Presidencialismos em perspectiva comparada: Argentina, Brasil e Uruguai
Estudos recentes têm procurado mostrar a influência dos desenhos institucionais
sobre a atividade política nos sistemas presidencialistas multipartidários. Uma
questão de interesse são os modelos sob os quais essas democracias operam, seja
para concentrar poder nas mãos do Executivo seja, contrariamente, para
facilitar a participação dos partidos e da sociedade nos mecanismos decisórios.
Ao analisar as relações entre Executivo e Legislativo nos sistemas
presidencialistas latino-americanos, Mainwaring e Shugart (1999) afirmam que o
presidente da República pode controlar o Legislativo, desde que ao menos um dos
seguintes fatores esteja presente: que o presidente mantenha o controle
partidário, ou seja, que a base aliada do Legislativo se constitua em maioria,
garantindo apoio às propostas governamentais; que o presidente detenha poderes
legislativos constitucionalmente determinados, os quais lhe possibilitam
interferir decisivamente na atividade legislativa. Estes poderes
constitucionais atuam no sentido de fortalecer o presidente da República, mesmo
nos casos em que inexista um sólido apoio político-partidário.
Segundo os autores, os desenhos político-institucionais na América Latina são
bastante variados, mas os poderes legislativos do Executivo estão previstos na
maior parte das constituições, atuando de duas formas: para garantir, de modo
unilateral, a mudança do status quo legislativo; ou para impedir que a mudança
legislativa seja feita, evitando que determinada legislação entre em vigor, na
íntegra ou parcialmente. No primeiro caso, denominado "poderes proativos" do
presidente da República, encontram-se várias prerrogativas constitucionais,
como o direito exclusivo de legislar sobre determinadas matérias, o direito à
iniciativa exclusiva e ' mais importante ' o direito de editar decretos de
necessidade e urgência com força de lei. Ao direito de barrar a legislação,
Mainwaring e Shugart (1999) denominam "poderes reativos" do presidente,
destacando-se aí o direito parcial ou integral de veto.
Embora se reconheça a importância desse tipo de intervenção do Executivo para
determinar o caráter da relação entre poderes, análises recentes vêm
demonstrando que, constitucionalmente, também o Legislativo possui
prerrogativas essenciais, sendo, também ele, dotado de poderes ' proativos e
reativos. Os desenhos político-institucionais das democracias modernas possuem
capacidades diferenciadas para operacionalizar mudanças nas políticas públicas.
Conforme mostra Tsebelis (1997), a estabilidade das políticas encontra-se
diretamente relacionada às características dos diversos veto players contidos
no sistema. Essa concepção de veto player nasceu com o constitucionalismo
moderno, a partir da noção de que o equilíbrio político depende de uma bem-
arquitetada construção de pesos e contrapesos institucionais, previstos na
Constituição (os chamados veto players institucionais)1.
Considera-se veto player os atores, individuais e coletivos, que participam das
decisões políticas, sendo requerida a sua concordância para que determinada
política seja alterada. O número de vetos institucionais encontra-se definido
pela Constituição, podendo ser medido pelo cálculo de atores com capacidade
formal de bloquear a mudança do status quopolítico. Tsebelis destaca que o
bicameralismo, o veto presidencial, a exigência das maiorias qualificadas, a
regulamentação dos referendos e tantas outras regulamentações contidas nos
sistemas políticos, interferem no sentido de determinar quais são os atores com
capacidade de veto.
Nas democracias, o Legislativo aparece como um canal crucial de mediação entre
o processo decisório governamental e as demandas pluralistas que partem da
sociedade. Alguns desenhos institucionais, sejam parlamentaristas ou
presidencialistas, procuram fortalecer as funções legislativas e fiscalizadoras
do Legislativo. Como salienta Jorge Lanzaro (2003) em estudo comparado, os
sistemas presidencialistas da América Latina organizam-se segundo uma variedade
de modalidades que devem ser distinguidas. Tal como nos sistemas
parlamentaristas, os presidencialismos diferenciam-se por apresentar desenhos
ora de caráter pluralista, ora de tendência nitidamente majoritária.
Segundo o modelo de Lijphart (1984; 2003) sobre democracias majoritárias e
consensuais, o poder concentra-se à medida que se fecha entre poucos atores, e
se distribui quando o nível da negociação política se amplia, envolvendo um
número maior de grupos e partidos. As decisões tendem a ser mais concentradoras
à medida que se encontram mais fechadas em torno do Poder Executivo. Normas que
objetivam a eficácia tendem a concentrar poder. De modo inverso, à medida que o
tempo exigido para aprovação se estende com a participação de um número maior
de parlamentares e segmentos da sociedade no processo, o poder tende a se
equilibrar e se distribuir.
Neste artigo essas questões são analisadas comparando-se o arcabouço
constitucional de três democracias da América do Sul ' Argentina, Brasil e
Uruguai. Os três países apresentam pontos comuns em seus desenhos
institucionais, mas, conforme se pretende demonstrar a seguir, há diferenças
constitutivas que devem ser consideradas. Os desenhos apresentam variações
significativas no modo como são estruturados.
O artigo procura, em primeiro lugar, definir os indicadores institucionais que
determinam o grau de concentração e dispersão do poder nas democracias
presidencialistas e, em segundo lugar, construir um índice de concentração,
caracterizando as três democracias. Os aspectos abordados vêm sendo
considerados pela literatura política como de grande relevância no
relacionamento entre poderes. O exercício comparativo foi possível, pois já
existe um número substancial de pesquisas sobre América Latina que serviu de
referência2.
O texto divide-se em três partes. Na primeira, são examinadas as normas que
possibilitam a participação direta da sociedade no processo legislativo. Na
segunda, procura-se apresentar a legislação sobre os poderes do Legislativo,
bem como o problema do veto dos atores no processo de tomada de decisões. No
terceiro, entra-se no ponto central dos poderes proativos e reativos do
presidente da República.
A comparação entre os três países é formulada em 12 tabelas do tipo escala de
Likert, com espaço entre 0 e 1, sendo 0 considerada a situação de máxima
concentração de poder e 1 de máxima desconcentração. No final é construído um
índice comparativo.
MECANISMOS INSTITUCIONAIS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA
A Constituição brasileira afirma expressamente que "o poder emana do povo"
(art. 1) que o exerce por meio de representantes ou diretamente. A Constituição
uruguaia determina que a soberania será exercida diretamente, pelo corpo
eleitoral, pela iniciativa e pelo referendo, e, indiretamente, pelo corpo de
representantes (art. 82). A Argentina opta pelo sistema representativo (art.
22), mas adota mecanismos de atuação direta, como o referendo e a iniciativa
legislativa (art. 39 e art. 40). Portanto, nos três países existe uma definição
constitucional sobre os mecanismos de participação popular efetiva.
Entre essas formas destacam-se três: a participação da sociedade no processo
legislativo, por meio das audiências públicas; a iniciativa legislativa popular
e, finalmente, a decisão legislativa direta, por meio de referendos e
plebiscitos. A Tabela_1 descreve como essas questões são tratadas pelas
constituições dos três países, ressaltando que a regulamentação nem sempre
corresponde ao uso que a sociedade faz dela3.
Além disso, é necessário considerar que as diferentes modalidades de
regulamentação resultam em formas de participação potencialmente diversas. Isso
foi levado em consideração na Tabela_1, que estabeleceu pesos diferenciados de
acordo com a forma de participação. A seguir são explicadas as razões que
justificam a utilização desses valores, procurando, assim, atenuar o grau de
subjetividade da pontuação.
As audiências públicas têm possibilitado que segmentos da sociedade participem
das discussões legislativas, apresentando pontos de vista que ora correspondem
a visões técnicas a respeito do assunto em questão, ora têm a função de trazer
sem subterfúgios os interesses específicos para dentro do debate parlamentar.
Em qualquer dos casos, trata-se de um avanço no sentido de estreitar a relação
entre representantes e representados:
a) Algumas legislações latino-americanas que adotam a prática das audiências
públicas estabelecem que em determinada data o legislativo é aberto à
sociedade, para que esta apresente queixas e sugestões. Outras abrem a
participação dentro das comissões. Estas receberam pontuação mais alta na
tabela porque parecem mais eficazes. É de se supor que grupos especializados
que defendem questões diretamente relacionadas à discussão em pauta tenham mais
capacidade de interferir nos resultados dos trabalhos do que pessoas e grupos
que se apresentem em sessões parlamentares rotineiras. Brasil e Argentina
adotam a norma das audiências públicas nas comissões5.
b) As audiências, contudo, não possuem caráter vinculante, ou seja, as posturas
defendidas nas audiências não têm relação com as conclusões a que devam chegar
os parlamentares6. Nesse sentido, embora se reconheça que elas são um estágio
importante do debate público, considera-se que o peso das audiências é
relativamente menor do que o das outras formas de participação.
Na iniciativa legislativa popular, a possibilidade de interferência da
sociedade é maior porque, de fato, a iniciativa pode resultar em lei. Trata-se
de uma forma de participação direta presente em nove democracias latino-
americanas. A escala da pontuação é relativa ao grau de dificuldade em
participar; quanto maior a dificuldade, menor a pontuação na escala:
a) É sempre exigido um número mínimo de assinaturas, mas esse mínimo varia
desde um percentual inferior a 1% dos eleitores a 25%, como no caso do Uruguai.
b) O segundo fator é a lista de temas proibitivos. Argentina (art. 39), Brasil
(art. 61) e Uruguai (art. 79 e art. 82) impõem mais de quatro questões em que a
iniciativa popular não pode legislar.
c) Finalmente, há o fato de que essas normas constitucionais são muito enxutas,
necessitando de legislação complementar para regularizá-las. Alguns países,
como o Uruguai, permanecem sem a regulamentação7.
A terceira modalidade de participação popular direta são os plebiscitos e
referendos, que receberam peso mais alto na tabela. Trata-se de um tema
controverso dentro da literatura política, cabendo dúvidas sobre o quanto tais
mecanismos contribuiriam para a ampliação da participação popular ou,
inversamente, tenderiam a fortalecer o Executivo em detrimento de uma maior
distribuição do poder.
Esse debate é fundamentado em princípios divergentes: um, de inspiração
rousseauniana, tende a enfatizar a importância da participação política na vida
republicana; outro, eminentemente liberal, procura ressaltar a interferência
indevida que essa prática pode provocar sobre o equilíbrio entre poderes.
Segundo estes, a convocação direta da sociedade tem, no mais das vezes, o
objetivo de manipular a opinião pública e fortalecer o Executivo, concentrando
poder: "desde seu início, há cerca de dois séculos, plebiscitos e referendos
foram quase sempre um jogo de cartas marcadas, com o objetivo de legitimar
decisões autoritárias, ratificar ocupações de território alheio, e assim por
diante" (Lamounier, 2005:280).
Sem dúvida, ambos os argumentos devem ser levados em consideração, sobretudo na
análise das novas democracias da América Latina, que mantêm um nível baixo de
participação política e trazem a herança de governos plebiscitários e
populistas. Trata-se de uma discussão relevante sobre o caráter da democracia,
mas que escapa aos objetivos deste artigo.
Entretanto, um aspecto que merece ser lembrado é o modo como essas regras são
regulamentadas, uma vez que mesmo entre países da América Latina há diferenças
que provavelmente interferem no teor pretensamente mais majoritário ou mais
consensual dos sistemas políticos. Por exemplo, nas constituições da Venezuela
e Chile, a iniciativa do referendo cabe ao Poder Executivo, o que indica uma
tendência de controle por parte do presidente da República. Mas essa é uma
norma incomum, porque na maioria dos casos latino-americanos é o Legislativo
quem deve determinar a realização de consultas populares e, fundamentalmente,
elas ocorrem quando o Legislativo não detém uma maioria sólida para decidir
sobre questões polêmicas; trata-se, portanto, de um recurso em favor das
minorias.
Os detalhes da regulamentação devem ser considerados. Segundo Lijphart (2003:
260), o mecanismo do referendo é bastante utilizado para ratificar emendas
constitucionais, mas, dependendo da forma como são regulamentados, podem
favorecer a centralização do poder ou, contrariamente, as minorias políticas.
Referendos que exigem maiorias simples de votos populares favorecem o
Executivo. Mas esse é um caso raro, pois na grande maioria dos casos o
"referendo é determinado em acréscimo à aprovação legislativa por maiorias
ordinárias ou extraordinárias, tornando as emendas mais difíceis de serem
aprovadas e as constituições mais rígidas".
Finalmente, cabe observar que é possível restringir a amplitude dos temas
passíveis de consulta popular, corrigindo-se, assim, os riscos inerentes ao
mecanismo. A Constituição brasileira, por exemplo, proíbe emendas
constitucionais tendentes a abolir a forma federativa do Estado; o voto direto,
secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e
garantias individuais (art. 60, § 4º). Há muitas possibilidades de
regulamentação, e a idéia contida na Tabela_1 é que o sistema se torna mais
consensual à medida que transfere para a sociedade as decisões políticas.
No Uruguai, os referendos são utilizados com freqüência. Embora a política
uruguaia não preveja a prática das audiências públicas, nem tenha regulamentado
a iniciativa legislativa popular, na terceira modalidade, a dos referendos e
plebiscitos, sua posição se inverte. Nesse país, a possibilidade de referendo
apresenta uma inovação em relação ao caso mais comum, que é a solicitação pelo
Legislativo (como acontece com a Argentina e Brasil8). No Uruguai, o pedido de
referendo pode partir da própria população, com a apresentação de 10% de
adesões de eleitores (art. 331). E tanto no Brasil quanto no Uruguai a minoria
do Legislativo pode propor um plebiscito para emendar a Constituição,
convocando a sociedade a decidir.
Uma segunda forma de referendo permitido pela Constituição uruguaia é o
"referendo contra as leis" (art. 79). Trata-se de uma convocação partindo da
própria sociedade, para que esta responda se concorda ou não com uma
determinada legislação recentemente promulgada9. Cabe lembrar que a Lei nº
16.017/89, que regulamentava o artigo constitucional, exigia um percentual
mínimo de 0,5% para solicitar o plebiscito. Contudo, no ano 2000 a legislação
foi reformulada, aumentando a exigência para 25% dos eleitores (em até um ano
depois de a legislação ter sido aprovada).
Comparativamente à Argentina, Brasil e Uruguai apresentam um número maior de
normas que favorecem a participação da sociedade. Obviamente, essa constatação
não pretende indicar que essas sociedades sejam mais participativas, pois, para
sabê-lo, seria necessário desenvolver outro tipo de pesquisa. Considerando-se
que as regras exercem alguma influência, os dois países equiparam-se, embora a
desconcentração brasileira seja ligeiramente mais ampla, visto que permite os
três tipos de participação.
ATORES COM POSSIBILIDADE DE VETO NO PROCESSO LEGISLATIVO
O segundo aspecto abordado neste artigo ' a regulamentação dos canais de
representação ' recai na clássica discussão sobre a participação política de
uma multiplicidade de atores e risco de paralisia decisória. Como estabelecer o
equilíbrio democrático entre representação e eficácia? A seguir, serão
apresentados seis indicadores que mostram como os três países enfrentaram esse
dilema ao organizar a estrutura institucional do Legislativo.
Sistema Político-Eleitoral
Um primeiro aspecto a ser analisado é a regulamentação do sistema político,
conforme é mostrado na Tabela_2:
1. O modo como acontecem as eleições presidenciais pode influenciar na
composição do Legislativo, interferindo no percentual de apoio ao presidente da
República.
a) Quando as datas das eleições coincidem, cresce a possibilidade de que os
partidos de apoio ao presidente recebam um número maior de votos e,
conseqüentemente, um número maior de cadeiras (Mainwaring e Shugart, 1999;
Colomer e Negretto, 2003). Portanto, datas coincidentes tendem a fortalecer o
presidente da República. Brasil e Uruguai realizam eleições para escolha do
presidente e do corpo legislativo na mesma data. Na Argentina há uma combinação
parcial: para a Câmara de Deputados, as eleições acontecem a cada dois anos,
com preenchimento de 50% das cadeiras em cada eleição, sendo, portanto, apenas
50% coincidentes com a eleição presidencial; para o Senado, as eleições são
feitas em três etapas, de dois em dois anos, o que leva à coincidência de datas
somente para 1/3 dos senadores. Na tabela, a data da eleição foi considerada
como um indicador de menor impacto; todos os outros receberam peso dois.
b) Regras de maioria simples facilitam a vitória de um presidente apoiado por
uma minoria. A exigência da maioria absoluta garante um apoio mais amplo ao
presidente, desconcentrando poder. Brasil e Uruguai exigem maioria absoluta,
prevendo a realização do segundo turno sempre que esse patamar não tenha sido
alcançado. Na Argentina, vigora o sistema de maioria relativa, não ocorrendo
segundo turno quando o candidato mais votado tiver obtido um mínimo de 45% dos
votos.
2. A variável federalismo encontra-se relacionada ao grau de pluralismo da
sociedade. Estados federativos são considerados mais consensuais porque
provocam uma desconcentração do poder, que se distribui pelas esferas
regionais, com o objetivo de oferecer maior autonomia a grupos sociais
minoritários. São os países de grande extensão territorial e os países
divididos pelo pluralismo regional, religioso, étnico e lingüístico, que
costumam adotar o sistema federativo. O Uruguai é um Estado unitário; Brasil e
Argentina ' dois países em que a clivagem regional exerce certo peso ' são
federativos10.
3. O bicameralismo aparece como um elemento a mais de desconcentração do poder,
por oferecer competência decisória às duas casas legislativas. Os países
federativos são normalmente bicamerais, adotando a Câmara Alta como foro de
representação das unidades territoriais11. Sistemas unicamerais são mais
simples e com tendência majoritária; os sistemas bicamerais, como representam
segmentos sociais diferenciados, enquadram-se dentro do modelo consensual.
Argentina e Brasil são países federativos bicamerais. Uruguai é um país
unitário, porém, bicameral.
a) Para Lijphart (2003), dois elementos são determinantes para tornar os
sistemas bicamerais mais homogêneos ou mais divididos. Primeiro, o grau de
congruência entre as duas câmaras, entendendo-se como bicameralismo congruente
os sistemas eleitorais do mesmo tipo nas duas casas, porque isso facilita a
constituição de corpos parlamentares mais homogêneos. Quando os sistemas são
diferentes (incongruentes), cresce a possibilidade de vetos recíprocos. Nos
três casos analisados, apenas o Uruguai adota o mesmo sistema (proporcional)
nas duas eleições12. Na Argentina, a Câmara de Deputados é constituída pelo
sistema proporcional e o Senado, por um sistema majoritário com correção
proporcional (misto)13; no Brasil, o sistema eleitoral no Senado é majoritário
e na Câmara de Deputados é proporcional (Colomer e Negretto, 2003). Estes são,
portanto, incongruentes.
b) O segundo fator crucial para definir a forma de bicameralismo, segundo
Lijphart, é o grau de simetria entre as câmaras: são simétricas quando dotadas
do mesmo nível de poder, e assimétricas quando uma detém mais poder que a
outra. Segundo uma corrente de pesquisadores, uma forma de averiguar o nível de
simetria é através dos impasses entre as duas casas. Caso sejam simétricas, a
norma sobre os impasses nas votações é imparcial, não favorecendo a uma delas
especificamente. Nesse caso, o poder é mais distribuído. Quando há uma
hierarquia na solução de acordos, entende-se que as duas câmaras são
assimétricas. Argentina e Brasil apresentam bicameralismos simétricos e o
Uruguai dota a Câmara de Deputados de mais poderes, sendo considerada
assimétrica14.
c) Com base nesses elementos, Lijphart (2003) cria uma tipologia simples, que
utilizo na tabela a seguir: "bicameralismo forte" ocorre quando há simetria e
incongruência; "bicameralismo médio" é quando há uma simetria congruente ou uma
assimetria incongruente; "bicameralismo fraco" é quando se combinam assimetria
e congruência. À medida que o bicameralismo for mais forte, o país será mais
consensual (e vice-versa).
4. É clássica na literatura política a análise dos efeitos dos sistemas
eleitorais sobre a composição do Legislativo. A noção básica é que sistemas
mais desproporcionais criam "maiorias fabricadas" que reduzem, de modo
artificial, o número de partidos efetivos, já que as distorções sempre
favorecem os maiores partidos. Quanto mais desproporcional for o sistema, mais
majoritário ele será. Em relação ao Senado tem-se que:
a) O sistema eleitoral no Brasil elege senadores pelo voto majoritário,
considerado dos mais desproporcionais. A Argentina adota um sistema majoritário
com correção proporcional15. O tipo de sistema proporcional adotado pelo
Uruguai leva a um nível alto de proporcionalidade (art. 95 e art. 96).
b) Desde o trabalho pioneiro de Rae (1967), também a magnitude do distrito tem
sido apontada como significativamente responsável pelas distorções na
representação. Quanto maior a magnitude, menor é o grau de distorção entre
votos e cadeiras conquistadas pelos partidos. Na Argentina e Brasil, os
distritos correspondem às unidades da federação, com três representantes por
estado/província. Nos dois casos, trata-se, portanto, de uma magnitude baixa. O
Uruguai, que não é país federativo, adota uma circunscrição única com 30
cadeiras, bastante proporcional (art. 94).
5.Para a Câmara dos Deputados (Câmara Baixa), todos os países da América Latina
optam pelo sistema proporcional. Argentina e Brasil adotam os limites de
circunscrição federativos (províncias e estados), oferecendo magnitudes de
distrito responsáveis por considerável grau de distorção. No Uruguai, a Câmara
de Representantes é constituída por meio de um distrito único nacional, com
distribuição posterior aos departamentos, ou seja, utiliza um cálculo
proporcionalmente muito mais exato16.
a) Cláusula de barreira, mecanismo utilizado para impedir que partidos com
baixos percentuais de votos recebam cadeiras na Câmara de Deputados, é adotado
apenas na Argentina, que exige dos partidos um mínimo de 3% de votos nas
províncias (Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López, 2005a).
b) Na Argentina e Uruguai, a lista partidária é previamente fechada pelos
partidos, enquanto no Brasil o sistema é de lista partidária com voto
individualizado. Conforme ampla literatura, o nível de controle que o partido
pode exercer sobre os parlamentares varia de acordo com o sistema. O sistema de
lista fechada com indicação dos candidatos feita pelos partidos, tal como é
adotado pela Argentina (e pela maioria dos países latino-americanos), favorece
a centralização partidária. Embora o sistema uruguaio seja de listas fechadas,
contém uma variação importante: os partidos apresentam sublistas (sublemas) com
candidaturas diferentes, às quais são consideradas no cômputo proporcional de
votos; esse sistema aumenta o grau de interferência do eleitor na escolha17. O
sistema de listas com escolha individualizada, tal como existe no Brasil,
incentiva o personalismo e um nível maior de dispersão partidária (Mainwaring e
Shugart, 1999; Colomer e Negretto, 2003; Ames, 2003; Mainwaring, 2002).
c) Nenhum dos três países adota o sistema de reserva de cotas.
Argentina e Brasil apresentam vários componentes de um sistema consensual:
ambos são federalistas, têm um bicameralismo forte e adotam o sistema eleitoral
proporcional. Contudo, a Argentina apresenta no conjunto uma tendência à
concentração de poder, principalmente porque o sistema eleitoral fortalece os
partidos (pelo sistema de listas fechadas), favorece os partidos maiores (pelo
tamanho dos distritos) e limita o número de partidos parlamentares (pela
cláusula de barreira). O sistema eleitoral brasileiro é bem mais consensual.
Por um lado, apresenta um efeito redutor nas eleições para o Senado (devido às
distorções do sistema majoritário) e favorece os partidos maiores ao adotar
como magnitude dos distritos os limites estaduais. Contudo, no Brasil, o
sistema de lista com escolha individual e a ausência de cláusula de barreira
indicam a existência de uma estrutura eleitoral sem influência sobre os
partidos19.
O Uruguai apresenta a maior tendência ao modelo consensual, com exigência de
maioria absoluta nas eleições presidenciais, sistema bicameral e sistema
eleitoral altamente proporcional. Mas a forma bicameral fraca (assimétrica e
congruente), combinada ao voto partidário de lista fechada, fortalece o
sistema. Além disso, o Uruguai é um país pequeno e bastante homogêneo, o que
acarreta um nível bem menor de fragmentação partidária20.
Estrutura Interna do Poder Legislativo
Um segundo aspecto que interfere na composição legislativa (se mais
fragmentada, ou mais homogênea) tem sido demonstrado em estudos recentes sobre
a organização interna do Legislativo. Dois aspectos parecem relevantes nesta
questão:
1. Primeiro, o modo como as comissões legislativas são organizadas. Em todos os
países as comissões exercem um papel importante, havendo certo consenso de que
sua atuação torna o trabalho do Legislativo mais profissionalizado, mais
especializado (Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López, 2005b). No
entanto, elas podem ser estruturadas de modo bastante variado, e essas
diferenças afetam a distribuição interna do poder (Anastasia, Melo e Santos,
2004):
a) As comissões compostas de acordo com a proporcionalidade partidária da casa
legislativa tendem a apresentar um grau de diversidade muito maior do que as
comissões compostas segundo outros critérios, como o princípio majoritário, a
indicação do líder ou o sorteio. Havendo proporcionalidade partidária, a chance
de as oposições participarem é maior. Brasil e Uruguai adotam esse sistema de
escolha nas duas câmaras. Na Argentina, no Senado a escolha é partidária, mas
na Câmara de Deputados é por designação do presidente. É claro que isso
favorece muito o partido majoritário. Portanto, Brasil e Uruguai são mais
consensuais.
b) O número de comissões em que cada parlamentar é obrigado a participar também
interfere. O raciocínio, neste caso, é que o bom desempenho do trabalho está
relacionado ao tempo que o parlamentar pode se dedicar ao estudo dos temas
ligados à comissão. Um número muito elevado de comissões por parlamentar torna
o trabalho completamente improdutivo.
c) E a coincidência ou não entre as comissões do Legislativo e os ministérios
do Executivo ' se eles tratam dos mesmos assuntos ' também influencia. Quando
há paralelismo entre ministérios e comissões, supõe-se que o nível de
interferência do Legislativo nos assuntos do Executivo tende a crescer,
aumentando o equilíbrio na relação entre poderes.
2. O segundo aspecto para avaliar o nível de fragmentação legislativa é a
existência ou não do Colégio de Líderes, prerrogativa institucional que atribui
às lideranças partidárias a capacidade de centralizar grande parte do processo
legislativo, enfraquecendo a possibilidade de intervenção da maioria da
bancada. Uma linha interpretativa iniciada por Figueiredo e Limongi (1999)
afirma que o Colégio de Líderes atua de forma combinada com o presidente da
República, que utiliza seus "poderes de agenda" para controlar a produção
legislativa. Sendo isso verdadeiro, a centralização propiciada pelo Colégio de
Líderes favoreceria o Poder Executivo21. No Brasil e no Uruguai, o Colégio de
Líderes existe somente na Câmara de Deputados. Na Argentina, há esse desenho
nas duas casas legislativas. Mais uma vez, a Argentina é o país mais
majoritário dentre os três.
A Tabela_3 mostra as diferenças nos três países. A Argentina une vários
aspectos que favorecem a alta concentração de poder no Executivo. Brasil e
Uruguai caracterizam-se pela descentralização, sendo o Uruguai nitidamente mais
consensual.
As Maiorias Especiais
Nas democracias, normalmente as leis podem ser aprovadas ou alteradas no
Legislativo com a simples maioria de votos, sendo algumas vezes exigida a
maioria dos parlamentares presentes e algumas vezes um quorum mínimo. Mas em
todas as constituições aparecem temas considerados mais importantes, que exigem
maior consenso para aprovação. A determinação de que alguns temas exigem
maiorias especiais aparece sempre, contudo, a delimitação de que assuntos são
esses e de qual o percentual mínimo necessário de votos varia muito.
Na Tabela_4, os números das colunas representam a quantidade de artigos
constitucionais que exigem algum tipo de maioria. Eles foram retirados do livro
de Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López (2005b), no estudo comparado
sobre 18 países da América Latina. Com base nesses dados, a tabela estabelece
pesos diferenciados de acordo com a maioria exigida: quanto mais amplas as
maiorias, maior é o peso. A idéia subjacente é que, aumentando o número de
votos necessários, cresce a necessidade de consenso e, portanto, maior é a
dificuldade em alterar a situação. Como afirma Tsebelis (1997:100), "raramente
se verifica uma exigência constitucional de maiorias qualificadas. Mas, onde
quer que ela exista e sempre que isso ocorrer, tal exigência conferirá poder de
veto a determinadas coalizões de atores e, portanto, aumentará a estabilidade
do status quo".
Entre os países aqui analisados, vê-se que a legislação argentina impõe menos
obstáculos às mudanças: são seis os casos que exigem maioria absoluta e dois os
que exigem 2/3 dos presentes. Uma única vez a constituição argentina exige
maioria de 2/3 do total de deputados da Câmara; trata-se exatamente da mudança
constitucional (art. 30). Mais uma vez, a Constituição argentina tende ao
modelo concentrador de poder.
No caso do Brasil, o número de artigos que exige maioria qualificada é maior,
com sete situações determinando maioria absoluta dos membros da casa. A emenda
constitucional exige maioria qualificada de 3/5 da Câmara e cinco casos
estabelecem uma maioria de 2/3. Entretanto, a situação mais emblemática é a do
Uruguai, que aparece como o país latino-americano que apresenta maiores
empecilhos às mudanças de regra entre todos os países da América Latina. Em
virtude disso, o caso uruguaio foi arbitrariamente definido como de máxima
desconcentração (valor 1,0) na tabela
Status de Constitucionalidade
Considerando-se, como foi feito anteriormente, que a exigência de maioria
qualificada dificulta a aprovação de normas, deve-se salientar que as normas
constitucionais estão entre as que apresentam os maiores níveis de dificuldade,
pois é normal em todos os países a exigência de ampla maioria para aprovação de
emendas à Constituição. Sendo assim, quanto mais volumosas e detalhadas forem
as constituições, maior é a quantidade de temas difíceis de serem modificados.
A Constituição brasileira apresenta um total de 250 artigos. No Brasil, a
emenda à Constituição pode ser proposta pelo presidente da República, por 1/
3 da Câmara dos Deputados ou Senado ou por mais de 50% das assembléias
legislativas. Deve ser discutida em dois turnos nas duas casas e a aprovação
exige 3/5 dos votos de cada casa, em cada votação (art. 60). Ela contém
inúmeras questões tratadas em detalhes a respeito de temas sociais e
econômicos. A pesquisa sistemática em seus 250 artigos mostra que 13 questões
recebem tratamento minucioso.
Durante a década de 1990, várias emendas constitucionais no Brasil alteraram
artigos relativos às empresas estatais e à proteção ao capital nacional,
modificando o perfil nacionalista da carta de 1988. Entretanto, muitos artigos
relacionados à economia permaneceram, bem como a extensa lista de direitos
individuais, políticos e sociais. Isso significa que, para ocorrer qualquer
mudança nesses assuntos, é necessário um consenso muito alto.
A Constituição uruguaia, com um total de 332 artigos, faz exigências ainda
maiores para emendas constitucionais. Para iniciar um projeto de reforma, é
necessário ou a assinatura da maioria absoluta dos membros da Assembléia Geral,
ou a assinatura de 10% dos eleitores uruguaios, ou a assinatura de 2/5 da
Assembléia, que solicitarão um plebiscito. A aprovação de emenda exige uma
maioria de 2/3 da Assembléia (art. 331). A Constituição uruguaia igualmente
apresenta inúmeros temas ' sociais, políticos e econômicos ' tratados de forma
detalhada.
A característica mais nítida da Constituição uruguaia é a defesa dos organismos
estatais. Direitos individuais, da família e da educação também aparecem aqui,
mas o que se destaca nela é a ampla regulamentação dos serviços estatais, dos
monopólios do Estado e da política industrial. Também ela passou por várias
emendas constitucionais durante a década de 1990 e uma profunda reforma em
1996, mas esse caráter nacionalista permaneceu.
A Constituição argentina em vigor é fruto da reforma de 1994. Diferentemente
das constituições brasileira e uruguaia, tem apenas 129 artigos e apenas três
temas (sociais) tratados de forma constitucional. Para ser reformada, a emenda
constitucional deve ser proposta por 2/3 do Congresso, percentual bastante alto
(art. 30). Entretanto, como são poucas as questões substantivas inseridas no
texto, simples maioria é suficiente para aprovar esse tipo de norma.
A Tabela_5 atribui valor máximo ao Brasil (valor 1,0) e valor mínimo à
Argentina (valor 0). O Uruguai também se coloca como bastante consensual.
Mecanismos de Accountability Horizontal24
Uma das funções clássicas do Estado liberal é o controle recíproco entre
poderes e, sendo assim, todas as constituições democráticas procuram dotar o
Legislativo com alguns desses mecanismos. Os indicadores da Tabela_6 seguem a
teoria de Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López (2005b) de que o
controle parlamentar é uma atividade essencialmente política que abrange várias
instâncias. Uma primeira estaria situada no campo simbólico, ocorrendo a partir
do momento em que os problemas governamentais passam a ser objeto de debates e
informações dentro do Legislativo. Por exemplo, a publicidade própria da ação
parlamentar já se apresenta como uma forma de accountability.
Entretanto, há um segundo patamar em que o Legislativo adquire poder de fato.
Isso acontece quando ele se encontra municiado de prerrogativas legais para
impor sanções efetivas ao governo. A Tabela_6 procura quantificar esses dois
níveis (simbólico e de fato) nos três países da América Latina. Para tanto,
considera os seguintes aspectos:
1. O comparecimento ao Legislativo de ministros e altos funcionários do
Executivo, com o objetivo de prestar informações, está previsto em todas as
constituições da América Latina. Mas poucas, Brasil entre elas, impõem sanções
pelo não-comparecimento (art. 50).
2. Uma das formas usuais de fiscalização do Legislativo é por meio da
solicitação de informes. O que varia nesse caso é a existência ou não de
penalidades pelo descumprimento do pedido. Dentre os 18 países da América
Latina, apenas cinco estabelecem algum tipo de punição: Bolívia, Brasil, Chile,
Colômbia e Peru.
3. A possibilidade da Comissão Parlamentar de Inquérito ' CPI existe nos
legislativos da Argentina, Brasil e Uruguai. As CPIs são elementos simbólicos
importantes de controle, nas quais parlamentares, funcionários do governo e
pessoas que se envolvem em situações comprometedoras para a ordem pública são
questionados e confrontados.
4. Muito mais efetivo, porém, do que o questionamento é a possibilidade de
acesso a contas bancárias e telefônicas dos investigados. Isso acontece quando
há direito legislativo de investigação judicial, como no Brasil (art. 58, §3º).
5. Em todos os países latino-americanos, o presidente da República vai
anualmente ao Congresso para informar sobre seu plano de governo e prestar
contas de sua administração. Os modos como isso acontece são variados, mas um
fator determinante para o controle simbólico do Legislativo é a possibilidade
de os parlamentares pronunciarem-se diante da exposição do presidente. Os
legislativos do Brasil, Argentina e Uruguai limitam-se a ouvir, sem direito a
questionamentos.
6. A interpelação é um mecanismo em que ministros e funcionários do Poder
Executivo comparecem para prestar informações e ser questionados pelos
parlamentares. Em seguida há um debate em plenário e uma votação. Segundo
Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López (2005b), 14 dos 18 países adotam
essa medida. Em geral, essa votação tem o efeito simbólico de dar publicidade
aos acontecimentos, sem acarretar penalidades específicas. Mas em determinadas
democracias a interpelação pode levar a uma moção de censura.
7. A moção de censura é um mecanismo típico dos sistemas parlamentaristas,
prevista na Constituição de 13 democracias presidencialistas latino-americanas.
Contudo, na grande maioria dos casos ela tem um efeito meramente simbólico, já
que o Legislativo não possui autorização de fato para destituir ministros. O
Brasil não adota essa medida. Argentina (art. 101) e Uruguai (art. 147), sim.
8. Uma segunda possibilidade, bem mais rara nos sistemas presidencialistas, é
que o Legislativo tenha poder legal de destituir ministros. Apenas três se
encontram nessa condição: Argentina (para o chefe de gabinete, art. 101),
Uruguai (art. 148) e Venezuela (art. 246).
9. Outra medida de caráter claramente parlamentarista é o Voto de Confiança,
que existe nas constituições do Peru (art. 130) e do Uruguai (art. 148). No
Uruguai, se os ministros forem reprovados pelo Legislativo por um percentual
inferior a 2/3 da Assembléia Geral, o presidente da República tem o direito de
pedir um voto de confiança. Caso este não seja dado, ele pode dissolver o
Legislativo e convocar novas eleições. Se a censura for dada por um percentual
superior a 2/3 da Assembléia Geral, o presidente da República é obrigado a
aceitá-la.
10. O julgamento, com possibilidade de exoneração de funcionários, ministros,
vice-presidente e presidente da República, é um caso extremo de controle, que
demanda um processo árduo e desgastante. Mas há diferenças entre os motivos que
permitem a abertura do processo. Segundo Alcántara Sáez, García Montero e
Sánches López (2005b), sete motivos são considerados nas constituições. Com
base nesses dados, a Tabela_6 reduziu essas possibilidades para três, creio que
sem prejuízo da análise25. A primeira possibilidade de impeachment é por crime
comum.
11. A segunda possibilidade de impeachment é por crime de responsabilidade.
12. A terceira é por mau desempenho. Nos três casos o processo se desenvolve na
Câmara e, sendo aprovado por 2/3 da casa, passa para o Senado, onde será
julgado.
Na Tabela_6, o Brasil aparece como o país mais centralizador26, sobretudo
porque não adota os mecanismos de "tipo parlamentarista".
Intervenção do Legislativo no Plano Orçamentário
O projeto orçamentário é uma das mais importantes peças para desenvolvimento
das políticas de governo, visto que é o orçamento que determina como serão
aplicados os recursos do Estado, estabelecendo as áreas prioritárias e os
montantes a serem despendidos. Trata-se de uma das legislações de caráter mais
conflituoso, que envolve disputas no interior do próprio Poder Executivo,
dentro do Legislativo e entre os dois Poderes.
Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López (2005b) analisaram a legislação
de 18 países latino-americanos, mostrando que é sempre o Poder Executivo que
elabora o plano orçamentário27 e o envia ao Legislativo para que seja
analisado, emendado e aprovado. A possibilidade que o Legislativo tem de
interferir, modificando o projeto original, é diversa na América Latina, sendo
considerados fatores de maior influência os seguintes pontos:
1. se há possibilidade de o Legislativo iniciar o projeto orçamentário;
2. se há proibição expressa para o Executivo utilizar o mecanismo da delegação;
3. se há proibição expressa para o Executivo utilizar o mecanismo do pedido de
urgência;
4. qual o tempo de tramitação legalmente estabelecido;
5. qual a possibilidade de o Legislativo modificar o projeto orçamentário;
6. qual a possibilidade de o Executivo fazer gastos sem autorização (havendo
essa brecha, obviamente, o Poder Executivo é fortalecido);
7. qual a solução legal em caso de rejeição ou não-aprovação do projeto. Em
alguns casos, o Executivo é favorecido, em outros, é o Legislativo.
8. se há proibição de veto do Executivo nessa matéria.
No texto citado, os autores lembram que há duas características constitucionais
importantes na legislação orçamentária que se encontram presentes, sob medidas
variadas, nos diversos países da América Latina: a primeira é que durante a
década de 1990, em razão das mudanças econômicas ocorridas no capitalismo
internacional, houve uma tendência em privilegiar o controle fiscal na
legislação orçamentária; a segunda é que várias constituições estabelecem
percentuais fixos de gastos com determinados setores, enrijecendo a lei de
orçamento.
Esses aspectos devem ser levados em conta, uma vez que são características
constitucionais que refletem duas tendências politicamente opostas: uma é fruto
da política predominante durante a década de 1990; e a outra apresenta um
caráter claramente social-democrata, ideologia com forte influência em um
período anterior. Observando-se as constituições da Argentina, Brasil e
Uruguai, nota-se que elas assimilaram, de modos diferenciados, essas duas
tendências, que apresentam conseqüências importantes para a questão da
concentração ou dispersão do poder decisório.
A Constituição brasileira é de 1988, momento da democratização em que variados
grupos de esquerda tiveram influência para redigir uma carta de direitos. Por
esse motivo, aparecem vários artigos vinculando o orçamento a gastos sociais:
as quotas despendidas para educação (art. 212), saúde (art. 198, § 2º) e
funcionalismo (art. 37, XXII) encontram-se constitucionalmente garantidas.
Vinculado a isso, a Constituição estabeleceu o modelo descentralizado e
socialmente participativo da gestão da saúde e educação, com a regulamentação
dos "conselhos". Em muitos aspectos, a Constituição brasileira cerceia a
autonomia do Executivo em relação à política orçamentária. Entretanto, a
Constituição brasileira faz muitas restrições à possibilidade de parlamentares
inserirem emendas ao projeto enviado pelo Executivo. O art. 167 da Constituição
define "que as despesas não podem exceder os créditos orçamentários" e que
fazer investimentos sem autorização prévia da lei implica crime de
responsabilidade (passível de impeachment).
A Constituição uruguaia é de 1967. Não há artigos que predeterminem despesas de
cunho social. Mas também no Uruguai a década de 1990 trouxe mudanças
constitucionais com o objetivo de controlar o déficit orçamentário (art. 215 e
art. 225). Assim, a Constituição uruguaia mantém a tendência predominante em
toda a América Latina, que é fortalecer o Executivo nessa questão. Mas nesse
país a legislação apresenta uma originalidade, ao colocar no centro da
elaboração do projeto orçamentário a "Oficina de Planeamiento y Presupuesto",
composta por segmentos da sociedade (representantes de trabalhadores e de
empresas públicas e privadas). Conquanto o orçamento esteja vinculado à
burocracia técnico-executiva, há um mecanismo que estimula a participação da
sociedade.
A nova Constituição argentina foi elaborada em 1994, durante a era Menem. É a
constituição mais enxuta; ela apresenta poucos artigos relativos ao orçamento e
envia todas as especificidades para a legislação ordinária. Desse modo, o
problema do déficit financeiro não aparece no texto constitucional. Pelo
contrário, o art. 75, 9 da Constituição argentina diz que cabe ao Congresso
determinar os subsídios do tesouro para as províncias "cujas rendas não
atinjam, segundo seus orçamentos, os gastos ordinários". O que está determinado
vai de encontro à idéia de controle fiscal, sendo uma norma com sentido oposto
ao da chamada "lei de responsabilidade fiscal", predominante na América Latina
a partir da década de 1990. Como gasto fixo, a constituição determina que uma
"lei convênio" estabelecerá um acordo entre nação e províncias, instituindo uma
parcela automática de contribuição direta (art. 75, 2).
A Tabela_7, referente ao processo orçamentário, mostra que o poder no Brasil e
Uruguai é mais concentrado. A Argentina fica na posição intermediária, impondo
menos restrições ao Legislativo.
OS PODERES LEGISLATIVOS DO EXECUTIVO
Finalmente, a última questão a ser mensurada são os mecanismos proativos e
reativos sob controle do presidente da República. Estas são normas que não
apresentam a possibilidade de dispersão de poder, visto que, claramente, têm
por objetivo fortalecer o presidente da República. Vejamos:
Iniciativa Legislativa Exclusiva
A participação do Executivo na elaboração das leis tem sido apontada como um
dos indicadores da força do presidente da República no mundo atual. O Executivo
pode enviar projetos de lei que tramitam normalmente no Congresso Nacional28,
entretanto, conforme lembram Colomer e Negretto (2003:36), "a iniciativa
ordinária não confere, por si só, nenhuma vantagem. Se o Congresso pode
modificar livremente a proposta presidencial (ou mesmo não considerá-la) cabe
esperar que os resultados sejam muito parecidos aos obtidos pela iniciativa
congressual". Em muitos casos, como nos projetos de lei ordinária ou emendas
constitucionais, a participação do Legislativo é intensa durante o período de
tramitação da matéria. O Legislativo participa, propondo emendas e muitas vezes
conseguindo alterar substancialmente o projeto original.
A capacidade de interferência do presidente da República é efetivamente
aumentada com a perspectiva da iniciativa exclusiva. Sem dúvida, também esses
projetos podem ser completamente alterados no processo de tramitação, mas neste
caso cabe ao Executivo determinar os termos e o momento da apresentação do
projeto. Isso lhe confere um considerável grau de controle, sobretudo quando
pretende manter o status quo, deixando de enviar a proposta.
O número de normas cuja iniciativa cabe exclusivamente ao presidente da
República é bastante alto na América Latina, encontrando-se relacionado
fundamentalmente aos artigos referentes à política econômica e financeira
(Colomer e Negretto, 2003). A Tabela_8 relaciona os temas em que o Executivo
detém a exclusividade, mostrando que há diferenças entre os três países.
No Brasil, além da questão econômica e financeira, observa-se que a
Constituição mantém sob controle do Executivo a administração federal, e alguns
temas específicos, como atividade nuclear. A iniciativa exclusiva é um dos
requisitos que mais fortemente favorecem o presidente da República no Brasil,
indicando alto grau de concentração do poder.
No Uruguai, essas normas dizem respeito à gestão da economia e às questões que
envolvem gastos públicos. O Uruguai não adota o decreto de necessidade e
urgência nem a lei delegada, amenizando muito a tendência à concentração do
poder nesta questão da iniciativa. A Argentina mostra-se bem menos
centralizadora neste aspecto, apresentando um número mediano de iniciativas
exclusivas.
Veto presidencial
Nos sistemas presidencialistas, o veto é uma modalidade comum de intervenção do
presidente da República sobre o processo legislativo, aparecendo em
constituições de 18 países da América Latina (García Montero, 2004). Essa
medida encontra-se presente também na Constituição dos Estados Unidos, sendo
considerada naquele país a forma de controle mais importante do Executivo sobre
os trabalhos do Congresso (Molinelli, 1991).
As normas sobre o veto apresentam variações de um país para outro. Sempre é
estabelecido um prazo para que o presidente se pronuncie sobre a lei aprovada
no Legislativo. Mas, o mais importante para medir o grau de controle do
Executivo são os procedimentos reguladores do veto, assim como os da sua
derrubada (insistencia):
a) Na grande maioria dos casos, além dos vetos integrais, também são aceitos os
vetos parciais.
b) Quanto aos procedimentos de derrubada do veto, é claro que tanto o poder
Executivo será mais forte quanto mais dificultoso for derrubá-lo. Nesse caso,
duas regras influenciam: primeira, se as duas casas legislativas atuam de modo
conjunto ou separado (exigir a decisão em cada casa, separadamente, é uma forma
de dificultar a derrubada); segunda, o número de votos parlamentares
necessários, exigindo-se desde a maioria absoluta dos membros da casa até a
maioria de 2/3 dos membros da casa.
A Tabela_9 estabelece pontos diferenciados de acordo com a dificuldade
envolvida no processo de derrubada do veto presidencial. A Argentina impõe
sérias restrições à autonomia do Legislativo: aceita o veto integral e parcial
(art. 80 a 83) e, para que ele seja derrubado, é necessário que passe pelas
duas câmaras separadamente e seja aprovado por uma maioria de 2/3 dos
presentes. Em resumo, há poucas possibilidades de que seja derrubado e, nesse
sentido, apresenta um caráter fortemente concentrador de poder.
Brasil (art. 66, § 1º) e Uruguai (art. 137 e art. 138) admitem o veto integral
e parcial e definem que a decisão para derrubada deve dar-se em assembléia
conjunta das duas casas. A maioria exigida é mais expressiva no Uruguai (3/
5 dos presentes) do que no Brasil (maioria absoluta). O veto é, portanto, um
mecanismo importante para fortalecer o Executivo nestes dois países.
Pedido de Urgência
Essa norma aparece em seis países sul-americanos29, sendo que alguns oferecem
mais do que uma modalidade de urgência. No Chile, por exemplo, há o pedido de
urgência simples, com 30 dias de prazo, a suma urgência, com 10 dias, e a
discussão imediata, com prazo de três dias (art. 49).
O pedido de urgência é um poderoso recurso do presidente da República que, ao
solicitá-lo, encurta prazos de discussão, reduzindo os debates e tornando muito
mais provável a possibilidade de aprovação de seu projeto tal como foi enviado.
Ele não anula a tramitação, nem a possibilidade de rejeição e de modificação da
matéria, mas pelo fato de encurtar os prazos, limita a possibilidade de
mudança. Há muitas diferenças entre as legislações, havendo em alguns países um
controle mais forte do Executivo. Analisando-se essas possibilidades, alguns
fatores parecem fundamentais:
a) se há limitação no prazo de envio ou se o Executivo pode fazer a solicitação
em qualquer momento da tramitação do projeto;
b) se os prazos para análise da matéria são minimamente aceitáveis, ou se são
muito curtos, impedindo a interferência do Legislativo na decisão;
c) se há restrições nas temáticas, ou o presidente da República pode solicitar
urgência sobre o que bem lhe aprouver;
d) o que efetivamente acontece se o projeto não é analisado em tempo hábil. Em
alguns casos ele é transformado em lei;
e) se existe ou não a possibilidade do Congresso rejeitar o pedido de urgência;
f) se há limite para o número de pedidos, ou se a quantidade a ser enviada é
decidida pelo presidente da República.
Com base nesses indicadores, a Tabela_10 estabelece pontuações mais altas
quando a intervenção do Executivo é menor. Além disso, os prazos de apreciação
pelo Legislativo, o leque de temáticas admitidas e a solução adotada em caso de
não apreciação, foram considerados os três indicadores mais decisivos,
recebendo peso mais alto na tabela.
A constituição argentina não adota esse mecanismo institucional, recebendo
pontuação de máxima desconcentração nesse quesito. As constituições do Brasil
(art. 64) e Uruguai (art. 168, § 7º) incorporam o pedido de urgência com uma
série de especificidades que aumentam a capacidade de o Executivo intervir. Por
exemplo, no Brasil não é prevista a possibilidade de derrubada do pedido de
urgência e no Uruguai o projeto do Executivo será aprovado, se não for
apreciado em tempo hábil. Com isso, o Executivo sai fortalecido nestes dois
países.
O Decreto de Necessidade e Urgência
Dentre as prerrogativas constitucionais que concentram poder decisório,
certamente a capacidade de editar decretos de relevância e urgência com força
de lei é a que mais favorece o Poder Executivo. Na América Latina, ela aparece
em cinco países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Peru30. Argentina e
Brasil têm utilizado intensamente esse mecanismo. No Uruguai essa legislação
não existe.
Na Argentina, o decreto deve ser submetido em 10 dias à consideração de uma
comissão bicameral que deve analisar a medida e despachá-la para que seja
apreciada pelo plenário. A norma constitucional ainda frisa que uma lei,
aprovada por maioria absoluta da casa, deve regular a atividade e a competência
dessa comissão. Contudo, passados mais de 11 anos desde a promulgação da última
Constituição argentina, a comissão ainda não foi criada. Nesse sentido, o poder
do presidente da República em relação à edição dos decretos de urgência
permanece imenso (Quiroga, 2005).
No Brasil, a edição e a reedição de decretos tem sido rotina desde que foram
regulamentados, em 1988; durante o governo Fernando Henrique Cardoso, esse
número cresceu enormemente, com centenas de medidas provisórias sendo
reeditadas sem passar pela apreciação do Congresso Nacional. Tal prática foi
interrompida em setembro de 2001, quando a Emenda Constitucional nº 32 passou a
permitir uma única reedição, obrigando o Legislativo a apreciar a matéria. Esta
mesma emenda também impôs uma série de restrições temáticas ao uso dos decretos
de urgência, prevendo a perda de eficácia, no caso da não-apreciação. Outro
fato relevante é a análise da constitucionalidade da norma, que é feita no
Brasil pela Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional.
A Tabela_11 procura pontuar os limites constitucionais ao uso dos decretos de
urgência nos países da América Latina. O Uruguai, que não adota a medida, foi
colocado no ponto máximo de dispersão de poder. Para elaboração da tabela foram
consultadas (além das constituições da Argentina, Brasil e Uruguai) as
constituições do Chile, Peru e Colômbia, os três países da América Latina que
também adotam a prerrogativa dos decretos de urgência.
A Argentina não impõe restrições ao uso de decretos, encontrando-se próxima ao
nível máximo de concentração de poder. O Brasil aproxima-se do ponto médio,
pois a Emenda Constitucional nº 32 ' EC 32 impôs alguns limites ao Executivo,
visto que obriga o Legislativo a pronunciar-se. Entretanto, ainda hoje, o
governo permanece editando um número muito alto de medidas provisórias ' MPs31.
De todo modo, no Brasil, o percentual de decretos de urgência que se
transformou em projetos de lei de conversão depois da emenda restritiva cresceu
substancialmente. Isso demonstra o aumento da participação do Legislativo na
tramitação das MPs, sobretudo durante o governo Lula (Oliveira, 2004). Outro
dado a ser considerado é que o acúmulo de MPs à espera de votação no Congresso
tem levado a freqüentes situações de "trancamento de pauta".
O decreto de necessidade e urgência é considerado pela literatura política como
o mecanismo mais poderoso a serviço do presidente da República, pois como se
torna lei no momento da edição, cria uma situação de fato difícil de ser
revertida; e mesmo quando é transformado em projeto de lei de conversão mantém
os prazos curtos de trâmite, limitando demasiadamente a possibilidade de debate
parlamentar.
Lei Delegada
As chamadas leis delegadas oferecem igualmente grande poder ao Executivo,
possibilitando que determinadas matérias legislativas sejam delegadas ao
presidente da República por um determinado tempo. Elas são permitidas na
Argentina (art. 76), Brasil (art. 68) e Peru (art. 104). O Uruguai não adota
essa medida.
Brasil e Argentina apresentam uma série de restrições ao uso da lei delegada.
Nestes dois casos, o poder do Executivo é menor, aproximando-se do ponto médio.
É importante lembrar que Argentina, Brasil e Peru são os únicos países da
América Latina que apresentam conjuntamente as duas modalidades de iniciativa
do Executivo: o decreto de necessidade e urgência e a lei delegada. No caso da
Argentina, a delegação só é permitida para legislação administrativa e de
emergência pública; possui prazo para perda de eficácia e só pode ser usada sob
determinadas condições impostas pelo Legislativo. O Brasil oferece mais
liberdade legal para a edição da lei delegada, mas também aqui o controle do
Legislativo é nítido. Provavelmente por esse motivo, os governos brasileiro e
argentino têm preferido utilizar os decretos. No Brasil, desde 1988, foram
aprovadas somente duas leis delegadas, ambas em 1992 (Pessanha, 2002, Anexo
II). Na Argentina, durante o governo Menem, no entanto, a delegação foi muito
utilizada, sendo inclusive responsável pela Reforma Tributária que,
constitucionalmente, é de iniciativa exclusiva do Legislativo (Quiroga, 2005).
CONCLUSÃO
As médias ponderadas apresentadas nas tabelas anteriores são colocadas na
Tabela_13 com o objetivo de determinar um índice de concentração versus
dispersão de poder nos três países. Normas constitucionais, por si sós, não são
suficientes para moldar o caráter mais consensual ou mais majoritário de uma
democracia, mas elas são importantes para delimitar as regras de procedimentos
políticos. Além disso, analisando-se o perfil constitucional dos países, é
possível visualizar o nível de equilíbrio ideológico-político daquele dado
momento. Cartas constitucionais são pactos resultantes de embates entre forças
políticas divergentes.
Observando-se as três constituições, é perceptível a influência que receberam
das concepções econômicas liberalizantes vigentes na década de 1990. Essas
novas medidas tiveram o objetivo expresso de fortalecer o Executivo, dotando-
o de mecanismos garantidores da eficácia decisória. Mas o impacto dessas
reformas foi muito diferente em cada caso. A Argentina praticamente refez sua
constituição em 1994. No Brasil, a Constituição promulgada em 1988
constitucionalizou direitos sociais e regras econômicas que não foram, em
substância, modificados pelas emendas constitucionais aprovadas desde aquela
data. Mas já em 1988 a Constituição brasileira continha elementos que
favoreciam a centralização decisória. O Uruguai manteve com a democratização a
carta constitucional de 1967, de tendência consensual e nacionalista. Durante a
década de 1990 foram realizadas no Uruguai reformas constitucionais com a
finalidade de oferecer maior autonomia ao presidente da República.
O perfil dos três desenhos institucionais é visualizado na Tabela_13 e no
Gráfico, havendo uma preocupação em apresentar a carta constitucional em dois
aspectos: com a média parcial, que mostra os indicadores relativos ao processo
legislativo propriamente dito, e com a média total, que incorpora ao índice os
cinco indicadores que, declaradamente, têm a finalidade de concentrar poderes
nas mãos do presidente da República.
A média total na Argentina ' 0,37 ' denota que este é o modelo mais
centralizado entre as três democracias estudadas. A carta constitucional possui
essa característica em seu todo, pois mesmo a média parcial da Tabela_13 é
bastante baixa (valor 0,33). Coloca poucos obstáculos às mudanças das regras,
com simples maiorias sendo em geral suficientes para aprovar a legislação. O
país possui alguns mecanismos institucionais de participação social direta e de
controle do Legislativo sobre o Executivo (sobretudo na lei orçamentária e nos
mecanismos de accountability horizontal). Mas o sistema eleitoral e as regras
de funcionamento interno do Legislativo servem para fortalecer o Executivo. Os
indicadores referentes às iniciativas do Executivo apenas corroboram a mesma
tendência. O controle constitucional do presidente da República dá-se
primordialmente através da capacidade de veto e de edição de decretos de
necessidade e urgência (a média de ambos aproxima-se do zero).
O Uruguai é o país mais consensual (média 0,64). Sua constituição é detalhista,
apresentando um número extenso de normas e temáticas que, para serem
regulamentadas ou reformadas, exigem maiorias especiais. Prevê, ainda, a
participação direta da sociedade por meio de referendos e adota mecanismos
legislativos bastante consensuais, como um sistema eleitoral fortemente
proporcional e regras internas do Legislativo que favorecem a ação dos partidos
oposicionistas.
É fato que também o Uruguai preocupou-se em dotar a Constituição de mecanismos
que favoreçam a atuação do Executivo. Várias normas têm essa tendência, como o
processo de controle orçamentário e a legislação de iniciativa exclusiva do
presidente da República. Mas é pela adoção do veto presidencial e do pedido de
urgência que o Executivo realmente se fortalece no Uruguai. É importante notar,
todavia, que dois dos mecanismos mais decisivos ' decretos de necessidade e
urgência e lei delegada ' não existem na Constituição, o que interfere
significativamente no sentido de torná-la mais consensual. O Gráfico_1 mostra
que, de modo homogêneo, o poder no Uruguai é mais desconcentrado, com médias
parciais e totais praticamente idênticas.
O Brasil é, certamente, o caso mais complexo. A primeira parte da Tabela_13
demonstra que a Constituição apresenta uma tendência ao consenso. O país adota
todos os mecanismos de participação direta, contém inúmeros temas com
statusconstitucional, possui um sistema político-eleitoral bastante permissivo
e regras de funcionamento legislativo que tendem a desconcentrar o poder. É
certo que não adota mecanismos de caráter parlamentarista ' voto de confiança e
moção de censura ' como o fazem a Argentina e o Uruguai e, no processo
orçamentário, a interferência do presidente da República é alta. Mas, no geral,
o Brasil apresenta formas de equilíbrio entre poderes que lhe garantem uma
média parcial com tendência à desconcentração.
Por outro lado, a Tabela_13 mostra que a Constituição brasileira oferece
inúmeras possibilidades de controle do Executivo sobre o processo legislativo:
o número de temas legais com exclusividade de origem no Executivo é muito alto,
e ainda há a possibilidade de veto presidencial, pedido de urgência e direito
de editar decretos e leis delegadas. Há, portanto um descompasso entre as duas
orientações: de um lado, a Constituição desconcentra; de outro, ela
centraliza32. A Tabela_13 demonstra que, na média total, ocorre um recuo
significativo na escala em virtude dos poderes constitucionais do presidente da
República. No gráfico, essa situação fica mais visível.
Nota-se assim que, relativamente à concentração ou dispersão de poder, os três
países apresentam significativas diferenças. É claro que para conhecer o
processo político efetivo dessas democracias seria necessário analisar outras
variáveis que não foram consideradas aqui. O artigo também não adota a
preocupação normativa de privilegiar um modelo em lugar de outro. O objetivo
foi apenas mostrar que os sistemas presidencialistas latino-americanos
apresentam desenhos institucionais muito diversos.
NOTAS
1. Além dos vetos institucionais, Tsebelis refere-se também aos veto
playerspartidários, os quais ele descreve detidamente neste artigo. E sugere
que a análise sobre a prerrogativa dos vetos seja ampliada para outras
categorias do sistema.
2. Apenas as tabelas_5 e 8 basearam-se somente nas informações relativas aos
três países, em virtude da ausência de dados mais abrangentes.
3. A prerrogativa da iniciativa popular tem tido muito pouca receptividade nos
países da América Latina em que está regulamentada (10 países), resultando em
um número ínfimo de projetos propostos e um número ainda menor de projetos
aprovados.
4. O Uruguai é o único país da América Latina que prevê essa possibilidade: o
projeto deve conter a assinatura de 10% dos eleitores e ser submetido
imediatamente à decisão popular (art. 331A e B), Constitución de la República
Oriental del Uruguay).
5. Art.114, Reglamento Interno de la Honorable Cámara de Diputados de la
Nación; art. 58, §2ºII, Constituição da República Federativa do Brasil; art.
24, Regulamento Interno da Câmara de Deputados; art. 90, Regulamento Interno do
Senado Federal.
6. E nem se está cogitando aqui que deveria ser assim, pois isso significaria
uma quebra do próprio sentido da representação política.
7. A iniciativa popular é regulada na Argentina pela Lei nº 24.747/96 e no
Brasil pela Lei nº 9.709/88.
8. Brasil: art. 14 e art. 49, XV, Constituição da República Federativa do
Brasil e Lei nº 9.709/98; Argentina: art. 40, Constitución de la Nación
Argentina e Lei nº 25.432/01.
9. Há impedimento de legislar sobre tributos e sobre questões de restrita
iniciativa do Executivo.
10. Na literatura política há controvérsias sobre o efetivo impacto do
federalismo no processo decisório. Um balanço dessa discussão pode ser
encontrado em Stepan (1999). Em relação ao caso brasileiro, autores como Ames
(2003) e Samuels (2003) acreditam que os governadores exercem real capacidade
de veto no Congresso Nacional, enquanto outros, como Cheibub, Figueiredo e
Limongi (2002), defendem opinião oposta.
11. Como se sabe, a câmara baixa (de deputados) representa os cidadãos,
indistintamente. A Venezuela, a partir da Constituição de 1999, tornou-se o
único país latino-americano federalista/unicameral. Ver: Anastasia, Melo e
Santos (2004).
12. No Uruguai, a eleição nas duas casas legislativas dá-se pelo sistema de
representação proporcional, em distrito único nacional (art. 88 e art. 94 a 96,
Constitución de la República Oriental del Uruguay). Sánchez López (2004:87)
analisou o grau de correspondência partidária na composição dos legislativos
bicamerais da América Latina, mostrando que, de modo geral, a representação é
similar nas duas casas. Mas ele salienta que o caso uruguaio se destaca pela
"enorme homogeneidade".
13. O termo "sistema misto", utilizado na Tabela_2, foi retirado de Colomer e
Negretto (2003). Mas é importante lembrar que se trata de uma fórmula
específica, não se referindo ao sistema eleitoral proporcional personalizado,
popularmente conhecido como sistema distrital misto. Para maiores detalhes, ver
nota 15.
14. O argumento de Mariana Llanos, citada por Navarro (2004:75), é que o
Legislativo do Brasil e o da Argentina são simétricos porque o Senado pode
modificar e rechaçar qualquer legislação, assim como apresentar seus próprios
projetos em qualquer área temática e, em caso de desacordo, a decisão final
cabe à câmara de origem. No Uruguai, a solução de conflitos dá-se em assembléia
conjunta das duas câmaras, e como não há contagem separada dos votos, somente a
Câmara Baixa, mais numerosa, pode ter os votos decisivos.
15. No Brasil, são três senadores por estado, eleitos a cada quatro anos para
um mandato de oito anos, alternando-se a magnitude do distrito para uma e duas
cadeiras a cada eleição (art. 46). Na Argentina, a magnitude do distrito é
sempre igual a três, em cada província. Duas cadeiras ficam para o partido mais
votado e a terceira vai para o segundo partido mais votado (art. 54). A eleição
acontece a cada dois anos para um mandato de seis, com uma renovação periódica
de oito províncias a cada eleição (art. 56).
16. No Brasil, a magnitude dos 27 distritos varia entre 8 e 70 cadeiras, com
média igual a 19. Na Argentina, a variação da magnitude nos 24 distritos varia
entre 2 e 35 cadeiras e as eleições são realizadas a cada biênio, renovando-se
sempre 50% das cadeiras da Câmara de Deputados. Assim, a magnitude média na
Argentina é menor que três, provocando grande desproporcionalidade no cálculo
de cadeiras. Ver Anastasia, Melo e Santos (2004).
17. Mainwaring e Shugart (1999) destacam que o sistema uruguaio é sui generis,
pois as listas sobrepostas não favorecem a centralização partidária, mas sim as
facções partidárias; é, portanto, considerado um sistema mais desconcentrado do
que o sistema puro de listas fechadas.
18. Não foram consideradas aqui nem a fórmula eleitoral nem a magnitude do
distrito, que funcionam igualmente como mecanismos de exclusão (Lijphart,
1994). No Brasil, a Lei nº 9.096/95 estabeleceu a cláusula de barreira de 5% a
partir das eleições de 2006, mas o projeto de Reforma Política (PLC nº 2.679/
03) rebaixou esse percentual para 2% nas eleições posteriores a 2006.
19. A idéia é retirada de Sartori (2004), que faz uma ampla discussão sobre os
efeitos dos sistemas eleitorais e partidários sobre o número de partidos
parlamentares.
20. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ' PNUD (2004,
Tabela 37), o índice de desproporcionalidade na Câmara de Deputados entre 1990-
2002 foi de 6,69 na Argentina; 3,81 no Brasil e 0,65 no Uruguai. A média
latino-americana no período foi de 5,63. Segundo a mesma fonte (Tabela 32), no
mesmo período o número de partidos parlamentares efetivos foi de 2,92 na
Argentina; 8,12 no Brasil; 3,19 no Uruguai.
21. Trata-se de uma afirmação polêmica, baseada na suposição de que o poder
Executivo detém o controle do processo Legislativo graças aos recursos
políticos e institucionais que utiliza. Mesmo não acatando integralmente essa
tese, há um consenso de que o Colégio de Líderes centraliza os trabalhos
legislativos nas mãos das lideranças partidárias.
22. O Chile apresenta um caso isolado de exigência de 4/7 dos presentes para
aprovação de lei orgânica, mas a coluna foi eliminada para facilitar a tabela.
23. Na Argentina, são três: direitos civis, políticos e sociais; política de
educação; índios. No Brasil, são 13: direitos civis, políticos e sociais;
administração e emprego público; sistema tributário; orçamento da União;
monopólios da União; política agrícola e fundiária; política de saúde;
previdência, pensões, aposentadorias; assistência social e família; política de
educação; meios de comunicação; meio ambiente; índios. No Uruguai, são 10:
direitos civis, políticos e sociais; administração e emprego público; orçamento
da união; assistência social e família; política de educação; meio ambiente;
serviços estatais (entes autônomos); política industrial; água e saneamento.
24. Accountability Horizontal nos termos de O'Donnell (1998).
25. Segundo os autores, os motivos são: 1) mau desempenho; 2) delitos relativos
ao cargo; 3) delitos comuns; 4) atos que comprometem a segurança e a honra da
nação; 5) infração à Constituição; 6) enriquecimento ilícito; 7) impedimento de
regras democráticas. Na Tabela_6 está assim considerado: 1) mau desempenho; 2)
delitos relativos ao cargo, crime de responsabilidade, atos que comprometem a
nação, infração à Constituição, impedimento às regras democráticas; 3) crimes
comuns e enriquecimento ilícito.
26. Cabe lembrar que Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López (2005b)
também elaboraram um índice de controle, utilizando pontuações e critérios
ligeiramente diferentes. Aplicando-se ao índice deles a divisão de concentração
e dispersão proposta neste trabalho, os resultados serão idênticos.
27. Em todos os casos sempre cabe a iniciativa ao Executivo, mas determinadas
constituições aceitam a iniciativa do Legislativo em casos excepcionais. São
elas as da Bolívia, Panamá e República Dominicana.
28. O grau de iniciativa legislativa do Executivo tende a ser muito alto no
Brasil, alto no Uruguai e mediano na Argentina. Da legislação aprovada na
Argentina, entre 1997 e 2004, 44,55% tiveram origem no Executivo; no Brasil,
esse percentual entre 1989 e 1998 foi de 71%; no Uruguai, foi de 60,60% entre
1995 e 2002 (Alcántara Sáez, García Montero e Sánches López, 2005a, Tabelas 15
e 27; Figueiredo, Limongi e Valente, 2000:53).
29. Brasil, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai (Colomer e Negretto,
2003).
30. Art. 99, 3, Constitución de la Nación Argentina; art. 62, Constituição da
República Federal do Brasil; art. 60, Constitución Política de la República de
Chile; art. 150, 10, Constitución Política de Colombia e art.118, 19,
Constitución Política del Perú.
31. Foram editadas 166 MPs entre janeiro de 2003 e dezembro de 2006 (https://
www.planalto.gov.br/).
32. Como atestam alguns autores, esse determinante constitucional parece
influir decisivamente no processo político: "Considerando-se que os maiores
partidos mal chegam a 20% das cadeiras cada um, isso significa que, desde 1988,
o Executivo tem estado à mercê do Legislativo em todas as questões que envolvem
alteração da Constituição. No sentido inverso, a prerrogativa de legislar por
decreto (MPs) conferiu ao Executivo um poder virtualmente incontrastável em
relação à legislação ordinária. Portanto, não há exagero em afirmar que a
Constituição de 1988 tornou o Congresso refém do Executivo em todas as questões
referentes à legislação ordinária; e o presidente refém do Congresso em tudo
que requer reforma constitucional" (Lamounier, 2005:245).