Democracias Andinas: chegando tarde à festa?
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende examinar as condições socioeconômicas e políticas dos
países andinos na virada do século XX para o XXI, em busca de uma explicação
para a instabilidade política que então caracteriza essa parte da América do
Sul. A suposição inicial é a de que a resposta para as crises institucionais
está em uma contradição fundamental enfrentada pelos estados andinos
contemporâneos, a qual, ao se traduzir em fonte prioritária da insatisfação de
amplos setores da sociedade com o desempenho substantivo da democracia, gera
tipos variados de comportamento desagregador.
Um aspecto compartilhado pelos casos examinados e que se destaca é a
fragmentação social. Ela manifesta-se de diferentes formas e níveis, indo da
guerra civil colombiana ao conflito despertado por populações tradicionais,
regiões e sindicatos na Bolívia, Equador e Peru, passando pela divisão da
sociedade venezuelana. Todas as suas formas de manifestação, porém, têm em
comum um fracionamento estrutural deflagrado por hostilidades intensas entre
grupos políticos e sociais que com freqüência resvalam para a violência.
Não obstante as diferenças observadas caso a caso, em alguma medida toda a
região andina ressente-se de um desequilíbrio institucional provocado pela
polarização de forças, cujo resultado são crises periódicas, enfraquecimento de
governos, recrudescimento de regimes, falta de regras claras de convivência,
enfim, um clima de intranqüilidade e tensão permanente que obstaculiza a ordem
democrática ao mesmo tempo em que revela sua centralidade.
Esse estado crítico em que vivem os Andes, que os uniformiza sem, contudo,
eliminar suas especificidades, precisa ser analisado primeiro no contexto de
democratização e liberalização econômica crescente do mundo desde as últimas
décadas do século XX. Os países andinos talvez sejam os que mais claramente
expressem nesse período a contradição existente entre a liberdade de participar
e contestar dos povos e a dificuldade destes serem atendidos em uma época em
que o Estado nacional perde em autonomia. Em outras palavras, já tendo
experimentado o Estado oligárquico, o Estado populista e diversas variações de
estados autoritários e plutocracias, a América Latina passou nas últimas
décadas a transitar para um Estado democrático-liberal. Esse novo modelo abriga
uma grande incoerência porque a democratização do Estado ocorre em um momento
em que ele não pode ou simplesmente abriu mão de ser instrumento de mudanças na
estrutura social. O que entra em crise e se reforma nos anos 1980 e 1990 é o
próprio Estado. A assimetria das estruturas sociais é preservada.
A novidade desta vez é que movimentos populares crescentes não podem mais ser
simplesmente ignorados ou reprimidos sem maiores conseqüências. A contradição
do novo Estado consiste em ser mais democrático, porém menos capaz, em permitir
a participação e a contestação pública ' segundo eixos dahlseanos (1971) ', com
menos condições para satisfazê-las porque estas foram em grande parte
transferidas para o mercado, que se globalizou, se tornou mais complexo e
demora a apresentar resultados mais positivos.
Um quadro geral, no entanto, pode dar a impressão equivocada de que os Andes
são um bloco homogêneo, o que não é verdade. Cada país desenvolve um processo
político particular, ainda que todos eles tenham semelhanças e possam ser
examinados em conjunto sobre determinado ponto de vista. Suas especificidades,
bem como seus componentes de instabilidade e governo em comum, serão mais
detalhadamente estudados em três partes deste artigo ' as duas primeiras
referem-se às condições socioeconômicas, e a terceira trata de conflitos e
instituições políticas ', após as quais se seguirão algumas conclusões finais.
Cabe ressaltar que a divisão das condições socioeconômicas em duas seções
obedecerá a um critério preliminar às vezes presente no debate público de forma
distorcida, entre variáveis desenvolvimentistas e liberais.
CONDIÇÕES SOCIOECONÔMICAS: VARIÁVEIS "DESENVOLVIMENTISTAS"
Os primeiros anos do novo século repetem o quadro de dificuldades econômicas e
sociais secular na região. Analisado o período pós-transição democrática,
observa-se um crescimento econômico modesto e muito oscilante (cf. Tabela_1). A
média de 1980 a 2005, sendo este último dado ainda apenas uma estimativa, foi
de pouco mais de 2,2%. A Colômbia teve o melhor desempenho (3,0%) e a
Venezuela, o pior deles (1,3%). Há anos de crescimento negativo (1982, 1983,
1989 e 1999), e em apenas cinco oportunidades a região cresceu acima de 4%
(1986, 1991, 1994, 1995 e 2004).
Examinando os casos separadamente, observa-se que os anos 1990 não foram tão
ruins para a Bolívia. Cresceu a maior parte do tempo acima de 4%, caindo o PIB
apenas em 1999, mas voltando a recuperar-se logo nos anos seguintes, ainda que
com menos intensidade. Os anos 1980 foram, sem dúvida, os piores para este
país. Com isso, a série histórica demonstra uma certa tendência positiva,
embora também apresente um teto de 5,3% (1991) e uma média geral baixa de 2,0%.
A Colômbia, por sua vez, manteve sempre um saldo positivo até 1999. Até este
ano, quando experimentou crescimento fortemente negativo de -4,2%, havia
apresentado desempenho próximo a zero apenas em 1982 e 1998. Seus melhores anos
são de 1986 a 1995, alcançando, por sinal, seu maior pico em 1990, quando
obteve um crescimento de 6,0% do PIB. Apresenta, assim, a melhor performance
individual de todos os países andinos nesse quesito.
O Equador teve seu melhor momento na passagem da década de 1980 para a de 1990,
quando alcançou sua mais elevada expansão no PIB (8,4%). Voltou a ter um bom
desempenho após a crise de 1999, ano em que retraiu 6,3%. Aliás, este foi um
ano ruim para todos os países andinos, mergulhados em recessão assim como no
segundo e terceiro anos da década de 1980. O Equador tem tido a melhor atuação
geral nos últimos anos, melhor até mesmo que a Colômbia.
O Peru apresentou um dos quadros de crescimento mais instáveis. Por duas vezes
nos anos 1980 obteve um crescimento negativo de quase 12% (1983 e 1989), os
piores de toda a região. Por outro lado, cresceu 12,8% em 1994, o segundo maior
pico na série andina. Após momentos de grande prosperidade seguiram-se períodos
de crise profunda. Nos quatro últimos anos vem apresentando um crescimento
relativamente positivo, com viés ascendente, ainda que mais modesto do que os
períodos de 1984 a 1987 e 1993 a 1997.
O crescimento venezuelano, por sua vez, um dos mais instáveis na região junto
com o do Peru, destacou-se por registrar o maior salto individual, de 18%, em
2004. Esse recorde foi, em grande medida, decorrente de uma forte recuperação
da crise de 2002 e 2003, anos em que o país decresceu a taxas de 9%, o pior
desempenho andino, comparado apenas à crise peruana no final da década de 1980,
quando também a Venezuela passou por maus momentos. Com isso, não é possível
traçar qualquer tendência para o país, mesmo considerando os anos mais
recentes, que não a de novas oscilações radicais.
O baixo crescimento econômico médio nos Andes acompanha um aumento do
desemprego urbano, que, em toda série histórica, gira em torno de 10% (cf.
Tabela_2). Segundo pesquisa da Organização Internacional do Trabalho ' OIT,
após uma ligeira queda entre os anos 1993 e 1995, o desemprego cresceu,
consistentemente, até superar os 12% em 2003. Este patamar foi excedido apenas
em 1999, quando o desemprego regional atingiu sua maior marca (13,2%).
Individualmente, embora seja o país que mais expandiu o PIB nesse período, a
Colômbia tem a maior taxa média de desemprego (13,5%), seguida da Venezuela
(12,1%), que, como já foi visto, apresentou o pior desempenho econômico. A
menor taxa média de desemprego é a da Bolívia, abrangendo apenas 6,3%, o que é
consistente com seu relativo bom desempenho no PIB ao longo dos anos 1990.
A Bolívia não apenas apresenta as menores taxas médias de desemprego como
também a segunda menor tendência de alta. Contudo, desde 2003, o desemprego
ultrapassou os 9%, aproximando-se do Peru, que tem as taxas mais estáveis da
região, sobretudo nos últimos anos, ao redor de 9,5%. Já o Equador, que também
está pouco abaixo da média geral de desemprego, depois de alguns anos críticos
na passagem da década, assistiu em 2001 a uma queda acentuada nessas taxas,
juntando-se, assim, à Bolívia e ao Peru.
De todos os países, Colômbia e Venezuela são aqueles onde mais facilmente se
observa um crescimento significativo do desemprego. Ambos partem, em 1990, de
uma taxa de 10,5% a 11%, chegando a 16% em 2004, um aumento, portanto, de 5% em
15 anos. O Equador também ampliou o desemprego com intensidade semelhante, mas
em um patamar bem inferior. Existe uma grande oscilação, mas é possível dizer
que a Colômbia ao menos apresenta um leve viés de melhora após o salto de 19,4%
em 1999, por sinal, o maior desemprego de toda esta região.
O aumento do desemprego urbano também é consistente com o crescimento médio da
população nas cidades, embora apresente variações importantes entre os países
(cf. Tabela_3). Todos os países andinos já são predominantemente urbanos no
início da década de 1990. Em geral, entre 1990 e 2004, há um crescimento por
volta de 7% da população urbana, atingindo uma taxa média regional na série
histórica de quase 60%. A série mais estável é a equatoriana, que, aliás,
apresenta a menor taxa de crescimento populacional urbano entre o grupo dos
andinos. O crescimento mais acentuado ocorre na Venezuela (justamente o país
com maior crescimento do desemprego) e, logo em seguida, no Peru (onde o
desemprego cresce menos), ambas populações urbanas já superando inclusive dois
terços do total. O crescimento das cidades é mais atenuado na Colômbia, onde,
no entanto, o desemprego aumentou muito desde 1990, e na Bolívia, onde, ao
contrário, aumentou pouco.
A combinação de baixo crescimento econômico e aumento do desemprego, agora
significativamente mais urbano, parece congelar o cenário social andino nas
últimas décadas, mas apresentando resultados dúbios. Em geral, os indicadores
de pobreza e desigualdade social são menos periódicos e seguros que os
anteriores já analisados (cf. Tabelas_4 e 5). Mas tudo indica, inclusive a
análise de relatórios oficiais e internacionais, que persiste uma enorme dívida
social nesses países. A pobreza continua muito elevada e a desigualdade social
permanece como sendo uma das piores do mundo, a exemplo do restante da América
do Sul, sem sinais de melhora consistente e significativa nesse aspecto a não
ser nos últimos três anos. Na melhor das hipóteses, a pobreza teria diminuído
um pouco, marginalmente, enquanto as assimetrias teriam até mesmo expandido em
alguns casos.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe ' Cepal (2006), a
tendência à melhora nos índices de pobreza em 2005 foi conseqüência
principalmente do crescimento econômico verificado na América Latina. No ano de
2004, o crescimento médio nesses países foi de 5,9%, e, em 2005, foi de 4,7%. O
relatório da Cepal argumenta que a recuperação econômica teve um impacto
positivo sobre os mercados de trabalho e, da mesma forma, sobre a diminuição da
pobreza, apesar do crescimento da informalidade em vários países. Outro fator
salientado foi o baixo índice de inflação (8,5% em 2003 e 7,3% em 2004), que
teve um impacto positivo sobre o poder de compra dos mais pobres.
O país mais pobre entre os andinos continua sendo a Bolívia, com mais de 60% da
população nessa situação, seguido do Peru e depois da Colômbia, Equador e
Venezuela. Há um agravamento do quadro social venezuelano no início dos anos
1990 e, possivelmente, em 2002 e 2003, anos da crise. Uma análise preliminar
mostra ainda um viés de piora no Peru no mesmo ano, mas, por outro lado, também
uma queda brusca da pobreza no Equador e uma queda menor na Colômbia.
Outra condição estrutural andina que não só permaneceu quase intocada, como
também se agravou em alguns casos, foi a dívida pública (cf. Tabelas_6 e 7). A
Colômbia foi o país onde mais ela cresceu nos anos 1990 e no início dos anos
2000, chegando mesmo a duplicar. No Peru, a dívida também cresceu bastante
neste período. Já no Equador e na Bolívia ela cresceu menos, porém com uma
tendência de alta importante. A dívida manteve-se praticamente estável na
Venezuela, com algumas oscilações. Em termos absolutos, as menores dívidas
regionais são a boliviana (5,4 bilhões de dólares) e a equatoriana (16,8
bilhões de dólares), enquanto as maiores são a colombiana (38,7 bilhões de
dólares), venezuelana (33,2 bilhões de dólares) e peruana (29,7 bilhões de
dólares).
De 1995 a 2004, a média regional da relação dívida/PIB diminuiu de 53,6% para
48,6%, variando em torno de 49% nesta série histórica. Isso significa que o
crescimento econômico foi baixo, mas um pouco superior ao crescimento da
dívida, que já não compromete a metade das riquezas produzidas na maior parte
desses países. O pior desempenho nesse sentido é, sem sombra de dúvida, o da
Bolívia, onde a dívida já ocupou 79% do PIB nacional, variando dentro de uma
média individual de 59,6%. Neste país, a relação dívida/PIB caiu bastante entre
1996 e 2002, voltando a subir bruscamente em 2003.
Nos demais países, essa relação é mais equilibrada e inferior a 50%. Na
Colômbia, a tendência é de alta. Na Venezuela, também, mas somente a partir de
2002 (ano de crise), após cair bastante entre 1997 e 2001. Já no Peru e no
Equador, o peso da dívida sobre o PIB vem diminuindo consistentemente,
sobretudo depois de 1999. Ambos os países tinham, em 1995, mais de 60% da
dívida compreendida no PIB. O Equador chegou a bater o recorde em 1999, com
82%, atingindo, em 2004, no entanto, a menor taxa de todos os andinos (36,9%).
O Peru também diminuiu cerca de 20% o peso de sua dívida sobre o PIB,
reduzindo-o para 43,3% em 2004.
Se o endividamento público continua sendo um grande problema nos Andes, a falta
de investimentos diretos nessa região agrava o quadro ainda mais (cf. Tabelas_8
e 9). O investimento produtivo externo nesses países é, de fato, muito baixo e
oscilante. Cresceu em alguns anos na metade da década de 1990, mas voltou a
cair logo depois disso para patamares quase insignificantes. Os países que mais
aproveitaram este breve ciclo de inversões em termos absolutos foram Colômbia e
Venezuela. O Equador, embora não tenha grandes investimentos, os vê aumentando
mais consistentemente. O Peru passou por um bom momento entre 1993 e 1996 e
tornou a se recuperar em 2000, mas de maneira bastante instável. Os
investimentos externos subiram na Bolívia até 2000/2001, começando então a
decair sensivelmente.
O volume dos investimentos diretos nos Andes com relação ao PIB é mínimo.
Poucas vezes ultrapassa 5%. A média na região de 1990 a 2004 é de 3,58%.
Claramente, o peso relativo dos investimentos cresce até 1997, depois decresce
de forma acentuada. O investimento regional parte de um patamar inferior a 1%
em 1990, o que permite que seja facilmente dobrado ou mesmo triplicado, mas,
ainda assim, mantendo-se baixo. Ao contrário do que ocorre com os números
absolutos, a Bolívia aparece com o maior crescimento do percentual de
investimentos com relação a seu PIB. Portanto, apesar de se investir mais na
Venezuela e na Colômbia do que na Bolívia, neste país o peso relativo dos
investimentos é bem maior entre 1995 e 2002. Por outro lado, o Equador
demonstra, também em função do seu produto interno bruto, um crescimento
sustentável até 2001, quando começa a oscilar negativamente.
Considerando todos os aspectos socioeconômicos até aqui vistos, o quadro é
mesmo pouco animador. O crescimento econômico foi pequeno, e o aumento
incipiente nos investimentos produtivos sobre o PIB ' muito aquém até mesmo
para os padrões sul-americanos ' não foi sequer duradouro. As cidades
expandiram-se e o desemprego, junto com elas. A dívida social (pobreza e
desigualdade) arrastou-se, embora tenha havido alguns avanços, tal qual na
dívida pública.
Individualmente, a Bolívia teve melhores indicadores de crescimento e emprego
comparada aos outros países andinos nos anos 1990, mas endividou-se muito nesse
período. Além disso, continuou sendo um país muito pobre e desigual, o mais
pobre dessa sub-região. O valor dos investimentos em relação à riqueza interna
produzida teve um aumento significativo em alguns anos, mas despencou novamente
em 2003 e 2004. A falta de novos investimentos produtivos externos levou a um
endividamento extraordinário. Já a Colômbia foi a que mais cresceu em termos
médios em toda a série histórica, incluindo os anos 1980, ainda que em níveis
insuficientes como mostra o aumento do desemprego no país. O endividamento
colombiano não supera os 50% do PIB, mas vem crescendo. Ademais, as taxas de
investimento são muito baixas e não-sustentáveis.
Algo parecido ocorre com os investimentos na Venezuela. No entanto, neste país,
a dívida é relativamente menor com relação ao PIB e seus vizinhos. O desemprego
tem aumentado, acompanhando grandes oscilações no crescimento econômico.
Conseqüentemente, na melhor das hipóteses, a pobreza e a desigualdade
persistiram. No Peru, o crescimento econômico é altamente instável, mas
apresentou alguma melhora nos anos 2000. O desemprego esteve levemente em alta,
mas, apesar do quadro social permanecer ruim, a dívida pública relativa ao PIB
diminuiu sensivelmente. Por outro lado, caíram bastante os investimentos depois
de subirem em 1994 e 1997.
Finalmente, o Equador cresceu a uma taxa média de 2,5%, pouco superior à média
geral dos Andes. Neste país, o desemprego aumentou como nos demais, porém
ligeiramente abaixo da média. Teve a vantagem de diminuir de forma progressiva
o seu endividamento ao mesmo tempo em que apresentou uma tendência de alta nas
taxas de investimento com relação ao PIB. Nesse sentido, pode-se dizer que seja
o país, no cômputo geral mais recente, com a melhor situação socioeconômica
entre os vizinhos andinos.
CONDIÇÕES SOCIOECONÔMICAS: VARIÁVEIS "LIBERAIS"
Uma divisão entre variáveis desenvolvimentistas e liberais na análise das
condições socioeconômicas, que, por vezes, rivalizam linhas de pensamento sobre
a política macroeconômica, pode produzir distorções graves. Mesmo a inflação,
cujo zelo costuma ser associado a correntes monetaristas e ortodoxas e,
genericamente, mais liberais, tem também implicações para o desenvolvimento.
Esse indicador estaria, a princípio, no rol das variáveis liberais e não nas
desenvolvimentistas porque seu controle leva a uma redução do crescimento
econômico. Ademais, o foco no controle da inflação verificado na segunda metade
dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990 na América do Sul coincidiu com a
hegemonia do ideário neoliberal na região, o que acabou associando a ele o
combate à disparada inflacionária.
De fato, em certos contextos, a exigência de taxas inflacionárias baixas e
declinantes pode surtir efeitos negativos sobre o crescimento no curto prazo.
Mas, em contrapartida, no longo prazo pode significar um crescimento mais
duradouro e equilibrado, ao menos em tese. Além disso, inflação pequena e
crescimento sustentado, ainda que moderado, devem produzir efeitos positivos
sobre a distribuição de renda, um indicador fundamental de desenvolvimento.
Observando os países andinos na passagem do século XX para o XXI, verifica-se
uma queda forte, inequívoca e regular dos índices de preço ao consumidor (cf.
Tabela_10). Apenas no Equador, após 1997, a inflação sofre um aumento brusco, e
na Venezuela, em 2002 (ano da crise). No geral, ela diminui bastante. Com
exceção das taxas venezuelanas, que continuam relativamente altas, todos os
países chegam em 2004 com uma inflação de apenas um dígito. No último ano da
série, a média regional é de 7,6%, variando em torno de 10,6% nos 10 anos
analisados.
Uma das médias mais baixas é a da Bolívia (3%), justamente o país que teve o
melhor crescimento econômico e de emprego nos anos 1990, embora mantivesse suas
dívidas pública e social. O Peru teve uma média ainda menor (2%) que coincide
com a época em que seu crescimento econômico começou a melhorar, a partir de
2000. Por sua vez, as médias inflacionárias mais elevadas no Equador e na
Venezuela não acompanharam taxas de crescimento econômico e investimento
produtivo superiores aos demais países, ao menos significativamente. Ao
contrário, o momento em que o Equador melhor esteve, em termos de crescimento,
emprego e dívida, foi quando a inflação declinou fortemente. O mesmo não pode
ser dito, no entanto, da Colômbia, onde a queda contínua das taxas de inflação
pouco ou nada repercutiu favoravelmente no desempenho econômico do país.
Outra variável comumente associada ao neoliberalismo é o comércio exterior.
Embora esta tenha sido uma variável fundamental no modelo nacional
desenvolvimentista, seja em sua etapa de substituição de importações seja em
sua fase mais internacionalista, costuma-se associá-la à agenda de reformas em
direção ao mercado por causa dos choques de abertura comercial e liberalização
que marcaram os anos 1990. Isso de fato ocorreu, com maior ou menor
intensidade, mas nada impedia que o comércio fosse também um instrumento de
desenvolvimento desde que obedecesse a critérios como a ampliação do mercado
interno, aumento equilibrado da renda per capita e industrialização da
economia.
O comércio só pode ser considerado uma variável estritamente liberal e não-
desenvolvimentista quando sua abertura torna a economia nacional menos
diversificada, competitiva, justa e produtiva. Uma das formas freqüentes na
América do Sul de o comércio não promover o desenvolvimento é tornando ou
preservando a natureza primário-exportadora de suas economias, o que as
caracteriza historicamente. Mas, ainda assim, não há nada inerente ao comércio
externo que diga que o protecionismo seja desenvolvimentista per se, da mesma
maneira que sua abertura não possa servir a um projeto de desenvolvimento.
Em todo caso, entre 1990 e 2004, as importações dos países andinos mostram uma
tendência de aumento (cf. Tabela_11). As curvas são irregulares, mas
ascendentes, com exceção talvez da Bolívia depois de 1999. O mesmo pode-se
dizer das exportações, com destaque para a Venezuela, a maior exportadora entre
os cinco países examinados (cf. Tabela_12). Já a análise da balança comercial
demonstra ser na maior parte do tempo deficitária, sobretudo entre 1992 e 1999,
menos na Venezuela, onde as exportações são bem superiores e crescem muito
acima das importações. O Equador tem obtido pequenos superávits comerciais,
embora apresente piora a partir do ano 2000 (cf. Tabela_13).
A análise do comércio exterior andino desde a última década do século XX sugere
a existência de um processo de integração internacional desfavorável. As
políticas de liberalização têm continuamente ampliado as trocas comerciais sem,
no entanto, promover saldos positivos na maioria dos países e dos anos da série
histórica. O único desempenho excepcional é mesmo o venezuelano, cujo principal
produto de exportação é o petróleo. Nos demais casos, observa-se que o comércio
exterior é uma variável que tem tido um papel menos relevante para o
desenvolvimento, não constituindo um instrumento efetivo de expansão econômica.
Sua liberalização exerce pouco impacto sobre a estrutura das economias andinas,
que se mantêm primário-exportadoras e altamente dependentes da importação de
produtos industrializados.
O índice de liberdade econômica, por seu turno, medido por uma fundação
estrangeira (The Heritage Foundation), mostra que a região como um todo tem se
mantido na categoria "parcialmente não-livre", girando em torno de 3,1 na média
(cf. Tabela_14). Isto significa que, apesar dos esforços de liberalização e de
toda a agenda de reformas, incluindo o comércio, os mercados andinos ainda
estariam muito fechados. Acima da média, isto é, ainda menos abertos, apenas
Venezuela e Equador, outro exportador de petróleo. As economias mais livres
seriam, em primeiro lugar, a Bolívia, logo em seguida o Peru (ambas na
categoria "parcialmente livre") e, depois, a Colômbia, que pouco variou. Nenhum
dos casos andinos, contudo, apresenta uma tendência de liberdade econômica
muito bem definida, com exceção da Venezuela, que em 2004 já é considerada uma
economia denominada "repressiva" ou não-livre, embora seja o país que mais
tenha ampliado suas relações comerciais externas.
Todos esses dados analisados em conjunto, independentemente de suas
classificações, apontam para o fato de que as políticas neoliberais dos anos
1990 não foram responsáveis por todo o mal social nos Andes. Na realidade, a
pobreza e a desigualdade são problemas mais antigos e que encontram raízes
estruturais na sociedade, tendo sofrido alterações variadas entre os países,
nem todas elas necessariamente negativas. No entanto, por outro lado, a agenda
de reformas liberalizantes tampouco chegou perto de alcançar os efeitos
positivos inicialmente prometidos. A agenda de reformas fundadas no consenso de
Washington e defendidas pelos organismos econômicos internacionais reduziu
ainda mais as margens de manobra do Estado, reproduzindo seu problema fiscal,
em uma espécie de remédio que mantém o paciente inerte.
Além disso, os custos exigidos pela reforma em direção ao mercado, que se
refletem, por exemplo, no endividamento público e no aumento do desemprego,
superaram muito os seus benefícios, em parte devido a restrições de ordem
maior, internacional e sistêmica, em parte porque a liberalização não obedeceu
a uma lógica de desenvolvimento. Daí o fato de essas variáveis, liberais e
desenvolvimentistas, virem dissociadas na prática, quando teoricamente não
estariam. De qualquer forma, o controle inflacionário que contou a favor da
adoção dessa agenda transformou-se em ilha de ilusões que encobriu a manutenção
de graves deformidades estruturais e assimetrias, entre as quais, uma grande
concentração de renda e uma economia primário-exportadora que, na maior parte
dos casos, é também deficitária.
Enfim, preservou-se entre os países andinos sua qualidade de subdesenvolvimento
mesmo em termos agregados, como demonstra uma análise final da renda per capita
entre 1990 e 2004 (cf. Tabela_15). Apenas a Venezuela apresentou uma tendência
de progresso vigoroso nesse período, ainda que instável e dependente do preço
do barril de petróleo. Os demais não experimentaram um salto significativo e
ordenado, mantendo-se, com leve melhora neste quesito, após pelo menos 15 ou 20
anos de ajustes econômicos, na categoria de países pobres com renda inferior a
US$ 2.500 per capita. Um quadro problemático e avanços tão lentos somam-se a um
Estado ainda mais combalido, fragmentado e que sofre fortes pressões por
democratização, como será observado a seguir.
CONFLITOS E INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
Enquanto a região apresentava poucos avanços na dimensão socioeconômica em
direção ao desenvolvimento, no interior das democracias andinas observam-se
importantes mudanças políticas. Essas mudanças serão objeto de análise mais
cuidadosa nesta seção do trabalho, tomando por base principalmente o banco de
eventos organizado pelo OPSA, que traz informações diversas, detalhadas e
indexadas sobre episódios políticos ocorridos em cada país da região desde
20011.
Primeiramente, é importante salientar a existência de variações e padrões
distintos na mudança política de países andinos no fim do século XX. A Colômbia
e, sobretudo, a Venezuela foram por muito tempo tidas como modelos de
democracia estável na América do Sul. Mesmo que estes países não fossem tão
democráticos como se imaginava, ao menos destoavam dos regimes militares
espalhados à época pela região. De qualquer forma, nos anos 1990 perderam esse
status por razões distintas: os colombianos porque conviveram com o
recrudescimento da guerra civil quando menos se esperava que isso fosse
ocorrer; e os venezuelanos porque acompanharam o desmanche do seu sistema
partidário e a posterior ascensão de Hugo Chávez, uma liderança carismática que
entra imediatamente em choque com as forças políticas mais tradicionais do
país.
Há décadas a Colômbia arrasta uma das piores guerras civis que já se viu na
região. Muito violenta, ela já matou milhares de civis, guerrilheiros e
militares. Em 2002, com a eleição do conservador Álvaro Uribe, teve início nova
tentativa de pacificação. Apesar de alguns avanços, como a desmobilização
parcial das Autodefesas Unidas da Colômbia ' AUC, negociações com o Exército de
Libertação Nacional ' ELN e até mesmo com as Forças Revolucionárias da Colômbia
' Farc, o problema de segurança colombiano ainda impede o fortalecimento das
instituições democráticas. A Colômbia caracteriza um tipo de conflito não-
institucionalizado, no qual nem todos os atores políticos e sociais aceitam
atuar conforme as regras do jogo. A questão central neste país, portanto,
continua sendo a falta de adesão plena ao regime político e, conseqüentemente,
ao Estado democrático-liberal. Adicionando a isso a herança da militarização e
a centralidade assumida pela questão de segurança, tem-se então outro caso
bastante particular (cf. Boudon, 2000; Gutiérrez Sanín, 2003; Livingstone,
2004; Safford e Palacios, 2002; Tanaka, 2001).
Parte importante do território colombiano não é controlada pelo Estado, mas
pelas guerrilhas, que ainda relutam em aderir às instituições formais do país.
Com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, essas forças revolucionárias de
esquerda perderam sua fonte principal de financiamento. Desde então, elas são
acusadas de associarem-se ao narcotráfico para sobreviver, perpetuando, dessa
forma, uma luta que já parecia perdida e sem nenhum respaldo internacional.
Enquanto isso, a democracia no país permanece instável, refém do passado, mas
também de dificuldades econômicas e sociais perenes, que servem de combustível
extra para a própria guerra civil.
Já as relações políticas mais institucionalizadas, aquelas que ocorrem dentro
do Estado, pouco contribuem para a estabilização do regime. Não apenas estão
desconectadas com a realidade violenta do país, como ainda esbarram em disputas
ordinárias que fragmentam ainda mais o sistema político. Uma demonstração disso
é a criação do partido uribista no fim de 2005. Em função do presidente e das
circunstâncias de poder, a direita do país divide-se mais uma vez, constituindo
uma nova agremiação que, além de personalista, enfraquece ainda mais os
partidos políticos. É importante ressaltar que nas eleições de 2002, pela
primeira vez, em décadas, um candidato fora dos grandes partidos colombianos '
Partido Liberal ' PL e Partido Social Conservador ' PSC ' chega à Presidência
do país. Nestas mesmas eleições, os partidos chamados de independentes obtêm um
número extraordinário de cadeiras no Legislativo nacional, tanto na Câmara
quanto no Senado, acabando com uma maioria unipartidária até então nas mãos do
PL.
A Venezuela, por sua vez, tal qual a Colômbia, não passou pela experiência de
governos autoritários durante os anos 1960/1970, como, de resto, toda a região.
Por 40 anos viveu sobre o pacto do Punto Fijo, um acordo realizado em 1958 de
alternância entre o Partido Democrático ' AD e os democrata-cristãos da Comitê
de Organização Política Eleitoral Independente ' COPEI. Nos anos 1990, este
pacto, cuja tentativa de golpe em 1992 é apenas um dos sinais, entra em crise.
A partir de então, rumores de novos golpes, revoltas sociais, estados de
exceção e processos de interrupção de mandato presidencial tornam-se rotina.
Por entre a crise do sistema bipartidário, surge Hugo Chávez, que vence as
eleições de 1998 e acelera a derrocada das forças políticas mais tradicionais
no país (cf. Burt e Maureci, 2004; Solimano, 2003; Tanaka, 2001; Anastasia,
Ranulfo e Santos, 2004).
Em 1999, as mudanças políticas que já se insinuavam ao longo da década iniciam
uma nova fase com a escalada da hegemonia chavista sobre o entulho do velho
regime, corrompido e desacreditado. Inicialmente, o que se observa é uma feroz
luta política entre o grupo de Chávez e as antigas oligarquias, aliadas a
sindicatos, que ainda tentavam resistir às mudanças, chegando até mesmo a
encampar um golpe de Estado em 2002, que além de fracassar revelou a natureza
pouco democrática da oposição. Gradativamente, Chávez vai consolidando e
concentrando poder. O embate decisivo foi o referendo de 2004, quando a
população, ao não concordar com novas eleições, ratifica uma vez mais seu apoio
a Chávez, minando, definitivamente, as forças opositoras.
As oposições ainda tentam deslegitimar as eleições legislativas de dezembro de
2005, retirando-se da competição, mas conseguindo, com isso, apenas a sua auto-
exclusão do processo político, sabidamente favorável ao governo. Nesse
episódio, a divisão do país, que durante alguns anos flertou com a
possibilidade de guerra interna, deflagrando momentos de ruptura institucional,
aparentemente perde intensidade e começa a ser colocada em outros termos. Ao
mesmo tempo em que a oposição é derrotada, a sociedade revela-se enfastiada com
o conflito. Não à toa cresce o grupo dos "ni-ni" ' nem chavistas nem
antichavistas ', um movimento que surge no referendo de 2004 e que ocupa o
centro do espectro político, em uma espécie de síntese do conflito que marcou a
passagem de século. No entanto, como este movimento inicialmente não encontra
correspondência partidária, o que se constata, na prática, é a consolidação da
hegemonia de Chávez.
Hugo Chávez concentrou poderes rompendo a antiga correlação de forças, vencendo
eleições locais e nacionais, ampliando sua base de sustentação parlamentar,
reformando a Constituição, controlando as cortes de Justiça, o Ministério
Público, o Conselho Nacional Eleitoral ' CNE, a polícia, as Forças Armadas,
criando novas milícias e as chamadas missões, responsáveis por boa parte da
implementação das políticas sociais do governo. Em que pesem as acusações de
autoritarismo, fez tudo isso de forma legal e referendada pela população, que o
elegeu em 1999, o reconduziu em 2000, o apoiou no referendo de 2004 e deu
vitória a seus aliados nas eleições legislativas nacionais de 2005, em uma
disputa que os próprios observadores internacionais classificaram como limpa e
justa, ao contrário do que afirmou a oposição.
A despeito de Chávez ter realizado todas essas mudanças de maneira formalmente
democrática e da oposição ser do tipo oligárquica, nutrir uma cultura golpista
e contar com o apoio da mídia privada e a anuência dos Estados Unidos, a nova
concentração de poderes introduziu um inequívoco desequilíbrio nos pesos e
contrapesos institucionais estabelecidos no país, junto com a possibilidade de
violações da liberdade por meio de censura e perseguição política. O caráter
popular e hegemônico do governo Chávez interrompeu um modelo político centrado
nas elites econômicas e sindicais, liquidando a plutocracia que vigorou por 40
anos na Venezuela, mas também trouxe novos problemas.
Ao mesmo tempo em que o governo promoveu a mobilização e a inclusão política de
grande parte da população não-organizada, um ambiente altamente radicalizado
levou-o a uma posição de intransigência com relação a seus opositores e a
qualquer mecanismo contra-hegemônico. Ademais, a ênfase sobre um modelo de
democracia participativa enfraqueceu as instituições representativas e de
intermediação que organizavam a vida política do país, verticalizando, assim,
um processo de fragmentação que já se havia instalado horizontalmente na
sociedade.
Embora existam muitas diferenças nas mudanças políticas observadas na Colômbia
e na Venezuela, há algo em comum entre elas: a crise dos partidos tradicionais
seguida de uma institucionalidade ainda mais centrada na figura do presidente,
seja ele de direita ou de esquerda. Há ainda a semelhança de que, em ambos os
casos, essas mudanças no âmbito das instituições, sobretudo partidárias,
somaram-se a uma cisão nacional paralelamente conflituosa, com diferenças
marcantes de natureza, grau e historicidade. O conflito colombiano é mais
antigo (remanescente da Guerra Fria), violento (conflito armado, guerra civil)
e foi relativamente atenuado durante o governo Uribe, enquanto o conflito
venezuelano é mais novo (pós-Guerra Fria) e menos virulento, embora tenha se
intensificado bastante no governo Chávez.
Já mais ao sul dos Andes, observa-se outra mudança política importante na
passagem de século. Depois da transição para a democracia, Equador, Peru e
Bolívia enfrentam nos anos 1990 o fortalecimento dos movimentos populares; um
deles em especial: o movimento de populações tradicionais. Estes países formam
o chamado arco indígena, composto, sobretudo, por quéchuas e aymaras. Grande
parte das revoltas sociais que eclodem durante todo esse período envolvem tais
grupos, que reiniciam uma onda de reivindicações sufocadas pelos governos
autoritários (os anos 1990 consolidam o renascimento cultural indígena e
revigoram a luta pela terra).
Equador e Bolívia são países que têm movimentos indígenas bastante amplos e
atuantes. No Peru, suas demandas misturam-se mais às dos sindicatos e
camponeses comuns. Estes movimentos reclamam melhores condições de vida e
participação política, passando ainda pela valorização de sua identidade
étnica. Suas reivindicações são, portanto, de ordem material, mas também
simbólica e política. Elas ajudam a impulsionar um processo de fragmentação e
conflito dentro da sociedade e entre a sociedade e o Estado, incluindo
conflitos de natureza regional (cf. Burt e Maureci, 2004; Crabtree e Whitehead,
2001; Dávalos, 2005; Martí I Puig e Sanahuja, 2004; Solimano, 2003).
Os conflitos sociais equatorianos e bolivianos guardam algumas semelhanças e,
por isso, podem ser analisados conjuntamente até certo ponto. Eles alimentam um
quadro crônico de instabilidade política que geralmente se manifesta em
revoltas e pressões seguidas de estados de exceção e, por vezes, interrupções
de mandatos presidenciais e até mesmo golpes de Estado, a exemplo da deposição
do presidente equatoriano Jamil Mahuad em 2000. Tanto no Equador quanto na
Bolívia os movimentos indígenas têm despertado grande inquietação nas elites
locais, aprofundando uma clivagem social de natureza étnica para além dos
conflitos de classe já conhecidos na região. Algumas de suas lideranças mais
radicais chegaram ao extremo de propor a formação de um "Estado" indígena que
reunisse povos tradicionais à margem das instituições oficiais. Não encontram
respaldo para tanto, mas, de qualquer forma, demonstram com isso um profundo
desconforto e insatisfação com o Estado vigente, pretendendo a sua superação.
Esses movimentos foram capazes de eleger presidentes. No Equador, Lúcio
Gutiérrez foi eleito em 2003 pela Sociedade Patriótica ' SP com uma agenda de
mudanças bastante à esquerda e nacionalista, bandeira esta, curiosamente,
sensível às organizações indígenas. Embora não fosse de ascendência indígena,
Gutiérrez atraiu esses movimentos com um discurso fortemente contra o
neoliberalismo e a corrupção. Toma como modelo o próprio venezuelano Hugo
Chávez e inflama os povos contra as oligarquias e o imperialismo norte-
americano.
No entanto, uma vez no poder, Gutiérrez trai suas promessas de campanha, em um
típico caso de policy switch (estelionato eleitoral), com a manutenção de uma
agenda liberalizante que ele supostamente deveria combater. Ao fazer isso, a
perda de popularidade do presidente é acentuada, tornando-se insustentável a
partir do final de 2004, quando tenta modificar a composição da Corte Suprema
de Justiça ' CSJ. Os protestos intensificaram-se no início de 2005,
desrespeitando inclusive o decreto de estado de exceção, um instituto tão
utilizado quanto pouco eficaz nos anos 1990 (no Equador, esse mecanismo que
suspende temporariamente direitos civis é chamado de estado de emergência).
Gutiérrez não suporta as pressões e, após um processo de destituição bastante
polêmico, transforma-se em mais um presidente asilado, assim como seus
antecessores Abdulá Bucaram e Gustavo Novoa. Em seu lugar, assume Alfredo
Palácio, que não demora a se ver também pressionado entre duas forças
antagônicas: de um lado, os movimentos sociais, de outro, as elites econômicas,
cada qual se apoiando externa e respectivamente nos governos venezuelano, de
Hugo Chávez, e norte-americano, de George W. Bush.
Nessa batalha, mais uma vez, vence a manutenção da política econômica herdada
das reformas orientadas ao mercado. Vence a continuidade, por exemplo, das
negociações em torno de um Tratado de Livre Comércio ' TLC com os Estados
Unidos, o que leva Palácio a perder sua base de sustentação social recém-
conquistada. No meio disso, o novo presidente propõe uma Assembléia Nacional
Constituinte com amplos poderes, proposta esta que logo enfrenta grande
oposição no Legislativo e no Tribunal Supremo Eleitoral, e lança o país em nova
crise, revivendo, assim, uma espiral de conflitos que manteve a rotina de
instabilidade na democracia equatoriana sem perspectiva de solução, mesmo a
despeito das tentativas institucionais de Palácio refletidas na criação do
Sistema de Concertação com a Sociedade Civil e do Conselho Nacional de
Modernização ' Conam, órgãos dirigidos ao aperfeiçoamento das relações entre o
Estado e a sociedade.
O Equador não tem contado com um corpo estável de regras constitucionais. Já em
1997, realizou-se uma Assembléia Constituinte para a elaboração de uma nova
Carta que passaria a regular as práticas políticas do país. Uma rotina de
reformas institucionais como esta evidenciou a falta de coesão interna quanto
ao marco normativo, configurando-se como elemento central da crise dos partidos
e das relações Executivo-Legislativo. A partir de 1994, após consulta popular
(mecanismo muito usado), o Equador também experimentou a participação dos
independientes ou movimentos sociais (agrupamentos sem requisito de afiliação
partidária). A dificuldade em construir maiorias parlamentares e sociais fez
com que os presidentes equatorianos dispusessem de períodos relativamente
curtos de cooperação com o Congresso, entre um e dois anos, depois dos quais o
sistema entrava irremediavelmente em crise.
A Bolívia apresenta um fenômeno semelhante de deterioração do sistema
partidário acompanhado por uma escalada de conflitos étnicos, setoriais e entre
regiões do país (oriente versus ocidente). Provavelmente é o caso mais claro da
força exercida pelos movimentos sociais, sobretudo indígenas, no sentido de
aprofundamento da democracia. Da mesma forma, é o caso mais proeminente de
demandas por inclusão política, tendo em vista enormes distorções e assimetrias
de representação nas instituições estatais, sejam elas legislativas,
executivas, judiciais ou mesmo militares, ainda existentes em uma sociedade
composta por dois terços de populações indígenas.
Após a transição, o governo de Victor Paz Estenssoro, do Movimento Nacionalista
Revolucionário ' MNR, forjou um pacto pela democracia com a Ação Democrática
Nacionalista ' ADN e deu início a um programa de reformas estruturais. Em 29 de
agosto de 1985, foi instituído o primeiro ato neoliberal em um governo sul-
americano democrático, o decreto 21.060, que obedece a recomendações do Fundo
Monetário Internacional (cf. Hofmeister, 2004). Em 1989, definiu-se outro
acordo, agora entre ADN e o Movimento da Esquerda Revolucionária ' MIR, que
elegeu Jaime Paz Zamora (MIR), apesar de não ser o candidato mais votado. Vale
salientar que, na Bolívia, caso nenhum dos candidatos consiga a maioria dos
votos (50%+1) em eleição direta, o Congresso é quem escolhe o presidente em
segundo turno, prática que se tornou habitual e uma das principais responsáveis
pelo déficit de legitimidade dos governos.
A democracia pactuada começou a entrar em crise na Bolívia já no fim dos anos
1990, depois do término do primeiro governo de Gonzalo Sanchez de Lozada (1994-
1998). O ressentimento herdado da ditadura contra o novo presidente e ex-
general Hugo Banzer (1998-2002), somado à crise econômica e ao auge da campanha
de erradicação da coca (cultura tradicional na Bolívia), impulsionou grandes
mobilizações sociais, das quais emergiu com vigor o Movimento ao Socialismo '
MAS, do cocalero Evo Morales. A partir de então ocorreu uma seqüência de
protestos mais intensos: a guerra das águas, em 2000 (quando os movimentos
sociais de Cochabamba conseguem impedir a privatização do serviço de
distribuição); a guerra do gás que tomou conta do país em 2003, levando à
deposição do presidente Sanchez de Lozada (no seu segundo mandato
presidencial); e o conflito final, em 2005, cuja renúncia de Carlos Mesa levou
à ascensão de um governo provisório, tendo à frente Eduardo Rodrigues (juiz e
então presidente da Corte Suprema).
O resultado dessa escalada de conflitos foi a vitória de Evo Morales nas
eleições antecipadas de 2005, obtendo a maioria dos votos (51%) e ampla
vantagem sobre o segundo colocado, Jorge Quiroga (Poder Democrático e Social '
Podemos). O líder sindicalista e primeiro presidente boliviano de origem
indígena conquistou a maioria na Câmara, inaugurando, assim, um novo quadro
político na Bolívia. Sobre os escombros dos antigos partidos, nasceu um sistema
bipartidário dividido entre o MAS e o Podemos, preservando, contudo, o desafio
do governo em conciliar uma enorme lista de demandas sociais que inclui a
realização de reforma agrária, uma nova regulamentação quanto à plantação de
coca, a nacionalização dos recursos naturais e a convocação de uma Assembléia
Constituinte.
Já no Peru, embora tenha também uma grande população indígena, o corte étnico
não teve o mesmo peso em sua fragmentação e conflitos como no Equador e,
principalmente, na Bolívia, seja porque falte uma organização nacional desse
movimento seja porque ele se mistura à luta camponesa peruana de natureza mais
classista, setorial ou mesmo regional. De todo modo, a história recente do Peru
guarda uma particularidade e diferença com relação a todos os outros andinos; a
existência de um governo autoritário após o autogolpe de 1992, perpetrado por
Alberto Fujimori já em um contexto em que a democracia é hegemônica na região
(Coutinho, 2005; Anastasia, Ranulfo e Santos, 2004; Tanaka, 2001).
A ruptura institucional peruana destoa em sua vizinhança não pelo golpe
propriamente, mas porque a ele prosseguiu o endurecimento do regime que se
prolongou por toda a década. A fujimorização do Peru assistiu ao fim da guerra
civil (uma das mais sangrentas na América Latina), a um processo de
deterioração generalizada das instituições e ao domínio da doutrina neoliberal.
Com a queda de Fujimori em 2000, Alejandro Toledo do Peru Possível ' PP é
eleito, herdando um Estado completamente corrompido e uma enorme insatisfação
popular que, a partir desse momento, se libera do controle exercido pelo velho
regime.
Uma vez no poder, Toledo realiza uma aliança com a Frente Independente
Moralizadora ' FIM, o que já sinaliza negativamente para os movimentos sociais
que o ajudaram a se eleger, uma vez que se tratava de uma coalizão mais à
direita. Faz isso para obter uma pequena maioria, arregimentando também apoios
circunstanciais de outros partidos menores. Toledo enfrenta sua primeira grande
crise em 2002, quando é obrigado a decretar um estado de exceção em certas
localidades do país onde há grande agitação nas ruas. Em 2003, deflagra-se
outra crise, mais uma vez despertada por revoltas sociais espalhadas por boa
parte do país. Novo estado de exceção é decretado e, mais uma vez, os militares
saem às ruas para restaurar a ordem.
As crises não cessam, quase todas implicando em reformas no ministério e em
ameaças à permanência do presidente. Toledo perde quase todo apoio social. Sua
popularidade cai para níveis muito baixos, chegando a 6% no final de 2004. Na
virada de ano, para 2005, ocorre outro levante, agora em forma de quartelada,
que as autoridades logo conseguem abafar com novo estado de emergência
instituído por Toledo. O presidente sobrevive a todas essas ondas de protesto e
intentonas graças a um grande medo espalhado no país de novo retrocesso
institucional, uma vez que a memória de Fujimori continuava viva. Outro fator
que mantinha Toledo no cargo era a falta de uma oposição capaz de assumir o
país. Nesse momento, o Peru viveu uma espécie de equilíbrio instável à espera
das eleições de 2006, enquanto se acomodava o quadro partidário nacional com a
emergência de novas lideranças e frentes partidárias, em particular, Lourdes
Flores, da Unidade Nacional ' UN, e Ollanta Humala, oriundo de um grupo
nacionalista mais radical (etnocacerismo). Eles passam a disputar espaços com
os antigos partidos Aliança Popular Revolucionária Americana ' Apra e Ação
Popular ' AP, liderados, respectivamente, pelos ex-presidentes Alan García e
Valentín Paniagua.
Observando comparativamente todos os países andinos, chega-se à conclusão de
que, na passagem de século, esteve em andamento um profundo processo de mudança
política que se refletiu fortemente no comportamento dos atores políticos e
sociais, gerando crises institucionais em todo esse período. Não obstante suas
diferenças, que são bastante importantes, a fragmentação e os conflitos
apontados em cada um desses países são indícios de um mesmo movimento de
democratização que vai de encontro à capacidade de resposta do Estado
(capacidade ainda mais reduzida com as reformas em direção ao mercado) em
satisfazer os anseios mais populares ou mesmo em coordenar as relações
políticas que então emergem.
Essa mudança de comportamento é reveladora de novos valores e elementos
presentes na cultura política e que se consolidam, sobretudo, nos anos 2000.
Entre eles, merecem destaque os sentimentos étnicos, nacionalistas,
antineoliberais e de crítica às instituições políticas tradicionais. Todos
esses sentimentos misturam-se em um caldo de cultura que se resume no signo da
inclusão, tanto do ponto de vista do agrupamento no Estado quanto da dimensão
social de bem-estar. Essa nova constelação de idéias e sentidos, que de alguma
forma recupera símbolos antigos, passa a orientar o comportamento político em
busca de uma acomodação dificultada pela inépcia do Estado e por um ordenamento
econômico que não se limita aos Andes, mas no qual o mercado assume
proeminência.
A crise dos partidos políticos é nesse período sintomática do descontentamento
com as instituições políticas tradicionais. Os cidadãos sul-americanos
compartilham dos princípios e valores democráticos, mas também desconfiam muito
fortemente dos políticos, das instituições representativas e das políticas
públicas que costumam ser implementadas, o que tem provocado uma baixa
preferência pela democracia em toda a região, mas em particular na América
Andina, onde haveria a menor proporção de "democratas" segundo o relatório das
Nações Unidas sobre o tema (cf. PNUD, 2004). O enfraquecimento ou mesmo o
colapso dos partidos hegemônicos e mais antigos na virada de século é, ao mesmo
tempo, resultado dessa nova cultura política andina e ingrediente de
instabilidade, uma vez que a ausência de mecanismos de intermediação
institucional entre o Estado e a sociedade faz com que as pressões sociais não
encontrem um canal de interlocução ou formas de acomodar os conflitos como
anteriormente. Tampouco os governos dispõem de atores e instituições com
credibilidade junto aos movimentos sociais.
As exceções com relativa reserva de credibilidade social reduzem-se justamente
aos novos governos e partidos de caráter mais popular, como o de Chávez e
Morales, que ascendem ao poder, em grande medida, devido à nova cultura
política emergente em partes da região2. Nesses casos, de gobiernos de las
calles, nota-se uma tentativa de recuperação das responsabilidades do Estado e
uma maior aproximação com setores mobilizados da sociedade e até então
marginalizados. Mas, por outro lado, também são crescentes nesses países os
embates com as velhas oligarquias e o mercado, o que acaba aprofundando as
divisões nacionais e reproduzindo um ambiente de instabilidade. Na Colômbia, é
importante salientar, a credibilidade e a aceitação conquistada pelo governo
Uribe não atinge todo território nacional, uma vez que grande parte deste ainda
está sob o controle de forças subversivas que relutam em legitimar o Estado
democrático-liberal. Além disso, o próprio uribismo é prova mais do que
suficiente da falência partidária e fragmentação social também observada neste
país, apesar de todas as suas excepcionalidades.
CONCLUSÃO
Com as reformas liberalizantes na última década do século XX e com todas as
transformações globais já em andamento, os estados andinos acabaram perdendo
poder e autonomia. A crise fiscal do Estado não foi resolvida nesses países e o
endividamento público agravou ainda mais o problema. Paralelamente, os
mecanismos de controle e intervenção econômica foram reduzidos, sem que, em seu
lugar, o mercado oferecesse grandes resultados. Quando, então, a sociedade
expande suas expectativas e demandas vis-à-vis o processo de democratização dos
regimes políticos e, dessa forma, começa a participar mais livre e ativamente
da vida pública, encontra um Estado "esvaziado".
Mesmo com a inclusão política ' incorporação de representantes nas instituições
e deliberações do Estado ', os graus de liberdade ou as margens de manobra para
a promoção de uma maior mudança nas estruturas sociais (no status quo) são
muito pequenos. Fica, portanto, a impressão de que se chegou tarde à festa, de
tomar parte de um Estado que já desempenhou um papel relevante para o
desenvolvimento, mas que agora não dispõe dos poderes de antes, justamente em
uma época de retração do capitalismo mundial depois de décadas de forte
crescimento.
Essa aparente contradição do Estado democrático-liberal, um Estado que
supostamente seria de soberania popular, reserva um trágico período para os
países andinos, mergulhados em crises institucionais sucessivas. Seu paradoxo
está mesmo na base da insatisfação da maior parte da sociedade, não com as
instituições democráticas propriamente ditas, mas com o fato de o poder ter se
transferido para fora delas, de não estar mais nos partidos, no Parlamento e
mesmo no governo, ou seja, nos fóruns da política por excelência, mas em
instituições intangíveis, supranacionais ou simplesmente fora do alcance de
nações situadas à margem do novo ordenamento internacional, que nele encontram
dificuldade até mesmo para uma inserção periférica como no passado. Em um
quadro como esse, em que o espaço político nacional é um lugar de decisões
menos efetivo e repleto de expectativas de quem nele ingressa, desenvolve-se um
ambiente de perplexidade, apatia e revolta.
Cotejando os países andinos, identifica-se a existência de diferentes processos
de fragmentação e conflito movidos por um anseio em comum de inclusão política
e social. Os estados andinos contemporâneos dão vazão a essa demanda, realçando
formas variadas de comportamento político, mas esbarrando em suas próprias
limitações. Estes são problemas de um Estado que, em um só tempo, se politizou,
posto que democrático, e perdeu centralidade, posto que se liberaliza. A
percepção das diferenças e a mobilização de interesses cultivaram formas
distintas de comportamento político, mas todas elas tão desagregadoras quanto
imbuídas de um espírito inclusivo. Como o Estado não consegue automaticamente
responder às demandas sociais, e tampouco o mercado, deflagra um conflito em
busca de nova acomodação, que demora muito a acontecer.
A constatação de não encontrar mais no Estado um instrumento de transformação
social, tendo finalmente maior acesso a ele, frustra grande parte da população.
Afinal, ao contrário do que esperariam teorias da modernização (cf. Lipset,
1963), trata-se de experiências democráticas sem desenvolvimento, de
poliarquias sem resultados concretos mais animadores. De certo modo, essa
discussão ressuscita toda uma linha interpretativa que enxerga na participação
um risco para a democracia com o argumento da sobrecarga e questionamento
permanente das decisões (cf. Huntington e Nelson, 1976). No entanto, o problema
não se reduz apenas ao aumento das demandas, mas refere-se também e
principalmente ao lado da oferta, isto é, ao enfraquecimento do poder de
resposta das instituições públicas.
Em estudo anterior, constatou-se que a inclusão política foi fundamental para a
estabilização de algumas democracias no Cone Sul (cf. Coutinho, 2005). Ela foi
responsável por gerar um ambiente mais cooperativo, algo que faltava aos países
andinos, ainda pouco inclusivos. Venezuela, Peru e Equador não formavam
governos de ampla coalizão, geralmente mantinham maiorias restritas ou ad hoc e
estabeleciam um padrão de relacionamento altamente conflituoso e excludente com
as oposições, reproduzindo inclusive divisões sociais. Já Colômbia e Bolívia
mantinham grandes maiorias legislativas formais, mas falsamente inclusivas,
porque não correspondiam à diversidade e aos conflitos mais importantes já
existentes na sociedade. Estes foram os dois casos estudados nos quais um
padrão de conflito mais clivado requeria uma prévia incorporação de segmentos
sociais ao Estado.
Independentemente dessas diferenças relativas à inclusão política, em todos os
países andinos observou-se uma grande tensão entre limitações econômicas e
democracia, entre, por assim dizer, o mercado e as ruas. As forças de mercado
tornaram-se mais complexas e demonstraram baixo rendimento, conforme foi
possível verificar nas duas primeiras partes deste artigo. Já as forças
sociais, movidas por um anseio de inclusão não somente política, mas também
social, intensificaram suas ações, mantendo um alto nível de mobilização e
gerando, com isso, muitos conflitos, mais ou menos violentos, dependendo do
país e do momento, como ficou mais claro na terceira parte. Esse paralelismo de
dois processos de mudança aparentemente refratários resulta em uma
instabilidade crônica. E mediante a falta de consensos ou bases mínimas de
negociação mais duradoura, o predomínio de um comportamento político orientado
ao confronto reforça a busca de alternativas ao paradoxo do Estado democrático-
liberal.
Uma questão que merece ainda ser destacada é que as crises institucionais
vivenciadas pelas democracias andinas não estiveram sempre associadas a crises
econômicas, em seu sentido estrito. Na realidade, não foram poucas as ocasiões
nas quais uma grande crise eclodiu em meio a um relativo crescimento na
economia. Um dos exemplos mais recentes é o Peru durante a segunda metade do
governo Toledo, marcada por crises políticas e recuperação econômica. Desse
modo, a tensão existente entre democracia e limitações econômicas é mais
complexa do que pode parecer a princípio. Os momentos oscilantes e pontuais de
expansão do capital não significam que a nova riqueza gerada seja bem
distribuída na sociedade e sequer suficiente para amainar o desconforto com uma
enorme dívida social acumulada ao longo da história. Seria necessário um
crescimento mais vigoroso, sustentado e desconcentrado de renda para atender às
expectativas da população. Além disso, a atrofia do papel do Estado, somada a
problemas institucionais endógenos verificados, por exemplo, na falência dos
sistemas partidários, sugere um vazio ou dificuldades de articulação dos
interesses do mercado e da sociedade que não poderiam ser superadas facilmente
apenas com picos de crescimento enquanto uma coordenação política inclusiva
mais eficiente não resolvesse, ao menos, a dimensão institucional do problema.
Finalmente, é importante ressaltar que as crises contemporâneas não encontraram
o mesmo apoio para saídas claramente autoritárias, tipificadas nos anos 1960 e
1970. No pós-Guerra Fria, a interrupção dos processos de democratização ou
soluções de conveniência das elites são bem mais difíceis, como ficou evidente
no episódio que marcou a recondução de Chávez ao poder após o golpe de 2002. O
dilema passa a ser outro: como adequar um Estado enfraquecido às exigências da
democracia sem reprimi-la e levando em conta o protagonismo assumido
globalmente pelo mercado.
Guardadas as devidas distinções, parte do paradoxo salientado neste artigo ' em
que o comportamento econômico esperado pelo mercado colide com o comportamento
político despertado nas ruas ' remete a idéias contidas em A Grande
Transformação, de Karl Polanyi (1980). Agora, como no passado, simultaneamente
à onda liberal ocorre um contramovimento de revitalização da sociedade que
passa a exigir que o novo mercado se ajuste a um sistema de proteção social e
de direitos coletivos. Trata-se, mais uma vez, portanto, de um choque de
princípios que divide e abre um corredor de conflitos na sociedade. A tensão
institucional resultante deste choque torna a grande transformação em
catástrofe. "A crise fascista do século XX teve origem justamente nesse
perigoso impasse" (idem:140). Mas a solução para as contradições de um Estado
democrático-liberal não se revestiu naquele momento nem se reveste agora,
forçosamente, de um significado tão fatalista, podendo caracterizar-se também
pelo compromisso, por um pacto de convivência, mesmo que não seja nos termos do
que foi o modelo de bem-estar social. O desafio continua, de qualquer forma,
com o aprofundamento da democracia.
NOTAS
1. O OPSA é um núcleo de pesquisa do Iuperj que, entre outras atividades de
treinamento, análise e informação, desenvolve um banco de eventos (http://
observatorio._iuperj.br).
2. Encontra-se em outro artigo uma discussão mais aprofundada sobre as novas
lideranças regionais, populismo, neoliberalismo e a instabilidade democrática
observada na América do Sul contemporânea (cf. Coutinho, no prelo).