Os partidos dentro e fora do poder: a judicialização como resultado contingente
da estratégia política
INTRODUÇÃO
A importância do Supremo Tribunal Federal - STF no sistema político brasileiro
contemporâneo parece inconteste, em especial a partir da configuração
institucional que emergiu da Constituição brasileira de 1988 e de seus
respectivos efeitos sobre o sistema de controle judicial de constitucionalidade
das leis. Apesar de não haver concordância entre os vários autores quanto à
exata extensão do peso dessa instituição, o papel por ela exercido está longe
de ser insignificante. Na verdade, a presença de robusta bibliografia sobre o
tema apenas corrobora esse juízo. Todavia, ainda que os cientistas sociais
brasileiros venham se dedicando crescentemente ao tema, a literatura está longe
de ter esgotado o assunto. Aspectos concretos dessa realidade e mesmo
abordagens teóricas ainda não foram aplicados de modo satisfatório ao caso
brasileiro, como alguns autores vêm acertadamente apontando (Koerner e Maciel,
2002:129-131; Carvalho Neto, 2004:123-124). Buscando examinar a questão sob um
novo ângulo, propomos esta pesquisa.
Nosso objetivo é analisar os padrões de judicialização da política verificados
durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998/
1999-2002) e compará-los com o período subseqüente de pouco menos de um mandato
e meio em que esteve à frente do Poder Executivo o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-2006/ 2007-abril de 2008). Inicialmente, o propósito de tal
comparação é verificar se ocorreram mudanças ao longo do tempo e dos diferentes
governos no acionamento do mais alto tribunal do país para contestação de
normas federais por meio do principal instrumento de contestação da vontade
majoritária, a Ação Direta de Inconstitucionalidade - Adin. Em um segundo
momento, passamos à identificação de possíveis causas para as variações - e
também para as semelhanças - eventualmente encontradas no levantamento
realizado. Em vista disso, este artigo tem início expondo os fundamentos
teóricos das indagações que norteiam nossa pesquisa para, em seguida, ser
realizada a análise descritiva do fenômeno, somando-se a isso um exame mais
detalhado de alguns casos específicos especialmente importantes para o presente
estudo.
PARTIDOS E OPOSITORES NA ARENA JUDICIAL
A proposta de tal tema parte de duas considerações sobre a literatura existente
a respeito do assunto, uma de viés analítico e outra de caráter teórico. A
primeira observação está voltada diretamente para os trabalhos que os
cientistas sociais brasileiros têm produzido sobre o desempenho institucional
do mais alto tribunal do país durante o período atual. Poucos, entre esses
estudos, abrangem o período de tempo posterior ao governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso. Os influentes trabalhos de Arantes (1997), Castro
(1997a; 1997b) e Werneck Vianna et alii (1999), por exemplo, até mesmo pela
época em que foram elaborados, não chegam a ultrapassar esse período. Por outro
lado, estudos recentes, como os de Carvalho Neto (2005), Pacheco (2006) e
Oliveira (2006), também não examinaram o período posterior ao ano de 2002. Pelo
que pudemos constatar, apenas os estudos bastante recentes de Werneck Vianna,
Burgos e Salles (2007), Taylor (2008) e Da Ros (2008; no prelo) apresentaram
alguma análise do período posterior à eleição do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, ainda que integrada a estudos mais amplos sobre o desempenho da
instituição. Em vista dessa relativa ausência e da importância dessas
abordagens para a compreensão da realidade política brasileira, propomos o
estudo do assunto aludido.
Em segundo lugar, do ponto de vista teórico, devemos observar que o chamamento
dos tribunais à apreciação das políticas públicas não resulta apenas da
extensão dos canais institucionais existentes para tanto, mas também do
contexto e das estratégias políticas de potenciais atores no campo judicial.
Como se sabe, a literatura em ciência política adepta do método comparativo
está repleta de argumentos sobre as origens institucionais do uso político da
via judicial (Clayton e Gillman, 1999; Ríos-Figueroa e Navia, 2005; Ríos-
Figueroa e Taylor, 2006; Smith, 1988). O tema central desses estudos se refere
ao fato de a estrutura institucional influenciar consideravelmente os padrões
de uso das cortes, em especial do ponto de vista comparativo, levando à maior
ou à menor contestação judicial da política (ou judicialização da política) em
uns casos do que em outros.
Nesse mesmo sentido, devemos observar que há uma literatura crescente
relacionada à lógica do uso político-partidário dos tribunais. De acordo com
Dotan e Hofnung (2005), uma interessante questão emerge desse particular: por
que legisladores fazem uso dos tribunais mesmo quando suas chances de vitória
são mínimas e ainda mais se esse mesmo uso pode resultar na restrição da
autonomia do próprio Poder Legislativo? A resposta que os autores oferecem é
que, a despeito das pequenas chances de sucesso na arena judicial, políticos
podem se beneficiar por contestar políticas majoritárias porque angariam em
torno de si considerável atenção pública, decorrente em especial da
visibilidade que os meios de comunicação dedicam a esses episódios. Em sentido
semelhante, Taylor argumentou que os diferentes atores políticos podem fazer
uso dos tribunais como veto points que
[...] lhes propiciam retardar ou impedir completamente a
implementação de políticas públicas, ou desmerecê-las, ou ainda
declarar sua oposição a elas. Esses quatro objetivos táticos
(retardar, impedir, desmerecer, declarar) podem ser perseguidos tendo
por base sólidos preceitos legais (a forte crença de que uma lei é
inconstitucional, por exemplo) e também puros fundamentos
estratégicos (por exemplo, um esforço para se recorrer da decisão
política apesar do claro reconhecimento de que esse mesmo recurso não
tenha qualquer base jurídica) (2008:10; tradução dos autores).
As táticas judiciais, em outras palavras, não estão necessariamente assentadas
na expectativa de uma vitória judicial. Por essa mesma razão, encarar a
influência política dos tribunais apenas sob a ótica dos casos em que aqueles
efetivamente alteram a legislação significa restringir sobremaneira a análise e
deixar sem apreciação táticas políticas importantes que envolvem os tribunais
mesmo em contextos em que a vitória judicial não é esperada.
Ao que parece, os dois aspectos mencionados anteriormente merecem ser
congregados. Se, por um lado, é sabido que a configuração institucional importa
tanto às cortes quanto a todas as outras instituições, conformando as táticas
empregadas pelos políticos e por seus opositores, por outro lado, devemos notar
também que tais oponentes não estão apenas interessados nos respectivos
resultados judiciais quando recorrem a essa via. De fato, se o custo de
desafiar a política nos tribunais é relativamente baixo, há pouca razão para
que os oponentes ao governo não façam uso dessa tática. Mesmo que isso não
resulte em vitórias judiciais, esses atores podem
[...] levantar dúvidas sobre as políticas adotadas, chamar a atenção
pública para supostas ilegalidades procedimentais cometidas ou ainda
desmerecer as políticas que buscam suporte majoritário. Ao contestar
tais políticas nos tribunais, em outras palavras, pode-se fazer
possível assegurar uma vitória sem que se chegue propriamente a uma
vitória judicial (ibidem; tradução dos autores).
Ou, como Dotan e Hofnung (2005) sumarizam tão bem em seu título, trata-se de
derrotas judiciais e vitórias políticas. Uma vez realizadas tais observações de
caráter teórico, nossa expectativa é que possamos contribuir para esse programa
de pesquisas. Já se encontra suficientemente estabelecido na literatura que
regras institucionais importam, trazendo claros efeitos em termos do uso dos
tribunais entre diferentes países e jurisdições. Ademais, sabe-se também que
integrantes da oposição possuem tanto razões táticas quanto estratégicas para
fazer uso das cortes quando as regras institucionais permitem semelhante
utilização.
A questão que permanece, todavia, é a seguinte: sob regras institucionais
semelhantes, que fatores contribuem para a variação no uso dos tribunais pelos
atores políticos, especialmente por membros da oposição? Recorrendo ao que se
pode chamar de "experimento natural" propiciado pelas administrações
presidenciais ideologicamente distintas dos presidentes Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, nosso estudo contrasta os padrões de
contestação judicial pela oposição nos dois períodos mencionados. Nesse
sentido, é de se supor que esse uso político da via judicial resulta da
estratégia adotada pelos diferentes atores políticos que dela se valem. Essa
mesma questão se dirige a um aspecto mais amplo, qual seja: se os diferentes
arranjos institucionais permitem maior ou menor participação dos tribunais na
arena política, como explicar que diferentes padrões de judicialização da
política possam emergir de contextos institucionais praticamente idênticos?
A suposição básica aqui é que, apesar de o desenho institucional influir
decisivamente na possibilidade de participação dos tribunais na arena política,
estes ainda assim dependem de um acionamento externo para que possam tomar
decisões politicamente relevantes. Afinal, de longa data é sabido que o Poder
Judiciário, além de não possuir influência sobre o uso da força (a espada) ou
sobre o orçamento (a bolsa), também "[...] não pode adotar nenhuma resolução de
modo ativo" (Hamilton, 2003:464). Além das mudanças quanto aos integrantes da
oposição em cada período, a hipótese levantada nesta pesquisa busca agregar
diferenças em relação ao ambiente político e aos assuntos levados à apreciação
do mais alto tribunal do país nos dois períodos estudados. Dessa forma, a
explicação parece residir nas diferenças quanto aos atores, mas também no que
tange à saliência dos temas e ao contexto político em que se processou a dita
judicialização, resultado contingente das estratégias políticas adotadas nesses
dois períodos. O uso efetivo das táticas judiciais propiciadas pelo arranjo
institucional existente não pode ser entendido, portanto, como uma função
mecânica do mero oposicionismo ao governo, mas deve integrar também a saliência
dos temas tratados e o próprio ambiente político em que semelhante tática é
empregada. Interagindo com as respectivas ideologias dos partidos excluídos da
coalizão governista, elemento também importante para esta explicação, tais
fatores tendem a conformar a utilização efetivamente realizada da contestação
judicial das políticas majoritárias pelos diferentes oponentes. Portanto,
somente a partir da conjunção de fatores relativos ao teor das políticas
prioritárias dos governos (bem como aos interesses que elas atingem) e ao tipo
de tática buscada pelos oponentes diante desse contexto, é possível compreender
o uso tático das cortes nesse particular (Taylor, 2008:22-23)1.
ANÁLISE COMPARATIVA DOS DADOS
Antes de passarmos à apresentação dos dados descritivos, uma breve revisão do
papel da Adin se faz necessária. O uso dessa ação como instrumento político já
foi amplamente estudado na literatura recente (Arantes, 1997; Da Ros, 2008;
Castro, 1997a; 1997b; Pacheco, 2006; Taylor, 2008; Werneck Vianna et alii,
1999; Oliveira, 2005). Reiterando alguns apontamentos desses autores, devemos
frisar que as Adins têm sido objeto analítico de interesse dos cientistas
políticos especialmente por dois motivos:
1. Por permitir que alguns atores políticos com legitimidade ativa "pulem" a
sobrecarga processual dos tribunais inferiores e obtenham uma decisão judicial
com efeitos gerais, imediatos e vinculantes. Embora a legitimidade ativa seja
restrita a um grupo pequeno de possíveis requerentes, o número de atores
legitimados no Brasil é elevado em termos comparativos. Isso tem incentivado o
uso intenso do instrumento, redundando em uma média total de duzentas Adins por
ano, número que chega a aproximadamente cinqüenta Adins anualmente dirigidas
apenas contra atos de órgãos federais (as demais geralmente se voltam contra
leis de órgãos estaduais).
2. As decisões nas Adins são irrecorríveis e tomadas com base em revisão
abstrata. Isto é, permitindo que o requerente conteste uma determinada lei sem
ter de esperar pela manifestação de seus efeitos práticos2. Portanto, do ponto
de vista político, elas oferecem um instrumento importante de contestação das
políticas majoritárias, especialmente para as minorias que não têm voz efetiva
nas deliberações dos Poderes Executivo e Legislativo.
Frisamos dois outros pontos relevantes, oriundos da pesquisa realizada:
1. As chances de inviabilizar parcial ou integralmente a legislação por meio
das Adins são relativamente elevadas: tomando tanto as decisões de mérito
quanto o efeito das liminares, Taylor (2008:87) estima que as chances de uma
Adin ser bem-sucedida, isto é, inviabilizar no todo ou em parte determinado
estatuto legal, são ligeiramente maiores do que uma em cinco. Nossa análise
mostra resultado semelhante: agregando as decisões tomadas contra a legislação
tanto no governo Fernando Henrique quanto no governo Lula, chegamos à mesma
proporção: 20,1% das Adins contra leis federais no período de janeiro de 1994
até abril de 2008 resultaram em alguma mudança na legislação contestada. Se
considerarmos apenas as Adins que já foram efetivamente julgadas, essa
proporção aumenta para 32,6%, como se pode verificar na Tabela_13. Essa
intensidade dos julgamentos que inviabilizam parcial ou integralmente estatutos
legais federais significa que ocorrem, em média, 9,6 alterações de políticas
públicas pela corte por ano, ou seja, quase uma por mês. Considerando que
apenas 0,026% das propostas do Executivo votadas pelo Congresso foram
rejeitadas na década posterior à Constituição de 1988 (Figueiredo e Limongi,
1999:24), esse papel do STF não pode ser menosprezado.
2. Todavia, devemos frisar que a importância política do tribunal não se
restringe aos casos em que ele efetivamente declara inconstitucionais trechos
de leis ou mesmo estatutos legais inteiros. O simples acionamento da corte por
partidos oposicionistas e por diferentes grupos de interesse possui um
significado que extrapola o posicionamento finalmente firmado pela corte nesses
contextos. O uso das Adins para desmerecer e declarar oposição a certas
políticas públicas, por exemplo, não necessita de decisões que impliquem
alteração legislativa para que se atinjam esses resultados. Nesse sentido, vale
ressaltar que, além de as Adins serem um instrumento convenientemente
mensurável (ao contrário da maioria dos processos nos tribunais de primeira
instância, por exemplo), elas tendem a acompanhar os padrões mais gerais de
judicialização da política: embora existam estratégias de uso diferenciado dos
tribunais inferiores, o conteúdo dos processos usados em tais estratégias
muitas vezes acaba chegando ao STF, inclusive por meio de Adins que são
ajuizadas enquanto esses processos correm junto às instâncias inferiores do
Poder Judiciário4. Como as Adins apresentam baixo custo e elevada repercussão,
os atores tendem a utilizá-las para garantir a visibilidade de sua ação
política.
Passemos à análise dos dados compilados para esta pesquisa.
Análise Descritiva
Nesta seção, descrevemos algumas diferenças na utilização das Adins entre os
governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. A primeira
grande diferença pode ser observada de imediato na Figura_1: como se pode ver,
o uso das Adins caiu abruptamente de um período para outro, tendo 637 ações
sido apresentadas nos dois mandatos de Fernando Henrique e um número quase 60%
menor, 275, nos primeiros cinco anos e quatro meses do governo Lula. Devemos
ressaltar, contudo, que essa comparação não é perfeita: como se observa, ainda
faltam 32 meses do segundo mandato do governo Lula para serem incorporados a
nosso banco de dados. Nas taxas atuais, esses meses restantes representarão um
incremento de aproximadamente 50% no número de Adins nos dois mandatos do
presidente. Mesmo com tal correção, no entanto, o governo Fernando Henrique
terá enfrentado mais de uma vez e meia de Adins contra sua legislação (61%-
39%).
Outro dado importante a ser observado é que praticamente todos os requerentes
diminuíram sua intensidade no uso das Adins após a mudança do governo Fernando
Henrique para o governo Lula. Como explicar esse decréscimo? Três hipóteses
podem ser levantadas. Em primeiro lugar, é possível aventar que tenha ocorrido
alguma mudança institucional que explicaria a queda. Segundo, pode-se sugerir
que a oposição tenha alterado suas estratégias judiciais. Por fim, pode ter
ocorrido uma mudança na saliência das políticas públicas para a oposição. Nesse
caso, diante do continuísmo que o governo Lula representou em algumas políticas
públicas (notadamente no campo da política econômica), não haveria necessidade
de contestar judicialmente suas políticas. Retomaremos essas hipóteses adiante;
por ora, observemos outros dados relevantes.
O Gráfico_1, ao apresentar os percentuais sobre o total correspondente a cada
tipo de proponente em cada governo, permite-nos ver quatro padrões de
comportamento importantes em termos comparativos entre os dois períodos
analisados. Ao contrário do que se esperaria, dada a estreita relação histórica
entre o Partido dos Trabalhadores - PT e o sindicalismo, houve curiosamente um
aumento relativo na utilização das Adins por sindicatos. Isso pode ser
atribuído ao incremento na participação de entidades ligadas ao universo
jurídico, questionando aspectos da Reforma do Judiciário5, e também ao fato de
os partidos políticos que representavam judicialmente os sindicatos estarem
agora no governo, não podendo assim exercer mais esse papel junto ao STF.
Segundo, embora não sejam legitimados ativos, houve um aumento significativo no
uso de Adins por indivíduos. Nesse caso, trata-se principalmente de vereadores
contestando leis eleitorais, sem nenhuma chance de conseguirem ser ouvidos pelo
STF, em função de sua manifesta ilegitimidade ativa. Um terceiro ponto é a
curiosa presença do próprio presidente como requerente durante o governo Lula.
O quarto e último ponto é que, apesar de ter ocorrido uma redução absoluta no
número de Adins, os partidos continuam sendo os principais requerentes,
representando quase dois quintos de todas as Adins propostas contra normas
federais, embora no período Lula praticamente compartilhem a liderança com os
sindicatos.
Em relação especialmente aos partidos políticos, no Gráfico_2, pode-se
constatar que os partidos requerentes tendem, em sua maioria, a ser da
oposição. Para elaborar esse gráfico, usamos a participação ou não nos
ministérios na época de aprovação da legislação contestada. Esse critério segue
os raciocínios de Taylor (2008:104-105) e Da Ros (2008:119- 122), segundo os
quais a ideologia não é o melhor indicador para prever a contestação das leis
por Adin, e a participação no governo explica quase integralmente essa
dinâmica. O Gráfico_2, no entanto, difere de Taylor (2008) por considerar todas
as normas federais, e não somente aquelas de autoria do Poder Executivo
federal. Usando esse universo, descobre-se o intrigante fato de que há uma
quantidade não-irrisória de casos (7,5% do total; dezessete Adins contra leis
do governo Fernando Henrique6 e dez contra o governo Lula) em que membros da
coalizão governista utilizaram o STF para contestar atos federais. Trataremos
dessa dinâmica mais adiante.
Finalmente, no Gráfico_3, analisamos o assunto das políticas públicas
contestadas em Adins contra normas federais. A categorização dos tópicos, de
nossa elaboração, baseia-se prioritariamente na análise da legislação
contestada em cada ação. Alguns assuntos, como política econômica e regras
previdenciárias, continuam sendo foco de muita contestação. O que se vê, no
entanto, é uma inversão de posições: por exemplo, em vez de o PT estar
reclamando contra a reforma da previdência, como fizera durante a administração
tucana, agora é a própria reforma da previdência do governo petista que está
sendo contestada. Em cinco outras áreas, pode-se constatar considerável
diferença relativa entre os dois períodos: i) o aumento relativo no tópico
Judiciário, que pode ser atribuído em grande parte à chamada "reforma do Poder
Judiciário", que resultou da aprovação da Emenda Constitucional nº 45, em
dezembro de 2004; ii) a diminuição do assunto Servidor Público, que
provavelmente pode ser explicada por uma redução no ritmo de reformas nesse
sentido, além da existência de tradicional aliança entre muitos sindicatos de
servidores e partidos de esquerda, notadamente o PT; iii) o aumento relativo do
assunto Eleitoral, em parte resultado de mudanças na legislação que regula as
eleições, mas fruto especialmente de uma seqüência de decisões sobre o processo
eleitoral tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral - TSE em anos recentes; iv)
um leve incremento relativo na importância do assunto Agricultura, que ganhou
saliência dentro da coalizão lulista (com destaque para Adins ajuizadas pelo
Partido Verde - PV, partido integrante da base de apoio do governo) em relação
a algumas decisões relativas ao plantio e à comercialização de soja
geneticamente modificada; v) tanto nas áreas de Regulamentação Social quanto
nas de Políticas Sociais, o aumento que se observa é causado por alguns
assuntos pontuais, como leis dirigidas ao registro e à comercialização de armas
de fogo e munições, práticas reguladas no Estatuto do Desarmamento e objeto de
referendo durante o governo, além de outros programas governamentais novos na
área social, como o ProUni - Programa Universidade para Todos, que distribui
benefícios a estudantes universitários, entre outros.
Como forma de aprofundamento, julgamos conveniente integrar à análise
quantitativa a apresentação de alguns casos especialmente proeminentes na
contestação judicial de políticas e decisões dos órgãos integrantes dos três
Poderes do Estado na esfera federal. A fim de evitar problemas decorrentes de
bias na seleção dos casos expostos, mapeamos os estatutos legais mais atacados
por meio de Adins nos dois governos, localizando-os em meio a que temas gerais
se inserem, respectivamente. O resultado desse cruzamento de informações -
mostrando os temas mais contestados via Adin - pode ser observado na Figura_2.
Inicialmente, nosso objetivo era realizar estudos de caso pormenorizados com
todos os estatutos legais mais contestados judicialmente em cada governo.
Todavia, em virtude do espaço exíguo, optamos por apresentar de forma mais
detalhada os casos expostos na figura a seguir apenas no Apêndice deste estudo,
no final do texto. Por ora, valemo-nos dessas experiências para, em conjunto
com os dados quantitativos até agora expostos, tecermos conclusões a respeito
das diferenças e das semelhanças nos padrões de judicialização da política
verificados durante os governos Fernando Henrique e Lula, respectivamente.
Semelhanças e Diferenças nos Usos da Judicialização entre os Dois Governos
Do ponto de vista das semelhanças nos usos políticos da via judicial,
acreditamos que há dois aspectos comuns a ambos os períodos. Trata-se dos
diferentes tipos de argumento desenvolvidos pelos mais variados proponentes com
o objetivo de judicializar determinadas políticas públicas, naquilo que
doravante designaremos usos da judicialização. Essas verdadeiras retóricas da
judicialização, ou conjuntos de justificativas para submeter aos tribunais (o
STF, no caso) a apreciação de determinadas políticas, se articulam em dois
tipos iniciais básicos, correspondentes a duas semelhanças que encontramos nos
usos políticos das Adins tanto na gestão de Fernando Henrique quanto no governo
Lula7.
1. Primeiramente, apresentamos o uso político mais comum da via judicial. Por
motivos óbvios, trata-se daquele mais intensamente estudado pelos acadêmicos e
geralmente mais noticiado pelos meios de comunicação. É aquilo que denominamos
judicialização como tática de oposição. Nesse caso, os tribunais são acionados
com o propósito de declarar oposição ou desmerecer políticas públicas adotadas
pelo governo. Enquadram-se nesse perfil especialmente as Adins propostas por
partidos políticos excluídos da coalizão governista, que são empregadas como
instrumentos que amplificam a voz desses mesmos grupos no embate político. Por
motivo semelhante, é de se supor que sindicatos, objetivando prestar contas a
seus filiados, se valham dessas ações buscando denunciar o que consideram ser
práticas equivocadas dos diferentes governos, em especial se estas atingirem
direta ou indiretamente interesses da parte daqueles.
Nesse mesmo sentido, as cortes também podem ser buscadas com o objetivo de
vetar integralmente ou retardar a implementação de determinadas políticas
governamentais, ocasião em que o objeto a ser atacado não é necessariamente uma
política pública em si, mas a simples possibilidade de impor uma derrota ao
adversário. Em todos os casos, trata-se de empregar os tribunais, literalmente,
como uma última instância, à qual se pode recorrer para derrotar determinadas
políticas, denunciar as práticas do governo e tornar clara a posição contrária
de determinados grupos a estas. Vale notar ainda que a tática judicial da
oposição se integra ao panorama mais amplo das diferentes táticas que os
partidos e grupos de oposição utilizam para fazer frente às políticas que lhes
desagradam no governo em questão, como a ameaça de obstrução a determinadas
votações no Congresso Nacional, no caso de partidos políticos, e manifestações
públicas, em se tratando de sindicatos e outros grupos de interesses. Por essa
razão, portanto, o mapeamento da intensidade do acionamento do STF pelos
partidos de oposição pode ser utilizado para futuras pesquisas dos cientistas
políticos brasileiros - inclusive daqueles dedicados à análise das relações
entre os Poderes Executivo e Legislativo - como um indicador de polarização
política, dado difícil de ser apreendido e quantificado na maior parte das
vezes.
Um exemplo bastante freqüente desse tipo de uso da via judicial é dado pelas
Adins propostas contra medidas provisórias - MPs, visto que estas geralmente
consubstanciam os interesses imediatos do governo, muitas vezes alterando
políticas de elevada repercussão. As ações judiciais apresentadas contra as
cinco MPs expostas na Figura_2 se enquadram claramente nesse tipo de uso da via
judicial por seus conteúdos controversos e polêmicos, como a fixação do salário
mínimo (MP nº 1.415), a alteração de critérios para o recebimento de diferentes
benefícios previdenciários (MP nº 1.523), a regulamentação do plantio e da
comercialização de soja geneticamente modificada (MP nº 131), e de tributos,
como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - Cofins (MP nº
135), além do manejo dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço -
FGTS (MP nº 349).
Todavia, o uso opositor às políticas do governo não se exaure nos casos em que
os instrumentos legislativos contestados são medidas provisórias. Pelo menos
uma Emenda Constitucional, a de nº 41, aprovada pelo governo Lula no final de
2003, estabelecendo a chamada "reforma da previdência" e instituindo, entre
outras, a contribuição dos servidores inativos, foi contestada judicialmente
com propósitos abertamente oposicionistas. O mesmo se deu com pelo menos uma
Lei Ordinária, a de nº 9.601, de janeiro de 1998, que instituiu regras
relativas à livre negociação entre empregadores e empregados contratados em
regime temporário, flexibilizando, portanto, parte das relações entre capital e
trabalho.
Com efeito, um elemento comum aos proponentes de todas essas ações, como parece
claro, é o fato de que entre eles estão muitos partidos políticos, de
diferentes pontos do espectro ideológico, mas invariavelmente na mesma posição
em relação ao governo: em franca oposição. É por essa razão, por exemplo, que
PT, Partido Democrático Trabalhista - PDT, Partido Comunista do Brasil - PC do
B e Partido Socialista Brasileiro - PSB estiveram entre os principais
proponentes de Adins contra atos do governo Fernando Henrique; e Partido da
Frente Liberal/Partido Democrata - PFL/DEM, Partido da Social Democracia
Brasileira - PSDB e, em menor medida, Partido Popular Socialista - PPS e PDT
vêm contribuindo para o ajuizamento de ações contra a gestão de Lula.
Sindicatos de trabalhadores, nas duas gestões examinadas, também têm
contribuído nesse sentido, declarando pública e judicialmente sua oposição a
determinadas políticas dos dois governos, em uma atitude que extrapola a
simples apresentação de uma queixa ao STF, mas que se utiliza do acesso ao
tribunal para obter visibilidade de suas ações junto ao público.
2. O segundo tipo, que designamos judicialização como arbitragem de interesses
em conflito, é talvez ainda mais freqüente. Nesse caso, não se trata tanto de
fazer uso dos tribunais como instrumentos de oposição ao governo, mas sim de
propor ações nos casos em que determinados estatutos legais modifiquem
procedimentos e atinjam diretamente interesses de grupos e setores específicos,
prejudicando alguns e beneficiando outros. Busca-se o STF com o propósito,
ainda que não necessariamente declarado e imediato, de definir ou aperfeiçoar
determinadas "regras do jogo". A judicialização, nesse caso, não pretende
desmerecer a política pública adotada, mas sim alcançar regras procedimentais
que beneficiem um determinado ator ou um conjunto deles.
Esse é claramente o caso da contestação judicial de regras que redistribuam
poderes e atribuições entre diferentes entidades e instituições, como partidos
políticos, entes federativos e diferentes instâncias do Poder Judiciário. Nessa
perspectiva, insere-se, por exemplo, praticamente toda a contestação de regras
eleitorais, das leis nº 9.096, 9.100, 9.504 e 11.300, além da Resolução nº
21.702, do TSE. Na maior parte dos casos, trata-se de estatutos legais que
redistribuem o tempo de duração do horário eleitoral gratuito em rádio e
televisão, instituem regras para o exercício da propaganda partidária, fixam
prazos e limites para o registro de candidaturas e estabelecem o próprio número
de cargos em disputa. Por concretamente privilegiarem determinados partidos em
prejuízo de outros, não se trata de puro uso da arena judicial como extensão da
política de oposição ao governo, mas da busca por uma arena em que se possa
evitar que certas regras prejudiquem de forma direta alguns partidos. Nesse
mesmo sentido, inclui-se, portanto, a contestação de regras que envolvam a
redistribuição de responsabilidades e atribuições entre as entidades
federativas ou que imponham limites à atuação destas. São os casos, por
exemplo, da Resolução nº 117, de 1997, do Senado Federal, que dispôs sobre a
destinação de recursos dos estados oriundos de privatizações, e da Lei
Complementar nº 101, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitou
a destinação de recursos públicos a certas áreas pelos Estados e pela União. Há
ainda dois casos que, embora não sejam estatutos legais que diretamente
redefinam as relações federativas, acabam se refletindo sobre elas e, em função
disso, ensejando o acionamento do STF para que ele resolva essas disputas. Isso
é o que ocorre com a Lei Complementar nº 123, de dezembro de 2006, que
instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (o
chamado Simples Nacional), e pôs sob a alçada de órgãos da União a gestão, a
aplicação de normas e a solução de controvérsias decorrentes da implementação
desse novo regime tributário para as empresas de pequeno porte. Por causa dessa
redefinição de funções, complementar ao objetivo central do estatuto legal em
questão, surgiram demandas de representantes de funcionários de órgãos
estaduais que buscavam ver sob sua jurisdição tais funções. Em alguma medida e
um tanto paradoxalmente, trata-se também do que ocorreu com a aprovação da
Emenda Constitucional nº 20, de 1998, que consubstanciou a "reforma da
previdência" do governo Fernando Henrique. O curioso é que, embora ela tenha
apresentado um conjunto bastante controverso de medidas, apenas uma ação foi
ajuizada com o propósito específico de declarar-lhe oposição (trata-se da Adin
nº 1.946). As outras cinco ações, contudo, foram propostas apenas meses mais
tarde e se dirigiam contra limitações ao tempo de permanência dos juízes nos
tribunais e contra a fixação de limites aos sistemas previdenciários estaduais,
sendo quase sempre apresentadas por grupos de interesses e entidades estaduais,
como assembléias legislativas ou governadores de Estados, motivos pelos quais o
tipo de contestação promovido contra esse estatuto legal foi enquadrado entre
aqueles que ensejam judicialização como arbitragem de interesses em conflito.
Nesse mesmo conjunto, pode ainda ser catalogado o número substantivo de Adins
propostas contra a Emenda Constitucional nº 45, a chamada "reforma do
Judiciário", que redefiniu funções da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho e
ainda criou órgãos como o Conselho Nacional de Justiça - CNJ e o Conselho
Nacional do Ministério Público - CNMP, ambos com o poder de disciplinar as
respectivas instituições que encabeçam. Como se trata fundamentalmente da
batalha pela redefinição de posições internamente às profissões jurídicas,
preferimos catalogá-las neste grupo.
Como se observa, tendo em vista nossa tipologia dos estatutos legais citados na
Figura_2, apenas a Lei nº 10.826, de dezembro de 2003, fica de fora, sendo ela
na realidade uma espécie de tipo misto, congregando categorias dos dois tipos
de uso da via judicial citados anteriormente8.
3. A análise comparativa dos dois governos revela um uso político das Adins
praticamente inexistente durante o governo Fernando Henrique e que passou a se
fazer existente, mesmo de forma relativamente tímida, durante a gestão de Lula.
Mais do que apontar outra semelhança entre os padrões de judicialização da
política dos dois governos, trata-se de indicar um terceiro tipo de uso da via
judicial decorrente das diferenças entre os dois períodos e que deve ser somado
aos dois outros citados anteriormente para que as possibilidades de interesses
que levam ao acionamento do STF e dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário em
geral sejam apreendidas de forma integral. Apresentamos, portanto, o que
podemos designar judicialização como instrumento de governo. Inspirados nas
lições de Whittington (2005; 2007) sobre parte importante da atuação da Suprema
Corte dos Estados Unidos, são os casos em que se busca a "mão amiga" da
instituição máxima do Poder Judiciário para que esta implemente ou se pronuncie
de forma favorável a políticas públicas de interesse do próprio governo.
Nesse caso, o órgão de cúpula da magistratura pode ser buscado tanto para
superar situações de paralisia decisória ou de impasse legislativo (gridlock)
que os juízes resolvem favoravelmente ao governo quanto, de forma direta, para
que se anulem estatutos legais que os integrantes da administração governista
busquem retirar do ordenamento jurídico. Aqueles podem ser tanto leis emitidas
por governos passados que os atuais busquem atacar, eventualmente "corrigindo"
erros políticos de administrações ideologicamente distintas do passado, quanto
estatutos legais de autoria de outros órgãos que não diretamente sob
responsabilidade do Poder Executivo, como resoluções de Casas legislativas e de
tribunais, ou ainda projetos que esses aprovaram à revelia do governo. Devemos
frisar, contudo, que esse uso político das cortes também pode ser empregado, a
exemplo do que fazem os partidos oposicionistas, para que o governo declare sua
oposição a determinadas medidas, eventualmente impopulares, tomadas por Casas
legislativas ou tribunais, especialmente referentes ao aumento dos próprios
salários ou de seus gastos com pessoal, entre outros. Esse é claramente o caso,
por exemplo, de Adins propostas pelo próprio presidente da República, como as
de nº 3.599, 3.785 e 3.834, apresentadas respectivamente contra as leis nº
11.169 e 11.170 (que alteravam a remuneração de servidores da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal), contra a Resolução Administrativa nº 98 do
Tribunal Regional do Trabalho - TRT da 18ª Região (que incorporava
gratificações à aposentadoria dos magistrados integrantes do Tribunal), e
contra a Resolução nº 9, do Conselho Nacional do Ministério Público (que também
incorporava gratificações às aposentadorias dos membros do Ministério Público).
Por outro lado, um exemplo de tentativa de correção daquilo que o governo
corrente considera um erro político do passado pode ser dado pela Adin nº
3.578, proposta contra trechos da Lei nº 9.491, de 1997, que dispõe sobre o
Programa Nacional de Desestatização. Apresentada pelo PC do B em 2005, quando o
partido integrava a coalizão do governo Lula, seu propósito era declarar
inconstitucionais trechos da lei referentes ao rol de bens, empresas e serviços
que o Estado pode inserir na política de privatizações. O objetivo dos
proponentes era reduzir esse leque, como foi efetivamente conseguido pela
concessão da liminar.
Explicando as Principais Diferenças na Judicialização entre os Dois Governos
Uma vez expostas duas semelhanças e uma pequena diferença quanto aos usos da
judicialização entre os governos analisados, acreditamos estar aptos a
discorrer sobre as possíveis explicações para as principais diferenças
encontradas na comparação apresentada anteriormente. Como afirmamos no início
deste texto, há basicamente três hipóteses que podem explicar a queda
praticamente geral no acionamento do mais alto tribunal do país em face das
normas de autoria de órgãos integrantes da esfera federal.
1. A primeira hipótese dá conta de identificar a ocorrência de uma possível
mudança institucional entre um governo e outro, ou no período próximo à troca
entre gestões, que ensejasse semelhante decréscimo no acionamento da corte.
Ainda que não tenha sido objeto de estudo da parte dos cientistas políticos, os
efeitos disciplinadores possivelmente advindos da aprovação da Lei nº 9.868, de
10 de novembro de 1998, que se fizeram sentir de modo efetivo apenas a partir
de 1999, devem ser analisados nesta pesquisa mesmo que de forma sumária. Fruto
da iniciativa legislativa do Poder Executivo, tal lei regulamenta, entre outros
fatores, a concessão de liminares pelo STF em sede de Adins, impondo-lhe um
rito mais rigoroso que o anteriormente existente, o que aponta inclusive certo
disciplinamento da corte pelos demais Poderes do Estado. A referida lei
estipula que a concessão de liminares em Adins seja realizada apenas pela
maioria absoluta dos membros da corte em sessão com pelo menos oito ministros,
salvo nos períodos de recesso. A idéia, ao que parece, visava dar fim à prática
de concessão de liminares por decisões monocráticas ad referendum e também
evitar decisões duplas, contraditórias entre si, uma no julgamento da liminar e
outra no julgamento de mérito. Dessa forma, passaram a priorizar as decisões
finais do STF, consubstanciadas no pronunciamento de mérito da ação, que leva
mais tempo para se atingir, dificultando, portanto, as chances de intervenção
da corte. Em virtude desse regime mais rígido para concessão de liminares, é
possível supor que, em parte, a eventual queda no acionamento do STF entre os
dois períodos analisados se deva também à perspectiva conferida por essa lei de
menores chances de deferimento na decisão liminar e até mesmo naquela de
mérito. Como essa lei possivelmente reduziu as chances de concessão de
liminares em Adins, pode-se supor que os partidos se tenham interessado menos
no uso desse instrumento, fato que pode ter contribuído para a eventual queda
na contestação judicial junto ao STF.
Embora plausível em uma análise inicial, acreditamos que essa hipótese
contribui muito pouco para explicar a variação observada. Isso ocorre por duas
razões básicas: em primeiro lugar, como frisamos, a maioria dos proponentes
(especialmente os partidários) recorre aos tribunais não tanto com a intenção
de ver a lei atacada na Adin ser efetivamente declarada inconstitucional, mas
fundamentalmente porque pretende se valer da via judicial como um canal para
garantir mais visibilidade a seus atos contrários ao governo, tornando mais
públicas suas declarações de oposição a políticas adotadas pelo governo ou ao
governo propriamente. Portanto, como não há uma preocupação efetiva em
invalidar a lei na maioria dos casos, a maior ou menor chance na concessão de
liminar não integra o cálculo dos oposicionistas, sendo praticamente
irrelevante nesse sentido. Em segundo lugar, mesmo que essa probabilidade na
concessão das liminares se tenha reduzido, como o tribunal é a última instância
à qual se pode recorrer para tentar derrotar uma lei e o custo no acionamento
continua idêntico ao anteriormente existente (baixo, portanto), não há por que
supor que os proponentes, todos nesse caso, levem em conta a chance de sucesso
na hora de pensar em propor ou não uma Adin9. Como seu custo é diminuto e o
tribunal é a última possibilidade de se derrotar determinada lei, as chances de
vitória na liminar, novamente, não são essenciais ao cálculo sobre o
acionamento do tribunal, motivo pelo qual acreditamos que essa lei não tenha
influência sobre a intensidade no acionamento da corte10.
2. Uma segunda hipótese está centrada nas diferenças dos atores em cada
momento. Ao contrário da anterior, essa hipótese nos parece mais robusta. Isso
porque é de se supor que o tipo de estratégia judicial esteja ligado ao tipo de
estratégia oposicionista, mais amplo, adotado especialmente pelos partidos
políticos. No caso do PT, enquanto o partido se encontrava na oposição, a
estratégia política mais ampla constituía-se de fazer oposição sistemática ao
governo, incrementando ao máximo o custo e os riscos da atividade governativa,
motivo pelo qual o uso das Adins foi mais intenso. Nos casos de PSDB e PFL/DEM,
quando passaram à oposição, a estratégia política mais ampla parece ter sido a
de oposição seletiva, inclusive como anunciado em princípios do governo Lula
pelos próprios partidos oposicionistas11. Como isso se refletiria também na
contestação judicial das políticas governamentais, seria de se esperar
justamente a diminuição no ritmo do uso das Adins.
Por outro lado, devemos lembrar que há "fogo amigo" em ambos os governos, mas
sua intensidade é bastante mais elevada no governo Lula. Por "fogo amigo",
entenda-se a contestação de políticas majoritárias pelos próprios partidos
integrantes da coalizão governista. As dificuldades de manutenção da disciplina
da base pelo governo Lula se refletiram inclusive na arena judicial, com
partidos como PDT, Partido Trabalhista Brasileiro - PTB e PV ajuizando Adins no
período pós-2003. Vale ressaltar que a rigidez da disciplina do governo
Fernando Henrique não o impediu de ver ajuizada contra si pelo menos uma ação.
Foi o caso da Adin nº 1.636, proposta em 1997 pelo Partido Progressista
Brasileiro - PPB - ex-Partido Progressista Reformador - PPR e atual Partido
Progressista - PP, que entrara na coalizão governista um ano antes - justamente
contra a medida provisória nº 1.523, presente na Figura_2, que dispunha sobre o
recebimento de benefícios por parte de segurados do sistema previdenciário.
Vale lembrar que, nesse caso, o partido não rompeu com a coalizão majoritária,
afastando-se desta apenas no ano de 2003, em razão da eleição presidencial12.
3. Uma terceira hipótese baseia-se no contexto político e, em particular, na
saliência das políticas públicas que foram implementadas em cada momento. Em
geral, é possível argumentar que houve uma mudança no contexto político do
governo Fernando Henrique para o governo Lula. Além da mudança estratégica dos
principais partidos políticos apontada anteriormente, houve também uma mudança
na pauta das principais políticas públicas em discussão. A maioria das
políticas governamentais centrais da gestão de Lula foi sensivelmente menos
controversa do que as da administração tucana, ensejando menos polêmica e
dificultando as situações em que passa a ser cômodo à oposição se valer da via
judicial como canal de denúncia das supostas irregularidades existentes nas
medidas adotadas.
Dito de forma menos normativa, houve uma mudança na saliência das principais
políticas no período, determinada sobretudo pela alocação dos custos e
benefícios destas entre "ganhadores" e "perdedores". Como Taylor (2007; 2008)
aponta, as características das políticas públicas em si ajudam a determinar sua
judicialização. Os trabalhos de Lowi (1964; 1972) e Wilson (1995) - sumarizados
como policy determines politics - mostram que a distribuição de custos e de
benefícios das políticas públicas (policy) determina os percursos de seu
andamento político (politics) no Executivo e no Legislativo. Da mesma forma,
Taylor (2008) argumenta que - ceteris paribus - essas características também
influenciam a provável intensidade de utilização do Judiciário. Quando os
custos de uma determinada política são muito concentrados em um pequeno grupo
de "perdedores", é de se esperar que a judicialização seja maior, em especial
se tais atores são minimamente organizados e/ou possuem quem possa representá-
los para atuar na arena judicial (partidos políticos, por exemplo).
Três mudanças importantes ocorreram na pauta de políticas públicas entre os
governos Fernando Henrique e Lula. A primeira é o fato de o governo petista ter
se apropriado da política econômica tucana a partir da publicação da Carta ao
Povo Brasileiro, em 2002, seguida pela nomeação de Henrique Meirelles e Antonio
Palocci para os dois principais cargos econômicos no país. Simultaneamente,
porém, houve uma mudança sensível na pauta de políticas públicas no tocante ao
funcionalismo, eliminando-se um dos principais pontos de conflito e de
judicialização advinda da esquerda. Finalmente, ao passo que de 1995 a 2002 a
política econômica e a reforma do Estado ocuparam a agenda do governo, o que se
refletiu nos temas abordados nas ações propostas, o mesmo não é inteiramente
verdadeiro no período de 2003 em diante, quando as políticas distributivas
ganharam destaque. Estas, todavia, por seu caráter menos controverso e mais
consensual, foram menos abordadas nas ações ajuizadas. Os custos impostos por
políticas distributivas são difusos e, portanto, tendem a gerar menos oposição.
Das medidas aprovadas durante a administração petista, acreditamos que apenas a
reforma da previdência, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 41, de
dezembro de 2003, resguarde controvérsia semelhante à boa parte das políticas
da gestão de Fernando Henrique, motivo pelo qual inclusive essa reforma foi
justamente muito atacada no STF, como se pôde constatar. Em vista dessa
relativa ausência de temas polêmicos, que impinjam elevados custos a
determinados segmentos da sociedade, alguns assuntos de matriz setorial, como a
reforma do Judiciário, a regulação da atividade agrícola e de armas de fogo,
entre outros, têm sido os mais submetidos à apreciação do STF durante o governo
petista.
Mais do que encarar essas duas últimas hipóteses - mais críveis do que a
primeira - como duas explicações alternativas e mutuamente excludentes,
acreditamos que as variações ora analisadas somente podem ser compreendidas de
forma conjunta. Em grande parte, portanto, o uso conferido à via judicial pelos
opositores é condicionado ao teor das políticas adotadas pelo governo -
especialmente se estas apresentam custos mais ou menos concentrados em
determinados grupos. Mesmo nesses casos, entretanto, a decisão pela contestação
judicial dependerá não apenas das políticas consideradas em si mesmas, mas
também da estratégia política que os diferentes atores adotam em relação ao
governo. Como se pode observar, portanto, nem as políticas governamentais nem
os oponentes, ambos considerados de forma isolada, explicam essa dinâmica,
merecendo serem agregados para conferir melhor tratamento à questão.
CONCLUSÃO
Este estudo mostrou a significativa diferença no uso das Adins durante os
governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva tanto em termos
quantitativos quanto substantivos. Tendo em vista a ausência de mudanças
institucionais que poderiam alterar os incentivos à judicialização, apontamos
dois fatores alternativos que ajudam a explicar essas diferenças. Ainda que os
canais institucionais importem, com efeitos especialmente visíveis em
perspectiva comparada, devemos observar que instituições são em grande medida
instrumentos políticos e dependem da efetiva utilização que deles fazem os
diferentes atores. Como o uso da via judicial pelos diferentes proponentes
(partidos políticos em especial) depende do teor das políticas adotadas e do
respectivo ambiente conjuntural da política do momento, sua utilização somente
pode ser compreendida tendo em vista a estratégia política mais ampla adotada
pelos opositores do governo e a saliência das políticas públicas consideradas
em determinado momento.
Por outro lado, a pesquisa também apontou certa continuidade em dois usos dados
às Adins, naquilo que denominamos usos da judicialização: 1) a judicialização
como tática de oposição, utilizada para retardar, impedir, desmerecer ou
declarar a oposição a determinadas leis; 2) a judicialização como arbitragem de
interesses em conflito, utilizada para tornar as regras do jogo mais amenas a
determinado grupo de interesse. Embora a saliência das políticas públicas para
a oposição ao governo Lula tenha reduzido a utilização da judicialização como
tática de oposição, não a removeu completamente do leque de táticas políticas
da oposição brasileira. Entre os casos mais contestados, houve também um
ligeiro aumento na utilização da judicialização para arbitrar interesses, em
grande parte em decorrência das mudanças institucionais referentes ao Poder
Judiciário e às regras eleitorais. O estudo também aponta a emergência, mesmo
que tênue, de uma terceira forma de judicialização, que denominamos 3)
judicialização como instrumento de governo.
Finalmente, este artigo aponta novos caminhos a serem trilhados em pesquisas
futuras. Uma integração mais coerente e consciente dos estudos sobre
judicialização com a literatura sobre as relações Executivo-Legislativo no
Brasil nos parece a mais promissora. Em especial, merece ser testada a hipótese
de que o sistema político brasileiro é majoritário na definição das políticas
públicas e consensual em sua implementação, sendo esse último determinado em
boa medida pela ação do Judiciário como ponto de veto (Taylor, 2007). Isto é, o
Judiciário parece oferecer um locus significativo - amplamente conhecido pelos
atores políticos - para contestar as políticas públicas mesmo após sua
aprovação por amplas maiorias legislativas. Até que ponto se pode comprovar
essa tese agregando aos dados relativos à produção legislativa os padrões de
judicialização? Nesse sentido, cabe também indagar: qual é a diferença entre o
tratamento dado aos estatutos legais de caráter unilateral (MPs, decretos,
resoluções e portarias) em relação às leis aprovadas por maiorias e mesmo por
maiorias sobredimensionadas? E ainda: qual é o impacto de toda essa interação
sobre o sistema de governo de coalizão? Essas perguntas formam parte do desafio
que este estudo nos coloca, e ao qual esperamos nos dedicar em outra
oportunidade.
NOTAS
1. Pretende-se incluir nessa análise outros requerentes, além de partidos
políticos, uma vez que alguns foram ou ainda são aliados de alguns dos partidos
políticos que integram ou integraram a coalizão governista, sendo alguns deles
também representantes de importantes interesses difusos contestados ao longo
dos diferentes governos. Não incluí-los no levantamento poderia ocasionar a
exclusão de dados importantes, capazes de identificar fontes relevantes de
contestação judicial às atividades dos governos advindas de fontes específicas
que não necessariamente coincidem com os respectivos partidos opositores.
2. Embora existam algumas exceções, em quase todos os casos a legislação foi
aprovada antes de a Adin ter sido proposta junto ao STF.
3. Esse segundo cálculo talvez seja menos justificável: como mostra Da Ros
(2008), a demora processual às vezes é empregada estrategicamente para a tomada
de decisões informais por parte do STF. A existência de muitas ações sem
julgamento não indica necessariamente, portanto, que a corte futuramente vá se
pronunciar a respeito de todas essas Adins. Ainda que algumas dessas ações
venham a ser apreciadas pelo STF em algum momento no futuro, em grande parte, o
decurso do tempo serve como uma justificativa hábil ao tribunal para não
intervir diante de muitos temas.
4. Nenhum outro instrumento legal que tenha efeitos vinculantes e universais
tem sido tão usado junto ao STF desde 1988. A Ação Declaratória de
Constitucionalidade - ADC, criada em 1993, tem sido pouco usada e por sua
própria natureza pouco contribui como instrumento de oposição. Por sua vez, a
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF pode ser relevante a
futuras pesquisas, mas, como foi regulamentada em 1999, seus efeitos não se
aplicam a todo o período ora analisado, razão pela qual preferimos não estudá-
la.
5. Sobre o corporativismo das profissões no Judiciário, ver Sadek (1995).
6. Sendo que, dessas dezessete Adins, cinco foram impetradas após o término do
segundo mandato de Fernando Henrique.
7. Essa classificação referente às motivações das partes não busca identificar
modelos estanques de proponentes, mas antes indicar traços comuns a alguns
deles que facilitem a compreensão do fenômeno. Apesar de relativamente inédita
em seu propósito, ela já foi parcialmente esboçada em dois outros trabalhos (Da
Ros, 2006; 2008:163-165) e agrega contribuições fornecidas pelos diversos
autores que se dedicaram a estudar o STF no contexto recente de democracia
brasileira (Arantes, 1997; Castro, 1997a; 1997b; Werneck Vianna et alii, 1999,
entre outros), bem como achados de pesquisas sobre outras realidades nacionais
(Dotan e Hofnung, 2005; Whittington, 2007:103-157).
8. Mais detalhes sobre esse caso, bem como de todos os outros expostos na
Figura_2, como já mencionado, encontram-se expostos no Apêndice deste artigo,
no final do texto.
9. Alguns requerentes, como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, se preocupam
mais do que os partidos que têm sua "reputação legal". Isso pode ajudar a
explicar sua taxa de sucesso relativamente alta, além de sua relativa
reticência na utilização das Adins como mero instrumento declaratório de
oposição (Taylor, 2008:109-131).
10. Isso não quer dizer, entretanto, que a referida lei não tenha tornado menos
prováveis as chances de o STF intervir sobre o conteúdo de determinada
legislação. Na realidade, é razoável supor que isso de fato tenha ocorrido, mas
sua verificação somente poderia ser efetivamente testada em outro estudo. O que
buscamos apresentar aqui é apenas que essa provável diminuição nas chances de
sucesso junto ao STF, em função do novo regime de concessão de liminares, não
se integra ao cálculo sobre o uso político do tribunal e que, portanto, não
serve como explicação para a redução no acionamento da corte na passagem do
governo Fernando Henrique para a gestão de Lula.
11. Em princípios de 2003, a expressão correntemente propalada por esses
partidos opositores era a de que se exerceria oposição responsável ao governo
Lula. Para evitar o tom intencionalmente normativo dessa expressão, preferimos
substituí-la simplesmente por oposição seletiva.
12. Semelhantemente ao que ocorre com a possibilidade do uso da intensidade no
acionamento do STF pelos partidos de oposição como um indicador de polarização
política, a propositura de Adins por partidos da base do governo talvez possa
ser empregada como um indicador da instabilidade na disciplina da coalizão
governista, especialmente do ponto de vista das pesquisas referentes às
relações Executivo-Legislativo.