O conceito de federalismo e a idéia de interesse no Brasil do século XIX
Neste artigo, o objetivo é abordar o conceito de federalismo e a idéia de
interesse provincial no Brasil do século XIX. A meu ver, o conceito de
federalismo deve ser pensado de forma conjunta com o tema do interesse. Busco
assinalar as mudanças sofridas pelo conceito em momentos históricos
fundamentais do século XIX. Usualmente a literatura discute o debate entre
centralização e federalismo sem perceber as descontinuidades, no âmbito
político, que acometeram o conceito ao longo do século XIX1. Efetuo uma análise
dos momentos históricos nos quais estiveram em discussão propostas que
descentralizavam a organização do poder a fim de perceber as alterações na
idéia de federalismo.
A análise dos debates parlamentares ocorridos na Constituinte de 1823 apontam
para o fato de que o termo federalismo era entendido como confederação, ou
seja, a reunião de Estados soberanos em torno de um centro comum. Essa maneira
de organizar o Estado era entendida como compatível com a monarquia. Ao longo
desses debates, emerge com clareza a idéia de que a província deveria dispor
dos meios necessários para gerir sua justiça e economia internas. O
desenvolvimento e a eficácia da justiça somente seriam obtidos caso a província
dispusesse de autonomia.
O pensamento federalista articulado em torno do Código do Processo (1832)
entende que a descentralização deve permitir que o cidadão situado no município
participe da montagem do aparelho judiciário. Nesse contexto histórico, o tema
da participação do cidadão ativo e a educação política que aquela propicia são
os valores principais mobilizados pelos federalistas. O conceito2 de
federalismo passa a estar relacionado aos valores associados à participação do
cidadão ativo na esfera que lhe é mais próxima, ou seja, o município. Nessa
esfera, o cidadão poderia articular seus interesses particulares com a produção
do bem público.
As revoltas regenciais levam o pensamento federalista a reformular essa
perspectiva, concedendo precedência ao tema do interesse provincial. Os debates
em torno do Ato Adicional (1831-1834) apontam para uma revisão do projeto
federalista. A partir da análise de debates parlamentares e de jornais da
época, considero que a idéia de interesse provincial emerge como um aspecto
central do conceito de federalismo.
A DEFINIÇÃO CONTEMPORÂNEA DE FEDERALISMO
A definição contemporânea de federalismo o apresenta como um sistema de governo
no qual o poder é dividido entre o governo central (a União) e os governos
regionais. O federalismo é definido, em sua acepção positiva, como um meio-
termo entre um governo unitário, com os poderes exclusivamente concentrados na
União, e uma confederação, na qual o poder central seria nulo ou fraco. Por sua
vez, a confederação é caracterizada como uma aliança entre Estados
independentes. O governo central não poderia aplicar as leis sobre os cidadãos
sem a aprovação dos Estados, que seriam, em última instância, a fonte da
soberania. A diferença essencial entre federação e confederação é que, na
primeira, o governo central possui poder sobre os cidadãos dos Estados ou
províncias que compõem a União sem que essa ação tenha de ser acordada pelos
Estados3. A experiência histórica que gera esse novo conteúdo é a construção do
Estado norte-americano a partir de 1787.
A Convenção da Filadélfia foi convocada em 1787 com o intuito de rever os
artigos aprovados no Congresso Continental em 1777 (usualmente conhecidos como
Artigos da Confederação)4. Observemos, inicialmente, que aspecto Hamilton, no
artigo 15, criticava na confederação norte-americana produzida em 1777:
O vício enorme e radical na construção da Confederação atual está no
princípio da legislação para Estados ou governos em seu caráter de
corporações ou coletividades, em contraposição à legislação para os
indivíduos que os compõem. Embora não se estenda a todos os poderes
conferidos à União, esse princípio invade e governa aqueles de que
depende a eficácia dos demais. Exceto no tocante à honra de rateio,
os Estados Unidos têm direito ilimitado a requisitar homens e
dinheiro; mas não têm autoridade para mobilizá-los por meio de normas
que se estendam aos cidadãos da América. A conseqüência é que, embora
em teoria as resoluções da União referentes a essas questões sejam
leis que se aplicam constitucionalmente aos seus membros, na prática
elas são meras recomendações que os Estados podem escolher observar
ou desconsiderar (Madison, Hamilton e Jay, 1993:160-161).
É fundamental que assinalemos com ênfase o principal defeito, para Hamilton, da
confederação elaborada em 1777: o poder central não dispunha de autonomia para
agir sobre os cidadãos que compunham a União. Poderia apenas recomendar a
aplicação de suas resoluções, cabendo aos Estados adotar ou não tais
resoluções. A solução política, para o autor, consistia no reforço do poder
central. Este deveria dispor dos poderes necessários para agir sobre os
cidadãos, sem passar pelos Estados. A conseqüência desse reforço seria uma
alteração fundamental no status constitucional dos Estados, que deveriam dispor
de autonomia, mas não seriam mais entidades soberanas; agora estariam
subordinados ao poder central.
Podemos perceber claramente a nova direção que Hamilton pretendia introduzir no
arranjo constitucional norte-americano. Entretanto, para se referir às
inovações que deveriam ser introduzidas, o autor ainda fazia uso do termo
confederação. Vejamos um trecho do mesmo artigo 15 citado anteriormente:
Com o abandono de todas as pretensões a um governo confederado, isso
nos reduziria a uma simples aliança ofensiva e defensiva e nos poria
em condições de sermos ciclicamente amigos e inimigos uns dos outros,
ao sabor de nossas cobiças e rivalidades. Mas se não queremos ser
postos nessa situação; e se ainda nos mantemos fiéis ao projeto de um
governo nacional, o que é a mesma coisa, de um poder superintendente
sob a direção de um conselho comum, devemos incorporar em nosso plano
aqueles ingredientes que podem ser considerados pela diferença entre
uma liga e um governo; devemos ampliar a autoridade da União às
pessoas dos cidadãos - os únicos objetos próprios de governo (ibidem:
161-162).
Observemos que Hamilton condenava o fato de que fossem abandonadas todas as
pretensões a um governo confederado em detrimento de uma mera liga. Esta seria,
segundo ele, a mera reunião de Estados, uma aliança com fins defensivos ou
ofensivos. Para Hamilton, deveriam ser introduzidas inovações que
estabelecessem uma diferença radical entre uma confederação (confederate
government) e uma liga (league). Para tanto, o autor argumentava que seria
imprescindível que a União tivesse os poderes necessários para chegar até o
cidadão.
Podemos assinalar que Hamilton já mencionava um de seus elementos distintivos,
ou seja, a capacidade de o governo central chegar até os cidadãos das unidades
que compõem o Estado sem passar pelo crivo dessas unidades. Ocorre que o
político norte-americano faz uso do termo governo confederado, distinguindo
esse novo arranjo político de uma mera liga sem fazer a distinção entre
federação e confederação, como seria mais usual em nossa contemporaneidade.
Revela, dessa forma, que sob uma palavra antiga se manifestava um novo
conteúdo. O uso do termo confederação de Estados para se referir aos Estados
Unidos da América foi comum até a Guerra Civil (1861-1865)5. Esse descompasso
entre o novo conteúdo histórico, gerado a partir da experiência norte-
americana, e a persistência de velhas palavras foi claramente percebido por
Tocqueville (1977:123):
Em todas as confederações que precederam a União Americana de nossos
dias, o governo federal, a fim de prover às suas necessidades,
dirigia-se aos governos particulares. No caso em que a medida
prescrita desagradava a um deles, este podia sempre subtrair-se à
necessidade de obedecer. [...] Na América, a União tem por
governados, não Estados, mas simples cidadãos. Quando quer cobrar um
imposto não se dirige ao governo de Massachusetts, mas a cada um
habitante de Massachusetts. Os antigos governos federais tinham
diante de si povos; o da União tem indivíduos. Não toma emprestada a
sua força, mas vai ele mesmo buscá-la. Tem seus próprios
administradores, seus tribunais, seus oficiais da justiça, seu
exército. [...] Aqui o poder central age sem intermediários sobre os
governados, julga-os ele próprio, como fazem os governos nacionais,
mas só age, neste caso, dentro de um círculo restrito. [...] Assim,
achou-se uma forma de governo que não era, precisamente, nem
nacional, nem federal; mas parou-se aí, e a nova palavra que deve
exprimir a coisa nova de maneira alguma existe ainda6.
Em Tocqueville está presente a percepção da inovação da Convenção da Filadélfia
para com as experiências européias de confederação, ou seja, a União atuava
diretamente sobre os cidadãos, sem a necessidade de recorrer às unidades da
federação. Entretanto, essa centralidade da União não era semelhante àquela dos
Estados unitários, pois as unidades que compunham o Estado dispunham de uma
autonomia e de liberdades que inexistiam nos Estados unitários. Nestes, as
partes que compunham o Estado eram meramente unidades administrativas, sem
dispor de autonomia e de liberdade para escolha de funcionários, organização da
Justiça e recolhimento de impostos, aspectos que ocorriam no caso norte-
americano.
O autor francês lamentava que não houvesse um termo novo capaz de designar o
arranjo norte-americano. Nesse sentido, Tocqueville assinalava o descompasso
entre as palavras disponíveis (federação e confederação) e a novidade
histórica. Ao longo do debate político anterior, federação havia sido um
sinônimo de confederação. Quando, posteriormente, o termo foi associado
exclusivamente à novidade introduzida pelo caso norte-americano, o que ocorreu
foi meramente a reutilização de um antigo termo para um novo conteúdo.
Portanto, podemos observar os seguintes pontos: 1) o uso dos termos federação e
confederação para se referir ao caso norte-americano era um procedimento comum.
Isso porque a palavra federação estava associada à confederação. 2) A inovação
produzida pela experiência norte-americana consistiu no seguinte conteúdo: as
unidades que compunham a União disporiam de autonomia política e
administrativa, entretanto, isso não implicava um poder central fraco ou nulo;
os Estados não seriam entendidos como um poder soberano tal qual a União. As
resoluções da União teriam caráter impositivo para os Estados, e não mais
seriam meras recomendações. Ao mesmo tempo que o poder central era reforçado,
os Estados disporiam de autonomia decisória em aspectos importantes. Nesse
sentido, a idéia de federação era uma novidade política, como bem escreveu
Tocqueville; não era uma repetição das confederações, pois o poder central era
forte, tampouco os estados desempenhavam o mesmo papel que em um Estado
unitário.
O CONCEITO DE CONFEDERAÇÃO/FEDERALISMO NO DEBATE POLÍTICO BRASILEIRO NA
CONSTITUINTE DE 1823
Logo no começo dos debates parlamentares da Constituinte de 1823, entrou em
discussão uma emenda estabelecendo que o Império brasileiro compreendesse
confederalmente as províncias que formavam o antigo Império português na
América7. Ao longo dos debates, e não apenas dessa emenda, os deputados
utilizavam indistintamente os termos federação e confederação. Em que pese o
uso indistinto, ocorreu a predominância do conteúdo proveniente da experiência
confederativa; as inovações norte-americanas ainda não haviam sido incorporadas
ao debate brasileiro. O termo confederação/federação é definido como a reunião
de Estados soberanos com o objetivo de resistir a ameaças externas. Nesse
modelo, o poder da União é fraco ou mesmo nulo, dependendo, para sua ação, de
recursos e de autorização dos Estados-membros:
É bem conhecida a confederação Helvetica, a dos antigos estados
geraes da Holanda, quando este se constituiu em república, e a
confederação do corpo germânico composta de estados independentes,
ainda que associados para a resistência a inimigos comuns,
contribuindo cada estado com seu contingente de soldados e dinheiro
para as despesas gerais de sua associação, até sendo cada estado
regido por sua particular forma de governo (Silva Lisboa, sessão da
Câmara dos Deputados, 17 de setembro de 1823, p. 158; ênfase do
autor).
Essa definição não implicava uma incompatibilidade entre a forma de governo
monárquica e o modelo confederativo/federalista. O deputado Carneiro Cunha
expressava uma opinião bastante difundida na Constituinte: "[...] federação não
se opõe à monarquia constitucional, como há exemplos, tanto na história antiga
como na moderna, e mesmo na Europa [...]" (Assembléia Constituinte, 17 de
setembro de 1823, p. 152). A definição de confederação/federação acarretava,
para as correntes federalistas, três pontos: 1) o rompimento do pacto colonial
implicava o retorno do poder soberano para as diversas províncias; 2) o pacto a
ser firmado na Constituinte deveria retornar às províncias para sua aprovação
ou recusa; 3) o arranjo constitucional deveria conferir autonomia às
províncias8. Na elaboração desse último aspecto, as correntes federalistas
buscaram afirmar a precedência da província. Na medida em que a província
possuía precedência diante da União, os poderes escolhidos nesta deveriam
dispor de autoridade e de autonomia:
Que as províncias são ajuntamentos de homens com iguais direitos. Que
neste exercício de direitos iguais e maneiras de maior utilidade se
funda a união federal de homens, casas, vilas, cidades, províncias e
reinos, sujeitando-se todos ao Império de um, a quem tributão
mantença e honra para salvação certa de todos, ajuntando-se os seus
procuradores em concílio comum, para se estabelecerem as regras da
prol geral, ficando a prol de cada casa a indagação mais perspicaz e
interessada dos filhos (Ferreira França, sessão da Câmara dos
Deputados, 18 de setembro de 1823, p. 130; ênfase do autor).
[...] federação não se opõe à monarquia constitucional, como há
exemplos, tanto na história antiga, como na moderna, e mesmo na
Europa, [...]; podendo haver em cada uma das províncias uma primeira
assembléia provincial, que tenha a iniciativa das leis
regulamentares, e que informando com mais conhecimentos à assembléia
dos representantes da nação tudo quanto for mister para promover a
sua prosperidade, consiga-se desta sorte o bem, que todos desejamos.
Considerada, e admitida por esta forma, a federação opor-se-á à
integridade do Império? Não, decerto" (Carneiro Cunha, Assembléia
Constituinte, 17 de setembro de 1823, pp. 152-153; ênfase do autor).
Para a corrente federalista, a forma de governo monárquica representativa
deveria permitir que cada província buscasse a realização de seus interesses
conforme cada qual os entendesse. Esse é um limite legitimamente reconhecido
pelas partes quando realizam o pacto. A submissão ao monarca ocorria tendo em
vista a liberdade das províncias em promoverem sua prosperidade. Essa busca
implicava dois aspectos: a existência de um Legislativo provincial que
dispusesse de autonomia em face do legislativo nacional e que a escolha ou a
eleição dos funcionários fosse feita a partir dos cidadãos ativos residentes na
província e pelos poderes provinciais. Tal procedimento encontrava
justificativa nos motivos do comportamento do funcionário oriundo da província:
vínculos para com a localidade. Esses funcionários estariam diretamente
empenhados em contribuir para a prosperidade local. Podemos assinalar, no
argumento federalista acerca do funcionário, a presença da idéia de interesse,
ou seja, velar pelo que é seu9. O funcionário local seria mais eficiente do que
um funcionário sem vínculos nomeado pelo poder central. Para os federalistas, o
bom desempenho do funcionário não provém de seu treinamento nem de seu vínculo
com o poder central, mas de sua ligação com a localidade. Na medida em que, por
meio desse funcionário, estão presentes os objetivos da província, ele é
superior a um funcionário mais treinado e vinculado a interesses que não estão
referidos à dinâmica provincial.
Devemos enfatizar o seguinte aspecto: a forma de governo é um fator secundário
neste debate. Observemos que, para Ferreira França, o que é relevante é que
esteja garantido que cada província disponha de liberdade para administrar seus
interesses, para governar a casa. Desde que esse dado esteja garantido, não há
nenhum problema que a forma de governo seja a monárquica. A província somente
entraria no pacto se ficasse assegurado que caberia a ela a administração da
casa.
O uso da idéia da casa no argumento federalista nos remete à análise de Ilmar
Rohloff de Mattos sobre o Império brasileiro. Ele elabora o conceito de casa
como um dos instrumentos fundamentais para a interpretação das idéias dos
liberais moderados no Império (1994:109-123). Segundo esse autor, a dimensão da
casa envolvia a esfera privada; o responsável pela casa era o encarregado de
regular a economia e sua administração, cuidando da família, dos agregados e
dos escravos. Os liberais moderados projetavam para o Estado essa dimensão.
Nessa projeção, ganhava proeminência o chefe da casa, que desempenhava o papel
ativo em sua administração.
No argumento federalista, a província desempenharia o mesmo papel do indivíduo
com relação à sua casa; o indivíduo tem interesse em buscar a prosperidade e a
felicidade de sua casa. Nesse sentido, a província deve controlar as atividades
que dizem respeito à realização de seus interesses. Os federalistas transpõem
uma idéia proveniente da esfera privada para a esfera pública: administrar o
Estado da mesma maneira que o cidadão ativo vela por sua casa.
Portanto, podemos delinear o seguinte conteúdo na idéia de federação: o Estado
é mais bem administrado quando os interesses provinciais estão em primeiro
plano. Para a corrente federalista, as províncias deveriam dispor do controle
sobre a segurança, a administração e a prosperidade material. A dimensão
privada se projeta sobre a esfera pública não em sua dimensão patrimonial, mas
como a precedência do interesse provincial como a mola fundamental na montagem
do Estado.
Ainda que na Constituinte de 1823 já esteja presente a idéia de que, no modelo
federativo, a província vela por seus assuntos com a mesma acuidade que o
cidadão ativo cuida de sua casa, essa temática emergirá com mais intensidade
nos debates em torno do juiz de paz (1827) e do Código do Processo (1832). O
debate político acerca dessas duas leis revelou uma dimensão relevante para a
compreensão do conceito de federalismo.
O CÓDIGO DO PROCESSO: O FEDERALISMO COMO A DISSEMINAÇÃO DO PODER PELA SOCIEDADE
Com a abdicação de D. Pedro I ocorreram mudanças significativas na composição
social da elite política hegemônica. O período regencial foi marcado pela
ascensão do setor social ligado ao abastecimento interno no sul de Minas
Gerais. Segundo Lenharo (1993), o setor mercantil de abastecimento desempenhou
um papel importante na economia brasileira até a década de 1830, quando o café
se tornou a principal atividade e o setor foi disputado por dois grupos. O
primeiro, localizado sobretudo no sul de Minas Gerais, também incluía paulistas
e fluminenses. Suas atividades estavam relacionadas à produção mercantil de
subsistência e de exportação. Já o segundo procedia da Corte e fora recrutado
principalmente entre a nobreza e a alta burocracia de Estado. Sua criação foi
fruto de uma política generosa de D. João VI e de D. Pedro I, que distribuíram
vastas extensões de terra nas proximidades do Rio de Janeiro. O primeiro grupo
apresentava força política no âmbito provincial, mas era barrado na Corte pelo
segundo grupo, que se valia de sua maior proximidade com o novo monarca (ver
Lenharo, 1993:24). Em 1831, com a abdicação do imperador, o primeiro grupo
passa a controlar o processo político. O segundo, com os recursos do setor de
subsistência, financia a colonização e a expansão da economia cafeeira no Vale
do Paraíba, vindo a dar o troco durante o regresso conservador.
Na Constituinte de 1823, predominou a compreensão do federalismo como uma
dimensão que dizia respeito exclusivamente à organização das províncias. A
análise acerca do debate em torno da lei do juiz de paz e do Código do Processo
nos revelou que o conceito de federalismo foi ampliado de sua dimensão inicial.
O federalismo não estava relacionado apenas à descentralização do poder no
âmbito provincial; a descentralização do poder deveria ser disseminada
sobretudo pela sociedade, a fim de que o cidadão ativo situado nos municípios
participasse diretamente, ou por meio dos órgãos municipais, da montagem do
Estado.
Com a elaboração do Código do Processo Criminal, parte substancial dos
encarregados da justiça criminal passou a ser eleita no município. O Código do
Processo aumentou consideravelmente tanto os poderes do juiz de paz, tornando-
o o principal agente do Judiciário nas localidades, quanto os do júri, além de
estabelecer que o promotor e o juiz municipal seriam escolhidos no município.
De acordo com a Lei de 1827, o juiz de paz era eleito diretamente pelos
cidadãos da localidade, sendo, portanto, uma expressão da vontade política
destes. É importante destacar algumas características dessa eleição: direta e
única, sem intermediários entre o eleitor e a figura do representante, ou seja,
expressão direta das vontades do eleitorado. Observemos os motivos pelos quais
o juiz de paz ganhou essa importância: em primeiro lugar, pela extinção do
delegado; em segundo, porque ficou encarregado de elaborar o auto do processo
criminal10.
No art. 19, o Código do Processo aboliu os delegados, que antes eram nomeados
pelo poder central e ficavam subordinados ao chefe de polícia, que também
possuía a mesma origem. Na medida em que não havia mais os delegados, as ações
do chefe de polícia nos municípios passavam a depender do juiz de paz, o qual
ficava encarregado de recrutar a Guarda Nacional para cumprir ordens judiciais,
mandados de busca etc. Nesse sentido, as ações do poder central passavam a
depender da cooperação de uma figura eleita na localidade.
Com o Código do Processo, o juiz de paz era quem procedia ao corpo de delito,
que vem a ser "o conjunto de elementos sensíveis do fato criminoso" (Almeida
Júnior, 1920:7), e formava a culpa (ver Código do Processo, art. 12, § 4); esta
era então entregue ao juiz de direito e ao júri de acusação para que
deliberassem se existia a necessidade de se instaurar um processo (ver Código
do Processo, art. 228). Em caso positivo, iniciava-se o julgamento a partir das
provas recolhidas anteriormente.
Para que o juiz de direito declare a responsabilidade criminal e imponha a
sanção, é necessário ter certeza de que um ilícito penal foi praticado e de que
é possível identificar seu autor (cf. Almeida Júnior, 1920). No Estado moderno,
a única maneira pela qual um juiz pode ser convencido a emitir um julgamento é
por meio das provas, que devem ser obtidas mediante certas formalidades
marcadas constitucionalmente (ver Bajer, 2002). Além desse importante papel no
processo criminal, o juiz de paz julgava pequenos delitos e concedia o
passaporte para o deslocamento interno (ver Código do Processo, art. 12, §§ 1-
7).
No Código do Processo, além do juiz de paz, havia três importantes figuras que
eram escolhidas entre os cidadãos da localidade: o promotor, o juiz municipal e
o júri popular. Segundo esse Código, o promotor ficava encarregado da denúncia
de crimes públicos e policiais perante o júri, sendo escolhido pelo presidente
de província a partir de uma lista tríplice elaborada pela Câmara Municipal
entre os eleitores locais. Qualquer eleitor com bom senso e probidade
reconhecidos poderia compor a lista; a lei, ademais, mandava que se desse
preferência aos que fossem instruídos nas leis (ver Código do Processo, art.
36). O juiz municipal ficava encarregado de substituir eventualmente o juiz de
direito e de exercer cumulativamente a jurisdição criminal. Era escolhido da
mesma forma e com os mesmos pré-requisitos que o promotor (ver Código do
Processo, art. 33). Já a lei do júri popular foi promulgada em setembro de 1830
em meio ao processo de dissídio entre o imperador, D. Pedro I, e a elite
política brasileira, nesse momento ainda toda unida contra as ações daquele. No
art. 15, a lei determinava que o júri fosse escolhido pelos eleitores da
municipalidade e pelos vereadores. Com a promulgação do Código do Processo
Criminal, em 1832, essa escolha passa a ser feita pelo juiz de paz, pelo
capelão e pelo presidente da Câmara Municipal (ver Lei da Eleição dos Jurados e
Promotores, art. 15, e Código do Processo Criminal, art. 24). Podiam ser
jurados todos aqueles que fossem eleitores de segundo grau; para aferir se
havia algo contra eles, seus nomes eram publicados. Findas as contestações, se
porventura houvesse, as urnas com os nomes eram lacradas para que fossem
sorteados na época dos julgamentos. Portanto, figuras importantes do
funcionamento da Justiça (juiz de paz, promotor, júri e juiz municipal)
passaram a ser escolhidas ou eleitas a partir do município.
Essa característica levou a uma série de artigos publicados no jornal Astro de
Minas, assinados por Do Federalista, nos quais o aspecto positivo do modelo
federalista era a responsabilidade que o funcionário eleito possuía perante os
cidadãos11. Esse jornal era ligado aos liberais moderados. Nova Luz Brasileira,
ligado aos liberais exaltados, argumentava que a federação acarretaria a
eleição de todo o poder Judiciário (ver Nova Luz Brasileira, 7/1/1831) e dos
comandantes de armas (ver Nova Luz Brasileira, 4/1/1831).
A idéia de federação chega ao Brasil enfatizando a necessidade de que as
atribuições do poder central sejam deslocadas para a província. No entanto,
esse movimento de retirar as atribuições do poder central não fica restrito a
uma transferência destas para as assembléias provinciais; chega até os
municípios. No debate político brasileiro, a idéia de federalismo esteve
diretamente associada a um movimento no qual o exercício do poder público é
espalhado na sociedade. Em outras palavras, é posto ao alcance do cidadão
ativo.
Nesse momento histórico, parte considerável dos federalistas acreditava que o
federalismo permitiria que os interesses dos cidadãos ativos e a liberdade
caminhassem de maneira virtuosa. Um dos mais importantes era Evaristo da
Veiga12, que em 1833 - o ano seguinte à promulgação do Código - escreveu acerca
da importância da eleição do juiz de paz:
O dia das eleições se avizinha, e tenho de contribuir com meu voto
para a nomeação dos juízes de paz do meu distrito. N'outro tempo, eu
nada entendia da influencia que podia ter hum bom ou mau juiz de paz;
deixava a escolha ao acaso, persuadido que de todo modo as coisas
hirião bem [...]. Mas depois de 7 de abril, quando começarão a correr
pelas ruas magotes de gente armados de facas, grande número de
ociosos, de vagabundos [...] que assustavam o povo, ameaçando os bens
e a vida de cada um. [...]. Duraram os sustos alguns meses: mas
homens de bem exerciam o cargo de juiz de paz, eles animaram os
cidadãos e reprimiram os perturbadores [...]. Aprendi então a
conhecer a importância daquele emprego e prometi ter grande escrúpulo
no meu voto toda vez que se tratasse de eleger juízes de paz. [...].
Contaram-me huma vez que se trabalhava para nomear eleitores a certos
sujeitos que não mereciam conceito, que para este fim havia um
ajuste, ou como eles dizem - huma cabala; e me convidarão a ligar-me
com outros cidadãos que pretendiam votar em pessoas de mais estimação
e confiança. Imbuído como estava das minhas idéias, respondi que não
entrava em conluios. Outros foram da mesma opinião, e a cabala que eu
receava triunfou completamente. Então eu reconheci que em eleições é
necessário ceder do próprio juízo, de particulares afeições, de
relações de comércio ou de família, e encostar-se o votante àquele
círculo que melhor lhe agrada, que está mais de acordo com seus
desejos e esperanças (Aurora Fluminense, 15/2/1833; ênfase no
original).
Observemos que, para Evaristo, o eleitor é despertado para a importância da
eleição de juiz de paz quando desordeiros ameaçaram sua propriedade. O cidadão
movido pelo interesse de que a lei garanta sua esfera privada não deve permitir
que um funcionário nomeado por um poder distante tenha influência sobre seus
assuntos. Quando ocorrem as primeiras eleições, esses cidadãos, pouco
habituados ao exercício do poder em sua esfera mais próxima, não se envolvem.
Séculos de uma legislação colonial opressiva não lhes ensinou a se envolver com
os assuntos públicos. No entanto, quando fatos que põem em risco seus
interesses ocorrem, esses eleitores decidem participar. Evaristo não se ilude
acerca da capacidade da lei em mudar os costumes arraigados; reconhece que não
será imediatamente que os cidadãos ativos sairão de seu isolamento. Segundo
Evaristo, nas primeiras eleições, as cabalas vencem. O motivo reside no fato de
os cidadãos ainda não terem saído de sua esfera privada. Apenas lentamente,
mediante o exercício da participação, o cidadão ativo vai escolher melhor o
juiz de paz. O cidadão associará seus interesses individuais - a proteção de
sua propriedade - à escolha de funcionários públicos que respeitem seus
direitos. Reconhecerá que, para que tal escolha recaia sobre um candidato
correto, deve haver um envolvimento com outros eleitores.
Essa ação coletiva somente pode ocorrer quando existe a liberdade de escolha, a
eleição de um magistrado, por exemplo, na qual diversos candidatos participam;
muitos desses candidatos são homens que se impõem não por seu cabedal pessoal -
estudos e propriedades -, mas sim em razão da alta estima de seus concidadãos.
Essa participação só ocorre porque o funcionário eleito responde perante os
demais cidadãos ativos.
Cabe pôr em destaque o sentido que o conceito de federalismo recebe nesse
momento histórico. Em primeiro lugar, o arranjo constitucional federalista é
definido a partir de dois pontos: o mecanismo de responsabilidade que os
funcionários possuem para com os cidadãos - seja na esfera provincial, seja na
esfera municipal - e a liberdade de que as províncias devem dispor para
administrar seus recursos e legislar tendo em vista suas realidades singulares.
Em segundo lugar, e diretamente associado ao primeiro, esse modelo
constitucional permite que o cidadão olhe para o que é público como algo que
lhe diz respeito, e não como algo que somente diz respeito a um funcionário
nomeado por um poder distante. O cidadão exerce seu interesse individual junto
ao interesse público. Essa característica do pensamento federalista formulado
em torno do Código do Processo pode ser percebida por meio do conceito de
interesse bem compreendido formulado a partir da leitura da obra de Tocqueville
(1977). Na análise que o autor efetuava da experiência norte-americana, estava
presente a idéia de que nos Estados Unidos o interesse individual, longe de
colocar o cidadão em uma prisão, isolado dos demais, era capaz de ligá-lo a
outros. Para Tocqueville, o cidadão norte-americano, ao efetuar uma ação tendo
seu interesse privado como móvel, terminava produzindo uma ação dotada de
virtudes públicas.
Seguindo as lições de Montesquieu, Tocqueville considerava que às instituições
deve corresponder um espírito que as anime. Nesse sentido, o autor enxergou na
experiência norte-americana cidadãos comuns, movidos por seus interesses
individuais, envolvidos nas soluções de problemas coletivos, unindo sua
liberdade com a liberdade pública. O interesse do indivíduo por suas coisas,
bem como o apego ao que lhe pertence, consegue se tornar uma virtude. A
dispersão do poder na sociedade norte-americana leva o indivíduo, na defesa de
seu interesse, a sair do isolamento e a buscar a cooperação de outros na
procura de soluções (cf. Jasmin, 2000:77).
O "patriotismo municipal" (expressão de Tocqueville apud Jasmin, 2000) norte-
americano é o espaço institucional primordial para a manifestação do interesse
bem compreendido. Sem este os cidadãos jamais obterão o aprendizado prático
para a resolução dos assuntos públicos, tampouco associarão corretamente sua
liberdade individual à liberdade pública. Os Estados centralizados,
equivocadamente, somente chamam seus cidadãos para decidir os assuntos gerais,
abstratos, sem uma ligação direta e imediata com a vida desses indivíduos.
É importante assinalar que, para Tocqueville, o interesse bem compreendido se
manifesta sem nenhuma referência a uma virtude heróica externa aos interesses
dos cidadãos; está relacionado apenas ao empenho do indivíduo em resolver seus
problemas. A partir dessa paixão pouco nobre, o cidadão supera seu isolamento,
constrói uma esfera pública baseada na liberdade e internaliza a lei como
expressão do bem público (Werneck Vianna, 1997:109).
A Regência marca a entrada no núcleo do poder de um grupo que não participava
do poder na época de D. Pedro I. A referência a Tocqueville nos permite
compreender o mecanismo que os defensores do Código do Processo pretendiam pôr
em movimento. A idéia de federalismo formulada durante o Código reforça a idéia
de desconfiança para com o Estado. A única maneira de assegurar os interesses e
a liberdade dos cidadãos seria tornar os cargos públicos mais importantes
eleitos ou escolhidos a partir dos municípios. Torna-se fundamental compreender
que os federalistas descrevem a eleição do juiz de paz e a escolha dos demais
cargos pelos poderes municipais como um espaço no qual os cidadãos, movidos por
seus interesses, criam um vínculo positivo com o Estado e com a liberdade
pública. Somente no modelo institucional em que o poder público esteja sujeito
aos interesses dos cidadãos, estes podem internalizar a Lei. O federalismo era
o arranjo político que permitiria a combinação entre virtude e interesse de
maneira satisfatória.
O pensamento federalista não desconhecia a demora para que essas práticas
vingassem na sociedade brasileira. Nesse sentido, veja um trecho do jornal
Astro de Minas:
Nós não desconhecemos que o sistema federativo no Brasil há de
acarretar alguns inconvenientes; sobretudo no princípio. [...] mas
ousamos asseverar, que para as futuras eleições os Povos já
amestrados pelos poucos prejuízos não votarão em semelhantes
carrascos, e assim pouco a pouco irão abrindo os olhos acerca da
escolha dos candidatos. [...]. Mas formada que esteja a federação de
Estados fazendo as suas leis próprias e peculiares, tendo em seu seio
todos os recursos, só por isso poderá empregar toda a força de que é
capaz; as autoridades sempre vigiadas e prestes a responder pelos
seus abusos estarão em contato com os povos que as elegerão (Do
Federalista, Astro de Minas, 28/6/1832; ênfases do autor).
As alterações nas leis não implicariam mudanças imediatas na prática social.
Entretanto, uma mudança somente ocorreria caso fosse dado aos cidadãos o espaço
público para que seus interesses individuais fossem lentamente educados a fim
de combinar interesses e bem público. Os federalistas brasileiros não tiveram a
preocupação de compatibilizar esses interesses com uma virtude heróica,
proveniente de uma nobreza que de maneira desinteressada velaria pela res
publica. Seu mundo de origem e sua referência eram os homens comuns que,
dispondo de propriedade e de interesses individuais, deveriam controlar um
Estado. Este, em razão da experiência colonial e do reinado de D. Pedro I,
surgia como uma ameaça a seus interesses. No entanto, para os federalistas,
controlar o Estado a partir dos interesses era indissociável da
descentralização do poder, de colocar o poder sob a influência dos cidadãos
ativos e da esfera pública na qual estes tomavam parte e de tornar o poder
sujeito à influência da opinião pública, dos pasquins, das sociedades, entre
outros.
O ATO ADICIONAL13 CONTRA O CÓDIGO DO PROCESSO
O conceito de federalismo, discutido a partir da promulgação e do funcionamento
do Código do Processo, sofre modificações relevantes para sua compreensão. Em
primeiro lugar, grupos defensores do federalismo efetuam uma crítica à
descentralização presente no Código do Processo; em segundo, a inovação da
experiência norte-americana é percebida; em terceiro, conferem precedência ao
interesse provincial em face do tema da liberdade. Essas alterações ganham
corpo ao longo dos debates em torno do Ato Adicional.
O Ato Adicional possui um histórico que tem início em 6 de maio de 1831, quando
o deputado Miranda Ribeiro apresentou e conseguiu a aprovação do requerimento
que previa a formação de uma comissão para propor a reforma da Constituição. Em
9 de julho de 1831, a comissão formada por Paula e Souza, Miranda Ribeiro e
Paraizo apresentava o resultado dos trabalhos. O momento político no qual se dá
a proposta de Miranda Ribeiro era extremamente crítico. O imperador abdicara
havia apenas dois meses; a Regência estava se assentando no poder; e a capital
fora palco de várias revoltas, durante as quais se pensou em retirar o jovem
imperador da cidade em virtude da inexistência de segurança para sua pessoa. A
gravidade dos conflitos armados foi tamanha que impulsionou o projeto da Guarda
Nacional. Proposto em julho de 1831, os pontos mais debatidos foram: o Senado
temporário eleito pela Assembléia Provincial e a monarquia federativa.
No primeiro artigo, sem deixar dúvidas a que veio, o parecer da comissão propõe
uma nova redação do art. 1º da Constituição: o Império do Brasil seria uma
associação política dos cidadãos brasileiros de todas as suas províncias
federadas por essa Constituição. Além da monarquia federativa, a comissão
propõe a separação entre rendas provinciais e gerais, o que será mantido no Ato
Adicional. O Senado deixaria de ser vitalício, escolhido pelo imperador a
partir de uma lista tríplice, e passaria a ser eleito pela Assembléia
Provincial. Esta também ficaria encarregada da eleição do vice-presidente. Por
último, o projeto propõe a supressão do Poder Moderador e do Conselho de
Estado14.
O Senado reconheceu a constitucionalidade da reforma, entretanto, transferiu
sua realização para representantes eleitos para tal, ou seja, para a próxima
legislatura, e negou a possibilidade de reforma dos artigos que tornavam a
monarquia federativa e o Senado temporário e eleito a partir das Assembléias
Provinciais15. A derrubada desses dois pontos - monarquia federativa e Senado
temporário e eleito pelas Assembléias - pôs em marcha a tentativa de aprovar as
reformas sem a participação do Senado. Um dos principais artífices desse
movimento foi o ministro da Justiça, Diogo Feijó. A Constituição de Pouso
Alegre, principal documento político desse movimento, incorporava os pontos do
projeto apresentado pela comissão16.
Em 30 de julho de 1832, a Câmara se reúne para tentar votar um parecer segundo
o qual ela se converteria em Assembléia Nacional para empreender a reforma
mesmo sem a anuência do Senado. Durante os debates na Câmara dos Deputados,
Honório Hermeto agrupou uma maioria capaz de derrotar esse movimento. A derrota
aponta para um reconhecimento, por parte dos descentralizadores, dos limites
impostos pelo Senado. Nesse sentido, forma-se, na Câmara, uma nova comissão
composta por Bernardo Pereira de Vasconcelos, Limpo de Abreu e Paula de Araújo.
As linhas centrais do projeto elaborado por essa comissão formarão a base do
Ato Adicional aprovado em 1834.
Logo após a promulgação do Ato Adicional, Alves Branco e Limpo de Abreu, dois
importantes defensores do Ato Adicional e críticos do regresso conservador,
efetuaram crítica ao Código do Processo em bases semelhantes. O Código do
Processo transferiu atribuições para cidadãos que, apesar de seus vínculos para
com a localidade, não possuíam preparo técnico para o desempenho das pesadas
funções que lhes foram delegadas17. As leis descentralizadas são um instrumento
por meio do qual os cidadãos ativos se civilizam18; porém, esses mecanismos
deveriam ser aplicados apenas em regiões com um determinado nível de
desenvolvimento19. Com o Ato Adicional promulgado em 1834, a aplicação dos
mecanismos descentralizadores presentes no Código do Processo passou a ser
controlada pelo Legislativo provincial. Esse espírito presente no Ato Adicional
foi claramente percebido por Tavares Bastos. Segundo este, não bastava escrever
que todos os cargos do Judiciário seriam eletivos; o nível de civilização
existente no país não permitia que esse mecanismo fosse aplicado
indistintamente, apenas o Legislativo provincial poderia decidir como e onde
essa legislação poderia ser aplicada (ver Bastos, 1937, parte II, cap. IV:162-
163; 173). A inexistência de um determinado nível de civilização20
homogeneamente difundido na sociedade brasileira apontava para a possibilidade
de que os conflitos políticos transbordassem para além dos limites toleráveis
para a elite política brasileira do século XIX. Vejamos alguns exemplos
mencionados no debate político do século XIX dessa função desempenhada pelo
Legislativo provincial.
Em 1836, a Assembléia Provincial de Pernambuco retirou as atribuições policiais
do juiz de paz, passando-as para os prefeitos e subprefeitos nomeados pelo
presidente provincial (ver Bastos, 1937:169 e Souza, 1997). Em 1838, o
Legislativo provincial de Alagoas atribuiu cumulativamente aos juízes
municipais o exercício das atribuições criminais do juiz de paz (Bastos, 1937:
169-170). A Assembléia Provincial de Alagoas determinou a elevação do censo
para a seleção do júri e criou a figura dos prefeitos, nomeados pelo presidente
provincial. A concessão de fianças seria uma atribuição delegada sobretudo ao
juiz de direito, e não ao juiz de paz. Em 1835, a Assembléia Provincial de São
Paulo criou a figura do prefeito nomeado pelo presidente de província. Este
ficaria encarregado de fiscalizar os empregados municipais, comandar a Guarda
Policial, prender os delinqüentes e vigiar as pessoas que entrassem no
município (ibidem:169). Ou seja, incorporava diversas tarefas que cabiam ao
juiz de paz.
Gostaria de chamar a atenção do leitor para o seguinte: esse conjunto de atos
dos Legislativos Provinciais somente foram desencadeados em razão do Ato
Adicional. De acordo com aqueles, as Assembléias Provinciais poderiam legislar
sobre os funcionários provinciais, bem como sobre a divisão civil e judiciária.
Os atos do Legislativo provincial atacavam as atribuições dos cargos eleitos ou
escolhidos a partir do município (o juiz de paz, o júri e o promotor) em favor
do juiz de direito e dos prefeitos. Como Tavares Bastos assinalava: "Conforme
já advertimos quanto à polícia, o que as leis fortificavam era o juiz de
direito ou juiz municipal" (1937:193). Em outras palavras, o Ato Adicional
realizava a mesma tarefa do regresso conservador, ou seja, o esvaziamento dos
cargos eletivos em detrimento dos cargos nomeados. No entanto, com uma
diferença fundamental e chave: quem realizava essa tarefa era o Legislativo
provincial, tendo em conta os interesses provinciais, e não os motivos do poder
central. Além disso, com o Ato Adicional os cargos nomeados eram controlados
pelo Legislativo provincial. O pensamento federalista procura deslocar a
primazia política para o Legislativo provincial como um meio pelo qual seriam
podados os excessos descentralizadores presentes no Código do Processo. A
partir dos mecanismos presentes no Ato Adicional, os diversos legislativos
provinciais iniciaram a reforma do Código do Processo, desmobilizando a
participação dos cidadãos ativos exercida diretamente no município.
A bibliografia tem usualmente creditado aos conservadores, a partir do fim dos
anos 1830, a revisão da legislação descentralizadora. Essa compreensão
considera o Ato Adicional um desdobramento natural das idéias federalistas
presentes no Código do Processo. Em minha compreensão, essa visão implica
reforçar a idéia de que os federalistas não tentaram conter a eclosão do
"Brasil profundo", pois estavam imbuídos de um liberalismo utópico.
Neste artigo, a perspectiva é distinta: os liberais moderados recusam o
encontro com as demandas das classes subalternas por terra e vão buscar a
reforma do Estado imperial por dentro; a reforma do Estado seria a obra das
elites provinciais21. A descentralização do poder, efetuada com o Código do
Processo, forçou o "encontro das elites locais com a massa do povo sem
direitos" (Werneck Vianna, 1991:158). O pensamento federalista, com sua idéia
de tornar o poder responsável perante os cidadãos, recuou diante dos efeitos
inesperados dessa opinião. A idéia de mobilizar a sociedade a partir do
interesse bem compreendido, capturar o Estado e implementar a ordem e a justiça
sucumbe, no pensamento federalista, à preocupação para com a ameaça à unidade
nacional e à ordem social. A reforma do Estado Imperial não será mais uma
tarefa vinda da sociedade, mas de elites alocadas no Estado. Enxergamos no Ato
Adicional, e não na Lei de Interpretação (1839), o primeiro momento desse
recuo. Ocorre que o regresso federalista era, em seus instrumentos e objetivos,
bastante diferente daquele que será levado a cabo pelos centralizadores. A
intenção dos federalistas com o Ato Adicional era conter os conflitos armados
que apareciam no Brasil. Entretanto, para os federalistas, essa tarefa de
contenção deveria ser conduzida pelo Legislativo provincial, e não pelo poder
central, conforme os centralizadores pensavam - diferença significativa se
pensarmos no papel do interesse provincial em cada corrente de pensamento.
Os debates acerca do Ato Adicional, que começam em 183122, revelam a emergência
da idéia de que a província possuiria
negócios particulares23, interesses particulares24, bem particular25,
necessidades provinciais26,
termos que denotam a presença da idéia de que a província possuía um conjunto
de assuntos distintos daqueles que eram comuns a todo o Império. Ao formular a
existência desses interesses provinciais, o pensamento federalista sustenta que
a província deveria buscar a realização deles sem referência a motivos
externos:
O que embaraça que isto sejam idéias federativas, se são idéias de
justiça e ordem? [...] Não há povo que queira estar assim apertado e
oprimido. Todos querem que as suas províncias tenham certos meios
administrativos, certa governança que tenda a promover o bem
particular da província, no que vai igualmente compreendido o bem
geral do império (Lino Coutinho, sessão da Câmara dos Deputados, 17
de maio de 1831, p. 48; ênfase do autor).
Para Lino Coutinho, defensor do federalismo desde a Constituinte de Lisboa, não
havia problema algum em ser tachado de federalista. Observemos, inicialmente,
nos termos do autor, a idéia presente no trecho acima. Para Lino Coutinho, cada
província deve dispor de "certos meios administrativos" que lhe devem permitir
buscar o "bem particular da província". Ato contínuo, Lino Coutinho conclui
que, nessa busca de seu bem particular, já está presente o bem geral do
Império; o desenvolvimento da província contribui para o engrandecimento do
Império. Podemos assinalar que a passagem do interesse provincial para o bem
geral do Império é automática. No argumento do deputado, não se opera nenhum
outro cálculo que não seja o da província em busca de seus objetivos. Na medida
em que não existe mais um centro comum com poderes capazes de impor
uniformemente uma política para todo o Império, o pensamento federalista
formula a idéia de que, a partir dos interesses provinciais, poderia brotar a
unidade nacional.
Na sessão de 26 de junho de 1834, estava em discussão a emenda que permitiria
às Assembléias Provinciais fixar o número de seus deputados:
Sabe-se que existem entre certas províncias certa rivalidade, certo
ciúme, aliás, necessários até certo ponto: esta rivalidade, este
desejo de primarem umas sobre as outras, sendo razoável, pode vir a
ser um princípio de progresso, sem dúvida de grande vantagem para o
Brasil; mas se exorbitarem de certos limites, nós veremos que o
Brasil se fracionará (Evaristo da Veiga, sessão da Câmara dos
Deputados, 26 de junho de 1834; ênfase do autor).
O deputado Evaristo da Veiga acreditava que, nas províncias mais desenvolvidas,
tal atribuição poderia pertencer às Assembléias Provinciais. Entretanto, nas
províncias menos desenvolvidas, essa atribuição poderia dar margem a excessos.
Evaristo conclui que, em face dessa distribuição desigual do desenvolvimento,
deveria caber à Assembléia Geral estipular o número de deputados provinciais
para cada província. O que nos parece relevante assinalar é que, na idéia de
federalismo, está presente um valor que nem sequer é mencionado no argumento
centralizador: a rivalidade provincial. Evaristo da Veiga, um defensor do Ato
Adicional, discute o grau de liberdade que será dado às províncias tendo em
vista que a "[...] rivalidade, este desejo de primarem umas sobre as outras,
sendo razoável, pode vir a ser um princípio de progresso [...]". Na idéia de
federalismo, está presente uma atribuição de valor positivo para a rivalidade
provincial, a perspectiva de que a competição motiva as províncias a buscar um
desenvolvimento maior. Cada província vai buscar se afirmar sobre a outra,
dispor de bens que a outra não dispõe, incitando nas demais o desejo de
superarem o patamar alcançado pela mais desenvolvida.
Observemos que, no conceito de federação, estava presente a idéia de um
desenvolvimento desigual entre as províncias, e que tal conseqüência era
inevitável. O mal de um desenvolvimento desigual era o preço a ser pago por um
bem maior, o progresso advindo da competição. A meu ver, esse aspecto, já
presente no trecho analisado, pode ser reforçado a partir do trecho a seguir,
que se revela de grande importância:
Eu disse que as províncias devem ter toda a amplitude para se
governarem; mas que era preciso que se afrouxassem o nó, e que
ficassem sujeitas ao governo central por uma união doce e suportável;
[...]. Eu advoguei unicamente a causa da justiça com o objeto de
impedir a separação. Eu não vejo, contudo, que já se tocou neste
ponto, que ele traga consigo tão graves inconvenientes, nem que dê
lugar a verificar-se um quadro tão triste como o que foi apresentado
pelo Sr. Cunha, acontecer-lhe-ia o mesmo que sucede a respeito dos
indivíduos, alguns dos quais são mais ricos e outros mais pobres.
Haviam de florescer as províncias mais abundantes em produtos e ficar
atrasadas aquelas que produzissem menos, as quais se verão por isso
forçadas a limitar suas despesas, em proporção às suas rendas, até
chegarem à maior prosperidade (Lino Coutinho, sessão da Câmara dos
Deputados, 17 de maio de 1831, p. 49; ênfase do autor).
No argumento federalista, a rivalidade provincial possui aspectos positivos. É
ela que estimula as províncias a buscarem o desenvolvimento, pois cada uma não
deseja ser ultrapassada pela outra. Se, por um lado, é da natureza da
competição que ocorra uma distribuição desigual dos bens, por outro, tal
distribuição estimularia a província menos desenvolvida a buscar os meios para
atingir um padrão mais elevado de desenvolvimento. A nação é um espaço social
comum às diversas províncias, no qual cada uma busca maximizar sua situação.
Dessa competição vai emergir uma política nacional capaz de ligar as diversas
províncias. A idéia de interesse provincial presente no conceito de federalismo
estava diretamente ligada ao papel desempenhado pelo interesse na sociedade.
Em 14 de novembro de 1828, escrevendo em seu jornal Aurora Fluminense, o
deputado Evaristo da Veiga discorre sobre sua visão do papel da propriedade e
do interesse na sociedade:
A propriedade dos homens é a fé fundamental da sociedade. Se a
possessão exclusiva, que contém a propriedade, parece a princípio
própria para dividir os homens, a comunicação dos bens e serviços os
reúne e restabelece a única comunicação de bens conforme o interesse
da reprodução. Sem propriedade de capital e lucro, não se pode
conhecer senão homens selvagens, dispersos, reduzidos a uma
indigência mais espantosa. O interesse é a principal causa da
discórdia entre os homens; [...]. O interesse é um motivo necessário
para levar o homem ao trabalho. Sem a propriedade o homem se torna um
ente puramente passivo sem ação (Aurora Fluminense, 14/11/1828;
ênfases do autor).
Podemos destacar, nesse trecho, duas idéias centrais: propriedade e interesse.
Inicialmente, vejamos a idéia de propriedade. Evaristo associa propriedade à
possessão exclusiva de um bem, o qual o indivíduo não deseja compartilhar com
outro. O deputado reforça o sentido individualista, ou egoísta, da propriedade
por meio da associação entre propriedade e interesse. Da mesma forma que a
posse exclusiva provoca a divisão entre os homens, o interesse causa discórdia.
Segundo o Dicionário Moraes, em sua edição de 1823, interesse vem a ser:
"Proveito, utilidade, lucro [...] cada um trata dos seus interesses". Já
interessar aponta para "[...] lucrar". Segundo Evaristo, o sentimento de
egoísmo existente no interesse pode parecer algo negativo, pois a possessão
exclusiva pode parecer um meio para dividir os homens. Nesse sentido, seria
aparentemente um vício, ou seja, um sentimento que não traz benefício algum ao
indivíduo e à coletividade. No entanto, apenas aparentemente o egoísmo é um
mal. Em primeiro lugar, o interesse, no argumento de Evaristo, está associado à
civilização, ao progresso. Sem o interesse, o homem se assemelha ao selvagem. É
esse vício (o interesse, o egoísmo, o amor-próprio) que o leva ao
aperfeiçoamento e ao desenvolvimento material. Em última instância, somos
levados a concluir que é o aparecimento do interesse que move a sociedade rumo
ao progresso. Em segundo lugar, essa divisão é remediada pela comunicação de
bens e serviços, que nos remete à idéia de mercado como um espaço de troca.
Para Evaristo, esse espaço de comunicação está dotado de uma lógica que, no
final, institui uma paz entre os homens e sua luta pela posse exclusiva de um
bem, pois é da lógica dessa comunicação funcionar segundo as necessidades de
reprodução da sociedade27.
Inicialmente, assinalamos a presença, no argumento federalista, de uma analogia
entre a província e o indivíduo natural. O pacto constitucional servirá a seus
propósitos caso permita à província dispor de liberdade para a manifestação de
seus interesses; nos termos de Ferreira França analisados anteriormente, para
cuidar de sua casa; e velar pela casa implicava cuidar da segurança, justiça e
prosperidade. Nesse sentido, cada província cuidaria de seus interesses da
mesma maneira que o indivíduo vela pelos seus. A idéia de interesse provincial
mobilizada pelos federalistas era semelhante ao uso feito por Evaristo da
Veiga. Cada província buscaria sua prosperidade movida por seu interesse. Cada
província cuidaria de aperfeiçoar sua casa. Esse esforço é movido por seu
egoísmo, usando em seu proveito os benefícios gerados por esse empenho. O
interesse geral nasce de um conflito entre os interesses. Nessa perspectiva, o
interesse geral é apenas uma agregação de interesses particulares, dos quais se
tira uma média, sem que esses em nenhum momento alterem seu caráter egoísta.
Estabelecido que os interesses das províncias devam estar auto-referidos e que
a unidade nacional/o Estado-nação nasce da soma desses interesses, logicamente
os representantes destes, ao marcarem o grau de ação do poder central, não
devem permitir que este disponha de forças para alterar sua dinâmica natural.
Nesse sentido, o grau de força do poder central deve ser necessariamente baixo.
Na medida em que o conceito de federação ficava associado a um arranjo
constitucional que permitia às províncias a busca de seus interesses, sem que
essa busca implicasse o rompimento da unidade nacional, era rechaçada a idéia
de federação como uma reunião de Estados soberanos. Em 4 de julho de 1834,
Souza Martins realizava um importante discurso na Câmara dos Deputados:
A palavra federação pode-se depreender por verdadeira etimologia -
aliança, liga, união - concordo que não convém ao Brasil uma
federação tal como a dos estados da Alemanha etc. Esta deve ter a
oposição da maioria da câmara; mas não acho justo nivelar uma tal
federação com as reformas que se vão agora estabelecer; estas
reformas constitucionais nada mais são que dar algumas atribuições
legislativas aos conselhos gerais sem dependência do poder geral;
neste sentido não merece censura a federação, no sentido de dar a
certas autoridades locais certas atribuições que não podem ser
exercitadas pelo governo central (sessão da Câmara dos Deputados, 4
de julho de 1834, p. 29; ênfases do autor).
Souza Martins é um deputado favorável ao princípio federativo. Entretanto, ele
recusa, para que seja aplicado ao Brasil, um determinado sentido desse termo, o
de "liga, aliança e união". Observemos que os termos liga e aliança são
utilizados por Hamilton para determinar o modelo oposto ao federalismo norte-
americano. Souza Martins não concordava que, no Brasil, fosse aplicada a idéia
de uma liga de Estados independentes. Sua adesão ao princípio federativo se
dava por outros motivos. A idéia de federação, para o deputado, abarcava o
princípio de se conceder às províncias maior liberdade para gerir seus
assuntos. No caso em debate, a idéia de federação implicava conceder poderes
mais abrangentes para as Assembléias Provinciais. O Legislativo provincial não
mais seria um órgão administrativo, mas sim um órgão político.
O pensamento centralizador percebia alteração no conceito de federalismo. Não
se tratava mais da união de Estados soberanos, como no modelo confederativo: "A
federação que desejamos, dizem eles, não é a germânica ou a helvética ou da
antiga Holanda ou da América do Norte, é apenas aquela que consiste em dar aos
governos provinciais maiores atribuições para o expediente de negócios locais.
E nisto insistem, senhores" (Calmon, sessão de 1º de setembro de 1832, p. 234;
ênfase do autor).
À medida que se vai firmando a idéia de interesse provincial, ocorre a
compreensão da inovação presente na experiência norte-americana. No debate
parlamentar de 1834, emerge a compreensão de que, no conceito de federalismo,
ocorreram alterações significativas em virtude da Convenção de 1787. É possível
afirmar que, em 1834, a idéia de federação não envolve mais o elemento
confederativo, ou seja, a União lida com seus membros como Estados soberanos
aos quais ela recomenda procedimentos. O pensamento federalista abandona a
idéia de que as províncias são Estados independentes: "Nos Estados Unidos há
uma tendência por uniformidade de certas coisas nos diversos estados, hoje
muito se fala em um código para os diversos estados da União; eles vão se
aproximando à centralização quanto é possível" (Paula Araújo, sessão da Câmara
dos Deputados, 25 de junho de 1834, p. 173).
Analisemos o trecho anterior tendo em vista o conceito de confederação presente
até então: os membros da União estão unidos, sobretudo, com fins de defesa,
mantendo cada um suas leis próprias. Segundo Paula Araújo, começavam a ocorrer
mudanças no modelo norte-americano: a autonomia que cada membro da União
dispunha para editar seus respectivos códigos estava sofrendo restrições. No
debate político norte-americano, começava-se a atribuir ao poder central a
tarefa de elaborar os códigos nacionais, uniformizando as diversas leis
estaduais (ver Kramnick, 1993). O poder central determinava os códigos
nacionais, cabendo aos poderes estaduais adequar-se a esses limites previamente
estabelecidos. Portanto, a iniciativa política se invertia, cabendo agora ao
poder central estabelecer os limites da ação dos Estados-membros. A compreensão
desse reforço do poder central, no caso norte-americano, encontra em Evaristo
da Veiga outro porta-voz:
Sigamos nossos mestres, nossos irmãos mais velhos em prudência e
circunspeção; os americanos do norte existiam isolados em províncias
separadas: tentaram federar-se, e a este respeito há um abuso de
palavra entre nós, que nos induz a gravíssimo erro: chama-se
federalista aquele que não é senão democrata, e chama-se unitário
aquele que é chamado na América do Norte federalista; federalista é o
que quer os laços da união, o que quer que as províncias tenham em si
aquilo que lhes convém para seu bem, mas que não se desliguem uma das
outras. Qual foi porém a marcha que seguiram os americanos? Estados
separados trataram de reunir-se, cederam uma porção igual de seus
direitos para constituírem a federação; hoje tendem a uniformizarem-
se em suas instituições pela instituição da federação (sessão da
Câmara dos Deputados, 26 de junho de 1834, p. 182; ênfases do autor).
Analisemos essa passagem tendo em vista os pontos discutidos anteriormente.
Podemos assinalar que, para Evaristo da Veiga, o Estado norte-americano é
formado a partir da reunião de Estados independentes. Entretanto, assinalava,
essa situação já não correspondia à realidade naquele momento histórico.
Naquela época, nos Estados Unidos, o poder central estava empenhado em
uniformizar as leis, reforçando os laços comuns entre as partes. Nos Estados
Unidos, federalistas eram aqueles que defendiam uma soma maior de poderes para
o poder central. Fato novo se pensarmos que, na idéia de confederação, o poder
central não dispunha de atribuições para agir diretamente sobre os cidadãos.
Afinal, na visão dos deputados brasileiros, o que estava ocorrendo nos Estados
Unidos? Vejamos um trecho de Bernardo Pereira de Vasconcelos:
Na constituição dos Estados Unidos de 1778 os estados soberanos não
permitiam ao governo geral arrecadar de indivíduos a soma necessária
para as despesas da União; o governo orçava as suas despesas
econômicas e as províncias deviam dar a quantia necessária para fazer
face a estas despesas, elas passavam a impor, a arrecadar e a remeter
para o governo geral, mas o resultado foi que a maior parte das
províncias se arrogarão o direito de investigar se o governo geral
tinha feito o seu orçamento com excesso; e disto resultou que não
mandavam os meios necessários para a União, e esta foi a principal
razão por que se convocou a convenção geral de 1787, que reforçou
este artigo da constituição e determinou que o governo geral em todas
as ocasiões não contratasse com os estados como entidades coletivas,
mas sim como indivíduos, que pudesse mandar recrutar, impor etc.,
enfim independentes de todos os atos por que se achava autorizado
pela constituição (sessão da Câmara dos Deputados, 1º de julho de
1834, p. 10; ênfases do autor).
O trecho de Vasconcelos é extremamente importante. Pedimos ao leitor que
observe a menção que o político mineiro faz à Constituição norte-americana de
1778**, conhecida atualmente como os Artigos da Confederação. Segundo
Vasconcelos, nessa Constituição, o poder central orçava suas despesas e as
províncias forneciam os recursos. Tal situação, segundo ele, levava o poder
central a uma situação de dependência das províncias, porque, caso estas não
concordassem com as despesas, não haveria recursos disponíveis para a ação da
União. Se observarmos o conceito de confederação debatido até então, notaremos
o seguinte: o governo central lida com os Estados-membros como Estados
independentes, o que implicaria dizer que, em certos casos, o governo central
não poderia impor medidas ao Estado-membro, mas apenas sugerir. Além disso, o
governo da União não poderia agir diretamente sobre os cidadãos sem a anuência
dos Estados soberanos. De acordo com Vasconcelos, o governo da União não tinha
poderes para exigir que a província arcasse com a parte da despesa que lhe era
devida. Em linhas gerais, o poder central, para agir, necessitava da
concordância das províncias. A Convenção de 1787 assinalou uma ruptura com esse
modelo. A partir de então, o poder central disporia de poderes que lhe
permitiriam agir diretamente sobre os cidadãos sem necessitar da anuência das
províncias. Estas deixavam de ser entidades soberanas para serem partes de um
todo, do qual o poder central era o porta-voz.
Portanto, em nossa análise do debate político brasileiro, podemos assinalar que
a partir de 1834 ficava claro, para a elite política imperial, que nos Estados
Unidos havia ocorrido um movimento que visava permitir ao poder central agir
diretamente sobre os cidadãos sem lidar com as províncias, como se estas fossem
Estados independentes. Nesse sentido, o conceito de federação ficava limpo dos
elementos confederativos. O problema - sempre espinhoso - de que as reformas
deveriam retornar às províncias para sua aprovação ou recusa, se não
desaparecia de todo, ficava em segundo plano; já não aparecia como um traço
necessário do conceito de federação. Com isso, as correntes federalistas
passavam a centrar sua argumentação na defesa dos interesses provinciais. O
pacto federativo era o espaço no qual as diversas províncias explicitavam suas
demandas forjadas - forjadas internamente -, sem referência às restantes.
EM DEFESA DOS INTERESSES DAS PROVÍNCIAS MAIS CIVILIZADAS
Em 1837, era discutida a Lei de Interpretação do Ato Adicional, a qual imprimiu
uma mudança nos rumos políticos do Império brasileiro. Seu conteúdo apontava
claramente para um reforço do poder central em detrimento do Legislativo
provincial. A Lei de Interpretação do Ato Adicional era formada por seis
artigos. O primeiro e o segundo foram os mais debatidos no Senado e na Câmara.
O art. 1º estabelecia que a palavra polícia, presente no art. 10º do Ato
Adicional, somente dizia respeito à polícia administrativa e não à judiciária,
enquanto o art. 2º estabelecia que a Assembléia Provincial somente poderia
alterar o número dos empregos criados por lei geral. Dessa maneira, a
Assembléia Provincial ficava impedida de alterar a natureza e as atribuições
desses empregos.
A iniciativa dos centralizadores trazia as seguintes conseqüências: em primeiro
lugar, com o art. 2º, ficava vetado às Assembléias Provinciais alterarem as
atribuições dos cargos. Nos termos do debate político da época, com a Lei de
Interpretação, as Assembléias Provinciais não poderiam adequar as leis
nacionais às necessidades das províncias. Segundo os federalistas, as leis
nacionais deveriam ser adaptadas aos fins e meios estabelecidos pela Assembléia
Provincial, o órgão mais próximo à realidade provincial. Em segundo lugar, com
o art. 1º, distinguia-se a polícia administrativa da polícia judiciária, sendo
esta subordinada ao poder central28. A polícia judiciária ficava inteiramente
subordinada ao poder central. Conforme os adversários da Lei de Interpretação
costumavam repetir, o ministro da Justiça controlava da nomeação do presidente
de relação até o carcereiro.
As correntes federalistas criticaram o conteúdo centralizador da lei, contrário
aos interesses provinciais. Segundo o senador Alencar, a transferência de
atribuições para a Assembléia Geral não seria apropriada, pois esta estaria
mais ocupada com "o todo da nação sem capacidade para os negócios peculiares
das províncias" (sessão do Senado, 29 de julho de 1839). O órgão encarregado de
cuidar dos negócios peculiares das províncias deveria ser o Legislativo
provincial. Vejamos o argumento do ex-ministro da Justiça e regente e, naquele
momento, senador, Diogo Antônio Feijó:
Na verdade, já se mostrou que a polícia interna é essencial a toda
corporação, desde a família até a associação geral, que dela depende
a existência e a conservação da mesma sociedade; sendo isto assim,
como é que, podendo o chefe de família regular a sua economia
doméstica, o município a sua economia municipal, o mestre a economia
de sua aula, na qual regula o serviço e os castigos correcionais
etc., as câmaras legislativas da mesma sorte, como então se quer
negar este direito às províncias? (sessão do Senado, 26 de julho de
1839, p. 371; ênfase do autor).
Segundo Feijó, o cidadão ativo, para o bom funcionamento da casa, deve
controlar a economia doméstica. De acordo com o Dicionário Moraes (1844),
"economia" significava: "O regime ou governo dos bens ou da casa de cada um.
Economia política: ciência que ensina a conhecer as riquezas naturais e
industriais de um país e os modos de aproveitar e acrescentar". Da mesma
maneira, para o bom funcionamento e desenvolvimento da província, o Legislativo
provincial deveria controlar a polícia judiciária.
O argumento de Feijó, ao mobilizar a idéia do controle sobre a economia
doméstica, confere uma dimensão extremamente ampla à discussão acerca da
polícia judiciária. Desse modo, manifesta-se, em seu argumento, um dos traços
fundamentais do conceito de federalismo: a idéia de que a província deve lidar
com seus assuntos da mesma forma que o cidadão ativo lida com a casa (ver
Mattos, 1994). A justificativa para a liberdade provincial busca sua lógica na
esfera privada e, mais especificamente, em uma determinada idéia de indivíduo.
O cidadão ativo que melhor controla os recursos de sua casa obtém, na
competição entre os demais, uma posição mais vantajosa. A província, ou melhor,
o Legislativo provincial, eleito pelos cidadãos ativos, regula a polícia
judiciária tendo em vista a melhor maneira de aproveitar os recursos naturais e
sociais da província. Nesse sentido, o federalismo é um arranjo político que
permite às províncias a busca da melhor forma de aproveitar seus recursos
sociais e naturais, de tal modo que, na competição entre as demais unidades da
federação, a localidade consiga predominar. A organização retira sua lógica do
cidadão ativo e da competição entre esses cidadãos.
O argumento centralizador apontava para os conflitos de interpretação
desencadeados a partir da promulgação do Ato Adicional. Segundo Paulino José
Soares de Souza, deputado geral e ex-presidente da província do Rio de Janeiro,
a permissão para que a Assembléia Provincial Legislasse sobre a criação e a
supressão de empregos provinciais teria gerado leis provinciais que alteraram
atribuições estabelecidas por leis nacionais. Como Paulino escreveu no Ensaio,
à Assembléia Geral competia fazer os códigos civil, de processos etc.; às
assembléias provinciais, criar os empregos necessários e marcar-lhes a
atribuição como se fosse possível separar uma coisa da outra (ver Souza, 1997:
373).
O pensamento federalista reconhecia esses conflitos, mas apontava para um
aspecto positivo contido no Ato Adicional. Vejamos a defesa que Teófilo Ottoni
realiza do Ato Adicional:
Apontar-se-há um outro exemplo de leis provinciais absurdas; mas são
esses casos exceções de regra geral; e absurdos, leis mancas também
têm saído desta casa, têm sido sancionadas pelo poder moderador, e
muitas vezes no ano seguinte nós vemos na necessidade de reformá-las.
Talvez que pudesse apresentar como prova o que os nobres deputados
dizem a respeito do código do processo; não o faço, porém, porque
também creio que com ele não tem aparecido esses males que se têm
apregoado; pelo menos não os vejo na província donde sou filho, mas
peço licença à câmara para poder dizer que talvez nasça isso de ser a
província de Minas uma das mais ilustradas, sem querer deslustrar as
17 co-irmãs. Em Minas posso assegurar que a administração de justiça
tem melhorado com os códigos: citarei para exemplo os crimes contra a
propriedade, avultavam muito mais do que atualmente. Em alguns
municípios tem sucedido muitas vezes, havendo neles autoridades
ativas que nem um só processo se apresenta para se submeter à
consideração dos jurados: as coisas têm melhorado, e por conseguinte
temos progredido. Ora, o que sucede em Minas talvez suceda na Bahia e
em muitas outras importantes províncias que estão em circunstâncias
de exercer todos os direitos que o Ato Adicional confere.
Sr. Presidente, se há uma província em que os jurados não podem ainda
ter lugar; e noutra em vez de guardas nacionais mais quadram as
antigas milícias no maior número e nas mais importantes; a
civilização tem feito muitos progressos, e não acho justo que a
maioria sofra quebra de prerrogativas, porque uma minoria
insignificante pode abusar, ou não tirar vantagens que elas concedem
(sessão da Câmara dos Deputados, 12 de junho de 1839, p. 383; ênfases
do autor).
Inicialmente, observemos a referência à promulgação de leis provinciais
absurdas. Esse era um dos pontos mais mencionados pelos defensores da Lei de
Interpretação. Segundo Paulino José Soares de Souza, em algumas províncias, o
Legislativo provincial extinguiu cargos previstos no Código do Processo
transferindo suas atribuições para outros cargos, ou simplesmente suprimindo o
cargo, mas sem definir que cargos herdariam suas tarefas. Teófilo Ottoni
reconhecia que tais exemplos estavam ocorrendo, mas destacava que o Legislativo
geral ocasionalmente aprovava leis para posteriormente reformá-las. Em síntese,
no Legislativo geral, também eram produzidas leis absurdas. Em seguida, Teófilo
Ottoni argumentava que, em Minas Gerais, desde a promulgação do Ato Adicional a
administração da Justiça havia melhorado. O político mineiro não mencionava que
a produção legislativa provincial de Minas fosse caracterizada por leis
incompatíveis com as leis nacionais. Segundo ele, o motivo pelo qual isso se
dava residia no fato de Minas ser uma das províncias mais ilustradas. Um pouco
mais adiante, seu argumento indicava que o progressivo desenvolvimento da
civilização no Brasil contribuiria para que cada vez um número menor de leis
absurdas fossem promulgadas. Estabelecendo essas premissas, Ottoni conclui que
a supressão do Ato Adicional não poderia ser realizada porque, nas províncias
mais civilizadas, não eram encontrados motivos suficientes para cancelar a
descentralização.
Podemos formular a seguinte pergunta: será que Ottoni imaginava que a maior
parte das províncias no Brasil possuía o mesmo nível de civilização presente em
Minas Gerais e na Bahia? Podemos afirmar que o deputado eleito pela província
de Minas não considerava que a difusão da civilização na sociedade brasileira
fosse homogênea. A imagem mais comum no pensamento político brasileiro, seja
nos centralizadores, seja nos federalistas, foi a de uma sociedade com ilhas de
civilização cercadas por um vasto sertão. Mesmo nas províncias mais ricas, a
presença da civilização estava restrita às cidades mais populosas. O uso que
Ottoni faz do termo maioria para se referir às províncias que não deveriam
sofrer com a quebra da descentralização prevista no Ato nos parece mais um
recurso parlamentar para angariar apoio do que um julgamento acerca da
sociedade brasileira.
Portanto, podemos formular a seguinte conclusão: no argumento de Ottoni, não
havia motivos que levassem ao cancelamento do Ato Adicional. Tal posição
decorria do lugar de onde Ottoni analisava o funcionamento do Ato Adicional, ou
seja, de uma das províncias mais civilizadas. Em nenhum momento de seu
argumento, é introduzida a idéia de que o Ato Adicional deveria ser mantido
tendo em vista todo o Império, formado por partes heterogêneas, por províncias
marcadas pela civilização ou pela barbárie. Em resumo, Ottoni pensava o arranjo
político que costurava o pacto entre as diversas partes que compunham a União
com base nas províncias mais civilizadas e seus interesses.
A mesma perspectiva estava presente em Tavares Bastos, em sua crítica às leis
centralizadoras e na defesa do Ato Adicional:
Não hesitamos em condenar a organização policial e judiciária da lei
de 3 de dezembro; mas também não reputamos tão elevada superfície de
nossa civilização, que a todo o país se possa aplicar o princípio da
polícia eletiva. Se, por um lado, fora inconveniente estender este
belo princípio às solidões do Amazonas e às florestas de Goiás e Mato
Grosso, é, por outro lado, injustíssimo privar do gozo dessa
liberdade as províncias superiores em civilização. Por isso
condenamos a uniformidade nas instituições secundárias do governo dos
povos (1937:173; ênfase do autor).
Observemos o início do trecho. Nele, Tavares Bastos criticava o mecanismo
descentralizador presente no Código do Processo: tornar elegível a partir do
município os principais cargos do aparelho Judiciário. O motivo pelo qual
Tavares Bastos criticava esse fato residia na difusão desigual da civilização
no Brasil. Sendo um país heterogêneo, as precondições civilizatórias para que
esse mecanismo fosse aplicado não estavam homogeneamente espalhadas pelo
território brasileiro. Com a descentralização prevista no Código do Processo,
eclodiram diversas revoltas que mobilizaram os setores subalternos da
sociedade. Nestes, a força do interesse era fraca em virtude de sua inserção
marginal na sociedade brasileira. Entretanto, devemos assinalar o seguinte:
essa idéia, a difusão desigual da civilização na sociedade brasileira, é
utilizada também para efetuar a crítica ao mecanismo centralizador - a lei de 3
de dezembro. Da mesma maneira que os federalistas aplicaram indistintamente o
princípio descentralizador em todo o país, os centralizadores efetuaram esse
mesmo molde; aplicaram uniformemente a concentração de atribuições nas mãos do
poder central.
Em seguida, o argumento de Tavares Bastos opera uma passagem decisiva. A
centralização aplicou uniformemente um princípio sacrificando as províncias
mais civilizadas. Em sua perspectiva, está presente a idéia de que os
interesses das províncias mais civilizadas não podem ser prejudicados pela
necessidade de coesão entre as diversas partes que compõem o Império
brasileiro. Para Tavares Bastos, onde for possível que o interesse fecunde a
sociedade sem levantar a ameaça das rebeliões, a descentralização deve ser
adotada; porém, nas regiões nas quais esse interesse for ameaçado, a
descentralização deve ser contida. O instrumento mais capaz para realizar esse
cálculo vem a ser o Legislativo provincial. Isso porque o guia de sua ação não
serão os interesses vagos e vazios do todo, da nação, mas sim os interesses
provinciais. As províncias mais civilizadas não deveriam perder a liberdade -
prevista no Ato Adicional - de controlar a polícia judiciária porque outras,
menos civilizadas, haviam abusado dessa prerrogativa. Ou seja, no argumento de
Ottoni, as províncias mais civilizadas não deveriam abrir mão da
descentralização em favor das províncias menos civilizadas.
Devemos deslocar para dentro do argumento de Ottoni e de Tavares Bastos o
conceito de federalismo a fim de precisarmos seu sentido político. O conceito
de federalismo envolve a idéia de que a província possui interesses que lhe
dizem respeito exclusivamente. O pacto federativo deve conceder liberdade às
províncias para marcar os fins e os meios a serem atingidos. No conceito de
federalismo, essa liberdade é fundamental, pois é ela que assegura que esse
interesse provincial se manifeste plenamente. O poder central não deve, para os
federalistas, introduzir valores estranhos à província. A prosperidade comum,
segundo os federalistas, nasce da busca de cada província em satisfazer suas
políticas. Nesse sentido, para Ottoni e Tavares Bastos, as províncias mais
civilizadas não devem restringir sua liberdade provincial em nome de valores
que dizem respeito a uma realidade estranha a seus interesses. Em seu
argumento, as províncias menos desenvolvidas desempenham o mesmo papel descrito
por Lino Coutinho anteriormente: da mesma maneira que alguns indivíduos não são
bem-sucedidos na realização de seus interesses, o pacto federativo deve
permitir que as províncias mais capazes se imponham. Um dos valores que reagem
ao arranjo descentralizador é a competição, bem como sua inevitável
desigualdade. Nesse sentido, considero que a compreensão do debate entre
centralizadores e federalistas no século XIX no Brasil passa, necessariamente,
pela compreensão do conceito de interesse provincial e da maneira pela qual
essas correntes avaliaram esse conceito.
CONCLUSÃO
Neste artigo, busquei identificar o conteúdo da idéia de interesse provincial e
como este interage com a idéia da formação do Estado-nação entre
centralizadores e federalistas. Assinalar o vínculo entre o interesse de grupos
sociais e de províncias no debate entre centralizadores e federalistas é um
elemento de grande importância29. O que falta conhecer é como cada corrente
política avaliou o papel desses interesses na construção do Estado-nação.
No caminho percorrido, podemos assinalar que, para os federalistas, é a partir
dos interesses, característica do cidadão ativo, e de sua dinâmica que o
Estado-nação deve ser montado. Esse cidadão ativo se encontra mais presente nas
províncias mais civilizadas. Nesse sentido, o pacto federativo deve partir das
províncias mais civilizadas para o centro. O movimento dos atores políticos -
que mais tarde vão se opor à política centralizadora - caminhava no sentido de
adequar a descentralização às regiões mais civilizadas. Esse movimento político
objetivo, como assinalava Alves Branco em seu relatório de ministro da Justiça,
era fazer recuar esses chefes políticos turbulentos. Como fazê-lo?
A corrente federalista operou com o Ato Adicional uma redefinição politicamente
significativa na idéia de federalismo. O debate político em torno do Código do
Processo apresentou a idéia de federalismo como uma política que deveria
descentralizar o poder, colocando-o mais próximo ao cidadão. O Estado colonial
era visto como uma máquina política estranha ao cidadão ativo. Nesse sentido,
descentralizar o poder envolvia despertar o cidadão para a importância de sua
participação nos assuntos públicos de tal maneira que seus interesses fossem
combinados com o bem público.
Com o Ato Adicional, essa dimensão é posta em segundo plano. Para os
federalistas, a emergência dos conflitos armados, com sua inevitável malta
turbulenta, a partir da promulgação do Código do Processo, exige uma
redefinição da idéia de federalismo. O ator principal do federalismo não será
mais o cidadão ativo, localizado nos municípios, mas o Legislativo provincial.
As elites políticas situadas no Legislativo vão comandar a disseminação do
poder pela sociedade.
A ação desse Legislativo provincial apontou para a direção do esvaziamento das
figuras centrais do Código do Processo: o juiz de paz e o júri. As atribuições
destes são esvaziadas em favor do juiz de direito, que com o Ato Adicional
passa a ser controlado por esse Legislativo. A própria Câmara Municipal passa a
ser controlada pelo Legislativo provincial, com a criação da figura do
prefeito. Se pensarmos que essa ação de esvaziamento não era coordenada,
podemos supor, a partir de seu sentido inicial, que atingiria os demais cargos
escolhidos no município - o promotor e o juiz municipal.
Ao mesmo tempo que os liberais moderados operavam essa redefinição do conceito
de federalismo, outro movimento intelectual era realizado: a idéia de federação
era apresentada de maneira distinta da idéia de confederação. No começo da
década de 1830, as inovações operadas no contexto político norte-americano eram
percebidas no debate político brasileiro. O conceito de federalismo não
envolvia a noção de que os Estados-membros do pacto fossem soberanos. Em
contrapartida, emerge como aspecto central a idéia de que as províncias
possuíam negócios particulares, interesses, necessidades provinciais. Para que
tais assuntos fossem atendidos, era necessário que o Legislativo provincial
fosse o órgão encarregado de adaptar as leis nacionais à realidade local. Na
formulação dessa perspectiva, a corrente federalista mobilizava a idéia de
interesse: as províncias - tal como o cidadão ativo no controle da casa -
velava por seus interesses de tal maneira que estes eram forjados internamente,
sem referência ao interesse da nação. Esse era o resultado do conflito entre os
vários interesses provinciais. O conflito deveria ocorrer dentro de limites
pacíficos, mas era essa dinâmica conflituosa que impulsionava o desenvolvimento
nacional e impedia a possibilidade de arbítrio do poder central.
Busquei destacar que as correntes federalistas favoráveis ao Ato Adicional
empreenderam uma resistência às leis centralizadoras com base nas idéias acima
delineadas. O pensamento federalista reconhecia que o Ato Adicional havia
permitido certas leis absurdas; algumas das medidas tomadas por legislativos
provinciais contrariavam as leis nacionais. No entanto, tal fato não
justificava que fosse tolhida a autonomia das províncias mais civilizadas.
Nestas, em razão do maior nível de civilização existente, a promulgação das
leis absurdas não se manifestava da mesma forma que nas províncias menos
civilizadas. Para os federalistas, o pacto federativo era pensado a partir do
interesse das províncias mais civilizadas. A idéia de uma ação que procurasse
intencionalmente regular esses interesses a partir de valores referidos à idéia
de Estado-nação surge aos federalistas como uma via arbitrária e contrária aos
interesses provinciais.
NOTAS
1. Ver, por exemplo, Torres (1961).
2. Idéia de conceito pensada a partir de Koselleck (2006).
3. Ver Plano e Greenberg (1965), Riker (1973), Levi (1986), Bulpitt (1996) e
Grant (1996).
4. Sobre o processo histórico norte-americano que compreende dos Artigos da
Confederação até a Convenção da Filadélfia, ver Kramnick (1993) e Storing
(1981).
5. A historiografia mais recente tem ressaltado que a idéia de que, com a
Convenção da Filadélfia, o poder central passa a dominar as identidades
regionais é um equívoco. A própria persistência da escravidão nos estados do
sul aponta para a força política dos Estados e para a limitação dos poderes do
governo nacional. O reforço do poder central e a mudança do modelo
confederativo para federativo constituíram um lento processo histórico que
começou em 1787. Ver Greene (2006a; 2006b), Pamplona (2003, especialmente o
capítulo 3) e Grant (1996).
6. As citações foram retiradas do tomo I, que foi publicado em 1832. A inovação
norte-americana ainda não estava inteiramente clara para o debate político
francês. O dicionário da Academia Francesa, em sua edição de 1832-1835, ainda
definia "federal" utilizando a referência da confederação: Féderal qui rapport
à une conféderation. Por sua vez, o termo "federativo" estava ainda mais
associado a confederação: Fédératif. De l´association politique de plusieurs
États, unis entre eux para une aliance général, et soumis en certains cas à des
déliberations communes, mais dont chacun est regi par ses lois particulières.
7. Emenda apresentada pelo deputado Antonio Ferreira França, em 17 de setembro
de 1823.
8. Sobre o federalismo pernambucano, ver Mello (2004).
9. "A assembléia declara, deste modo, que jamais se adotaram planos financeiros
que retardem como até agora a marcha do engrandecimento de cada uma das
províncias: diz mais, que os empregados públicos serão em regra tirados dos
próprios cidadãos: estes mais ligados, mais interessados pelo solo onde exercem
jurisdição, pois é seu país natal; serão mais pontuais, mais ativos, e
vigilantes não cansarão de promover a pública prosperidade" (Montezuma, sessão
da Câmara dos Deputados, 17 de setembro de 1823, p. 155; ênfase do autor).
10. Uma análise extremamente esclarecedora do funcionamento do juiz de paz, com
a promulgação do Código do Processo, pode ser encontrada em Flory (1986) e em
Velasco (2002).
11. "Finalmente, pode-se estabelecer como regra, apesar de uma ou outra
exceção, que todo poder, cuja responsabilidade está longe do foco das suas
ações, é infalivelmente mais, ou menos, arbitrário e por conseqüência sempre
pesado aos Povos. Não será assim com o regime federativo. As autoridades
escolhidas pelo mesmo Estado onde tem de exercer as suas funções vem a
responsabilidade iminente, como Dâmocles tinha a espada que o devia punir
pendente por um fio sobre a sua cabeça" (Astro de Minas, 28/6/1832).
12. Sobre a vida de Evaristo da Veiga, ver Sousa (1988a).
13. Sobre o arranjo institucional do Ato Adicional, ver Carvalho (1998) e
Dolhnikoff (2005).
14. Ver parecer sobre a Reforma da Constituição apud Pinto (1983:449-470).
15. Ver emendas aprovadas pelo Senado ao projeto da Câmara dos Deputados, Pinto
(1983:476-477).
16. O projeto da chamada Constituição de Pouso Alegre encontra-se em Sousa
(1988b).
17. Ver Alves Branco, relatório de ministro da Justiça (1835:18-19), ou Limpo
de Abreu, relatório de ministro da Justiça (1836:30-31).
18. Ver Alves Branco, relatório de ministro da Justiça (1834:22).
19. Ver Limpo de Abreu, relatório de ministro da Justiça (1836:34), e Alves
Branco, relatório de ministro da Justiça (1834:23).
20. Efetuei uma análise dos sentidos do termo civilização presentes no debate
entre centralizadores e federalistas no capítulo 5 de minha tese de doutorado.
Nesse capítulo, proponho o conceito de civilização/sertão como um instrumento
de análise para a reflexão política do século XIX. Ferreira (1999) efetuou uma
análise relevante do tema civilização no debate entre Tavares Bastos e Visconde
do Uruguai, especialmente nas pp. 125-144.
21. Ver Fernandes (1975, especialmente os três primeiros capítulos) e Werneck
Vianna (1991; 1996; 1997).
22. A primeira moção apresentada para as reformas constitucionais que viriam a
ser o Ato Adicional foi apresentada em 6 de maio de 1831. Ver Pinto (1983:443).
23. Ver Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 17 de maio de 1831, p. 48.
24. Ver Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 17 de maio de 1831, p. 47.
25. Ver Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 17 de maio de 1831, p. 48.
26. Ver Marinho (1978:20).
27. Podemos perguntar: de onde Evaristo retirou tais idéias? Muito
provavelmente de Adam Smith, se não diretamente, por meio de algumas das
passagens difundidas por um contemporâneo seu, José da Silva Lisboa. O ponto
que, a meu ver, deve ser destacado na passagem anterior, e que justifica que se
utilize como referência o pensamento de Adam Smith, reside na relação entre um
aparente vício e o desenvolvimento da sociedade. Albert Hirschman (1979)
destaca, em seu trabalho, o fato de que uma das principais contribuições de
Adam Smith, no campo das idéias, foi tornar paixões anteriormente consideradas
vício em qualidades que levam à melhoria das condições sociais. E o fez, em
primeiro lugar, substituindo a expressão vícios privados, usada por Bernard
Mandeville em The Fable of the Bees, por expressões quase neutras como vantagem
ou interesse. Em segundo, por meio de sua obra mais importante, A Riqueza das
Nações, Adam Smith apresenta os homens agindo exclusivamente no "desejo de
melhorar suas condições"; é o interesse, ou seja, uma motivação econômica que
alimenta a sociedade. Nas palavras de Hirschman (ibidem:103), "[...] os
impulsos não econômicos, por mais poderosos que sejam, se alimentam dos
impulsos econômicos e só fazem reforçá-los, estando eles assim privados de sua
existência independente anterior". Não se trata de imputar a Evaristo uma
teoria complexa sobre os sentimentos morais, como está presente em Adam Smith,
mas sim de apontar a presença da idéia de que são os interesses egoístas do
indivíduo por seu bem-estar material que movem a sociedade em direção ao
progresso.
28. A polícia judiciária dizia respeito à repressão e à prevenção de delitos,
enquanto a polícia administrativa tratava da salubridade dos lugares, estradas,
feiras, mercados públicos etc. Ver a definição de Lopes Gama, sessão do Senado,
26 de julho de 1839, p. 381.
29. Aspecto estabelecido por Lenharo (1993), Fragoso (1992) e Mattos (1994;
1999; 2005).