Os efeitos da migração interpartidária na conduta parlamentar
INTRODUÇÃO
A migração interpartidária é um fenômeno recorrente na Câmara dos Deputados
desde o retorno à democracia. O número de parlamentares que trocam de partido
se revela alto em todas as legislaturas. Em média, cerca de um terço dos
mandatários abandona, pelo menos uma vez, a legenda pela qual se elegeu (Melo,
2000). Ao longo dos últimos 20 anos, mais de 700 deputados federais mudaram sua
filiação. Alguns deles mudam de partido antes mesmo de tomar posse do seu
mandato ou fazem isso várias vezes durante o exercício de suas atividades
representativas (Melo, 2004). Há casos extremos de deputados que, em uma
legislatura, migraram seis vezes ou mais. Essas ocorrências, em vez de
diminuírem com o passar do tempo, ao contrário, agravaram-se. A 52ª
legislatura, relativa ao primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
registrou o pico de 195 migrantes e 345 movimentos entre as legendas,
correspondendo a um acréscimo substancial em relação aos números registrados na
legislatura anterior1.
A magnitude desse fenômeno pode ser explicada por fatores de natureza
estrutural e conjuntural. A legislação atual permite aos políticos mudarem de
partido sempre que julguem conveniente, diferenciando-se do regulamento que
vigorou durante o sistema bipartidário imposto pelo autoritarismo. Se as leis
previssem a perda do mandato como forma de punir a deserção, os parlamentares
certamente manter-se-iam fiéis à sua legenda. Ademais, o sistema partidário
brasileiro caracteriza-se, entre outros atributos, pelo grande número de
legendas que solicita nada mais do que a formalidade para a afiliação em seus
quadros (ver Lima Junior, 1993; Nicolau, 1996; Mainwaring, 1999). Há muitas
alternativas de filiação e poucas exigências a serem cumpridas, o que facilita
o trânsito de deputados de um partido a outro. E, o mais importante, a
deslealdade é resultado de um jogo de interesses entre os atores coletivos e
individuais. As organizações partidárias2 incentivam o ingresso de políticos em
seus quadros com o intuito de aumentar o tamanho de suas bancadas e, com isso,
obter maior poder de barganha no Congresso Nacional, mais recursos do Fundo
Partidário e mais tempo de exposição no horário de propaganda política. É por
esse motivo que as mudanças de partido estão condicionadas pelo calendário
eleitoral (Diniz, 2000). Por sua vez, os parlamentares migram visando aos
benefícios de curto prazo que os ajudem a promover sua carreira e conseguir a
reeleição (Desposato, 2006). Com a troca de partido, eles podem obter
candidatura para a disputa de um cargo eletivo, ocupar postos no governo
federal, receber apoio do presidente da República (Araújo, 2000), sobretudo
quando a sua popularidade está em alta, ou participar das comissões e da Mesa
Diretora (Melo, 2000). A movimentação interpartidária atende, deste modo, a
interesses dos deputados e dos próprios partidos3.
A imprensa em geral divulga reportagens criticando as mudanças de partido que
são totalizadas ao final de cada legislatura e as atribui corretamente ao
oportunismo dos parlamentares. Os eleitores também parecem reprovar os
representantes que migram durante o exercício do seu mandato. Comparados aos
deputados fiéis, os infiéis têm chances menores de se reelegerem e, quando
transitam entre partidos de diferentes blocos ideológicos, a sua probabilidade
de reeleição é bem menor (Schmitt, 1999; Melo, 2004). Nos estados da federação
onde a deslealdade partidária é acentuada, os eleitores tendem a punir os
candidatos a uma vaga para deputado federal, transferindo seus votos de um
partido para outro e, dessa maneira, tornando menos previsível o resultado das
eleições (Marenco dos Santos, 2001)4. Especialistas, por seu turno, condenam as
trocas de partido porque elas alteram artificialmente a congruência entre os
números de cadeiras e de votos conquistados pelos partidos e dificultam que os
políticos estabeleçam reputação em uma sigla. Argumentam que, nas democracias,
e em especial naquelas que adotam o sistema proporcional, a força dos partidos
deve corresponder ao resultado que eles logram nas urnas. Apesar de
reconhecerem que os eleitores votam em uma lista aberta de candidatos
apresentadas pelas legendas, os críticos consideram as mudanças de filiação
como um desrespeito à vontade dos eleitores.
Efetivamente, a deserção partidária pode ser observada em grande número,
motivada pelos interesses particulares dos parlamentares, rejeitada pela
opinião pública e criticada pelos estudiosos do assunto. Contudo, baseando-se
apenas nessas constatações, não é possível considerá-la um problema em si para
o sistema representativo. Para que esta alegação seja procedente, várias
conjecturas necessitam ser comprovadas. Em primeiro lugar, parlamentares
desertores deveriam estar mal-alocados no partido pelo qual assumiram o seu
mandato e, em razão disso, comparados aos seus colegas leais, votariam mais
vezes contra as orientações do seu líder e expressariam idéias divergentes da
sua bancada. Em segundo lugar, deputados migrantes deveriam revelar um grau
mais elevado de partidarismo na legenda de destino, fato que, se observado,
constituiria forte indício de que as mudanças de filiação corrigiriam a
ineficiência do recrutamento dos partidos, que selecionariam filiados sem
afinidade com o seu programa. Em terceiro, a maioria dos deputados desertores
deveria transitar entre partidos ideologicamente díspares, rescindindo o acordo
estabelecido com os seus eleitores no qual eles se propuseram a defender
determinada posição política. Enfim, infidelidade partidária deveria acarretar
grave problema para o funcionamento da Câmara Baixa, tal como se teoriza,
tomando-se como referência outros países. Essas suposições, porém, ainda não
foram averiguadas porque a literatura focaliza a magnitude e as causas da
migração partidária, e não as suas conseqüências para o processo legislativo.
Dialogando com os estudos anteriores, meus objetivos neste artigo consistem em:
a) avaliar comparativamente o desempenho de deputados leais vis-à-vis
desertores quanto ao compromisso deles de expressar idéias compatíveis com a
agenda do partido ao qual estiveram filiados e de apoiá-la nas votações da
Câmara; b) interpretar o sentido da movimentação de parlamentares entre os
partidos, após classificar a ideologia das siglas de origem e de destino; c)
observar a posição dos deputados migrantes no contínuo esquerda-centro-direita,
antes e depois da troca de partido; e, por último, d) confrontar as
características da infidelidade partidária nas câmaras baixas do Brasil e dos
Estados Unidos.
O argumento a ser desenvolvido é o de que a infidelidade partidária na Câmara
dos Deputados é menos prejudicial ao sistema representativo do que se
estabelece por convenção. Parlamentares leais ou desertores acatam, no
plenário, os encaminhamentos de voto do líder e expressam, nas sondagens,
idéias compatíveis com a agenda do partido. Os dois grupos cumprem as
obrigações assumidas com a sua legenda. Além disso, as mudanças de partido
revelam-se consistentes do ponto de vista ideológico. Os migrantes escolhem,
dentre as diversas alternativas de filiação, aquela com uma ideologia
semelhante à do partido de origem e repetem, no partido de destino, seu ideário
e seu modo de votar. Eles trocam de partido, mas, na prática, continuam
marcando a mesma posição política. Somente uma pequena minoria transita entre
os blocos ideológicos e muda o seu comportamento, desvirtuando a representação
da preferência dos seus eleitores. O contexto de multipartidarismo e de
contigüidade entre as legendas torna possível que os deputados se movam entre
elas e, ao mesmo tempo, conservem a sua identidade. Esse cenário contrasta com
aquele observado na Câmara dos Representantes norte-americana, cuja composição
está concentrada em dois partidos polarizados no espectro ideológico. Seus
parlamentares raramente migram, pois, ainda que as mudanças de legenda sejam
consentidas pela legislação, a estrutura do sistema partidário as restringe, e
quando eles se movimentam entre as siglas democrata e republicana criam
necessariamente um problema para a representatividade dos seus eleitores.
INFIDELIDADE E PARTIDARISMO NA CÂMARA DOS DEPUTADOS
Esta seção examina o desempenho dos deputados leais e dos desertores no que se
refere às iniciativas do seu partido para impor a sua agenda. Dois indicadores
de partidarismo serão utilizados. O índice de coesão refere-se à afinidade de
idéias que os parlamentares demonstram, em relação à sua bancada, ao se
posicionarem a respeito dos temas que compõem determinada agenda. A enquete,
por garantir a condição de anonimato aos participantes, permite aos
parlamentares manifestarem-se sem condicionar suas respostas às expectativas
dos seus eleitores ou dos seus correligionários. O índice de disciplina
reporta-se aos votos dos deputados, no plenário da Câmara, em conformidade com
os encaminhamentos dos líderes do seu partido. Os registros de votos nominais
mostram como os parlamentares se relacionam com os seus líderes no processo de
tomada de decisão. Considerados em conjunto, esses indicadores medem o grau de
adesão dos deputados ao ideário e orientações da sua legenda5.
A Tabela_1 mostra o índice de coesão dos deputados por categoria de fidelidade
partidária. Em todos os levantamentos, os valores obtidos por leais ou
desertores ultrapassam 70 pontos em 100. Comparando esses agrupamentos, podemos
notar uma diferença que não ultrapassa oito pontos percentuais. A maior
vantagem dos leais foi observada na última sondagem, de 1997. Em contraposição,
nas de 1991 e 1995, os desertores alcançaram uma taxa um pouco mais elevada. Em
outros anos, as taxas de unidade entre os grupos são bastante similares, e os
desvios-padrão, por serem baixos, indicam que seus integrantes têm escores
próximos à média. Os testes estatísticos comprovam tanto a igualdade das médias
como a igualdade das variâncias dos indicadores de coesão dos deputados leais
ou desertores.
A Tabela_2 avalia o índice de coesão dos deputados, aí agrupados de acordo com
o número de legendas às quais estiveram filiados ao longo de suas carreiras.
Essa informação, embora tenha sido anotada apenas na pesquisa de 1995, comprova
que sequer há diferença entre os parlamentares que sempre foram fiéis a uma
legenda e os que passaram por três ou mais legendas. O nível de unidade
mostrou-se elevado até mesmo entre os parlamentares cuja trajetória partidária
é muito irregular, marcada por três ou mais mudanças de filiação. Os
estimadores que comparam médias e variâncias confirmam esses achados.
A Tabela_3 compara as taxas de coesão dos deputados migrantes na sigla à qual
estavam filiados antes de se desligarem e as dos seus correligionários que
permaneceram leais a ela, procurando encontrar diferenças dentro de cada
partido. A única diferença em favor dos leais, superando os 15 pontos, pode ser
encontrada nos pequenos partidos de esquerda ' PPE. Os emigrantes do PSDB e do
PTB são um pouco mais coesos do que os demais membros da sua antiga bancada. No
caso do PT, o único deputado que migrou era mais partidário do que os seus
colegas. No que se refere aos demais partidos ' PDS/PPR/PPB/PP (pequenos
partidos de direita ' PPD), PFL, PMDB e PDT ', leais e desertores são
igualmente coesos. Os testes estatísticos apontam que, dentro das bancadas
partidárias, não existe diferença significativa entre migrantes e não-
migrantes. Existe, na verdade, diferença entre os partidos. Embora todas as
legendas sejam internamente coesas, ou seja, seus deputados manifestam pontos
de vista comuns sobre os temas que compõem a agenda parlamentar, elas se
diferenciam. O PT e os pequenos partidos de esquerda destacam-se por alcançar
um nível de coesão acima da média, enquanto o PTB e o PDT, por obterem níveis
abaixo dela. Os resultados atestam que o índice de coesão dos parlamentares
varia de acordo com o partido de filiação, mas não quanto à sua categoria de
fidelidade
A Tabela_4 discrimina, por legislatura, os índices de disciplina6 obtidos pelos
deputados leais nos partidos de filiação e os índices dos desertores nos
partidos aos quais estavam filiados antes de migrar e nos partidos em que
ingressaram. As tabulações da taxa de disciplina variam de 0 a 100. A subtração
entre as duas primeiras linhas revela o contraste entre migrantes e não-
migrantes; a da segunda e da terceira linhas, a diferença dos níveis de
disciplina dos deputados migrantes antes e depois da troca de partido. Os
índices dos três agrupamentos são elevados e situam-se no mesmo nível. Os
coeficientes de variância apontam para a homogeneidade interna desses grupos.
Deputados leais ou desertores votam de forma concordante com a orientação dos
líderes do partido ao qual estiverem filiados. É necessário destacar que os
desertores eram disciplinados no partido que abandonaram e continuaram se
comportando dessa maneira nos partidos aos quais se filiaram7.
A Tabela_5 descreve, por legislatura, os índices de disciplina obtidos pelos
deputados leais e desertores, levando-se em conta a sua filiação partidária.
Esta ilustração apresenta, na primeira coluna, a taxa de disciplina dos
deputados leais ao partido no qual estavam filiados; na segunda, a dos
desertores no partido do qual se desligaram; e, na terceira coluna, a dos
desertores depois da mudança. Para facilitar a exposição, somente as maiores
siglas foram discriminadas, e os pequenos partidos, agrupados de acordo com seu
matiz ideológico.
Como se observa nesta ilustração, a diferença de disciplina entre migrantes e
não-migrantes é bem pequena, mesmo considerando-se o partido de filiação. Os
deputados imigrantes continuam sendo disciplinados em outros partidos, em um
nível muito próximo do revelado naquele do qual se desligou. Suas taxas de
disciplina são bem parecidas e seguem o padrão estabelecido no partido de
origem. O resíduo entre as taxas varia cerca de cinco pontos percentuais em
praticamente todas as legislaturas e em todos os partidos. Por outro lado, um
pequeno grupo de deputados mais indisciplinado do que o restante da bancada
partidária da qual se desligou, motivado por essa discordância, buscou outro
partido mais adequado ao seu perfil, tornando-se mais disciplinado. Na 52ª
legislatura, um pequeno grupo de deputados discordou dos encaminhamentos dos
líderes do seu partido em comparação com o restante da sua bancada. Esses
emigrantes, oriundos do PSDB, PFL e PT, mostraram-se mais indisciplinados do
que o restante da bancada. Em se tratando do PFL, os deputados leais
apresentaram uma taxa de disciplina 15 pontos superior à dos desertores; no
caso do PSDB, essa diferença atingiu a marca de 22,8 pontos percentuais e foi
ainda maior no PT, 23,3 pontos. No caso dos deputados que migram por discordar
do posicionamento do seu partido, eles votavam de modo indisciplinado e, depois
de manifestarem seu descontentamento, ingressaram em um partido da coalizão
rival e obedeceram às orientações dos seus novos líderes em um grau mais
elevado. Esses casos, todavia, constituem desvios da regra, como pode ser
provado na análise da próxima ilustração.
A Tabela_6 apresenta, para cada uma das legislaturas, os testes sobre a
influência da categoria de fidelidade e da filiação partidária sobre os índices
de disciplina que os deputados obtiveram nas votações. Os estimadores apontam
que a filiação partidária é uma variável importante para explicar a variação
das taxas de unidade dos deputados e, ademais, eles são significativos
estatisticamente em todo o período analisado (inclusive para a 52ª
legislatura). Por sua vez, os testes relativos à categoria de fidelidade
tiveram resultados opostos. Essas duas variáveis não interagem, quer dizer, os
deputados leais e os desertores apresentam desempenho semelhante, dentro de
cada um dos partidos, quanto ao indicador de disciplina.
Avaliados em conjunto, esses indicadores de partidarismo comprovam que os
deputados, sejam eles leais ou desertores, exprimem idéias convergentes com sua
bancada em relação à agenda do seu partido e ao mesmo tempo obedecem às
orientações dos líderes nas votações do plenário da Câmara. O desempenho dos
agrupamentos nesse quesito pode ser considerado muito positivo. Sem dúvida, os
parlamentares não podem justificar a sua mudança de filiação por motivos
relacionados à discordância programática ou ao problema de relacionamento com
os seus líderes, visto que os migrantes, assim como seus correligionários,
estavam bem situados na legenda à qual estiveram filiados.
MUDANÇAS DE PARTIDO E SEU IMPACTO COMPORTAMENTAL
Esta seção avalia a consistência da migração interpartidária e os efeitos que
as mudanças de filiação têm na conduta dos parlamentares8. Primeiro, os
partidos foram classificados no mapa da ideologia por dois critérios: o
posicionamento dos líderes do partido no conjunto de votações do plenário e as
respostas da sua bancada de deputados a um conjunto de perguntas sobre a agenda
política. Depois, a migração interpartidária é qualificada como consistente,
quando as legendas envolvidas pertencem ao mesmo campo político, ou
inconsistente, quando a barreira da ideologia é ultrapassada. Em seguida, foram
comparados os escores de ideologia e unidade que os deputados auferiram antes e
depois da deserção partidária. Considera-se, enfim, que a troca de partido
produz mudança na conduta parlamentar quando a diferença entre esses escores é
grande e significativa estatisticamente.
A Tabela_7 mostra que as trocas de partido têm um sentido consistente, levando-
se em conta o critério da afinidade de ideário entre as legendas9. Os
desertores escolhem uma alternativa de filiação compatível com o seu perfil
político. Mais de dois terços do total de migrantes entraram e saíram de
partidos contíguos no espectro ideológico. Por levar em conta esse parâmetro em
suas escolhas, a maioria deles pode manter suas crenças no partido novo,
conforme demonstram as taxas elevadas de coesão antes e depois da migração. Em
se tratando dos migrantes entre os blocos de direita e esquerda, as trocas de
filiação serviram para eles melhorarem o seu índice de coesão em mais de 10
pontos percentuais. Apenas nesses casos, os deputados podem justificar o seu
desligamento como decorrente de discordância programática, visto que
ingressaram em um partido com o qual tinham mais afinidade.
A Tabela_8 apreende as diferenças das taxas de coesão dos migrantes, computadas
antes e depois da troca de partido. O sentido da migração, se consistente ou
não, altera tanto as médias como as variâncias desse indicador de partidarismo.
A diferença média da coesão dos deputados que ultrapassaram a barreira da
ideologia é o dobro daquela dos deputados que a respeitaram. De fato, apenas os
parlamentares que transitaram entre partidos de esquerda e direita se
diferenciam dos demais nesse quesito.
ATabela_9 faz a checagem dos escores de ideologia dos deputados migrantes,
estimados tanto no partido do qual saíram como no partido em que ingressaram. O
resultado é que os desertores mantêm seu posicionamento no partido novo. Isto
significa que, apesar de terem mudado de filiação, continuam votando com a
antiga coalizão a qual pertence o partido que os elegeu. Confirmando a
classificação anterior baseada no ideário dos partidos, a grande maioria dos
deputados entra e sai de legendas localizadas à direita do mapa de votações da
Câmara. De cada 10 migrantes, apenas um se movimenta entre os partidos
localizados nas extremidades desse mapeamento. Os testes reforçam que o sentido
da migração interpartidária, quando considerado consistente ou inconsistente,
influencia a mudança de comportamento dos migrantes.
A Tabela_10 descreve, por legislatura, as correlações dos escores de ideologia
dos deputados migrantes, computados nos partidos de origem e destino. O
primeiro indicador é o coeficiente de correlação, que atinge o valor -1 quando
os desertores invertem seu posicionamento no novo partido, e 1, quando o
mantêm. O segundo indicador é a medida de distância ideológica, que inclui o
valor 0 se os desertores permanecem no mesmo ponto do espectro ideológico; e 1,
se percorrem o intervalo máximo entre as extremidades da escala. De acordo com
as evidências apresentadas, muitos deputados migrantes representam, no partido
de destino, um ponto ideal bem semelhante àquele revelado no partido de origem.
Nas 49ª, 50ª e 51ª legislaturas, os migrantes pouco se deslocaram no espaço
político, perfazendo uma distância bem pequena. Esses índices são elevados e
significativos. Isto demonstra que, apesar da mudança de filiação, os deputados
continuam se posicionando nas votações do mesmo modo. A 52ª registra o impacto
dos movimentos entre partidos que integram diferentes coalizões. Um grupo de
desertores rompeu a barreira da ideologia e inverteu seu posicionamento nas
votações. Suas estimativas, contudo, devem ser analisadas com cautela, pois não
são significativas e dependem de casos extremos que contaminam o restante das
observações. Na última legislatura, os partidos dirigiram-se ao centro do
espectro ideológico, diminuindo a distância a ser percorrida pelos migrantes de
uma legenda à outra10.
A Tabela_11 aponta que as diferenças médias entre os escores de ideologia dos
deputados migrantes dependem dos partidos de origem e de destino. Quanto mais
díspares forem os partidos envolvidos na migração, maiores serão as diferenças
a serem observadas. As maiores distâncias entre os pontos ideais dos deputados
foram observadas entre os pequenos partidos de direita e os pequenos partidos
de esquerda; entre o PDT e o PTB; entre o PDS-PP e os pequenos partidos de
esquerda; reconhecidamente partidos que se opõem nas votações em plenário. Por
outro lado, as menores distâncias foram anotadas entre os deputados que se
deslocaram entre o PFL e o PSDB; o PMDB e o PSDB; o PDS-PP e os pequenos de
direita. Do total, apenas 22,9% deles (92 em 402) revelaram que os deputados
inverteram o sinal dos seus escores de ideologia. Registrou-se o maior número
de desertores que saltaram de um campo político a outro entre as siglas
localizadas nas extremidades do mapa de votações. Em alguns desses casos, os
migrantes já votavam, no partido de origem, em concordância com o
posicionamento do partido de destino, sendo desnecessária a mudança de
comportamento.
A movimentação de parlamentares entre os partidos revela-se altamente coerente
do ponto de vista ideológico. Eles trocam de partido, mas, na prática,
continuam expressando os mesmos ideais e votando de igual maneira. Embora a
proporção de desertores se revele alta em termo absoluto e seja motivada por
seus interesses individuais, o número daqueles que ultrapassam a fronteira da
ideologia é bem reduzido, na medida em que implica abandonar a defesa das
preferências dos seus eleitores, enfrentando as conseqüências nas urnas;
apresentar-se ao público com outro discurso, manifestando incoerência; e
conviver com parlamentares com os quais rivalizavam nas votações, enfrentando a
desconfiança deles. Para contornar esses obstáculos, os emigrantes escolhem uma
alternativa de filiação partidária apropriada ao seu matiz político. Quando os
deputados se movimentam dentro de um bloco, como ocorre na maioria das vezes,
eles não precisam se converter a uma nova doutrina. Eleitores tampouco têm
motivos para castigá-los nas urnas, visto que os migrantes mantiveram sua
posição política e se comportaram nas votações de maneira coerente.
Esse padrão de infidelidade partidária pode ser explicado pela estrutura da
Câmara dos Deputados, caracterizada pelo multipartidarismo e pela semelhança
entre muitas das legendas, que incentivam os parlamentares a trocarem de
partido freqüentemente, sem enfrentar resistências dos seus novos
correligionários e dos seus velhos eleitores. A magnitude e os efeitos das
trocas de partido são diferentes em uma câmara legislativa cuja composição se
concentra em duas legendas polarizadas no contínuo ideológico, pois, nesse
caso, os parlamentares têm poucas alternativas de filiação e precisam percorrer
uma grande distância de um partido a outro. A Câmara dos Representantes norte-
americana é um caso exemplar desse tipo de modelo. Seus parlamentares raramente
mudam de partido, mas, quando o fazem, alteram o seu posicionamento político e,
agindo dessa maneira, descumprem as promessas feitas ao eleitorado. Em tal
contexto, as trocas de partido desvirtuam a lógica do sistema representativo.
Uma comparação entre Brasil e Estados Unidos ilustrará esse último ponto.
DESERÇÃO PARTIDÁRIA EM PERSPECTIVA COMPARADA
As câmaras baixas do Brasil e dos Estados Unidos desenham, aparentemente, um
cenário propício para que os parlamentares mudem sua filiação partidária. A
legislação de ambos os países permite essa prática. Suas organizações
partidárias são frágeis se comparadas a modelos de sistema parlamentarista e
carecem de instrumentos legais que reforcem a lealdade dos seus filiados. Os
líderes dos partidos controlam, na arena legislativa, o acesso a recursos e a
cargos das casas legislativas que podem ser usados para incentivar o ingresso
de deputados em seus partidos de filiação. Apesar de terem esses aspectos em
comum, as câmaras brasileira e norte-americana apresentam processos migratórios
radicalmente distintos.
O primeiro contraste entre ambas está no volume das mudanças de partido. A
Câmara brasileira, atualmente composta por 513 deputados, registra centenas de
desertores nos últimos 20 anos. A House ofRepresentatives, constituída de 435
deputados, contabiliza 72 casos em um século e meio de história parlamentar.
Raramente os deputados do Partido Republicano, do Partido Democrata ou os
independentes trocam sua filiação. De 1879 a 1945, apenas 48 deputados
desligaram-se do seu partido para se filiar a outro; de 1946 a 1987, 16; de
1988 a 1999, apenas oito. Em média, dois deputados migram a cada legislatura. O
registro de mudança múltipla também é raro. Apenas nove deputados trocaram de
sigla por duas vezes. Desde 1945, nenhuma mudança múltipla de filiação é
registrada11. Levando-se em conta a série histórica da migração partidária,
podemos notar que o fator tempo desempenha diferentes papéis nas câmaras
brasileira e norte-americana. Na primeira, observa-se uma oscilação no número
de deputados migrantes nas sucessivas legislaturas; na segunda, o número de
migrantes é regular ao longo dos anos, mantendo-se inclusive imutável por
décadas. A fidelidade dos parlamentares estadunidenses é verificada desde a
formação do sistema partidário e, assim, não pode ser creditada à sua
longevidade.
A Tabela_12 faz a contagem dos deputados migrantes, identificando os
agrupamentos de origem e destino. Proporcionalmente, os deputados de pequenos
agrupamentos e os independentes são os que mais trocam de legenda, seguidos
pelos republicanos e, em último lugar, pelos democratas. O sentido dessa
movimentação atesta que os democratas tendem a se filiar ao rival enquanto os
republicanos, aos pequenos agrupamentos. Os deputados minoritários deslocam-se
mais vezes para o Partido Republicano do que para o Partido Democrata, e apenas
um deles preferiu se filiar à outra legenda minoritária. Em que pesem os poucos
casos observados, o trânsito de deputados entre os maiores partidos é
incoerente do ponto de vista ideológico, uma vez que eles marcam historicamente
posições opostas nas votações do Congresso (ver Cooper e Young, 2002) e, ao
longo dos últimos anos, essa polarização no espectro político se tornou mais
acirrada (Poole e Rosenthal, 1997)12.
A segunda diferença entre a câmara brasileira e a norte-americana refere-se aos
fatores que induzem os parlamentares a mudarem de partido. Deputados
brasileiros motivam-se por recursos ou cargos, ou ainda, pelos interesses
particulares ligados à carreira parlamentar, mais precisamente, verbas
orçamentárias, candidaturas, tempo de exposição na propaganda eleitoral e
postos da organização legislativa. Diferentemente, na Câmara dos
Representantes, os deputados mudam de filiação por divergência a respeito do
posicionamento do seu partido no que se refere ao conflito militar e ao papel
do Estado na economia (Nokken, 2000; Castle e Fett, 2000; Nokken e Poole,
2001).
A Tabela_13 apresenta indícios de que a desavença de natureza programática é a
principal justificativa para um deputado abandonar o seu partido e ingressar em
outro. Não há uma forte tendência de os deputados buscarem ingressar no partido
majoritário ou do governo. Em vez disso, a maioria dos migrantes da Câmara
Baixa sai do partido governista e entra no de oposição. Há exemplos de
movimentos de parlamentares oriundos do partido governista para o partido de
oposição inclusive quando o presidente da República tinha, reconhecidamente,
popularidade alta entre os eleitores.
Nesse período, em que os líderes do partido majoritário eram democratas ou
republicanos, apenas metade dos desertores buscou se filiar a algum deles. Mas
a migração de parlamentares para o partido majoritário não é dominante, e o
movimento parece ser justamente o oposto. Dezesseis deputados saíram do partido
majoritário para integrar o partido minoritário ou tornar-se independentes.
Dentre os deputados oriundos dos pequenos agrupamentos, 15 ingressaram no
partido majoritário, nove dirigiram-se ao partido minoritário, e apenas um
tornou-se independente.
A terceira diferença entre as casas legislativas do Brasil e dos Estados Unidos
está em seus efeitos na correlação de forças partidárias e no comportamento dos
deputados durante as votações. Na Câmara dos Deputados, as mudanças de filiação
pouco alteram o tamanho das coalizões, pelo fato de a movimentação entre os
partidos ocorrer intrabloco ideológico e de os migrantes manterem sua
disciplina no partido novo. Na Câmara dos Representantes, as mudanças de sigla
significam o enfraquecimento do partido que elegeu o deputado e a transferência
de poder ao oponente, especialmente quando as cadeiras estão distribuídas entre
o Partido Republicano e o Partido Democrata, em uma divisão paritária. A
movimentação entre as siglas democrata e republicana também altera o
comportamento dos deputados nas votações.
O conteúdo da Tabela_14 corrobora a hipótese de que existe diferença
comportamental entre os migrantes que se movimentam entre os partidos
majoritários e os que transitam por agrupamentos minoritários. As medidas que
testam o impacto da troca de partido no posicionamento espacial dos deputados
são as correlações entre os escores dos deputados no partido antigo e no
partido novo e as médias das diferenças entre um e outro. Se os valores forem
próximos ao número zero, os deputados migrantes mudaram seu comportamento nas
votações; caso contrário, os deputados mantiveram a sua maneira de votar. Como
podemos observar, a média da diferença quanto ao primeiro grupo de migrantes é
o dobro da média do segundo grupo. Essa desigualdade pode ser confirmada nas
duas dimensões que organizam o mapa das votações13. Confirmando o resultado
anterior, a correlação entre os pontos ideais dos deputados que transitam entre
o Partido Democrata e o Partido Republicano são bem menores na primeira
dimensão ' que é a mais importante do mapa espacial ', comprovando que houve
uma alteração significativa do seu comportamento nas votações. Quando a
deserção ocorre tendo como origem ou destino os pequenos agrupamentos, os
deputados reproduzem o seu ponto ideal no partido novo14.
De um total de 53 migrantes advindos dos pequenos agrupamentos, apenas 11
alteraram seu comportamento no plenário, invertendo, no novo partido, o sinal
do seu ponto ideal15. Os demais mantiveram seu padrão de votação, mesmo porque
já tinham afinidade ideológica, conforme pode ser comprovado pela
correspondência entre seu ponto ideal no partido de origem e no partido de
destino16. De maneira diversa, os deputados que transitaram entre o Partido
Republicano e o Partido Democrata alteraram sua conduta nas votações. A grande
maioria desses migrantes passou a concordar com as novas orientações
partidárias (25 em 27 casos). Esse efeito comportamental independe do partido
de origem e de destino. Do conjunto, 16 deputados alteraram o sinal do seu
ponto ideal, passando da esquerda para a direita, no caso de democratas que se
tornaram republicanos, ou passando da direita para a esquerda, em se tratando
de republicanos que se tornaram democratas. Desses migrantes, nove já votavam
em concordância grande com o partido rival e, depois de ingressarem nele,
passaram a apoiar ainda mais o novo partido. Esses casos, porém, são
insuficientes para ameaçar o sistema representativo como um todo, porque a
proporção de migrantes em relação ao conjunto de parlamentares é muito pequena,
e a de republicanos ou democratas, irrisória.
Esses efeitos da infidelidade partidária na Câmara dos Representantes podem ser
justificados de duas maneiras. Em primeiro lugar, os migrantes podem ser
considerados como dissidentes em outro partido caso não aceitem as orientações
dos líderes do seu novo partido e, comportando-se dessa forma, atendam às
expectativas de seus novos correligionários. Em segundo lugar, os parlamentares
infiéis tendem a ser rejeitados pelos eleitores do seu distrito se não os
convencerem de que eles se converteram politicamente. Os candidatos cujo
sistema de crenças destoa da sua sigla de filiação têm probabilidade alta de
fracassar nas convenções primárias do Partido Democrata ou Republicano (Burden,
2004). Além disso, os migrantes têm um desempenho eleitoral pior quando
comparados aos não-migrantes (Grose, 2003)17. Os desertores são, portanto,
induzidos a se ajustarem à ideologia do partido no qual ingressaram, almejando
conquistar a preferência dos novos eleitores, evitar problemas de convivência
com seus novos partidários e aumentar as chances de serem reeleitos.
Esse modelo de infidelidade partidária pode ser explicado pelo arranjo
partidário dos Estados Unidos. Seus parlamentares têm basicamente duas
alternativas de filiação, o Partido Democrata e o Partido Republicano, e estas
legendas estão cada vez mais polarizadas ideologicamente. Com esses obstáculos,
poucos parlamentares mudam sua filiação partidária no exercício do seu mandato,
ainda que possam fazê-lo. Contando a partir da terceira formação do sistema
partidário, menos de 80 deputados trocaram de partido enquanto exerciam seu
mandato na Câmara Baixa. Os emigrantes, além de se justificarem ao público
alegando divergência programática a respeito de temas-chave da agenda, precisam
apoiar as iniciativas do novo partido; caso contrário, são punidos pelos
eleitores e correligionários do seu distrito e dificilmente se reelegem, o
principal objetivo de suas carreiras. O problema é que, quando mudam suas
crenças e sua maneira de votar, os deputados desertores descumprem o
compromisso assumido com o seu eleitorado, qual seja, o de representar
determinada posição política. Conseqüentemente, a composição ideológica da
Câmara dos Representantes deixa de ser condizente com as escolhas feitas pelo
eleitorado, descaracterizando uma das funções do sistema representativo, que é
a de reproduzir, na esfera legislativa, a estrutura de preferências dos
eleitores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos anteriores sobre fidelidade partidária na Câmara dos Deputados
alertaram para a sua magnitude e as suas causas. A partir dessas contribuições,
sabemos que os mandatários freqüentemente trocam de partido, motivados por
circunstâncias que facilitem atingir os objetivos de sua carreira, como a
reeleição e a ocupação de postos na esfera governamental. As mudanças de
filiação distorcem a representatividade que as legendas obtiveram depois de as
urnas serem fechadas e os votos serem traduzidos em cadeiras e impedem que os
parlamentares firmem carreira em apenas uma legenda.
Esse diagnóstico, não obstante esteja correto, desconsidera o desempenho dos
deputados migrantes no quesito partidarismo e os efeitos das mudanças de
filiação em seu comportamento. Deputados leais ou desertores têm um desempenho
similar no cumprimento das obrigações assumidas com o partido ao qual estavam
filiados. Os dois agrupamentos apóiam a agenda partidária, obtendo notas
parecidas nos quesitos disciplina e coesão. A maior parte da movimentação
interpartidária é consistente do ponto de vista ideológico. Mais de dois terços
das mudanças de partido ocorreram dentro de um bloco, seja ele de esquerda, de
centro ou de direita. De cada 10 migrantes, apenas um rompeu essa barreira de
maneira drástica, transitando de partidos esquerdistas para os direitistas ou o
contrário. Muitos deputados trocam de partido, mas, apesar disso, continuam
marcando uma posição política compatível com aquela sinalizada pelo partido
pelo qual se elegeram. Portanto, a infidelidade partidária é menos nociva à
representação das preferências dos eleitores do que se convenciona acreditar.
As mudanças de filiação tampouco servem de indicativo de fraqueza das
organizações partidárias. Os partidos têm um processo de recrutamento eficiente
ao ponto de selecionarem candidatos que partilham do seu programa e que, uma
vez eleitos, se mostram comprometidos em defender seu ideário e em aprovar as
iniciativas do seu partido nas votações do plenário da Câmara. Os deputados
infiéis estavam bem alocados na sigla pela qual assumiram o seu mandato e,
dentre as múltiplas alternativas de filiação, escolhem aquela cuja ideologia se
assemelha à do partido que os elegeu.
O debate no Brasil sobre a infidelidade partidária limita-se muitas vezes às
questões normativas em torno de um imperativo segundo o qual o representante
deve manter-se filiado sempre a um partido político durante o exercício do seu
mandato, quando não, durante toda a sua carreira. Esse princípio, no qual os
críticos se apóiam, incentiva a proposição de inúmeros projetos de reforma da
legislação, em especial o estabelecimento de regras que forcem os mandatários a
permanecerem leais à sua legenda. No entanto, as trocas de partido podem ser
reduzidas sem a adoção de regulamentos que desrespeitem o direito à liberdade
de associação política, como aqueles que vigoraram no autoritarismo das décadas
precedentes. O caso dos Estados Unidos serve como referência de país que
combina uma legislação permissiva com a observância de lealdade partidária por
parte dos seus parlamentares.
Para alcançar esse objetivo, os partidos brasileiros poderiam, em curto prazo,
dificultar a entrada de políticos oriundos de outras legendas, instituir em
seus estatutos um prazo de reserva para um filiado advindo de outro partido e
solicitar ao órgão competente a aplicação dos mecanismos de punição previstos
na Lei dos Partidos Políticos nº 9.065, de 1995, como os artigos 25 e 26, que
prevêem, além de outras penalidades, a perda automática da função ou cargo que
exerça, na respectiva Casa Legislativa, o parlamentar que deixar o partido por
cuja legenda tenha sido eleito. A solução de longo prazo consiste em reduzir o
número de legendas com representatividade nas câmaras Baixa e Alta, de modo que
a mudança de partido implique o custo de mudar de posicionamento político e
enfrentar a rejeição dos seus eleitores.
Por certo, se não forem aplicadas medidas restritivas, os parlamentares
continuarão a trocar de partido em busca de vantagens pessoais para promover
suas carreiras políticas. No entanto, esta análise mostra que os efeitos da
infidelidade partidária são menos deletérios para o sistema representativo
brasileiro do que alegam estudos baseados apenas na magnitude e nas motivações
das mudanças de legenda.
NOTAS
1. O Brasil destaca-se negativamente com relação ao número de casos de
infidelidade partidária, mesmo se comparado a países cuja legislação também
tolera essa prática, como Estados Unidos, Itália ou Espanha (ver Maciel, 2004).
Tomando-se como exemplo a Espanha, 90 parlamentares trocaram de partido,
totalizando 104 movimentações registradas no Congreso de los Diputados entre
1977 e 1989. Com a consolidação do sistema partidário, caracterizada
principalmente pelo predomínio do Partido Socialista Espanhol ' PSOE e do
Partido Popular ' PP, o número de migrantes caiu para três, um e oito,
respectivamente, na quarta (1989-1993), quinta (1993-1996) e sexta (1996-2000)
legislaturas. Para obter mais detalhes sobre os números e as características da
infidelidade partidária na Espanha, consulte Tomás Mallén (2002).
2. O número de parlamentares desertores varia de acordo com o partido. Essa
variabilidade põe em xeque as abordagens sistêmicas que focalizam a legislação
em vigor ou fatores endógenos ao processo legislativo. O PT e as pequenas
siglas de esquerda, diferentemente dos demais, implantam regras de convivência
que dificultam a entrada e a saída de filiados em seus quadros. Esses
regulamentos internos podem explicar por que ele registra baixo número de
entrada e saída de filiados. A organização petista mantém um estatuto cujo
conteúdo incentiva seus filiados a serem leais à legenda, e seu arcabouço
normativo faz com que cultivem laços mais fortes com a legenda, além de impedir
a entrada de políticos oportunistas. No governo Lula, os migrantes preferiram
rumar para o PL, o PP ou o PTB, pois não estavam dispostos a arcar com o ônus
de pertencer à organização petista. Em contraste, o PSDB apresenta uma
movimentação intensa de filiados em seus quadros. Nos dois mandatos do governo
Fernando Henrique, o partido facilitou o ingresso de vários políticos,
aumentando, dessa maneira, a sua representatividade. Agora, na oposição, o
partido perdeu cerca de um terço dos seus deputados. Para uma comparação entre
PT e PSDB, veja Roma (2006a).
3. Limongi e Freitas (2005) apresentam evidências de que o sentido das trocas
de partido no eixo governo/oposição é altamente consistente, ou seja, somente
uma minoria de desertores transita entre os dois pólos. Ademais, a maioria dos
deputados migrantes já estava sob influência do Poder Executivo e apoiava as
iniciativas do presidente da República nas votações em plenário. Também é
preciso considerar, nesse estudo, a porcentagem expressiva de parlamentares
oriundos de partidos governistas que rumaram para a oposição.
4. Esse tópico é controverso. Segundo os mesmos estudos, a relação entre
fidelidade partidária e volatilidade eleitoral confirma-se apenas em alguns
estados do país. Os deputados que trocam de partido três ou mais vezes têm a
mesma probabilidade de reeleição dos fiéis a sua legenda. Na verdade, a punição
dos eleitores torna-se clara apenas quando seus representantes passam a
defender uma bandeira política diferente daquela do partido que o elegeu. Há
outro argumento a ser considerado nessa discussão. Se os migrantes corressem os
riscos de não serem reeleitos, dificilmente observaríamos um número tão
exagerado e persistente de trocas de partido.
5. Os dados de coesão partidária provêm de um conjunto de levantamentos de
opinião parlamentar. A pesquisa "Pré-plebiscito no Congresso Nacional" foi
realizada entre 4 e 6 de junho de 1991, reunindo um conjunto de 21 questões
sobre forma de governo, presidencialismo ou parlamentarismo, o uso das medidas
provisórias, bicameralismo, voto facultativo para os eleitores, cláusula de
barreira mínima no Congresso Nacional, pena de morte e outras. O levantamento
de dados "Impeachment Presidente ' Congresso Nacional" foi feito entre os dias
6 e 7 de julho de 1992, agregando sete perguntas sobre o impedimento do
presidente da República, o desempenho do presidente diante da crise e a sua
sucessão. A pesquisa "Congresso Nacional ' Reeleição" ocorreu entre os dias 10
e 17 de outubro de 1993, tratando de 27 temas, como o direito de reeleição para
presidente da República, governadores de Estado e prefeitos e o sistema
eleitoral, o número de deputados por Estado, entre outros. O survey "Congresso
Nacional", entre 21 de fevereiro e 14 de março de 1995, questionou os
parlamentares quanto a temas referentes ao funcionamento do Congresso Nacional,
instituições eleitorais e políticas públicas, através de um questionário com 21
perguntas. A sondagem "Congresso Nacional ' Reeleição I" foi registrada entre
os dias 10 e 17 de outubro de 1996 e a "Congresso Nacional ' Reeleição", entre
8 e 10 de janeiro de 1997, reunindo, respectivamente, cinco e oito perguntas.
Ambas tratam dos mesmos temas: o direito de reeleição e o trâmite da emenda da
reeleição, o desempenho do presidente e a maneira de mudar essa lei. Todas as
pesquisas de opinião foram realizadas pelo instituto Datafolha. Os temas foram
selecionados pelos critérios de divergência mínima. Incluíram-se as perguntas
cuja concentração de respostas em uma alternativa foi menor do que 90. A taxa
de coesão é a média das porcentagens modais com relação ao conjunto de
respostas de um determinado grupo. Outras informações estão disponíveis em Roma
(2006b).
6. As informações sobre o comportamento dos deputados provêm do banco de dados
"Votações Nominais na Câmara dos Deputados", depositado no Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento ' Cebrap e utilizado por Figueiredo e Limongi (1999). Na
minha análise, foram incluídos os deputados que votaram ao menos 10 vezes em
uma determinada legislatura. A taxa de disciplina partidária é relativa, pois
leva em conta somente os votos válidos. Para os deputados que migraram mais de
uma vez em uma legislatura, a taxa de disciplina foi computada para o conjunto
de partidos aos quais estiveram filiados. O índice de disciplina dos
parlamentares diz respeito à proporção de votos que coincidiram com os
encaminhamentos dos líderes do seu partido. Faltas e abstenções foram retiradas
do cálculo desse indicador. A exclusão dessas informações não compromete a
análise proposta, uma vez que deputados desertores ou fiéis apresentam, também,
taxas semelhantes de faltas e de abstenção.
7. Esses resultados divergem daqueles observados no período de atividade da
Assembléia Nacional Constituinte. Por meio da análise das votações nominais
registradas entre 1986 e 1988, Mainwaring e Pérez Liñan (1998) constataram que
a taxa de disciplina dos parlamentares aumentava após a mudança de filiação
partidária.
8. Melo (2000) e Desposato (2006) já demonstraram que as trocas de partido na
Câmara dos Deputados são ideologicamente consistentes. Diferenciando-se dos
anteriores, minha pesquisa contempla, além das votações nominais, os
levantamentos de opinião parlamentar cuja análise permite mensurar as
preferências dos deputados em um contexto no qual as instituições estão
ausentes. Tal estratégia possibilita classificar, com rigor, os partidos no
espectro ideológico e interpretar, com clareza, o sentido da movimentação de
parlamentares entre os partidos.
9. Os escores de ideologia dos deputados foram estimados utilizando-se a rotina
W-NOMINATE. Essa técnica já havia sido usada por Leoni (2002) e atualizada por
Roma (2006c). Para uma discussão sobre o modelo espacial e as fórmulas
estatísticas, veja Poole (2005). Somente os deputados que votaram ao menos 20
vezes foram incluídos na estimação desses escores. A pontuação dos deputados é
calculada com base em seus votos nominais registrados em uma legislatura. Os
valores dos escores variam entre -1 e 1. Levando-os em conta, os partidos foram
classificados em três categorias: esquerda (de -0,26 até -1), centro (de -0,25
até 0,25) e direita (de 0,26 até 1). Nas sondagens de 1991 a 1993,
correspondendo à 49ª legislatura, o PT, o PDT, o PSB, o PMN, o PPS e o PC do B
foram classificados como de esquerda; PMDB, PSDB, PL, PST, PTB, de centro; PDS/
PPR/PPB/PP, PTR, PDC, PP, PRT, PSL, PSC, PRN e PRP, como de direita; nas
sondagens realizadas em 1995 e em 1996, o PFL, o PSDB, o PMDB, o PL, o PTB, o
PSC, o PST, o Prona, o PSL, à direita; o PSD e o PV, ao centro; e o PT, o PDT,
o PMN e o PPS, à esquerda. Como há mudanças múltiplas de partido, considerei
somente os pontos ideais dos parlamentares em relação ao primeiro e ao último
partido ao qual estiveram filiados.
10. Veja o Gráfico_A1 do Apêndice. Para uma descrição do realinhamento
ideológico na Câmara dos Deputados, veja Roma (2006c).
11. Ness e Ciment (2000) revisam a origem e os formatos do sistema partidário
dos Estados Unidos. Esta análise limita-se a sua terceira e atual formação,
caracterizada pelo predomínio de democratas e republicanos. As informações
sobre a migração interpartidária nos Estados Unidos procedem do banco de dados
Roll-call Voting in House of Representatives, elaborado por Keith T. Poole e
disponibilizado no endereço eletrônico http://voteview.com.
12. Veja o Gráfico_A2 no Apêndice. Há semelhança entre as câmaras baixas dos
Estados Unidos e da Espanha no que se refere à motivação e aos efeitos da
infidelidade partidária. O estudo de Mershon e Heller (2003) mostra que as
trocas de partido na Câmara Baixa da Espanha não podem ser motivadas pela busca
de cargos no governo ou por reeleição. Os partidos de oposição foram os mais
beneficiados, mesmo estando afastados do gabinete ministerial e tendo a
perspectiva de sofrerem derrotas nas eleições (o que, de fato, aconteceu). Os
desertores têm chances menores de se reelegerem, sobretudo se migram para a
coalizão rival. Isto indica que os parlamentares desertam por conflito de
opinião, mesmo tendo que enfrentar reveses nas urnas.
13. A rotina NOMINATE, em sua versão dinâmica, é considerada como a mais
adequada para estimar os pontos ideais dos parlamentares da Câmara dos
Representantes, porque a série histórica de votações é longa. As estimativas de
um mapa com duas dimensões justificam-se pelo fato de que somente nos últimos
50 anos o modelo se tornou robusto com apenas uma dimensão. Para uma discussão
desse assunto, veja Poole (2005).
14. Comparando-se o formato dos gráficos_A1 e A2 do Apêndice, podemos
visualizar que a distância percorrida pelos deputados que migram entre as
legendas republicana e democrata seria equivalente à distância a ser percorrida
entre um deputado do PT que resolvesse ingressar no PFL ou vice-versa. Nota-se,
ainda, que nos últimos anos o sistema partidário norte-americano está se
polarizando, enquanto o brasileiro, moderando-se. A conseqüência disto é que,
salvo alguma mudança relevante na legislação desses países, o número de
mudanças de partido continuará baixo na Câmara norte-americana e alto, na
brasileira.
15. Trata-se de um democrata que se tornou independente; três republicanos que
ingressaram no Silver Republican; um progressista, no Partido Democrata, um
independente republicano, no Partido Republicano; um American Labor, no Partido
Democrata; três republicanos, nos progressistas e outro, no American Labor.
16. Entre eles, três democratas que saíram para se tornarem independentes
democratas ou independentes; 10 republicanos, para os progressistas,
independentes, independentes republicanos, Farmer Labor e American Labor; 11
progressistas, para o Partido Republicano ou Partido Democrata; seis
independentes democratas, para o Partido Democrata; quatro independentes
republicanos, para o Partido Republicano e o Farmer Labor; dois Reajuster, para
o Partido Republicano; do National Green, para o Partido Republicano e outro
para o Democrata; um independente e um do Silver, para o Partido Democrata; um
do Union Labor para o Farmer Labor; um do Farmer Labor para o Partido
Republicano; e, finalmente, um liberal, para o Partido Democrata.
17. Os desertores somente conseguem reverter o seu declínio nas eleições a
longo prazo e quando passam a ter uma atuação destacada em postos importantes
da organização interna do Poder Legislativo, especialmente na Mesa Diretora e
nas comissões (Grose e Yoshinaka, 2003). Essas evidências sugerem que a oferta
de recursos e cargos no governo que os líderes dos partidos controlam é
insuficiente para fazer com que os parlamentares troquem de partido. Os
problemas a serem enfrentados pelos desertores nas urnas parecem ter um peso
maior em sua decisão de permanecerem leais ao seu partido.