A economia solidária diante das desigualdades
Uma das graves conseqüências das disparidades sociais que o Brasil ostenta é o
seu nível superlativo de pobreza, decorrente da desigual apropriação e
repartição da riqueza, em contraste com a abundância de recursos e com a
capacidade produtiva do país. A persistência das desigualdades ao longo de
nossa história indica que as mesmas possuem raízes profundas, ante as quais
políticas de crescimento econômico e medidas compensatórias dirigidas à
população de baixa renda não têm surtido efeitos decisivos e prolongados.
Outrossim, a queda da desigualdade registrada após 2001, somada ao debate e às
tentativas recentes de remodelagem das políticas públicas, diante de um quadro
social agravado e quase em descontrole, justifica que se contemplem e explorem
novas alternativas, sobretudo quando favoráveis ao desenvolvimento social e
produtivo dos trabalhadores pobres, de modo que possam gerar renda por sua
própria conta e conquistar níveis mínimos de autodeterminação.
A tese examinada neste artigo diz respeito à contribuição da economia solidária
nesse sentido, uma vez que suas organizações, ao se valerem da cooperação
produtiva e acionarem circuitos de reciprocidade, tendem a exercer efeitos
diretos na distribuição dos resultados, no fortalecimento dos seus membros e na
promoção da eqüidade. Alguns estudos chegaram há bastante tempo a conclusões
dessa ordem: ao efetuar um balanço das conquistas dos pequenos projetos
comunitários no Estado da Bahia, Oliveira (1988) já destacava a redução do
nível de empobrecimento, que atenua o grau de penúria e aumenta as chances de
permanência das pessoas em seus locais de origem. Os recursos gerados por tais
projetos, segundo o autor, fluíam igualmente para a comunidade, que assim
conseguia minorar sua dependência das ajudas convencionais. Ao mesmo tempo,
essas iniciativas gerariam um novo entendimento da vida social e uma postura
crítica diante das relações de poder.
Nos dias atuais, a presença de múltiplas iniciativas de associação voluntária
de trabalhadores, mediante partilha dos recursos produtivos, cooperação no
trabalho e gestão coletiva, cuja expansão gradativa desde os anos 1980 veio a
produzir o movimento social da economia solidária, confere visibilidade a esse
campo1 e o converte em objeto de estudo digno de interesse. Entre outros
aspectos, cabe averiguar em que medida os empreendimentos de economia solidária
e seus dispositivos de articulação representam bases adequadas à constituição
de nova matriz e à formulação de um novo modelo de desenvolvimento. Este artigo
procura fazê-lo a partir de um ângulo de análise centrado na dinâmica e nos
efeitos sociais gerados pelos empreendimentos de economia solidária, em razão
de sua adesão a princípios e regras igualitaristas, decorrentes de sua natureza
coletiva e de sua índole socializante.
O texto discute inicialmente as raízes e a natureza multidimensional das
desigualdades, posicionando-se a seguir diante do debate controverso sobre as
suas vias de superação e de redução da pobreza. A abordagem dessas questões
gerais servirá, na seção seguinte, à apresentação mais clara e com a devida
pertinência da questão proposta para análise, apoiada em argumentos a favor de
estratégias que privilegiam a ativação da capacidade individual e coletiva dos
atores econômicos relegados à pobreza. Na seqüência do texto, caracteriza-se a
metodologia da pesquisa à origem dos dados examinados para o tratamento
empírico da questão em tela. Nas seções seguintes, o estudo de um conjunto de
indicadores conduzirá a um balanço gradativo dos pontos fortes e dos limites
dos empreendimentos de economia solidária. Ao final, a consideração de outros
estudos sobre o tema trará elementos adicionais acerca do sentido primordial
das experiências de economia solidária, para a vida dos trabalhadores
empobrecidos e para a promoção da eqüidade.
FACES E PERSISTÊNCIAS DAS DESIGUALDADES
As desigualdades no Brasil possuem raízes profundas, que remontam à formação da
sociedade escravocrata e à instauração da cultura política da dádiva e da
subseqüente dívida moral dos escravos e homens pobres para com os mandatários e
senhores de terras. Tal cultura de mando e subserviência, transcendendo ao
domínio privado das fazendas e engenhos, sobreviveu à abolição da escravatura,
reapareceu na ordem coronelista e chegou aos nossos dias, subtraindo os
direitos básicos da cidadania enquanto se oculta atrás do fetiche do
encurtamento das distâncias sociais (Sales, 1994). Uma das conseqüências
políticas desta outorga histórica de direitos foi o trato privado da coisa
pública, que explica nossa impossibilidade de romper com os padrões
particularistas que entravam e subvertem a gestão do interesse público. A
privatização das relações sociais opôs-se ademais ao reconhecimento e à
legitimação das singularidades e diferenças. Camuflada, a intolerância à
alteridade foi igualmente um vetor poderoso das desigualdades, profundamente
internalizadas no imaginário nacional. Pode-se dizer, em suma, que as
estruturas e os processos definidores de nossa formação histórica, ao
instituírem uma dinâmica permanente de produção-resistência-mudança-reprodução
das desigualdades, não apenas caracterizam a questão social no Brasil, mas
constituem o seu elemento determinante.
A pobreza extrema, problema crucial adiante abordado, não está localizada na
insuficiente produção econômica, mas em sua má distribuição (Medeiros, 2005).
Ela reside nos processos de reiteração das desigualdades que explicam por que,
ao cabo de sucessivas fases de estagnação e de crescimento, o Brasil deixou de
ser um país pobre e dependente, para converter-se em uma das principais
economias mundiais (12ª em 2004), sem deixar de conviver com um dos mais baixos
índices de desenvolvimento humano ' IDHs. Transcorrida em tais termos, nossa
história justifica a errância do homem pobre brasileiro, como via inglória de
escape, a desenhar a geografia e a paisagem social do país. Desde suas origens,
privação, submissão e esquecimento andam juntos em nossa formação social, a
retratar as múltiplas faces das desigualdades.
A inegável evolução do direito positivo das últimas décadas e a remoção de
entraves formais, de par com as políticas de assistência, empregabilidade e
inclusão, tampouco lograram afetar drasticamente as desigualdades. Elas
resistiram aos movimentos e às pressões sociais, reproduzindo divisões,
separações e enormes desproporções no acesso de uns e outros aos bens materiais
e imateriais gerados pela sociedade2, e persistiram ainda no plano dos valores:
malgrado os avanços notórios na abordagem das diferenças geracionais, de gênero
e outras, as desigualdades restam incorporadas aos padrões e hábitos culturais
e seu poder instituinte aparece nas formas latentes de segregação, a
demonstrarem a força inercial de atavismos há muito banidos do quadro de
direitos, ou na naturalidade com que se aceita a brutal distância social entre
os brasileiros.
Daí porque certas desigualdades no Brasil possuem um claro vetor cultural, a
exemplo da participação inferiorizada das mulheres no mercado de trabalho
quanto aos índices de emprego, de ascensão profissional e de remuneração. O
mesmo vale para a população não-branca, a quem dados dos anos 1990 (Dieese,
2002) mostram ser ainda destinada às funções mais desgastantes, aos empregos
mais vulneráveis e aos salários mais modestos3. Quando se contabilizam fatores
de ordem cultural dotados de algum grau de racionalidade, como os níveis de
escolarização, o resultado é sombrio: a exclusão econômica dos pais gera a
exclusão escolar e, a seguir, a exclusão social e econômica dos filhos, o que
explica que pardos e negros sigam sem capital e com minguadas chances de
acumulá-lo (Singer, 1999:100)4. Ainda que sua condição escolar atualmente
experimente alguma melhora, terão que se haver com o fato de que a educação é
um agravante, mas não o fator decisivo na produção das desigualdades de renda.
Estas repousam antes no papel desempenhado pela estrutura de remuneração do
mercado de trabalho, na riqueza herdada e nos recursos de capital e de poder há
mais tempo cativos das classes possuidoras de riqueza (idem; Medeiros, 2005).
As desigualdades econômicas, políticas e culturais formam um círculo perverso,
cujo cerne se mantém inabalado e parece recrudescer quando políticas sociais e
medidas redistributivas fazem cair os seus índices passageiramente. Mesmo nas
fases de crescimento econômico e de evolução dos indicadores sociais, as
tendências de repartição desigual da renda e de acesso diferenciado aos
serviços e garantias sociais mantiveram-se constantes, pouco sensíveis ao
desempenho da economia e ao acionamento de políticas compensatórias. Assim, o
Milagre Brasileiro, última fase de crescimento contínuo, teve sua eficácia em
reduzir os níveis de pobreza rapidamente compensada ao longo e ao final dos
anos 1980, com a volta aos índices anteriores. Já em 1983, "a incidência de
pobreza retornou ao nível de 1960, enquanto o PIB per capita era ainda quase o
dobro do nível daquele ano" (Singer, 1999:92-93). Entre 1976 e 1990, a
estabilidade do coeficiente de Gini evidencia que a desigualdade permaneceu
estável, indiferente à evolução da economia, da política e dos costumes,
"apesar de o Brasil ter-se aproximado de maneira crescente da maior parte das
características atribuídas às sociedades modernas que têm patamares de
desigualdade menores" (Medeiros, 2005:47). Dada a desestruturação do mercado de
trabalho advinda a partir de 1980 (Pochmann, 2001), tais distâncias alargaram-
se ao menos até a década seguinte, com o incremento do desemprego aberto e a
diminuição relativa do emprego industrial, majoritariamente formalizado, em
contrapartida à expansão dos empregos mais desprotegidos, típicos das
prestações domésticas e do setor de serviços.
A desigualdade econômica brasileira permaneceu estável e elevada entre 1970 e
2000 (Neri, 2007). Assim, ao final dos anos 1990, a sociedade mostrava-se
segmentada em dois grupos distintos: "uma massa homogênea, formada por uma
população de baixa renda e uma pequena, porém rica, elite" (Medeiros, 2005:
249). Uma renda tão concentrada que a soma de rendimentos da metade mais pobre
era inferior àquela percebida pelo centésimo mais rico. Os 5% mais ricos
detinham um terço do total de rendimentos, e os 10% mais ricos, cerca de 50%
dos mesmos. As sobreposições entre as elites econômicas, políticas e sociais,
aliadas ao fato de que a riqueza provém em boa medida de relações com o Estado,
como efeito de suas políticas macroeconômicas e de políticas sociais sem
eficácia distributiva, permitem ademais que a desigualdade de renda no país
possa ser considerada um indicador de outros tipos de desigualdade (idem).
Durante a presente década, a desigualdade apresentou inflexões positivas,
embora sem um desfecho seguro e claramente animador. No Rio Grande do Sul,
esses sinais já aparecem ao se compararem os dados do período de 1981 a 2002.
Por um lado, o índice de Gini de 1981, de 0,5443, é praticamente igual ao de
2002, de 0,5479, embora tenham ocorrido oscilações, em efeito breve do Plano
Cruzado e um pouco mais longo do Plano Real. A distribuição de renda, segundo
os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios ' PNAD, sofreu poucas
alterações, no sentido da concentração: os 10% mais pobres da população gaúcha
detinham 1,10% da renda em 1981, cabendo-lhes 1,02% da renda em 2002; os 10%
mais ricos, a quem cabiam 43,16% da renda em 1981, ficaram com 43,45% da renda
em 2002. Por outro lado, as proporções de pobres e de indigentes caíram,
respectivamente, de 30,75% para 21,52% e de 10,38% para 6,89%. Houve uma queda
moderada da pobreza: a década de 1980 foi desfavorável aos pobres, ao passo que
a de 1990 propiciou uma lenta e modesta elevação de sua renda (Picolotto,
2005).
O declínio da desigualdade no país durante os anos 2000 é expresso
principalmente pela queda no coeficiente de Gini, que oscilou 4,6% entre 2001 e
2005, passando de 0,594 para 0,566. A queda da desigualdade relaciona-se ao
crescimento da renda dos mais pobres, cuja fatia da renda nacional ficou bem
acima das faixas de mais altos rendimentos. O incremento da renda per capita
dos 10% mais pobres atingiu 8% ao ano, quase nove vezes o crescimento da renda
nacional, 90% desse incremento estando associado à redução das desigualdades.
Por sua vez, a renda per capita dos 20% mais pobres cresceu 6% ao ano, 85% dos
quais explicáveis pela queda das desigualdades, isto é, por menor elevação ou
decréscimo da fatia reservada aos segmentos superiores (Barros et alii, 2007:
333). Assim, a proporção de pobres e de extremamente pobres experimentou
significativos descensos. Entretanto, o país segue em posição claramente
negativa no cenário internacional, não obstante avanços simultâneos em índices
como o acesso à educação e a expectativa de vida da população, que resultaram
em melhoras no IDH (Cohn, 2003). Seriam necessários ainda mais de 20 anos para
o Brasil atingir um nível similar ao da média dos países com maior grau de
desenvolvimento. Caso a queda na pobreza contasse apenas com o fator
crescimento, seriam necessários incrementos do Produto Interno Bruto ' PIB
superlativos e ganhos na renda de todas as famílias em níveis muito superiores
aos das últimas décadas, expectativas sem dúvida muito improváveis (Medeiros,
2005).
Dados de 2006, apurados com base na Pesquisa Mensal de Emprego ' PME, sinalizam
que o declínio das desigualdades estaria perdendo força: o índice de Gini nas
seis regiões metropolitanas pesquisadas pela PME estabilizou-se nesse ano, sem
avanços na desconcentração da renda do trabalho. De julho de 2005 a junho de
2006, a taxa de miséria sofre um tênue movimento de ascenso, de 0,29%, contra
uma queda de 12,28% registrada nos 12 meses anteriores. Ao mesmo tempo,
aparecem evidências de perda de quantidade e de qualidade do emprego,
compensando negativamente os aumentos reais do salário mínimo em 2005 e 2006.
Ao contrário dos anos anteriores, o período de julho/2004 a junho/2006 é
"apenas ligeiramente pró-pobre e antielite" (Neri, 2007:214).
O PAPEL INDISPENSÁVEL DAS POLÍTICAS DISTRIBUTIVAS
Os vetores estruturais de reprodução das desigualdades jazem na repartição
histórica do patrimônio e dos bens produtivos, garantem-se por meio da extração
do excedente do trabalho pelo capital no interior do processo de produção,
ampliam-se com as discrepâncias de remuneração do trabalho e completam-se na
alocação regressiva das frações do excedente recolhidas pelo Estado. No Brasil,
desigualdade e pobreza são fenômenos associados. Das controvérsias sobre sua
resolução, principalmente quanto à eficácia das políticas direcionadas ao
crescimento da economia, quando expostas à avaliação histórica dos fatos, pode-
se extrair a seguinte linha de argumentação:
Primeiramente, desigualdade não gera crescimento econômico nem este,
posteriormente, produz por si mesmo diminuição da desigualdade e nivelamentos
da renda. Contrariamente ao apregoado pela ciência econômica entre 1950 e 1970
(Salm, 2007:17), muitas pesquisas nos últimos 15 anos demonstram que a
desigualdade não é funcional para o desenvolvimento, tampouco um traço inerente
à modernização. "Ao invés de favorecer o crescimento, a desigualdade inicial
lhe impõe obstáculos" (Kliksberg, 2002:19), sendo sua persistência por muitas
vias prejudicial ao crescimento (Rodríguez, 2005:230). Além disso, o
crescimento, quando ocorre, nem sempre cria condições de maior eqüidade. Na
América Latina, nas décadas de 1980 e 1990, o crescimento não provocou o
esperado efeito de gotejamento (trickle down effect), senão em patamares muito
modestos (Barros et alii, 2007), e não chegou aos setores mais desfavorecidos,
para tirá-los da pobreza. Reformas macroeconômicas, centradas na liberação dos
mercados, não evitaram nessas duas décadas importantes incrementos da
desigualdade (Kliksberg, 2002). Mesmo se desacompanhado de tendências de
concentração de renda, o crescimento provocaria por si mesmo um efeito muito
lento sobre a diminuição das desigualdades no Brasil5. O crescimento econômico
não é empecilho à redução das desigualdades, mas, sem alterar-se por outros
meios o padrão de alta desigualdade, ele não é capaz de produzir mudanças
profundas na distribuição da renda e na pobreza.
Em segundo lugar, a política econômica precisa estar direcionada aos setores
mais pobres para que induza o crescimento dos mesmos e gere efeitos
redistributivos diretos. Necessita estar associada a medidas redistributivas e
à "difusão de inovações que elevem a produtividade das atividades voltadas ao
suprimento de carências que distinguem a vida dos mais pobres" (Salm, 2007:
293), de modo que lhes toque "uma trajetória de elevação mais acelerada dos
seus rendimentos" (Dedecca, 2007:300). A pobreza é menos sensível aos efeitos
do crescimento econômico quando o nível de desigualdade é maior (Barros et
alii, 2007:333). Nos casos de disparidades no acesso a recursos produtivos,
como a terra, estudos concluem que "as estratégias convencionais de luta contra
a pobreza centradas no crescimento, em programas sociais dirigidos aos pobres e
em redes de assistência têm resultados limitados, já que não afetam as bases da
desigualdade que vai condicionar o crescimento e seus efeitos sobre os pobres"
(Kliksberg, 2002:29). Do ponto de vista das oportunidades de emprego e renda, a
simples expansão de sua oferta através dos parâmetros atuais de
empregabilidade, seletivos em termos de conhecimento e de experiência prévia,
redunda em níveis consideravelmente menores de inserção dos pobres no mercado
de trabalho, ampliando a segmentação deste e penalizando-os novamente com a
escassez de oportunidades de emprego.
Em terceiro lugar, medidas redistributivas direcionadas ao aumento da eqüidade
produzem efeitos positivos sobre o crescimento econômico, introduzindo
circuitos virtuosos de desconcentração e crescimento (Medeiros, 2005). Melhoras
na renda dos pobres geram aumentos sensíveis em seus gastos com a preservação e
formação do seu capital humano, mediante despesas em nutrição, saúde e educação
do núcleo familiar, as quais representam as bases mínimas para a elevação
durável de sua inserção econômica e seu nível de vida. Entre os pobres, a
"propensão marginal a consumir bens desta ordem é muito alta, visto que são
decisivos para a existência e percebidos como tais" (Kliksberg, 2002:21). A
diminuição da instabilidade de rendimentos e da insegurança econômica das
famílias pobres produz o mesmo efeito. Por outro prisma, a eqüidade favorece o
aparecimento e o fortalecimento do capital social, fator importante do
desenvolvimento econômico e social, que "valorizará a cultura popular,
democratizará o acesso à cultura, contribuirá para a elevação da auto-estima
dos setores desfavorecidos, incrementará a sua participação, promoverá e
estimulará mecanismos de cooperação, criará vínculos de solidariedade atuantes
no interior da sociedade" (idem:95).
O equacionamento da desigualdade requer atacar o problema da transferência de
renda e de distribuição da riqueza. Alterar o padrão de concentração impõe um
crescimento orientado a certos setores, em paralelo a medidas redistributivas.
Tais medidas, quando orientadas à ativação econômica dos setores menos
favorecidos, e não apenas a melhorias em sua capacidade de consumo, são as mais
indicadas para provocar efeitos benéficos sobre a eqüidade e o desenvolvimento
social e econômico.
O VALOR DA ATIVAÇÃO ECONÔMICA DOS POBRES
Ações efetivas para romper a lógica reiterativa das desigualdades implicam
reconhecer e promover o protagonismo dos pobres como requisito para que
políticas em seu favor sejam sustentáveis e duráveis. Em primeiro lugar, para
que sejam sujeitos econômicos, minimamente capazes de reter para si a riqueza
que produzem e incrementá-la paulatinamente, a partir dos ativos materiais,
intelectuais e relacionais que possuem e da exploração da sua capacidade de
trabalho. Em segundo lugar, para que esse empreendedorismo reverta igualmente
em capital social e em recursos de poder, necessários à defesa de seus
interesses, contrários àqueles a quem interessa, na outra ponta, preservar sua
posição através da perpetuação das desigualdades.
Experiências em diferentes países atestam a eficiência dos estímulos às
pequenas unidades produtivas, cujas respostas, densas em investimentos,
propiciam a médio prazo a formação de uma base produtiva dinâmica, geradora de
postos de trabalho. Os agentes econômicos mais desguarnecidos, se apoiados,
investem nas bases mínimas (nutrição, saúde, educação) necessárias à
qualificação dos seus recursos humanos. Investir nessa direção proporciona que
os mesmos lancem mão de suas capacidades potenciais, recuperem e formem ativos
básicos (terras, bens de capital, qualificações educativas) que lhes permitam
organizar a vida familiar, incrementar e estabilizar seus rendimentos. Ademais,
pessoas sistematicamente expostas à carência, ao desemprego e à vulnerabilidade
ficam minadas em sua auto-estima e se auto-excluem da condição de agentes
(Dejours, 2007). Necessitam de oportunidades de reconstrução pessoal, de
experiências positivas de participação e reconhecimento, não apenas da
recuperação de sua renda de consumo. Nos dias atuais, é igualmente importante
fortalecer iniciativas e organizações autóctones que possam defender e
restabelecer o tecido social popular, severamente cerceado e agredido pela
insegurança e violência constante que o atinge diretamente, formando com isso
uma comunidade cívica assente em mecanismos de participação e em práticas de
solidariedade (Putnam, 1996).
A erradicação da pobreza não será possível pela via unilateral de ações
governamentais, como os programas de transferência de renda. O êxito de tais
programas depende de chances e espaços nos quais os afetados pelas
desigualdades possam escolher o caminho para atuar como agentes na recuperação
de sua dignidade (Asseburg, 2007). Deve-se, então, ter em conta os padrões de
privação de capacidades (Sen, 1999; 2001) que afetam as pessoas. Sem sua
superação, elas não reagirão adequadamente diante de oportunidades mais
favoráveis, para tirar-lhes proveito visando à melhoria de suas condições de
vida.
"Não basta a assistência econômica por parte do Estado; deve-se
promover o desenvolvimento de capacidades que permitam às pessoas
gerar rendas por sua própria conta e, desta forma, sair por si mesmas
da pobreza. Deve-se fortalecer os mecanismos para a transformação de
capacidades em rendimentos, que por sua vez possibilitam o
desenvolvimento de funcionamentos valiosos e novas capacidades"
(Rodríguez, 2005:223).
Por outro ângulo, o combate à nova exclusão social, através de uma rede de
proteção social que integre programas distributivos, de reinserção social e de
previdência social, deve conter políticas "portadoras de novos significados
para esse novos sujeitos sociais", considerando "a pluralidade de suas
estratégias de sobrevivência, da afirmação de suas diferenças e identidades"
(Cohn, 2003:74).
As experiências de economia solidária sinalizam traços desse protagonismo,
desde seus primórdios, no correr dos anos 1980, quando sua presença polimorfa e
difusa no tecido social as deixavam aparentemente alheias aos principais
embates travados no campo popular. Movendo-se no terreno concreto das lutas
pela sobrevivência, reunindo pessoas por meio de práticas participativas, de
cooperação e autogestão, essas experiências inovaram ao buscarem soluções
coletivas de iniciativa própria para demandas cujo atendimento se buscava
anteriormente por meio de pressões de massa que acionassem a capacidade
provedora do Estado (Scherer-Warren, 1996; Gaiger, 2004b). Sua expansão e seu
fortalecimento posterior referendaram a hipótese de que cumpririam um papel
apreciável na formação de indivíduos e grupos com capacidade de ação, advinda
da vivência de reorganização da vida cotidiana e, por extensão, das múltiplas
esferas da vida social (Gadotti, 1993).
Considerando as limitações do crescimento econômico como instrumento eficaz de
redução da pobreza e das desigualdades, ao lado da insuficiência das políticas
compensatórias, os empreendimentos solidários de geração de trabalho e renda
merecem atenção6. Em primeira mão, eles adotam o princípio de fortalecer a
capacidade de ação dos empobrecidos. De modo efetivo, mesmo se variável e
reversível, afastam-se da lógica dominante de produção de bens e de reprodução
social ao eliminarem a divisão entre trabalhadores e meios de produção, entre
produção e apropriação dos frutos do trabalho. Suas fragilidades inegáveis
(Gaiger, 2004a) encontram uma via de compensação em fatores cujo efeito
positivo deriva do caráter associativo e cooperativo por eles incorporado
(Gaiger, 2006). Em seu âmbito interno e em seu perímetro social, como
buscaremos evidenciar, não reprisam as condutas alimentadoras da dualização
social e da injustiça.
Não se imagina com isso que a economia solidária possa alterar com suas forças
a equação estrutural da pobreza e das desigualdades. De resto, porque a
desigualdade econômica existente entre os 50% mais pobres, em que claramente se
situam as iniciativas em questão, corresponde apenas a 10% da desigualdade
total de renda no país (Medeiros, 2005:51), não podendo, assim, a economia
solidária interferir senão no aumento ou na estabilidade dos rendimentos
internos aos extratos situados nessa faixa. Além disso, a maioria dos
empreendimentos em seu estágio atual encontra-se às voltas com sua
sobrevivência a curto e médio prazos. Sendo realista, convém antes indagar
quais efeitos positivos a ativação solidária dos trabalhadores causa sobre eles
próprios. A valorização do protagonismo dos atores econômicos como um elemento
estratégico para o seu êxito é correntemente aplicada àqueles segmentos
patronais que empregam os trabalhadores. Quando estes resolvem prescindir de
patrões e empregar por sua conta seus recursos produtivos, direcionando para
esse fim o seu fundo de trabalho comum (Coraggio, 1999:142-145), o que sucede?
Quando algumas das rédeas da sua vida econômica passam às suas mãos, os
trabalhadores reproduzem ou reduzem as desigualdades?
Essa é a questão explorada empiricamente neste artigo. Atacar esse problema no
interior das unidades produtivas, introduzindo princípios igualitaristas, no
plano econômico, político e cultural, constitui uma providência indispensável à
redução das desigualdades. Se os trabalhadores o fazem, quando se oferece a
oportunidade, não é irrelevante. Pela índole dos empreendimentos solidários, é
de esperar que tomem medidas nesse sentido. Sua natureza associativa, distinta
das organizações estruturadas em relações contratuais e hierárquicas, deve
exercer uma força instituinte de condutas e valores, com reflexos nas condições
de trabalho, na renda e na qualidade de vida dos seus membros. Contudo, é
insuficiente presumi-lo ou apenas constatá-lo genericamente, sem examinar as
práticas que traduzem amiúde essa inclinação igualitarista, de modo a
identificar as ações mais significativas e aquilatar seus efeitos e limites. Do
mesmo modo, é importante compreender as condições sociais que favorecem as
práticas igualitárias, em particular quando decorrem de deliberações dos
próprios empreendimentos, à proporção que sua lógica de funcionamento vai
tornando racionalmente preferível, ou mais lógico, adotar princípios
igualitaristas.
UMA PESQUISA EMPÍRICA COMPARADA
As condições de gênese desses formatos produtivos, sua morfologia e seus
padrões de desenvolvimento são objeto de nossas pesquisas empíricas desde 1993.
Em dado momento, a percepção de que essas iniciativas alcançam consolidar-se e
atingir níveis de acumulação que as habilitam a um processo de crescimento
sustentado, não obstante o estado geral de fragilidade que as caracterizam,
conduziu as pesquisas à identificação dos fatores explicativos desse desempenho
positivo, focalizando propositalmente empreendimentos solidários com razoável
êxito na tarefa de conciliar suas premissas ideológicas e organizacionais com
sua viabilidade econômica.
Uma pesquisa a respeito, em 1998, teve por objeto 30 experiências associativas
de geração de trabalho e renda, situadas em quatro regiões do Estado do Rio
Grande do Sul, exemplares da sua diversidade geoeconômica, social e política.
Os critérios de seleção utilizados cobraram evidências iniciais dos
empreendimentos quanto a: a) autonomia econômica e financeira; b) organização e
funcionamento democrático, independente de externalidades; c) envolvimento
comunitário e social; d) relevância econômica para os seus membros, não se
constituindo apenas em atividade destinada a gerar renda complementar; e) ao
menos três anos (em 1997) de funcionamento. Além do estudo sobre a formação da
economia solidária nas regiões em tela e de dados prévios sobre casos antes
investigados, procedeu-se à coleta de informações em visitas aos
empreendimentos, análise de documentos, contatos e reuniões com lideranças
populares e organizações de apoio. Uma vez consignados em planilhas
específicas, os dados foram exaustivamente discutidos, obtendo-se uma descrição
fiel de cada empreendimento e uma visão analisada de sua dinâmica interna, com
base em parâmetros homogêneos que facultassem explorar as possibilidades da
análise comparativa entre os empreendimentos.
Os estudos comparativos ultrapassam a unidade mínima de análise e servem para
elucidar regularidades e linhas de variação em um conjunto de organizações,
dotadas por hipótese de um padrão de funcionamento e formando, assim, uma
totalidade. Da análise dos casos singulares, passa-se ao exame relacional de
suas propriedades (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974), das quais se extraíram,
na pesquisa em questão, os aspectos sistêmicos dos empreendimentos que os
dispõem ao êxito e à longevidade (Gaiger et alii, 1999). A essa abordagem
sincrônica, foi acrescentada uma perspectiva diacrônica em 2003, com a
realização de uma segunda pesquisa sobre os mesmos empreendimentos7, similar
quanto ao foco e à metodologia. Ao cotejar dois momentos do percurso dessas
experiências, com base na análise de suas variações organizacionais e no
impacto das mesmas sobre seus níveis de desempenho, tencionava-se estabelecer
as suas linhas de evolução de forma mais segura e conclusiva.
Aos procedimentos de coleta e tratamento de dados antes empregados, a pesquisa
de 2003 acrescentou uma grade de 60 indicadores, objetivando maior precisão na
avaliação de cada experiência e melhor comparabilidade com os demais
empreendimentos e com os dados de 1998. Esses indicadores dizem respeito a
características e práticas de autogestão, cooperação, eficiência e viabilidade,
dimensões do conceito de empreendimento econômico solidário (Gaiger, 2003),
cuja idéia central reside na simbiose que se estabelece entre aspectos
solidários e empreendedores dessas iniciativas, engendrando um círculo virtuoso
que se vale das forças da associação e do trabalho cooperativo8. Formulados
mediante a decomposição metodológica desse conceito, os indicadores compõem um
dispositivo analítico útil, ao integrarem a coleta, a consignação e a
interpretação dos dados, sob distintos ângulos e critérios. Sua aplicação a
cada empreendimento, com base nos dados empíricos previamente validados,
traduziu-se em uma pontuação conforme a seguinte regra: prática inexistente: -
1; observada parcialmente: +1; observada plenamente: +29; sem informação ou
aplicabilidade: 0. Para cada dimensão, indicador e empreendimento contou-se com
pontuações individuais e opções de ordenamento e classificação das
características observadas.
Como mencionado, o corpus dessas pesquisas representa o lado supostamente mais
alternativo e bem-sucedido da economia solidária, não seu perfil médio. Com
essa ressalva, os empreendimentos foram escolhidos de modo a expressarem a
diversidade econômica, institucional e regional da economia solidária no Rio
Grande do Sul, abarcando diferentes categorias sociais e tipos de atividade
econômica.
A caracterização dos EES segundo as propriedades já citadas e outras, como a
população envolvida, o contexto inicial e o regime jurídico, permitiu
subdividi-los em segmentos: grupos de empreendimentos com características
socioeconômicas e culturais similares, em tese explicativas da sua dinâmica e
de suas possibilidades de desenvolvimento (Tabela_2). Em cada segmento,
procuraram-se observar traços particulares, do ponto de vista solidário e
empreendedor. O exame das concomitâncias e repulsões entre os diferentes
indicadores, mediante um raciocínio por homologia, exercido não diretamente
sobre os objetos empíricos, mas sobre as propriedades de tais objetos e as
relações entre as mesmas (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974:216), completou,
no essencial, o percurso analítico executado.
Ao verificar a presença de fatores explicativos do êxito dos empreendimentos
solidários, com base na hipótese de que estariam dotados de uma racionalidade
singular, a pesquisa de 2003 levantou simultaneamente indícios da existência de
princípios igualitaristas e de seus efeitos práticos, explícitos ou implícitos
em vários dos indicadores utilizados. Aspectos dessa ordem serão discutidos a
seguir, do ponto de vista da eqüidade econômica, política e cultural.
EFEITOS SOBRE A EQÜIDADE ECONÔMICA
O diferencial dos EES averiguado, no tocante à redução das desigualdades
econômicas, especialmente entre os detentores da força de trabalho e os
detentores do capital, decorre do grau com que superam esse antagonismo, ao
converterem os trabalhadores em proprietários associados do empreendimento e
fazerem fluir para eles próprios os frutos da atividade econômica, em
proporções correspondentes aos seus aportes em trabalho. Desse modo, os
excedentes produzidos deixam de ser drenados pelo detentor exclusivo do capital
e revertem para os trabalhadores, sob a forma de retribuições diretas ou como
capital por eles compartilhado, representando um incremento do patrimônio
pessoal e coletivo.
Esses processos não se põem em marcha uniformemente: dependem da natureza dos
EES e da abrangência e profundidade com que socializam os meios de produção e o
trabalho. A simples comparação entre os segmentos antes mencionados permite
estimar a existência de empreendimentos com elevado grau de socialização, como
as cooperativas de produção, os coletivos em assentamentos rurais e as
associações de reciclagem, em que a força de trabalho de cada sócio, em geral,
é requerida integralmente. Em outros casos, como as cooperativas de trabalho, o
EES pode representar uma opção complementar de renda, conciliável com as
ocupações individuais: a cooperação no trabalho passa a ter sentido apenas em
alguns momentos da atividade laboral ou de gestão do empreendimento. Como
ocorre nas associações de pequenos produtores rurais, criadas às vezes para
fins de comercialização e defesa dos interesses de agricultores familiares, nem
sempre as bases materiais e os propósitos do empreendimento induzem à
socialização plena dos meios de produção.
Não obstante essa diversidade, faz sentido avaliar até que ponto os EES em seu
conjunto manifestam tendências ou apresentam resultados tangíveis na direção
apontada, de menor divisão entre capital e trabalho e de maior eqüidade. Para
este fim, vale examinar indicadores incidentes sobre dois aspectos
correlacionados: a) a constituição dos trabalhadores dos EES ao mesmo tempo
como seus proprietários; b) o usufruto por eles, a partir dessa condição
similar, dos resultados e benefícios gerados pelo empreendimento. As tabelas a
seguir referem-se a cada um desses aspectos11.
A presença de meios de produção de propriedade comum, importantes e empregados
na atividade produtiva do EES [C1], certamente é um indicador indispensável do
grau de socialização da sua base material. Apenas em dois EES verificou-se a
preservação por inteiro da propriedade individual dos instrumentos de trabalho
e demais fatores produtivos. Em 75% dos casos, observou-se correspondência com
o indicador, em 47% dos empreendimentos, de modo decisivo para o seu
funcionamento, um fato relevante, visto que muitos deles operam sob bases
materiais de natureza individual e familiar, evidenciando que a dinâmica
solidária induz, ao menos parcialmente, à sua socialização ou então agrega,
àquela base anterior, novos meios de produção de propriedade e uso coletivo.
Por outro lado, o comportamento desse indicador, em particular diante daquele
que veremos a seguir e das situações de maior envolvimento dos trabalhadores na
gestão do empreendimento, denota que a propriedade coletiva não é um
pressuposto básico ou uma garantia de que haja implicação similar dos
indivíduos. A chave parece residir no grau de cooperação, na gestão e no
trabalho, ainda que o mesmo esteja apoiado em bens de produção e em economias
parcialmente individualizadas (Gaiger, 2004a:397).
A homogeneidade das contribuições em capital ou trabalho entre os sócios [A12]
indica justamente se existem sócios mais proprietários ou mais trabalhadores
que os demais, em vista dos prováveis desequilíbrios que tal fato viria a
acarretar no grau de influência de uns sobre outros ou na divisão dos
resultados. Vice-versa, quando todos os sócios atribuem alto grau de
importância ao empreendimento, a dedicação ao mesmo e o enfrentamento de riscos
tendem a ser uniformes, o que evita discrepâncias entre os aportes individuais
e dispensa a existência de diferentes qualidades de sócios ou participantes
(Gaiger et alii, 1999). Em quase 80% dos EES estudados, as diferenças
observadas são secundárias, desprezíveis em 44% deles. Restam 20% dos EES que
não cumprem o quesito, fato que se explica pelo rumo tomado desde as suas
condições de partida: nos casos em que estas eram objetivamente desiguais,
predominou a tendência ao aprofundamento das diferenças e concentraram o
patrimônio e o poder de decisão nas mãos de poucos sócios-fundadores, dando
lugar a empresas convencionais, não obstante suas práticas de solidariedade e
de atenção aos trabalhadores. Entre os EES mais bem-sucedidos, pelo contrário,
é típica a presença de interesses e graus de participação semelhantes12.
A paridade entre os sócios teria um valor muito relativo se houvesse ao mesmo
tempo a contratação habitual de outros trabalhadores [A10], pois se estariam
introduzindo relações assalariadas ou alguma de suas variantes, com o seu
corolário de separação entre o capital e o trabalho. Essa prática foi observada
freqüentemente em apenas 9% dos casos, inexistindo ou sendo muito excepcional
em 75% deles. Por conseguinte, as prerrogativas dos sócios, no plano dos
direitos e da distribuição dos benefícios, via de regra alcançam todos os
trabalhadores. Nota-se ainda que, se há 25% de EES que contam de algum modo com
trabalhadores não-associados, apenas em 18% dos EES pesquisados essas
contratações não visam preencher funções específicas ou complementares [A11],
tais como assessoria técnica e contabilidade, diferentes da atividade-fim do
empreendimento e das características ocupacionais dos seus membros.
Pode-se, então, concluir que os EES têm sua base produtiva formada por
trabalhadores associados cujo labor sustenta o empreendimento e para os quais
fluem os seus resultados diretos e indiretos. Se é bem verdade que do contrário
não seriam classificáveis como empreendimentos econômicos solidários, confirmá-
lo a partir de uma análise minuciosa é de interesse. Por isso, vale ainda
acrescentar que a adoção de processos coletivos de trabalho [C2] verifica-se
com nitidez em 69% dos EES, parcialmente em 25%. Essa fração minoritária deve-
se em boa medida à natureza da atividade econômica, a exemplo da prestação de
serviços por cooperativas de trabalho, e ao foco de atuação do EES, por vezes
situado na comercialização da produção familiar ou na conveniência de
compatibilizar o trabalho no EES com outras atividades, como se observou em uma
confecção de peças de vestuário onde as costureiras são agricultoras. Os EES
com melhor desempenho global e com melhores resultados atendem plenamente a
esse quesito.
Ao avaliarem-se os resultados econômicos dos EES e sua divisão entre os sócios
(Tabela_4), percebem-se ganhos reais, em particular quanto à eliminação das
disparidades na distribuição do trabalho e da renda13, um fato a destacar, uma
vez que não deriva de um mero voluntarismo igualitarista, mas da superação da
essência desigual da relação assalariada, com o seu princípio intrínseco de
subordinação e alienação.
A remuneração dos sócios dos EES depende, via de regra, unicamente dos seus
aportes em trabalho [C4], com duas exceções, nas quais, em realidade, alguns
membros são sócios-proprietários, auferindo dividendos exclusivos. No mais, a
inexistência de apropriação do trabalho alheio suspende o ciclo de acumulação
privada do capital, convertido em capital social indivisível, destinado ao
consumo ou a investimentos por deliberação coletiva. Nessas condições, é de se
esperar uma política interna de contenção das diferenças de remuneração, fato
registrado em 84% dos EES [C5], em grau bastante apreciável em 59% dos casos.
Não é certo, contudo, que essa remuneração monetária supere em média aquela do
mercado de trabalho: pelos dados disponíveis, isso ocorreria em 25% dos EES,
através, por exemplo, de reajustes acima do piso negociado no dissídio da
categoria correspondente, ou da cotação da produção primária dos sócios em
valores acima da concorrência. Em 37,5% dos EES, a remuneração equivaleria à
oferecida pelo mercado; casos de remuneração inferior corresponderiam a 9%.
Como os EES agregam às vezes diferentes atividades e ocupações, algumas
representando um ganho adicional à renda principal auferida na produção
familiar ou em negócios privados, e, além disso, renunciam à retirada
individual das sobras para fins de capitalização, fato notório no caso das
cooperativas de produção, os resultados dessas comparações diretas são
relativos14.
No capítulo de ganhos parciais, destacam-se as práticas de assistência a
membros de EES em situações de dificuldade (doenças, problemas familiares
etc.), costumeiras ou previstas formalmente em 41% dos EES, eventuais em 13%
[C11]. Práticas espontâneas de ajuda mútua entre os trabalhadores [C6], além
daquelas instituídas formalmente, parecem acontecer com freqüência em 53% dos
casos, inexistindo em menos de 10% dos EES estudados. Olhando-se a questão mais
amplamente, com base em outras fontes de campo, é lícito afirmar que o modo
como se vivencia o trabalho proporciona em muito casos uma série de satisfações
adicionais, além da renda e dos benefícios econômicos indiretos, sobretudo a
posse coletiva do capital do empreendimento. Em diversos depoimentos, a
experiência de ser sócio-trabalhador, em pé de igualdade com os demais, ao
mesmo tempo que sócio-proprietário, gestor do negócio com direito a voz e voto,
é altamente valorizada. O mesmo aplica-se à experiência do trabalho como algo
edificante e oportunidade de cultivo pessoal. O lado gratificante do trabalho
conjuga-se à sua percepção como um valor elevado, neutralizando até certo ponto
a sua face penosa e as incertezas quanto ao futuro.
Limites e dificuldades consideráveis são observadas no campo da seguridade
social e da ampliação do quadro de sócios. Os níveis modestos de acumulação, de
empreendimentos desprovidos de capital e de tecnologia desde seu nascedouro,
parecem ser responsáveis pela incapacidade observada de expandir as atividades,
multiplicar dividendos e oferecer garantias sociais aos trabalhadores [E3]. De
modo geral, os membros dos EES não dispõem dos direitos trabalhistas
assegurados pelo trabalho formal, tais como descanso remunerado, repouso por
razões de saúde, seguros e previdência. Valem-se às vezes da sua condição
profissional anterior ou externa ao EES (caso de aposentados, autônomos com
recolhimento ao Instituto Nacional do Seguro Social ' INSS etc.). Tampouco as
cooperativas evidenciam essas garantias, praticamente inexistentes nas
associações de produção e nas microempresas familiares. Embora haja
planejamento e projetos, os EES conseguem a duras penas uma acumulação
minimamente progressiva de capital, o que lhes impede de preservar recursos
para a garantia dos direitos sociais e investimentos futuros importantes. Nesse
aspecto, a economia solidária não se distancia da realidade da economia
informal.
O que os EES garantem é trabalho e renda em condições razoavelmente estáveis.
Vêem-se instados a economizar em seus ideais sociais para viabilizarem-se a
curto e médio prazos. A prioridade é a sua sobrevivência e consolidação, antes
de multiplicarem os benefícios ou de estendê-los a terceiros ou a novos
associados. Por isso, no espaço de cinco anos, o quadro de sócios preservou-se
integralmente apenas em 25% deles, parcialmente em 37,5% [E10]. Alguns EES,
zelosos em não empregar mão-de-obra externa assalariada, buscando equilibrar a
força de trabalho dos associados à demanda, incorrem em uma equação inversa, na
qual a demanda termina fixando-se de acordo com a capacidade produtiva já
instalada. Uma situação potencialmente estagnante: por não produzirem mais nem
obterem um retorno maior, os associados não logram acumulação e, por
conseguinte, não cresce o negócio, tampouco a renda pessoal auferida. Não
gerando maior capital, os trabalhadores não conseguem pô-lo à disposição de si
próprios e da expansão da sua força de trabalho. De outro lado, manter os
postos de trabalho é a prioridade, mesmo ao preço de menores retribuições
individuais, porque significa preservar a capacidade produtiva do EES, meio de
subsistência e propriedade comum dos trabalhadores. Essa finalidade, intrínseca
ao EES, determina em verdade a sua racionalidade específica15.
EFEITOS SOBRE A EQÜIDADE POLÍTICA
A desigualdade do poder em nossa sociedade manifesta-se nas instâncias da vida
cotidiana e nas diferenças de reconhecimento e efetivação de direitos e
participação cidadã. Sem a vivência desses direitos nos espaços de proximidade,
caracterizados pelas interações diretas, compromete-se desde a raiz a premissa
da igualdade política e o preceito do bem comum. Não há como se consolidarem a
noção mais ampla de esfera pública e a aspiração democrática. Cabe então
avaliar como os empreendimentos solidários materializam para os trabalhadores
uma condição de sujeitos de seus coletivos de trabalho, selando as bases do seu
protagonismo.
O primeiro bloco de indicadores da Tabela_5 [A2 a A3] enuncia a observância de
um conjunto de regras e práticas essenciais à gestão participativa e
democrática. Não obstante as variações existentes entre os indicadores,
predominam situações em que os sócios possuem iguais possibilidades de
influência (pela prerrogativa de participação e manifestação) e de decisão
(pelo acesso às informações e pelo voto). O princípio um associado, um voto
[A2] é inteiramente respeitado em 88% dos EES, não o sendo naqueles poucos, já
indicados, em que existem outros trabalhadores além dos sócios. Nesses mesmos
casos e em alguns outros (perfazendo 12%), as decisões fundamentais em regra
não são tomadas pelo conjunto dos membros [A1], tampouco se observa um
comparecimento expressivo nas instâncias deliberativas e consultivas [C10]. A
eleição dos dirigentes normalmente é livre e direta [A3], salvo nas exceções já
nomeadas, em alguns EES cuja natureza semifamiliar conduz a uma escolha por
indicação, sem uso formal do voto, e naqueles EES de estrutura mais complexa,
em que o voto é prerrogativa dos representantes das unidades menores filiadas.
No cômputo geral, a estrutura de poder dos EES distancia-se daquela das
empresas e organizações privadas, em que proprietários, gestores e
trabalhadores exercem funções inconfundíveis, com suas respectivas posições na
hierarquia de comando.
Isso não significa que o poder esteja plenamente distribuído e seja igualmente
exercido pelos membros dos EES. A socialização do poder é aceita como princípio
reitor, imanente à razão de ser e à identidade das cooperativas e associações.
Desde 1998, quando se realizou a primeira pesquisa, alguns EES evoluíram, no
sentido de superar lideranças paternalistas ou intervencionistas. Ainda assim,
a efetivação dos princípios democráticos, através de práticas participativas e
autogestionárias, sofre limitações. Os motivos residem nas dificuldades de
instituir mecanismos plenamente condizentes com tais princípios, devido ao
ritmo cotidiano absorvente e às vezes imprevisível dos empreendimentos, às suas
dimensões e estruturas mais complexas ou às diferenças de interesse e de
envolvimento dos sócios.
Assim, nos EES de maiores dimensões, os dirigentes máximos não são eleitos
diretamente pelos membros que compõem a base [A3]. No caso dos EES rurais, os
desafios que o elevado número de associados impõe à autogestão ainda são
multiplicados pela sua dispersão geográfica. A mobilização do corpo de
associados aparece como um dos grandes obstáculos. Muitas vezes, a saída do
impasse requer a centralização de tarefas diárias e tomadas de decisões
funcionais num pequeno círculo de dirigentes, que convocam o restante do quadro
de associados para prestação de contas anuais ou para assembléias
extraordinárias. No extremo oposto dos pequenos grupos, os fatores limitantes
das práticas solidárias são os diversos níveis de dedicação dos associados ao
empreendimento, que variam de acordo com as possibilidades e interesses de cada
um, fruto por vezes de condições preestabelecidas de participação,
especialmente no que tange às desigualdades na posse dos meios necessários ao
desenvolvimento da atividade produtiva.
A regularidade das reuniões decisórias [A6], presumivelmente favorável à
participação dos sócios, experimenta grande variação, não sendo observável em
15% dos EES, contra 41% em que é prática constante. Essa mesma cifra
corresponde ao total de EES em que o envolvimento dos sócios com a gestão se
verifica regularmente [A13]. O gradiente denota algum nível de especialização
dos gestores e de separação entre os mesmos e os demais sócios-trabalhadores.
Em certos casos, o motivo parece ser eminentemente prático, posto que há
alternância periódica entre uns e outros e os espaços de deliberação
democrática estão garantidos. Em outros, mantêm-se ou reintroduzem-se as bases
da divisão social do trabalho, apartando-se, em certa medida, a gestão da
produção. Intervêm ainda fragilidades estruturais em alguns EES, como as
cooperativas de trabalho, em que as atividades são mais individualizadas e os
vínculos de mais caráter contratual, com envolvimentos recíprocos momentâneos,
o que na prática converte a gestão na arte de fazer arranjos constantes entre
interesses particulares.
Em empreendimentos fundados na livre associação e em objetivos comuns, é
plausível imaginar que as práticas democráticas mais freqüentes correspondam a
normas fixadas estatutariamente e aceitas com naturalidade. Já outras
disposições, como a participação igualitária de homens e mulheres [A14], mesmo
formalizadas podem ser menos freqüentes, por contrariarem valores arraigados,
perceptíveis em particular no segmento de EES rurais, e outros elementos
subjetivos, como a confiança irrestrita do grupo em seu líder, dada a bagagem
de experiências que ostenta em aval de suas decisões.
A confiança, associada à franqueza e à transparência, parece explicar por que
em 47% dos EES o voto não é secreto [A4]. Decide-se por consenso ou pelo voto
aberto: já que todos devem expressar-se perante o grupo, não há por que
deliberar em sigilo, dizem os empreendedores. Entretanto, expor-se no momento
de decidir envolvendo pessoas impõe assumir as divergências publicamente, com
riscos sobretudo diante de lideranças fortes e carismáticas. A hipótese de que
a ausência do voto secreto seja sintoma de alguma espécie de coação velada,
promovida pelos dirigentes ou por associados mais atuantes, encontra respaldo
parcial na constatação de que essa ausência se verifica com certa freqüência em
EES nos quais os quadros diretivos tendem menos a renovar-se [A7]. No entanto,
ela não é típica dos EES com menor envolvimento dos sócios na gestão cotidiana,
tampouco caracteriza os EES com práticas de autogestão globalmente mais
modestas. Assim, salvo nos casos em que a isonomia entre os sócios encontra-se
rompida pela separação entre proprietários e trabalhadores, ou nos EES em que
se constata uma base mais passiva ou desorganizada, dependente de lideranças
pessoais, não se poderia concluir pela existência de uma elite dirigente, no
sentido de um grupo que se separa da massa de associados e institui mecanismos
de auto-reprodução.
Do comparativo entre as duas pesquisas, de 1998 e 2003, sobressai no cômputo
geral que a maioria das experiências ruma para a construção de uma postura
democrática e autogestionária: enquanto algumas práticas reforçam-se e
consolidam-se, outras parecem perder um pouco do seu sentido ou importância,
sem prejuízo para a participação e a reciprocidade interna aos grupos.
Com raras exceções, os EES apresentam algum tipo de envolvimento social e algum
grau de iniciativa na defesa de interesses coletivos mais amplos. Isto, embora
se perceba, pela classificação intermediária dos indicadores da Tabela_6, que
suas energias principais são consumidas na organização interna e nas questões
de sobrevivência, cobrando um alto preço pelo tempo de engajamento em frentes
múltiplas de luta, em nome de um novo projeto político, para usarmos o seu
linguajar.
As ações espontâneas em prol da comunidade [C12], costumeiras apenas em 41% dos
EES e ausentes em 25%, sinalizam um dado importante para a análise, por serem
típicas dos empreendimentos que também exercem a mútua ajuda internamente: a
solidariedade entre os membros dos EES assenta-se em uma malha social mais
ampla, vindo a reforçá-la pelos laços de reciprocidade que se estabelecem.
Assim, a vivência da autogestão e da cooperação no EES torna-o mais suscetível
às demandas da comunidade, ao mesmo tempo que promove o seu engajamento nos
embates da política local, compromete-o com a fidelidade exemplar aos seus
princípios organizativos e carreia ativos políticos e sociais. A hipótese de
que se criam circuitos de interação e de troca, fundados em relações não-
mercantis e não-monetárias, mas com sentido social e econômico, impulsionando
os EES como agentes de uma economia plural (Gaiger e Schüttz, 2005), é
avalizada pela conjunção das práticas correspondentes e por sua presença mais
expressiva nos EES com melhor desempenho global, solidário e empreendedor.
Destacam-se aqui os empreendimentos cuja força reside parcialmente na
combinação que fazem entre o exercício da cooperação interna e o envolvimento
com a comunidade, com movimentos sociais [C15] e com as suas representações
institucionais [C14].
Entre os EES mais bem-sucedidos, quase não se registram experiências isoladas,
sem vínculos sólidos com ONGs, movimentos sociais e poder público, sem
numerosas parcerias e articulações [V16], no que se opõem diametralmente ao
perfil dos empreendimentos menos exitosos. Portanto, estarem conectados ao seu
meio [C16] representa para os EES dotar-se de um vetor dinâmico fundamental,
não um aspecto adjetivo, complementar. Os EES constituem arranjos produtivos
que articulam interesses e atividades sociais, econômicas e políticas. Vários
deles passam a ter peso e reconhecimento em seus locais de inserção, onde
assumem funções de atores do desenvolvimento16.
EFEITOS SOBRE A EQÜIDADE CULTURAL
Conforme se queira olhar, as disparidades sociais no Brasil começam ou terminam
no acesso desigual à educação e em toda sorte de preconceitos, que não poupam
os trabalhadores dos empreendimentos solidários. Algumas de suas carências
intelectuais são elementares, como os modestos níveis de escolarização, que
excluem muitos deles do domínio da escrita, do cálculo e do desenvolvimento do
raciocínio formal. Ficam igualmente alijados de um conjunto de conhecimentos
básicos, vital para que possam gerir seus empreendimentos e transacionar com os
mais diversos interlocutores. Ficam ainda em desvantagem quando sua vivência de
subalternidade lhes incutiu uma atitude subserviente, oposta à postura altiva e
ativa deles esperada, para que, além de produtores diretos, assumam
coletivamente o comando de seus negócios. Precisamente porque essas carências e
necessidades são postas desta feita diante deles, em um contexto em que vencer
tais desafios significa qualificar o trabalho, principal fator produtivo e
principal esteio do vínculo associativo com que contam, podem-se imaginar ações
visando atenuar aquelas deficiências, através da educação, da aquisição de
conhecimentos e de uma práxis reflexiva, que corte o circuito reiterativo da
subordinação e promova o desenvolvimento da consciência e de identidades auto-
referenciadas.
Uma constatação geral da pesquisa de 1998 indicou a importância de fatores que
proporcionam a incorporação e a socialização de saberes profissionais entre os
empreendedores, brindando condições propícias ao aprendizado das tarefas de
gestão e de condução política do empreendimento. Com isso, a divisão técnica do
trabalho, herdada ou adotada pelo grupo, fica impedida de reproduzir e
cristalizar as diferenças de saberes e de competências iniciais, sem redundar
em concentração de poder, distinções de mérito e discriminações. Embora em
alguns casos tenham ocorrido retrocessos na socialização do conhecimento, em
paralelo com um desequilíbrio gradativo na participação dos sócios-
trabalhadores, entre 1998 e 2003 a maior parte dos EES bem-sucedidos manteve
essa preocupação com iniciativas concretas. A medida mais disseminada refere-se
a procedimentos de divulgação e debate das informações vitais ao empreendimento
[A9], da qual não se teve indícios em apenas 22% dos EES.
No tocante à qualificação da força de trabalho [V13] e a ações mais gerais de
educação [V15] ou de cultura e lazer [E4], o desempenho dos indicadores aponta
haver flancos, por falta de oportunidades de formação da base social dos
empreendimentos, de tempo livre e de investimentos. Há, no entanto, exemplos
dignos de nota, como os convênios visando à escolarização básica de todos os
seus membros, ou que mantêm assessorias e cursos técnicos para os associados.
Algumas cooperativas de trabalho destacam-se pela importância que atribuem à
capacitação dos sócios, seja técnica ou doutrinária. Em termos gerais,
referendando a importância presumível desse fator para o êxito dos
empreendimentos, constata-se que as ações educativas direcionadas aos sócios
são nitidamente mais freqüentes (80%) nos EES mais bem posicionados
globalmente, contra 20% nos EES situados no outro extremo.
A pesquisa não utilizou indicadores para aferir diretamente o grau de
socialização interna de saberes. No entanto, pode-se avaliar sua maior ou menor
probabilidade, de acordo com a existência de certas práticas afins, como a
adoção de processos coletivos de trabalho ou a rotatividade de funções e
tarefas. Conforme já apontado, são freqüentes nos EES processos de trabalho
executados em grupos, setores etc., particularmente entre aqueles de melhor
desempenho, que os empregam amplamente no âmbito da sua principal atividade
econômica. Ainda assim, a alternância de tarefas, que poderia engendrar uma
circulação de experiências e saberes, não se verifica como prática corrente na
maioria dos casos, estando, ao que tudo indica, condicionada pelos formatos
produtivos e pelos requisitos de competência indispensáveis a cada função, nos
marcos da divisão técnica do trabalho, característica do setor produtivo
correspondente. Nesse aspecto, enquanto não se difunde a solidariedade técnica
(Lianza e Addor, 2005), necessária à construção e circulação de novos saberes
coletivos, os EES menos inovam e mais adaptam-se às circunstâncias.
Os indicadores da pesquisa relacionados a esse tema são mais escassos e exigem
a consideração de outros dados de campo. Um traço fundamental, observado em
vários empreendimentos, é a sua negativa em reeditar os preconceitos e
discriminações que boa parte de seus integrantes sofre em seu cotidiano. Assim,
os EES são formados não apenas por trabalhadores pobres ou de modestas
economias, mas por pessoas que agregam outras de seus círculos de relações e
convivência, parceiros de infortúnio como negros, mulheres e idosos. Às vezes,
instituem diretivas intencionalmente destinadas à filiação de portadores de
doenças contagiosas, apenados e outras situações estigmatizantes. A economia
solidária exemplifica, dessa forma, a observação de que hoje se verificam
"mudanças dos mecanismos e das dinâmicas de construção dessas novas identidades
sociais como sujeitos coletivos", decorrentes "da pulverização dos espaços de
construção da identidade cidadã [...] mas também porque ela vem implicando a
reconstrução de novas redes associativas sob novas condições relativas aos
preceitos da cidadania, vale dizer, igualdade, justiça e liberdade" (Cohn,
2003:73-75).
UM EMBATE PELA EXISTÊNCIA SOCIAL
Nos limites do seu campo de ação, mas de forma efetiva, os EES incidem sobre
uma série de divisões imperantes na sociedade, quebrando elos de reprodução das
desigualdades. Geralmente, eles nascem de objetivos despretensiosos quanto a
provocar reviravoltas no padrão de vida dos indivíduos ou a propugnar por
amplas mudanças sociais. Respondem, em primeiro lugar, a necessidades de
proteção e de vida digna. Aumentam suas chances de êxito quando logram amoldar-
se aos arranjos individuais, familiares e semicoletivos conhecidos dos
trabalhadores, já inseridos na experiência deles e nos seus círculos de relação
e influência. Cumprem, então, o papel de potencializar tais arranjos, à medida
que reorganizam os seus fatores produtivos, materiais e humanos.
A esse respeito, vale mencionar o estudo de Magalhães e Abramovay (2005) sobre
experiências no Estado da Bahia: a progressiva formação de uma ampla rede de
cooperação e, a seguir, de um sistema de cooperativas de crédito direcionadas a
pequenos agricultores familiares do sertão baiano, propiciou seu acesso ao
mercado financeiro, novos canais de comercialização, organização de sua vida
econômica e melhor administração do dinheiro. Essa modernização econômica do
sertanejo, liberando-o dos vínculos personalistas e expropriatórios com os
agentes econômicos convencionais, teve por fundamento os valores comunitários e
religiosos daquela população, vindo a produzir um sistema de mercado
alternativo, profissional na gestão dos negócios e, ao mesmo tempo, dotado de
uma lógica social irredutível ao registro utilitarista, pois assente em
princípios éticos e no compromisso de suas instituições com um projeto social
para a região.
No contexto urbano, efeitos do igualitarismo em cooperativas criadas a partir
da conversão de empresas capitalistas, anteriormente estruturadas sobre a
divisão técnica e social do trabalho, encontram-se em estudos como os de
Esteves (2004) e Novaes (2005). No primeiro caso, uma cooperativa industrial
paulista, uma vez superada a fase inicial de negociações e ajustes, operou uma
aproximação das faixas salariais, com elevação do piso e diminuição do teto da
folha de pagamentos, em uma clara política de transferência interna de renda,
adotando, em seguida, os dissídios coletivos como parâmetros mínimos de
reajuste e instituindo um plano de benefícios e promoções. Essas medidas não
comprometeram as contas da empresa. O segundo estudo lança uma análise
comparativa de empresas autogestionárias na Argentina e no Uruguai. Uma das
inovações refere-se à repartição igualitária dos vencimentos dos sócios-
trabalhadores. O fato de trabalhadores gerirem uma fábrica é digno de registro:
aqueles que
"não tinham uma vaga intuição dos aspectos relacionados à
administração agora podem debater problemas relacionados à
comercialização do produto, planos de investimento, maior liberdade
para discutir aspectos relacionados à inovação em produtos,
processos, adaptação e fertilização do antigo maquinário em
componentes novos" (Novaes, 2005:106).
As fábricas recuperadas "vêm permitindo tanto a manutenção quanto a ampliação
do conhecimento dos trabalhadores, na medida em que muitos trabalhadores que
antes não dialogavam ou viam no outro uma espécie de ameaça ao seu trabalho,
agora são obrigados a enfrentar uma situação extremamente nova" (ibidem).
O segmento das cooperativas populares de trabalho, posto em meio ao fogo
cruzado entre os artifícios patronais de barateamento da força de trabalho e a
busca pelos trabalhadores de opções de renda, evidencia igualmente
possibilidades de promover benefícios importantes, como as retiradas mensais
garantidas, o sentimento de aceitação social e o orgulho de pertencer a uma
comunidade. Um estudo de três experiências na baixada paulista conclui que
"se a economia não oferece oportunidade legal para a sobrevivência de
pessoas que estão em condições de desigualdade social, elas
encontraram no cooperativismo uma forma de viver com solidariedade,
potencializando ações de pessoas simples em empreendimentos com
objetivos econômicos, resgatando a cidadania e promovendo o
desenvolvimento regional" (Vieira, 2005:112).
A depender de sua força instituinte, a economia solidária poderá dotar-se de um
marco específico que reconheça e sustente o fundamento associativo de suas
organizações e o seu caráter ao mesmo tempo econômico e social17. Por hora,
importa reconhecer que seus ganhos modestos são valiosos porque derivam da
preservação, da revitalização ou da introdução de formas de produção da vida
não-capitalistas. Tais formas são fundamentais para a vida dos pobres e para os
indivíduos que vivem do seu trabalho, por terem a virtude de abrandar a
sujeição destes à economia dominante e de conjurar o exclusivismo das relações
de subordinação e expropriação.
Mas não só: como salienta Calvino (1990), os desventurados crescem em número,
mas curiosamente ficam expostos à invisibilidade. Ao serem percebidos
unicamente nas suas carências, os pobres deixam de existir nos circuitos de
legitimação social e de reconhecimento não inferiorizante na esfera pública18.
O valor talvez mais fundamental dos experimentos de economia solidária reside
na mudança e no bem que acarretam para seus próprios protagonistas, ao
escaparem da lógica dominante de classificação social. Eles criam sujeitos de
suas relações econômicas e de seus vínculos sociais, colocam (mais uma vez)
novos atores em cena, em favor de um presente mais digno e inclusivo, aumentam
as possibilidades de um futuro melhor. Esses sinais, pequenos mas de energias
vivas e combatentes, compõem uma parcela da base social necessária para
sustentar pressões favoráveis a um novo sistema de regulação e de instituição
social da economia.
NOTAS
1. Nossa conceituação da economia solidária foi apresentada em artigo anterior
da revista DADOS (Gaiger, 2004b) e ficará plasmada ao longo do texto. Uma
análise em pormenores da gênese e das dinâmicas que presidem o funcionamento
dos empreendimentos de economia solidária encontra-se em Gaiger (2004a; 2006;
2007). Para uma análise internacional comparada, ver Santos (2002).
2. Medidas vigorosas de expansão de direitos em resposta a tais pressões, como
a integração dos trabalhadores rurais e de outros setores ao sistema
previdenciário, chocaram-se com a erosão incontrolável das economias dos
beneficiários e com o alastramento da informalidade, de modo que, ao cabo das
últimas décadas, às antigas situações de exclusão social somaram-se novos
processos de concentração de renda e de pauperização.
3. A esse respeito, inexiste discriminação contra mulheres e não-brancos quando
se trata de empregos pouco valorizados, sendo a mesma evidente na disputa pelas
posições mais prestigiadas e bem pagas (Singer, 1999:101).
4. No caso do Rio Grande do Sul, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios ' PNAD de 2002 indicam que a pobreza, mensurada pela renda, abrange
mais as mulheres, os negros, os pardos e os jovens (Picolotto, 2005).
Conclusões similares valem para o Brasil: embora os atributos pessoais não
produtivos sejam um fator complementar das desigualdades de rendimentos, em
relação àqueles provenientes do trabalho, na média os maiores rendimentos do
trabalho são pagos a homens brancos, bem educados, residindo no Sudeste
(Medeiros, 2005:261).
5. "Apenas com a repetição, por duas vezes consecutivas, do 'milagre econômico'
da década de 1970, sem, porém, o aumento da concentração de renda que o
acompanhou, é que o crescimento seria capaz de levar a incidência da pobreza
para abaixo de um terço dos níveis atuais" (Medeiros, 2005:250).
6. Fato que motivou o seu primeiro mapeamento nacional, promovido pela
Secretaria Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho
e Emprego ' MTE entre 2005 e 2007. A maioria absoluta dos 15 mil
empreendimentos registrados em 2006 é dirigida coletivamente por seus sócios-
trabalhadores.
7. Uma pesquisa intermediária agregou mais 17 casos aos 30 originais, dos quais
32 foram reexaminados em 2003, 28 deles já estudados em 1998 (dois
empreendimentos desse ano, de êxito a rigor discutível à época, foram
desativados; um empreendimento dividiu-se em três novos, especializando suas
atividades).
8. Por se tratarem de indicadores não dedutíveis de características naturais
diretamente observáveis dos empreendimentos, sua apresentação completa ao
leitor seria longa e improdutiva para os fins deste artigo. Aqueles utilizados
adiante terão o seu sentido oportunamente esclarecido.
9. A distinção entre o atendimento pleno ou parcial do indicador depende de
critérios auxiliares, relacionados à natureza do indicador e aos tipos de
empreendimento.
10. Utilizaremos a sigla EES para empreendimentos econômicos solidários,
referindo-nos às 32 experiências pesquisadas. Os EES de triagem de resíduos
sólidos são mais conhecidos como empreendimentos de reciclagem.
11. Os indicadores figuram em cada tabela segundo a ordem de exposição do
texto. À esquerda, o percentual de EES que os evidenciam (de modo pleno ou
parcial, somados); à direita, a classificação dos indicadores, entre os 60
utilizados na pesquisa, sinalizam o seu grau de disseminação entre os
empreendimentos.
12. A análise é feita mediante comparação entre o perfil dos 10 EES de melhor
desempenho global e os 10 de menor desempenho. Para exemplificar, os
indicadores A12, A11 e A10 contabilizam escores superiores a 80% no primeiro
grupo contra pontuações modestas no segundo.
13. Um dado a salientar, visto que as diferenças de remuneração nos níveis
inter e intra-ocupacionais são o que melhor explica as desigualdades entre
ricos e não-ricos no Brasil, a renda agregada das famílias não-ricas estando
ainda mais dependente do trabalho (Medeiros, 2005:261).
14. O que não as dispensa, por certo. O cálculo da renda monetária dos sócios
exigiria equacionar um conjunto de variáveis, respeitando as formas de
organização da atividade econômica e mensurando-a no nível dos indivíduos e da
contribuição de tais rendimentos para a composição de suas rendas familiares,
unidade mais confiável para efeitos comparativos (Medeiros, 2005; Neri, 2007).
A falta de evidências de que os EES estariam promovendo mudanças significativas
nesse plano, somada ao óbice de que a unidade de pesquisa foram as
organizações, não os indivíduos e suas famílias, prejudicou as estimativas
dessa ordem em pelos menos 28% dos casos.
15. O compromisso de manter as pessoas ocupadas cria restrições e obriga o EES
a descartar alternativas que seriam normais em empresas privadas, como
dispensar trabalhadores ou utilizar padrões de remuneração muito diferenciados.
Desse ponto de vista, a instabilidade de pessoal dos EES diferencia-se da
insegurança reinante no mercado formal de trabalho e nas ocupações informais,
sorte a que de outro modo estariam sujeitos os empreendedores solidários e com
a qual se comparam, na hora de sopesar as vantagens e inconvenientes dessas
alternativas.
16. Dos EES pesquisados, lançaram-se, em vários casos, com sucesso dirigentes
de sindicatos, presidentes de associações e candidaturas políticas.
17. O marco legal da economia solidária tem ensejado intensa discussão nos
últimos anos e ganhou novo vigor no âmbito do recém-instalado Conselho Nacional
de Economia Solidária.
18. Fato brilhantemente retratado em Crianças Invisíveis, reunião de sete
curtas-metragens dirigidos por Kátia Lund, Spike Lee, Ridley Scott e outros.