentário a fim de dar vazão à sua agenda.
Os dados mostram também que a execução das emendas individuais é pautada por
critérios políticos. As emendas dos deputados filiados a partidos da coalizão
do governo têm maiores chances de serem executadas do que as dos demais
parlamentares. Contudo, parte das emendas de deputados de oposição também são
executadas e parte das emendas dos parlamentares que votam com o governo não
são executadas. Mais do que isso, nota-se grande variação nas taxas de execução
por órgãos e/ou programas. Em boa medida, essa variação depende dos cortes
lineares previstos pelos decretos de contingenciamento. Esses cortes '
definidos pelo Executivo, obviamente ' obedecem às prioridades de políticas
públicas estabelecidas por esse Poder.
Pode ser verdade que o apoio parlamentar ao Executivo seja crucial para a
execução de sua emenda, mas não como resultado de uma relação de troca
referente a cada matéria em votação. A expectativa de ganho do parlamentar na
execução de suas emendas depende do partido a que esteja filiado, e é essa
filiação que permite prever o seu apoio ao Executivo. Em suma, trocas
individuais de apoio por execução de emendas não definem o padrão do gasto
público.
CONCLUSÃO
As emendas individuais não são privilegiadas pelo Legislativo. Os regulamentos
internos do Congresso garantem às emendas coletivas e às das relatorias a
apropriação da maior parcela dos recursos alocados. Emendas individuais
representam uma pequena parcela da intervenção legislativa na alocação final
dos recursos (pouco mais de 15% do total das emendas). E isso ocorre sem a
intervenção do Executivo. Ou seja, como essa é uma decisão interna do próprio
Poder Legislativo, tal fato coloca sob suspeição a noção de que o processo
orçamentário é orientado basicamente para atender interesses locais ou
particularistas de clientelas dos parlamentares.
A despeito disso, dado o papel que normalmente se atribui à liberação de verbas
nas relações entre o Executivo e o Legislativo, examinamos a fundo a tese de
que votos sejam trocados por execução de emendas, mostrando que não é possível
estabelecer a relação causal pretendida. Emendas são executadas sem que os
votos esperados sejam dados, e votos são dados sem que a contrapartida, a
liberação de verbas, ocorra. A liberação de recursos não explica o
comportamento dos parlamentares nas votações nominais. A filiação partidária é
um bom preditor da execução das emendas. No entanto, uma inspeção cuidadosa dos
dados não permite passar das relações agregadas às individuais. Há deputados de
oposição com emendas executadas sem a esperada retribuição em plenário. Há
deputados da base de apoio do governo que se comportam "adequadamente" e não
vêem os recursos que alocam executados.
Um teste mais direto da existência de uma troca entre liberação de recursos e
apoio parlamentar pode ser feito considerando conjuntamente a rotatividade dos
membros do Legislativo e o ciclo orçamentário. Emendas apresentadas e aprovadas
no ano t são ou não executadas em t+1. Logo há parlamentares presentes em t que
estão ausentes em t+1. Fossem as emendas "moedas de troca" e essas emendas não
deveriam ter seus recursos liberados. Mostramos que não é isso o que acontece.
As taxas de execução das emendas de deputados ausentes, mesmo da oposição, não
são nulas. Há ainda o caso dos deputados que tomam posse em t+1 sem ter
apresentado emendas em t. Seria de se esperar que esses deputados "novatos" não
apoiassem o Executivo na mesma proporção que o fazem os que apresentaram
emendas. O Executivo, nesse caso, não teria "moedas de troca" às quais recorrer
para induzir esses parlamentares a votar em favor de sua agenda.
O problema da tese das emendas como "moedas de troca" está em seus supostos.
Supõe-se que os legisladores têm um interesse comum, qual seja, o da promoção
de políticas distributivistas, uma vez que estas garantiriam (ou afetariam
positivamente) suas chances de obter a reeleição. Por extensão, os interesses
comuns dos parlamentares são tomados como contrários aos interesses do
Executivo. Os dois Poderes estariam imersos em uma relação conflituosa, um jogo
de soma zero. Assim, ao executar recursos alocados por emendas individuais, o
presidente o faria às expensas de suas próprias prioridades.
Esses argumentos perdem de vista o básico: a principal linha de conflito do
sistema político brasileiro não é dada pelas relações entre os poderes, mas sim
pelas clivagens político-partidárias. Parlamentares dividem-se em dois grandes
campos, os que apóiam e os que se opõem ao Executivo. Essa distinção implica
que a maioria apóia a centralização da condução do processo orçamentário em sua
fase congressual. Há uma delegação de poder das bases para as lideranças
partidárias, nesse caso representadas pelo relator geral e seus colaboradores
diretos. Essa delegação explica o papel reduzido que as emendas individuais
desempenham na participação do Congresso no processo orçamentário e a
importância que as variáveis macroeconômicas assumem para os relatores. Antes
de tudo, o orçamento visa a garantir o sucesso da política do governo,
especialmente a econômica.
Quanto às prioridades de um e outro poder, expressas na alocação de recursos
orçamentários, as diferenças são muito pequenas. Não há agendas conflitantes.
Mais especificamente, ao executar recursos alocados por parlamentares mediante
emendas individuais, o Executivo não está cedendo a pressões e deixando de
executar a sua agenda. A alocação de recursos feita pelos legisladores é
complementar, e não contrária, à do Executivo. Este é capaz de canalizar as
demandas dos parlamentares e acomodá-las no interior dos programas por ele
definidos como prioritários. Ao executar emendas de parlamentares da oposição
e/ou da situação que não o apóiam, o Executivo está simplesmente executando a
sua agenda. O controle do processo pelo Executivo é de tal ordem que nem mesmo
os parlamentares da oposição têm como propor emendas que constituam uma agenda
alternativa à proposta pelo governo.
A prerrogativa de apresentar emendas individuais ao orçamento é uma
oportunidade para que os parlamentares expressem suas prioridades em relação às
políticas públicas. No entanto, ainda que contem com uma dotação fixa e
assegurada, os parlamentares não expressam suas prioridades sem restrições. O
que lhes é permitido, basicamente, é a oportunidade de complementar a agenda
definida pelo governo.
NOTAS
1. Em diversas variantes essa visão pode ser encontrada em Ames (1995a; 1995b;
2001); Bezerra (1999); Pereira (2000a; 2000b); Pereira e Rennó (2001); Pereira
e Mueller (2003). As conseqüências desse tipo de conexão na economia são
tratadas por Franco (1995) e Serra (1994).
2. O banco de dados utilizado cobre o período posterior à reformulação do
processo orçamentário, fruto da Comissão Parlamentar de Inquérito ' CPI do
orçamento, consubstanciada na adoção da resolução nº 2/1995-CN. Na realidade,
em 1994 e 1995, a participação do Congresso no processo orçamentário foi
bastante reduzida. Existem dados sobre as emendas individuais para os anos
anteriores ao Plano Real, mas é praticamente impossível calcular suas taxas de
execução, pois seria necessário que os dados tivessem seus valores corrigidos
em relação à inflação, levando-se em consideração o mês de execução da emenda.
Os dados relativos a 2002 ainda não se encontravam disponíveis quando da
elaboração deste artigo. Sendo assim, o período coberto corresponde ao período
para o qual havia dados disponíveis, a fim de que as hipóteses levantadas
fossem testadas. As informações relativas à organização dos dados e à
operacionalização das variáveis se encontram no Anexo.
3 .Ainda que Comissão Mista de Planos, Orçamento e Fiscalização ' CMPOF seja o
nome oficial dessa comissão, seu nome é normalmente abreviado para Comissão
Mista de Orçamento ' CMO. Por ser esse o tratamento convencional, usaremos a
forma abreviada no restante do texto.
4. Os dados com os quais trabalhamos foram corrigidos pela inflação e
atualizados para valores de 2001. Assim, o teto variou ano a ano. Deve ser
observado, ainda, que a consistência que impusemos aos dados fez certas emendas
tidas por aprovadas serem desconsideradas em nossa análise. Com isto, alguns
parlamentares figuram em nossos dados com valores inferiores ao teto. Note-se
ainda que certos parlamentares não fizeram uso da prerrogativa de apresentar
emendas individuais. Uma fonte adicional de heterogeneidade na distribuição de
recursos por parlamentar deve-se à decisão de trabalhar apenas com as dotações
destinadas a investimentos. Ver Anexo, para explicações detalhadas sobre os
procedimentos adotados.
5. Cabe observar que em todos os anos analisados o número de parlamentares que
tiveram emendas aprovadas foi inferior ao total de 513 deputados. Além dos
deputados que têm por norma não apresentar emendas, há casos em que todos os
parlamentares de um estado transferiram os recursos de suas emendas individuais
para os da bancada estadual. Não é demais notar que esses dois comportamentos
não deveriam ser observados se todos os parlamentares adotassem o comportamento
individualista e distributivista que a eles se atribui.
6. Não se deve exagerar esse aspecto. A liberdade do Executivo não é completa.
Os decretos de contingenciamento definem os cortes por unidades orçamentárias,
de acordo com o comportamento das receitas.
7. Ver Figueiredo e Limongi (2002; 2003).
8. Vale observar que os pequenos partidos de direita não parecem receber
tratamento diverso do reservado aos grandes partidos que fazem parte da
coalizão de apoio ao governo.
9. Votações unânimes foram excluídas. São unânimes as votações em que não há
conflito entre os líderes e nas quais a minoria teve menos do que 10% dos
votos.
10. Esse valor discrepa dos encontrados em outras análises (por exemplo,
Figueiredo e Limongi, 2000) em razão do critério de construção da amostra e do
fato de que as faltas foram tratadas como indisciplina.
11. O mesmo exercício pode ser feito para subamostras com base em critérios
diferentes ' por exemplo, o grau de conflito da votação ' sem que os resultados
sofram alteração. Em todos os modelos que testamos, a taxa de execução das
emendas contribui menos para a predição do comportamento dos parlamentares. O
desempenho dos modelos melhora consideravelmente quando os faltantes são
excluídos da amostra. Ainda assim, o desempenho de todos os modelos deixa a
desejar. Esse problema decorre da estrutura dos dados, na medida em que as
variáveis independentes não variam ao longo de um determinado ano para cada
parlamentar. Assim, como a maioria dos parlamentares da base do governo vota
favoravelmente ao governo na esmagadora maioria dos casos, o modelo tenderá a
prever que todo membro da base deveria ter votado com o governo em todas as
votações.
12. Seguindo o mesmo raciocínio, o ano de 1995 também deveria ter sido um ano
extremamente difícil para o Executivo.
13. Os critérios para inclusão desses parlamentares na análise são os mesmos
adotados nas análises anteriores.
14. Ainda que as taxas de reeleição não possam ser inferidas desses números,
uma vez que licenças e afastamentos também influenciam esse dado, não é demais
frisar que baixas taxas de reeleição não deveriam ser observadas se as
estratégias eleitorais dos parlamentares fossem bem-sucedidas. A adaptação do
modelo norte-americano à realidade brasileira perde de vista esse fato básico.
Os livros clássicos de Mayhew (1974) e Fiorina (1989) se baseiam na constatação
de que as taxas de reeleição nos Estados Unidos do pós-guerra eram altíssimas.
15. Além dos remanejamentos estabelecidos por esses cortes, as emendas
individuais são atendidas por meio de recursos remanejados da Reserva de
Contingência e, também, pela reestimativa de receitas.