Padrões de qualidade e segurança alimentares no terreno institucional
brasileiro
INTRODUÇÃO
Estudiosos das ciências sociais abordam o tema dos mercados como uma construção
político-cultural (Fligstein, 2001a, 2001b; Fligstein e Mara-Drita, 1996;
Bourdieu, 2005), em particular o tema dos mercados alimentares (Steiner, 2006;
Garcia-Parpet, 2003). Na leitura desta corrente - a Nova Sociologia Econômica
(NSE) -, os mercados precisam de regras que são reforçadas pelo Estado para
funcionar.
Questões como a emergência de instituições políticas e econômicas mobilizam
também os autores próximos do paradigma da escolha racional; esse é o caso da
Nova Economia Institucional (NEI). Nessa abordagem, os pesquisadores estão
preocupados com a origem, a difusão e a estabilidade de novas formas
organizacionais; eles veem o processo de institucionalização como difusão e
manutenção de conjuntos de significados (Acheson, 1994; North, 1991). A
referência ao modelo do ator racional implica que os atores coletivamente
produzam instituições norteados pelos próprios interesses (Hall e Taylor,
2003). Para essa corrente, as instituições que permanecem são as mais
eficientes, argumento que pode ser estendido às análises disponíveis sobre a
distribuição de alimentos: os autores leem o aumento da atuação privada
(supermercados e indústria agroalimentar) como algo inevitável e necessário; o
mesmo vale para a fragilidade das Centrais de Abastecimento (Ceasas), um
projeto estatal no Brasil (Mainville et alii, 2005; Reardon e Farina, 2002).
Para a NEI, nos momentos de crise, os resultados subótimos seriam substituídos
por novos resultados buscados por atores que já têm interesses e preferências
previamente dados (Théret, 2003).
A leitura da NSE discorda quanto à adequação do modelo do ator racional para
explicar os fenômenos do mercado. Pesquisadores dessa corrente exploram o papel
de instituições preexistentes na criação de novos arranjos institucionais.
Segundo Fligstein (1990; 2001a; 2001b) e Bourdieu (2005), as instituições
vencedoras refletem, antes, um ambiente conflituoso e a distribuição de poder
na sociedade. As novas regras são o resultado de um processo político-cultural
complexo, o qual produz acordos compartilhados que permitem os intercâmbios
econômicos e produzem capacidades regulatórias para o Estado. As instituições
preexistentes constrangerão e capacitarão os atores a se engajar em um
comportamento cooperativo, e são as práticas culturais, mais do que os
interesses (conscientemente calculados), que ditarão os acordos (Fligstein e
Mara-Drita, 1996). Essas práticas estruturam o que é possível em uma dada
situação, eliminando determinadas possibilidades e estabelecendo que ações são
"razoáveis" (Bourdieu, 1996). Os contornos das instituições e organizações
especificam quais atores podem propor e negociar acordos e como tais
negociações se realizam (Skocpol, 1996), o que fornece às instituições um
modelo de path dependencyem que arranjos prévios servem de negociação para
novos parâmetros e arranjos (Fligstein e Mara-Drita, 1996). A NSE propõe que os
interesses dos atores não são fixos e que, em situações sociais fluidas, é
possível que uma nova concepção de interesses tome forma. Como veremos, no
Brasil e em outros países de baixa renda (PBRs), nas décadas de 1980 e de 1990,
houve uma reversão de tendências no setor alimentar acompanhando mudanças
ocorridas nos mercados europeu e norte-americano. Mudanças no varejo alteraram
profundamente o atacado e também as condições enfrentadas pelos agricultores
familiares (Reardon et alii, 2003; Reardon e Berdegué, 2002).
Neste artigo, a proposta é mobilizar a NSE e aplicá-la ao problema da
construção das instituições do mercado alimentar. Seguimos o caso do
abastecimento alimentar brasileiro, em particular das mudanças institucionais
na distribuição de frutas, legumes e verduras (FLVs), à luz da abordagem
político-cultural da NSE1 (Wanderley, 2002). Apontamos o papel da interatuação
Estado e mercado, seja ao estimular determinados padrões, seja ao abandonar
outros (Fligstein, 2001b).
O modelo de abastecimento alimentar para FLVs vigente hoje no Brasil foi
pensado e executado na década de 1970, em uma perspectiva intervencionista e
durante o regime militar. As Centrais de Abastecimento constituem o marco
regulatório do abastecimento alimentar no país, sendo encarregadas da
distribuição dos hortifrutigranjeiros. Essas empresas estatais assumiram, a
partir de então, o papel de intermediação e de ponto de encontro entre
produtores e seus clientes (atacadistas, supermercados, restaurantes, hotéis,
entre outros).
Nas últimas décadas, ocorreu uma rápida transformação no setor de varejo
alimentar nos países denominados em desenvolvimento, fenômeno acompanhado pela
consolidação e pela multinacionalização do setor supermercadista (Reardon,
Timmer e Berdegué, 2004). Houve uma mudança de mercados locais e fragmentados -
mercados de bairro, mercearias, pequenos atacadistas - para supermercados
amplos com centrais de compra próprias (Reardon, Henson e Berdegué, 2007). Essa
mudança ocorreu, em primeiro lugar, com produtos secos, depois se estendeu ao
setor de produtos frescos: FLVs, carne, peixe, ovos e leite. Há uma progressiva
integração do mercado de produtos frescos com o surgimento do comércio de longa
distância e o estabelecimento de áreas de produção especializadas (Reardon et
alii, 2003). Essa integração demanda um alto investimento por parte dos
produtores; processo promotor, por um lado, da criação de oportunidades e, por
outro, da exclusão de pequenos produtores em países em desenvolvimento, somado
ao aumento da concentração industrial (Reardon, Timmer e Berdegué, 2004;
Wilkinson, 2004).
Análises do setor próximas à NEI leem o fenômeno como resultado, de um lado, de
demanda de consumidores(as) urbanos(as) que, como trabalhadores(as) em tempo
integral, motorizados(as) e com renda per capitasuperior, necessitam e podem
trocar antigas práticas de cozinhar em casa por refrigeradores abastecidos
mensal ou semanalmente com produtos prontos para o consumo ou pré-processados
(lavados, picados e embalados) (Reardon et alii, 2003); esse pode ser o caso
das FLVs (Wilkinson, 2002). Os atores que parecem melhor responder a essa
demanda - seja da regularidade da oferta, seja da qualidadedos frutos ofertados
- são as grandes redes varejistas (Oosterveer, Guivant e Spaargaren, 2007). De
outro lado, supermercados e indústria agroalimentar alcançaram uma redução
secular nos preços dos alimentos processados (Reardon et alii, 2003).
Vários fatores são oferecidos para explicar a difusão dos grandes
supermercados. Em primeiro lugar, os investimentos diretos estrangeiros (IDEs)
são considerados um fator crucial (Wilkinson, 2004). O incentivo aos IDEs veio
das redes varejistas europeias, norte-americanas e japonesas. Houve uma redução
das margens de lucro nos países de origem e resultados mais favoráveis nos
PBRs: o exemplo do Carrefour, na Argentina, com margens de lucro multiplicadas
por três em comparação com as margens na França. Um segundo fator trata da
revolução na estrutura logística de compra trazida pela ECR (efficient consumer
response- resposta eficiente ao consumidor): gerenciamento de entrada e saída
de mercadorias que minimiza os controles manuais e utiliza internet e
computadores para controle de estoque, o qual aprimorou a coordenação entre
fornecedor e varejista (Reardon et alii, 2003).
Nessa leitura, as Centrais de Abastecimento no Brasil foram deixadas para trás
por sua falta de eficiência: incapacidade de atender a demanda e insuficiência
logística; acrescenta-se a isso alto índice de perdas, embalagens inadequadas e
armazenamento deficiente (Mainville et alii, 2005). No entanto, falta aos
autores da NEI explicar de onde surgem novas instituições e como se tornam
reconhecíveis como instituições apropriadas (Fligstein e Mara-Drita, 1996).
O foco deste artigo são os padrões de qualidade e segurança alimentar, por se
tratar de um tema crucial para a distribuição de alimentos no momento atual.
Nas últimas duas décadas, esses padrões para produtos alimentares surgem como
tema central na agenda internacional por dois motivos: 1) o fato de produtos
frescos (laticínios e FLVs) aparecerem como alternativa de renda para pequenos
produtores graças ao valor agregado superior e à relativa ausência de economias
de escala no setor (Reardon e Berdegué, 2002:371); 2) o setor de alimentos
processados emerge como uma nova fonte potencial de exportação para países em
desenvolvimento, como o Brasil. Entre os desafios para que esses países
participem do mercado mundial está o de atender aos padrões de qualidade e
segurança alimentares cada vez mais exigentes. A mudança na exigência está
relacionada aos avanços científicos associados aos riscos à saúde, às melhorias
na tecnologia do processamento alimentar e à cobrança do consumidor por padrões
de segurança sanitária (Athukorala e Jayasuriya, 2003).
A NSE fornece uma estrutura analítica das condições sob as quais os padrões de
qualidade e segurança alimentares privados emergiram e que ambiente deu origem
a eles. Neste artigo, o objetivo é sugerir caminhos alternativos ao
entendimento da interatuação Estado e mercado na nova conformação do mercado de
FLVs a partir da década de 1980. Argumentamos que os padrões de qualidade e
segurança alimentares não são fenômenos neutros; a própria definição desses
termos exprime disputas culturais.
A análise exposta neste artigo implica que a NSE pode oferecer contribuições ao
entendimento do processo de institucionalização e de construção do mercado
alimentar. Os momentos de construção de instituições acontecem quando uma crise
social, econômica ou política ameaça os arranjos institucionais antes
estabelecidos (Fligstein, 2001b), como é o caso do Brasil no período da
estagflação na década de 1980 e no novo ambiente da década de 1990 (Pereira,
1997; Marques, 1997). Nessas condições, atores coletivos estratégicos podem
agir como empreendedores institucionais e tentar forjar novos arranjos. Os
atores poderosos mais organizados podem ser convencidos de que novos arranjos
são de seu interesse, mesmo que esses interesses sejam definidos e redefinidos
no processo de negociação. Isso exige uma "estrutura cultural" que convence os
atores sobre os contornos gerais dos novos arranjos (Fligstein, 2001a; Douglas,
1996; Grün 2003; 2005). No contexto da construção dos padrões de qualidade e
segurança do mercado alimentar, mostramos como a perspectiva da NSE -
enfatizando instituições sociais e relações entre elites e Estados - pode
contribuir para o entendimento dos arranjos atuais.
As propostas da NEI e da NSE não estão necessariamente em oposição. Uma
oportunidade política para criar instituições pode chegar a três resultados:
nenhuma nova instituição, resultados racionalmente negociados (Acheson, 1994)
ou a criação de uma nova estrutura cultural sob a qual papéis e regras são
redefinidos (Fligstein, 2001b). Mesmo quando os acordos se realizam por meio da
negociação racional eles estão enraizados no contexto social (Granovetter,
2003), em que há distribuição de poder e atores organizados (Bourdieu, 2005).
O artigo está dividido em três seções. Na primeira seção, são apresentados os
argumentos da NEI mobilizados no setor agroalimentar e a alternativa de leitura
a partir dos autores da NSE. Em seguida, são situados os termos do debate da
crise econômica da década de 1980, a revisão do papel do Estado e a origem dos
padrões de qualidade e segurança alimentares. Na segunda, é mostrada a
interatuação Estado e mercado no Brasil para esse setor a partir do histórico
da crise que atingiu as Ceasas. Em seguida, o ambiente legal que permitiu tanto
a entrada das redes varejistas multinacionais no país quanto o processo de
concentração via incorporação de pequenas e médias redes supermercadistas é
apontado. Por fim, são analisados aspectos da construção dos padrões de
qualidade e segurança a partir do exemplo da distribuição do tomate no Brasil.
OS NOVOS INSTITUCIONALISMOS E A CRIAÇÃO DE INSTITUIÇÕES
Ao analisar o mercado, os novos institucionalismos próximos da escolha racional
investigam a geração de instituições e os efeitos destas sobre as decisões e as
performanceseconômicas (Acheson, 1994; North, 1991). Há duas formas de obtenção
de bens/serviços por uma dada empresa: comprando de outras firmas no mercado ou
produzindo-os internamente; oposição denominada hierarquia xmercado (Acheson,
1994). Essas decisões implicam dois tipos de transações: as dentro da própria
firma, que produzem custos de transação internos (honestidade dos empregados e
confiança neles, graus de educação, práticas contábeis, entre outros) e a
compra no mercado envolvendo os custos de transação externos (precisão na
informação sobre preço, fornecedores regulares, contratos seguros, confiança na
qualidade do bem, entre outros).
Os custos de transação externos são também influenciados pela eficiência de
mercado, o que diz respeito ao atendimento das preferências dos consumidores e
aos preços dos bens, se eles são adequados ao mercado. Se há ineficiência, os
produtores não entram no mercado com o mixde produtos demandados, ocorrem
superprodução, falhas e uma rápida flutuação de preços. Aesse modelo a NEI
acrescenta um conjunto de fatores sociais, culturais e econômicos que podem
produzir os custos de transação em primeiro lugar (Acheson, 1994)2. North
(1991) constata que os altos custos de transação internos e externos resultam
em firmas de pequena escala, com horizonte de tempo curto e pequeno capital
fixo; casos considerados típicos dos países em desenvolvimento.
Conforme os autores da NEI, os padrões de qualidade e segurança alimentares
(G&S, em inglês grades and standards), até há pouco tempo, eram
considerados assunto exclusivamente de domínio público, e não objeto relevante
estrategicamente para o setor privado3. Os G&S nasceram com o mercado de
commodities, geralmente como padrões públicos para reduzir custos de transação
e aumentar a eficiência, permitindo a expansão do comércio4. Os padrões foram
considerados bens públicos necessários na presença de imperfeições e de
assimetrias informacionais, as quais podem causar falhas no mercado. Os debates
recentes com relação à Organização Mundial do Comércio (OMC) focam os padrões
como potenciais barreiras não tarifárias erigidas por governos como
bloqueadoras de importações ameaçadoras para a produção doméstica (Reardon e
Farina, 2002; Wilkinson, 2004).
SegundoaNEI, os padrões de segurança e qualidade desempenham papel fundamental
no sentido de mitigar os custos de transação na cadeia alimentar (Holleran,
Bredahl e Lokman, 1999). No caso dos produtos alimentares frescos, por sua
característica particular de perecibilidade, existem restrições técnicas
particulares que exigem o uso de tecnologias específicas, acentuando a
importância de G&S previamente estabelecidos (Mainville et alii, 2005).
Os padrões de qualidade e segurança alimentares privados são anunciados como a
linguagem única para a circulação de produtos em um ambiente diagnosticado pela
NEI como cada vez mais homogeneizado. O pressuposto é a exigência cada vez
maior dos consumidores por esses padrões, além da alta concentração de mercado
promovida pelas redes varejistas (as quais atendem de maneira eficiente os
desejos do consumidor) em plano mundial (Athukorala e Jayasuriya, 2003).
Farina e Reardon (2000) destacam como singularidade do caso brasileiro uma
rápida concentração em cadeias de produtos-chave e, consequentemente, a
exclusão de pequenas firmas e produtores com o rápido crescimento de economias
alimentares de exportação e domésticas. Os padrões privados desempenham um
papel fundamental no que esses autores denominam de um "boomcom exclusão" na
economia alimentar (Farina e Reardon, 2000). Reardon e Berdegué (2002:385)
anunciam que a distinção entre mercado global/de exportação e mercado local/
doméstico está prestes a desaparecer, sugerindo às agências de fomento, aos
programas de desenvolvimento e às políticas públicas em geral a urgente
necessidade de articulação com supermercadistas gigantes caso queiram encontrar
alternativas para pequenos produtores.
Analisando o caso do Mercosul, Reardon e Farina (2002) afirmam o contexto das
trocas comerciais, das quais os países do bloco (Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai) participavam na década de 1990, como exigente com relação a
estratégias específicas das firmas para sobrevivência no mercado: era
necessário diferenciar os produtos e identificar nichos. Nesse contexto, os
G&S eram fundamentais para tal diferenciação. Entretanto, onde o setor
agroalimentar desenvolveu estratégias privadas de diferenciação dos produtos,
os governos do Mercosul (individual ou coletivamente) se atrasaram na criação e
na harmonização dos G&S. Em alguns casos, padrões públicos até existiam,
mas sua forma e/ou seu nível de especificidade não alcançavam as necessidades
dos atores do sistema agroalimentar privado; eram antes percebidos como
obstáculos às negociações (ibidem:15).
A rede varejista constrói padrões de segurança e qualidade que superam, segundo
essa corrente, os padrões públicos tradicionais. A tendência observada a partir
da década de 1990 nos países ocidentais é a de venda altamente padronizada e de
empacotamento com selos identificadores da rede varejista (Oosterveer, Guivant
e Spaargaren, 2007). Conforme os autores, o Brasil acompanha essas tendências
mundiais de alimentos mais saudáveis na cadeia de distribuição.
Questionando a teoria da escolha racional, os autores da NSE - ao retomarem
Durkheim e Weber - analisam como as instituições organizam as relações sociais
e as atividades econômicas (Raud-Mattedi, 2005:130). Isso ocorre não apenas
porque as instituições regulamentam os conflitos de interesse, mas sobretudo
porque permitem a constituição de novos interesses (Fligstein e Mara-Drita,
1996). Com relação à interação entre instituições e comportamentos individuais,
autores como Bourdieu, Fligstein e Douglas enfatizam a dimensão cognitiva das
instituições. Elas forneceriam esquemas, categorias e modelos cognitivos
indispensáveis à ação, não especificando somente o que se deve fazer, mas
também o que se pode imaginar fazer em um contexto dado. Influenciam não apenas
os cálculos estratégicos dos indivíduos mas também suas preferências (Raud-
Mattedi, 2005). A ênfase é sobre a natureza interativa das relações entre as
instituições e a ação individual: para agir, o indivíduo utiliza os modelos
institucionais disponíveis ao mesmo tempo que os confecciona (Douglas, 1996).
Na sociologia econômica weberiana, a relação mercantil é uma relação social na
medida em que os atores devem levar em conta não somente o comportamento dos
outros atores econômicos mas também o contexto sociopolítico. São os interesses
próprios que orientam a atividade econômica e também a ação futura e previsível
de terceiros e"'ordens' que o agente conhece como leis e convenções 'em vigor'"
(Weber, 2004:420).
Para a NSE as instituições afetam a imagem de si, a identidade do ator
econômico, configurando visões de mundo que legitimam determinados fins e meios
da ação social (Théret, 2003). A legitimação de certos arranjos institucionais
pode ser explicada pela expansão do papel regulador do Estado que impõe várias
práticas às instituições, conforme proposta de Fligstein (1990; 2001b), ou
ainda a crescente profissionalização de esferas de atividade engendrando
comunidades profissionais dotadas de autoridade cultural suficiente para impor
a seus membros certas práticas (Dimaggio e Powell, 1991). Há aqui um rompimento
com a dicotomia instituições/cultura. Bourdieu (2005), retomando Weber, afirma
que há uma intersecção entre o campo político, jurídico e econômico; as leis
são estabelecidas pelo Estado, pressionado pelos atores dominantes.
Com relação ao caráter da eficiência, para a NEI, quanto mais ganhos
resultantes da troca, mais a instituição será robusta, de modo que sobrevivem
as instituições mais eficientes. Para a NSE, as instituições refletem a forma
de distribuição de poder em uma dada sociedade e são práticas culturais (Hall e
Taylor, 2003). A análise da NSE nos permite observar como se confere a um
arbitrário cultural, como os padrões de qualidade e segurança alimentares,
"toda a aparência do natural" (Bourdieu, 1993:50). Nesse sentido, as análises
do sistema agroalimentar com o enfoque da NSE chamam a atenção para os
processos sociais e políticos mobilizados na construção histórica de mercados,
como o dos morangos de mesa (Garcia-Parpet, 2003) na França. Outra corrente
teórica que se encaixa na NSE é a sociologia relacional, inspirada em Simmel,
que foca as atribuições dos diversos atores (produtores, intermediários,
consumidores) e como os critérios que autorizam a circulação de bens e serviços
no mercado podem surgir de pontos diferentes da cadeia (Cochoy, 2002). Esses
trabalhos vislumbram os distribuidores que põem em movimento lógicas que se
destinam a favorecer a circulação por meio da homogeneização dos produtos
alimentares por um lado e, por outro, mostram os produtores pressionando por
uma identificação do produto heterogêneo, forçando o mercado a lidar com um
produto com uma pluralidade de qualidades (Dubuisson-Quellier, 2003).
Dubuisson-Quellier mostra como, no caso dos moluscos franceses, em uma situação
de indeterminação do mercado, os distribuidores estabeleceram a lógica da
homogeneização. Voltaremos ao tema a seguir.
Crise, Reforma do Estado e a Circulação dos Alimentos
Aqui é ressaltado o período de 1940 a 1960, dominado pelo paradigma do Estado
de bem-estar social. A maioria dos economistas do desenvolvimento defendia como
os governos, em mercados que funcionassem de maneira imperfeita, tal qual os
dos países em desenvolvimento, deveriam comportar-se como guardiões sociais e
que aos burocratas cabia formular e programar modelos de planejamento. A
coordenação e a administração do setor público eram consideradas algo gratuito.
Considerações sobre eficiência não deveriam ser obstáculos caso a empresa
pública fosse uma possibilidade de escolha para a promoção do desenvolvimento
de um país (Krueger, 1990).
Na esteira da inflação, do desemprego e da corrupção das duas décadas
seguintes, os analistas apontam as debilidades institucionais, financeiras e
organizacionais do setor público (Pereira, 1997). Krueger considera o fracasso
governamental superior aos fracassos do mercado, enumerando falhas de omissão e
de comprometimento. Essa autora afirma que os programas de investimento
governamentais são ineficientes e perdulários, assim como o controle
governamental sobre atividades do setor privado é difuso e custoso (Krueger,
1990).
A partir daí, constata-se uma nova orientação para a ação governamental: a
ideia da intervenção estatal é substituída pela da eficiência e da eficácia no
setor público. As bases teóricas dessas reflexões podem ser encontradas na NEI:
esses autores defendem a eficiência das estruturas empresariais como motor
explicativo central das formas organizacionais (estratégias de diversificação,
verticalização, redução de custos, ganhos de escala); a eficiência econômica é
central para o entendimento do dinamismo das empresas, que reagem aos sinais de
mercado. Autores como North argumentam que, por razões políticas, o Estado
tende a criar direitos de propriedade que são ineficientes por constranger o
desenvolvimento econômico e contribuir inadvertidamente para o aumento dos
custos de transação para os atores econômicos. North (1991) observa que atores
privados respondem estrategicamente ao crescimento lento da construção de
organizações econômicas que reduzem os custos de transação e melhoram o
desempenho econômico. Para North (ibidem), a própria manipulação dos direitos
de propriedade pelo Estado cria pressões por mudanças organizacionais.
No Brasil, as reformas serão pautadas pela descentralização - fortalecimento da
autonomia administrativa, financeira e decisória do governo local - e pelo
accountability5 - desempenho do serviço público associado à resposta fiscal e
financeira do governo (Pereira, 1997). O modo de administração tradicional da
burocracia foi condenado e o modelo do mercado, anunciado como virtuoso (Grün,
2005).
Há ainda neste momento para os países em crise inflacionária uma forte
dependência do financiamento externo; a reforma proposta passa a ser modelada
pelas agências multilaterais: Banco Mundial, Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros
(Tavares de Almeida, 1999). A reforma do Estado só existiria se passasse pela
redução da influência do governo no mercado e pelo aumento da eficiência
burocrática, a ideia do "Estado mínimo". As políticas elaboradas no Consenso de
Washington foram posteriormente aplicadas no âmbito da OMC: políticas
macroeconômicas restritivas, liberalização do comércio internacional e dos
investimentos, privatização e desregulamentação, defesa da melhoria na entrega
de serviços por intermédio da terceirização, entre outras (Pereira, 1997).
De fato, no Brasil, a partir da década de 1980, as instituições privadas
passaram a ser vistas como a solução para os problemas do aparato público
(Marques, 1997). Dentro da agenda de reformas estabelecida para tal período, a
privatização das empresas públicas foi o item que mais avançou no país (Tavares
de Almeida, 1999). No setor de distribuição alimentar, observaram-se o
fortalecimento de instituições privadas (supermercados) e o sucateamento das
instituições públicas (Ceasas); as últimas estão incluídas na lista do Plano
Nacional de Desestatização.
As análises apontam para a falta de infraestrutura das Ceasas, sua debilidade
logística e ineficiência para responder às demandas da rede supermercadista e
dos novos consumidores (Mainville et alii, 2005). No momento atual, os termos
apresentados para a chamada "Reforma do Estado" e o caminho das privatizações
são questionados (Pereira, 1997). O caráter de evidência da eficiência das
instituições privadas está em pleno debate: o movimento chamado de
financeirização6 foi questionado, no caso americano, por Fligstein (2001a); no
caso brasileiro, por Grün (2003); no caso mexicano, por Hisham Aidi
(apudPereira, 1997)7.
O Estado, outrora o guardião da sociedade, passa a ser analisado em concepção e
linguagem financeiras - isto é o que Fligstein (2001a; 2001b) define como uma
"concepção de controle". O autor (2001a) mostra a emergência da concepção de
controle da financeirização nos Estados Unidos como resposta à crise econômica
da década de 1970. No mesmo sentido, a emergência do Mercado Comum Europeu
(MCE) ocorre como resposta à crise do início dos anos 1980 na Europa, a chamada
"Eurosclerosis" (Fligstein e Mara-Drita, 1996).
Fligstein (2001a) observa, nos Estados Unidos, como a aderência por parte das
empresas ao sinal do "valor acionário" não as tornou mais lucrativas que
outras, assim como também não promoveu a recuperação de suas posições
anteriores no mercado, perdidas para o Japão e para a Europa (eletrônicos,
automóveis e produtos de luxo); as empresas financeiramente reorganizadas
serviram para transferir riqueza dos trabalhadores aos dirigentes e aos
acionários. Além disso, a "desregulamentação" (expressão contraditória para
esse autor) não significou o fim da intervenção do Estado no mercado, ao
contrário, o Estado forneceu a infraestrutura institucional necessária à
maximização do valor acionário por sua regulação dos mercados financeiros
(incentivos fiscais e financiamento das fusões).
O abastecimento alimentar brasileiro é um exemplo ímpar desse questionamento. O
processo chamado de globalização tem aumentado o número de conexões entre os
diversos países em termos do intercâmbio de bens, tecnologia, serviços e
difusão dos veículos de mídia de massa. Isso aconteceu com o processo de
concentração da indústria alimentar e do varejo. As transformações foram
iniciadas na segunda metade do século XX e aceleradas no coro entoado pelos
países de alta renda para uma abertura dos mercados nesses termos. Nesse
período, agências multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, acompanhadas da
maioria dos países de alta renda, promoveram a agenda do livre-comércio como
panaceia para os males dos países de baixa renda (Popkin, 2006).
A Visão Sociológica dos Mercados
Fligstein e Mara-Drita (1996) observam que a definição corrente do mercado é a
de uma situação social na qual a troca de um bem ocorre e há um mecanismo de
preço que determina o valor dele. Esse mecanismo de preço implica a existência
de dinheiro e a quantidade necessária deste para o pagamento do bem. Retomando
Weber (2004), esses autores acrescentam que isso não especifica como a arena de
troca ou o mecanismo de preço (eles mesmos) operam nem sugere uma estrutura
para as relações sociais que passarão a existir entre fornecedores, produtores,
consumidores e Estado.
A existência do mercado supõe relações sociais elaboradas, que devem surgir
para estruturar a arena de troca. Elas se referem a regras compartilhadas, leis
ou entendimentos coletivos, mantidos pelo costume, por um acordo explícito ou
implícito. As instituições que permitem uma visão sociológica do mercado, na
proposta de Fligstein (2001b), são os direitos de propriedade, as estruturas de
governança, as regras de troca e as concepções de controle. Elas são
apresentadas a seguir a fim de situar o desenho atual do mercado alimentar.
Fligstein (2001a) apresenta uma visão sociológica do mercado na forma de uma
metáfora: a metáfora do "mercado como política", como um "movimento social" em
duas dimensões. Na primeira dimensão, ele rompe com a ideia do ator racional ao
afirmar que "os atores do mercado habitam mundos obscuros, onde nunca está
claro quais ações terão quais consequências" (Fligstein, 2001b:31). As empresas
querem, antes de maximizar seus lucros (já que nenhuma delas sabe quais serão
as consequências de seus atos), montar um mundo estável no qual as regras
objetivam evitar uma guerra aberta, permanecendo em seus nichos8. Nesse
sentido, as maneiras de proceder das empresas mudam de acordo com as decisões
políticas e o direito econômico. Essas "maneiras de proceder" seriam as
concepções de controle: os mercados produzem culturas locaisque definem quem é
um estabilizado e quem é um desafiador; definem, nesse sentido, uma estrutura
social: "Elas [as culturas locais] prescrevem como a competição vai operar em
um dado mercado. Elas também fornecem aos atores estruturas cognitivas para
interpretar a ação das outras organizações" (Fligstein, 2002:15; tradução da
autora).
Para demonstrar essa hipótese, Fligstein (1990) analisa um conjunto de cem
empresas nos Estados Unidos, desde o final do século XIX até a década de 1990,
e mostra que a maneira de evitar a concorrência muda conforme as decisões
políticas, alternando diferentes concepções de controle: no século XIX,
prevalecem os monopólios e os cartéis, as empresas exercem controle direto
sobre os concorrentes - o direct control. Isso acaba com o Sherman Act (1890).
O início do século XX é o momento da ênfase na integração técnica
(verticalização) para limitar incertezas e assegurar economias de escala e
rentabilidade; os profissionais valorizados são os engenheiros, é o período do
manufactoring control. Depois dos anos 1920, há uma ênfase na comercialização,
na reorganização das empresas por produto, na segmentação; é o momento do
marketinge das vendas. A última concepção é a do controle financeiro: no quadro
da desregulamentação financeira, surge uma nova concepção financeira na década
de 1980; o foco é a taxa de lucro máxima ao acionista. As empresas são cotadas
na Bolsa de Valores, e os conselhos administrativos das empresas obedecem ao
valor acionário denominado shareholder value.
As firmas contam com governos e cidadãos para produzir mercados, e sua
habilidade para produzir mundos estáveis depende, em grande parte, desses
relacionamentos (Fligstein, 2001b).
A segunda dimensão da metáfora diz respeito à relação do Estado com o mercado:
a formação deste faz parte da formação do Estado, que apoiou, ao longo do
século XX, nos Estados Unidos, em diferentes ambientes legais, as concepções de
controle predominantes.
Na fase da financeirização, Fligstein (ibidem) aponta a criação da legislação
de proteção ao direito dos acionistas, a existência de práticas contábeis e o
lançamento de oferta de compra. O Estado também promoveu a desregulamentação do
mercado de trabalho e dos transportes rodoviário e aéreo nas décadas de 1970 e
1980 como forma de enfrentamento da estagflação. O governo Reagan propôs uma
nova política de concorrência para fortalecer as empresas nacionais, afrouxando
leis antitrustes e diminuindo o imposto sobre os lucros, medidas que
incentivaram as fusões/aquisições.
Os direitos de propriedade dizem respeito às definições e ao controle de
propriedade. Patentes e práticas de certificação também são direitos de
propriedade, pois dão garantia exclusiva aos portadores das práticas e dos
ganhos dessas designações (Fligstein e Mara-Drita, 1996). Para o mercado
alimentar, nas últimas décadas as tecnologias de informação e comunicação
(TICs), somadas às novas biotecnologias, constituem o novo paradigma
tecnológico em substituição à tecnologia intensiva em capital e energia
(Wilkinson e Castelli, 2000). Abordaremos a Lei de Patentes e a Lei de Proteção
de Cultivares no Brasil para analisar um aspecto dos direitos de propriedade.
A constituição desses direitos é um processo político contestável, no qual
Estados, trabalhadores, comunidades locais, fornecedores e clientes podem
intervir na forma como proprietários podem dispor da propriedade (Fligstein,
2001b). Em todas as sociedades, comunidades locais podem confiscar propriedades
e impedir a livre agência dos proprietários; este é o caso da regulação
ambiental ou das leis de zoneamento (Fligstein e Mara-Drita, 1996). Voltaremos
em breve a esse tema para apresentar o zoneamento agrícola e a produção de
tomates no Brasil.
Estruturas de governança se referem às leis e às práticas informais que situam
os limites da competição legal e da cooperação: leis antitrustes, políticas de
competição, regras sobre formas legais e ilegais de cooperação, como cartel,
joint venturese fusões. Voltamos a elas para falar das mudanças atuais no
mercado alimentar e da emergência das grandes redes supermercadistas no Brasil.
Regras de troca facilitam a substituição pelo estabelecimento de regras sob as
quais as transações são garantidas; definem quem troca com quem; dão a garantia
de que os bens serão entregues dentro de uma ordem e serão pagos promovendo a
circulação por meio da construção de regras mais simples, mais claras e de
menor custo (idem, ibidem:15). Essas categorias conceituais estão ligadas de
diferentes maneiras e estão separadas apenas analiticamente para a compreensão
da construção dos diferentes mercados (ibidem). Voltamos às regras de troca
para falar da construção do mercado das FLVs, da atuação das Ceasas e da
construção dos padrões de segurança e qualidade alimentares. Fligstein e Mara-
Drita (1996) constatam as regras de troca como o item principal na construção
do MCE, apresentado a seguir.
Uma Possível Origem dos Padrões de Qualidade e Segurança
Os padrões de qualidade e segurança alimentares são de duas ordens: pública e
privada. De um lado os padrões nacionais administrados pelo poder público em
diferentes países procuram assegurar aos consumidores que os produtos que
chegam à ponta final da cadeia sejam seguros; busca-se sua "traçabilidade"
desde a produção até a chegada às bancas nos supermercados e feiras. Há também
iniciativas multilaterais, como a criação do Codex Alimentarius9. Os padrões de
qualidade e segurança podem partir da iniciativa privada, como é o caso da ISO
9000. Este é um procedimento internacionalmente reconhecido e que serve como
guia no sentido de estabelecer os G&S (Holleran, Bredahl e Lokman, 1999).
Conforme mostram Fligstein e Mara-Drita (1996) com relação à globalização, em
virtude do processo político-cultural do mercado, os países não estão
convergindo em direção a uma forma única de organização industrial eleita como
"a mais" eficiente. As interações entre empresas e Estados produzem "culturas
produtivas" únicas. De maneira semelhante, para o mercado alimentar, Wilkinson
(2004) mostra que o direcionamento dos IDEs não constitui um movimento único;
tanto os pontos de origem (Estados Unidos, União Europeia (UE) e Japão) quanto
os pontos de chegada desses investimentos (entre eles os países em
desenvolvimento) são marcados por padrões complexos e distintos de interatuação
Estado e mercado. Esses padrões incluem mudanças específicasnas legislações dos
respectivos países no sentido de estimulara entrada dos IDEs como uma variação
dos produtos em foco.
O exemplo da criação do MCE mostra como a globalização não reduz o papel do
Estado. A emergência dos mercados globais depende da cooperação entre as firmas
e os Estados para produzir as regras do jogo. Fligstein e Mara-Drita (1996)
mostram como uma estrutura cultural forneceu as bases para a constituição de
diversos acordos que culminaram na estrutura do MCE.
Em 1985, a UE decide completar a unificação do MCE até 1992. Os objetivos
gerais da reforma foram promover o comércio, aumentar a competitividade e
promover uma grande economia de escopo e de escala, eliminando barreiras não
tarifárias, tais como diferenças em taxas, regulações e padrões de segurança e
sanidade. As diretivas (279 mais duas acrescentadas no final) são relativamente
heterogêneas em seu conteúdo, escopo e importância (ibidem).
Fligstein e Mara-Drita mostram ainda que o mercado desenhado no projeto do MCE
de 1992 tinha como intuito facilitar as trocas para empresas que já estavam
exportando e preservar o poder do Estado de controlar os direitos de
propriedade e governança onde eles já existiam. O MCE não criou uma nova
capacidade regulatória europeia. Tão somente o mercado foi aberto onde suas
indústrias estavam preparadas para essa integração10, o que diz respeito ao
setor de transporte, prestação de serviços, tanto financeiros quanto de
negócios. Uma das hipóteses de Fligstein e Mara-Drita (ibidem) é que os
direitos de propriedade e as estruturas de governança não foram o foco do MCE.
A maioria das diretivas foi orientada para as regras de troca, já que um dos
pontos críticos do MCE foi encontrar uma estratégia de fluxo das negociações na
garantia do estabelecimento da confiança nas trocas: um mercado comum
implicaria um conjunto de regras para todos os atores, conformados a um mesmo
padrão. Se cada Estado preferisse preservar sua soberania e mantivesse os
próprios padrões já desenvolvidos, as negociações seriam restritas (ibidem).
Veremos como a entrada do Brasil no mercado mundial de alimentos difere do
movimento do MCE. Aqui no Brasil, as estruturas de governança e os direitos de
propriedade foram alterados e as regras de troca, mantidas.
Antes de 1980, a negociação sobre a abertura dos mercados no âmbito da UE era
um processo cansativo, já que os acordos eram muito detalhados e exigiam anos
para definir produtos e padrões possíveis. Isso mudou nos anos de 1980 com a
decisão da corte sobre o caso Cassis de Dijon (ibidem). O Tribunal de Justiça
Europeu dispensou a mobilização de padrões próprios para os produtos; todos os
bens e serviços legalmente produzidos por um Estado-membro deveriam ser aceitos
pelos demais. Essa estratégia, denominada "reconhecimento mútuo", tem a
característica fundamental de permitir simultaneamente que os países abram o
comércio para bens e serviços sem comprometer suas próprias definições de
produtos.
A UE resolveu utilizar o reconhecimento mútuo como um princípio das negociações
de mercado aberto. A decisão do caso Dijon tornou possível para os Estados
impedirem a entrada de produtos ou serviços em seus países caso eles sentissem
que padrões de sanidade e segurança estivessem em risco. AUE percebeu que a
abertura do mercado teria de focar a harmonização de padrões de sanidade e
segurança por meio das sociedades. Essa concepção, que Von Sydow (1988
apudFligstein e Mara-Drita, 1996) chama de "nova harmonização", é o
empreendimento para estabelecer padrões coletivos para sanidade, segurança ou
padrões técnicos comuns para todas as nações.
A análise apresentada por Fligstein e Mara-Drita (1996) nos permite sugerir a
possibilidade dos padrões de qualidade e segurança alimentares como uma
construção cultural. Um arranjo prévio do MCE pode ser a inspiração nas
negociações dos parâmetros e arranjos elaborados na América Latina, embora com
uma distinção com relação às instituições em foco. Passemos para a análise mais
detalhada do caso brasileiro dos produtos frescos à luz das instituições
propostas por Fligstein.
CENTRAIS DE ABASTECIMENTO E SUPERMERCADOS: ENTRE ESTRUTURAS DE GOVERNANÇA,
DIREITOS DE PROPRIEDADE, REGRAS DE TROCA E CONCEPÇÕES DE CONTROLE
Apresentamos a seguir o histórico das Ceasas e o terreno institucional para o
estabelecimento dos padrões de segurança e qualidade.
A história da produção e da distribuição de gêneros alimentícios no Brasil é
marcada por crises que exprimem as disputas entre produtores, de um lado, e
atacadistas e distribuidores, de outro. Em todas as situações, o ganho é para
os atacadistas e distribuidores (Linhares e Silva, 1979).
No período das Primeira e Segunda Guerras Mundiais, os atacadistas priorizam a
exportação de gêneros alimentícios para os países beligerantes, e o mercado
interno é atingido por várias crises de desabastecimento; a intervenção do
Estado se dá no sentido de contornar essas crises, mas sempre em caráter
emergencial. Com a expansão industrial, a área dedicada à produção de gêneros
alimentícios voltada para o mercado interno perde terreno para a lavoura
especializada na produção de matéria-prima. No ano de 1918, no quadro da
República Velha, cria-se o Comissariado de Alimentação Pública, primeiro órgão
a marcar a intervenção do Estado no problema do abastecimento. O aumento das
exportações (destaque para arroz, feijão e carne) é acompanhado pelo aumento
estratosférico dos preços em virtude da contenção dos estoques por parte dos
monopolistas da distribuição (idem, ibidem).
Os trustes dos setores de sacaria, tecidos, algodão, açúcar e sal se
aproveitavam dos momentos de crise para aumentar os preços, e os atacadistas
faziam amplos estoques de gêneros alimentícios nos trapiches dos portos do Rio
de Janeiro à espera da alta. O Comissariado foi criado pelo Decreto-Lei
nº13.069/1918. Embora com atuação precária, foi alvo de críticas da elite
comerciante11, incluindo também atravessadores, produtores, além de deputados,
usineiros, charqueadores, fabricantes de bebida e beneficiadores de milho e
algodão. Os críticos defendiam o liberalismo e criticavam o uso de tabelamento
e de racionamento comoum "retorno à Idade Média" (ibidem:46). Com relação às
concepções de controle (Fligstein, 1990) para o caso norte-americano, este
seria o correspondente do período dos cartéis, do controle direto da
concorrência, o direct control.
Houve uma pressão pelo fim do Comissariado e o governo criou a Superintendência
de Abastecimento por meio da Lei nº4.039 de janeiro de 1920, regulamentada pelo
Decreto nº14.027/1920. A Superintendência extingue o controle sobre as
exportações, acaba com o tabelamento de preços e organiza um acordo para o
fornecimento de gêneros alimentícios aos centros urbanos. A liberação da
entrada de produtos estrangeiros, como sal, batata, arroz, feijão, manteiga,
milho e charque, agiliza o comércio de mantimentos por intermédio da criação do
Decreto nº16.633/1924, que amplia os prazos de isenção sobre os gêneros
alimentícios (Linhares e Silva, 1979).
A Superintendência também colaborou na organização de cooperativas e feiras
livres nas principais capitais (idem, ibidem:54). O problema do abastecimento
apontava para a necessidade de criação de uma forma de circulação de gêneros
alimentícios como cereais, hortaliças, carnes. Na Era Vargas, traçam-se os
mecanismos de abastecimento dos principais centros do país. No âmago da crise
de 1929, o lema de Vargas é "produzir para abastecer o mercado interno", com o
intuito de romper os laços de dependência do Brasil com o mercado externo.
Ao ampliar a intervenção do Estado no setor privado, acreditava-se poder
afastar o Brasil da crise mundial e reorganizar a economia brasileira. Melhorar
a distribuição de renda seria o meio de permitir maior consumo interno da
produção (ibidem:82). Cabe destacar que, a partir dos anos 1930, as empresas
estatais desempenharam (por intermédio da substituição das importações) papel
central no processo de industrialização. A partir desse momento, a participação
governamental direta na produção de bens e provisão de serviços cresce
sistematicamente (Tavares de Almeida, 1999).
O processo de industrialização e de urbanização aumenta a demanda por alimentos
frescos. Com a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), em 1965,
multiplica-se rapidamente o volume de hortigranjeiros comercializados nas
cidades. No final da década de 1960, o governo identificou um grande
estrangulamento na distribuição desses produtos. As negociações eram feitas
presencialmente e ao ar livre, sem um local adequado e sem qualquer tipo de
controle: ocorriam perdas, os produtos ficavam ao relento e os caminhões
criavam enormes engarrafamentos nos centros urbanos. O governo criou, então, um
grupo de trabalho, por intermédio do Decreto nº61.391/1967, com a prioridade de
regularizar o comércio de produtos de "primeira necessidade". Para as FLVs,
houve um esforço de modernização de estruturas de comercialização com mercados
regionais, Centrais de Abastecimento e mercados terminais. O intuito era evitar
crises de abastecimento e oscilações de preço. Pelo Decreto nº67.750/1969 foi
criado o Grupo de Modernização do Abastecimento (Gemab), responsável pelos
estudos de viabilidade (Mourão, 2007).
A distribuição de alimentos frescos tem um marco regulatório com a criação das
Centrais de Abastecimento no Brasil, no início da década de 1970, pela Lei
nº5.727 de novembro de 1971. Em maio de 1972, foi criado o Sistema Nacional das
Centrais de Abastecimento (Sinac), pelo Decreto nº70.502/1972, com a prioridade
de reduzir custos de comercialização, organização e ainda melhorar os produtos
e serviços de classificação e padronização (idem, ibidem). Os atores que vão
ocupar as centrais são os atacadistas então atuantes nos mercados públicos
(Linhares e Silva, 1979).
O projeto de mercados atacadistas foi arquitetado no âmbito do I Plano Nacional
de Desenvolvimento (PND), vigente de 1972 a 1974. Em junho de 1974, foi extinto
o Gemab, e suas atribuições foram transferidas para o Conselho Nacional de
Abastecimento (Conab), o qual teve vida curta, sendo suas funções assumidas
pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Para a elaboração dos projetos, o país
conta com a assessoria de organismos internacionais, como a Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês Food and
Agriculture Organization of the United Nations). Nesse período, são contratadas
grandes empresas de engenharia do setor de construção. Segundo Mourão (2007), o
Conab trouxe engenheiros e arquitetos para dirigir as Ceasas. Além do projeto
técnico de construção, esses profissionais assumiriam a direção das Ceasas,
dado o entendimento de que "seria mais fácil a um profissional de engenharia ou
arquitetura entender de comercialização do que um profissional de
comercialização fazer um curso de engenharia" (ibidem:3). Estamos diante do
manufactoring control, conforme Fligstein (1990).
Na primeira metade da década de 1970, foram implementados mercados do produtor
com o intuito de melhorar as condições de comercialização das zonas produtoras.
Na área do varejo, foram criados hortomercados12 com o intuito de
disponibilizar hortigranjeiros a um preço mais acessível. Nesse momento,
estavam em operação 34 Ceasas (áreas urbanas), 32 mercados do produtor (zonas
produtoras) e 157 equipamentos varejistas (26 hortomercados, 50 sacolões13, 59
varejões14, entre outros) (Mourão, 2007). Como observa Tavares de Almeida
(1999), as empresas públicas eram quase sempre mais poderosas do que seus
reguladores. Além disso, era possível constatar a fraqueza dos órgãos setoriais
de regulação, não havia um mecanismo de controle do complexo do setor produtivo
estatal. No final da década de 1970, esse setor era uma "caixa-preta", sendo o
governo desconhecedor do montante de seus ativos e de suas dívidas.
As alterações na economia internacional, depois do segundo choque do petróleo,
trouxeram o ajuste econômico para a pauta do dia; o controle das empresas
estatais se apresenta como medida para enfrentar a crise inflacionária. O
mecanismo mobilizado para tanto foi a criação da Secretaria de Controle das
Empresas Estatais (Sest), com o objetivo de conhecer e controlar os gastos
dessas empresas. Ao longo dos anos 1980, com o crescimento da inflação, o
governo recorreu ao controle de preços e tarifas como parte do esforço de
estabilização (Tavares de Almeida, 1999). Houve uma suspensão de investimentos
também no setor de hortigranjeiros, e a proibição do reajuste de tarifas (como
uma das anunciadas medidas de combate à inflação) implicou a descapitalização
das Centrais de Abastecimento (Mourão, 2007).
O Sinac operava como um intermediador entre as Ceasas tanto nas diretrizes
quanto nas inovações propostas. No Decreto nº93.611/1986, a Cobal transfere o
controle acionário para os respectivos estados e municípios. Em caso de
discordância dos donatários, as Ceasas poderiam ser privatizadas. O processo de
transferência é de responsabilidade do Conselho Interministerial de
Privatização (CIP)15. As Ceasas, a partir do fim do Sinac, experimentaram
destinos diversos e consequências nefastas previstas pelos técnicos se
concretizaram: cessão de áreas de expansão para terceiros, omissão,
proliferação de intermediários (os quais especulam com os produtores), varejo
tumultuando o atacado, degradação física das instalações, estagnação da
classificação, padronização e embalagem, entre outros (idem, ibidem).
Conforme declaração dos técnicos, a perda da unidade sistêmica, com a extinção
do Sinac, dificultaria o estabelecimento de qualquer medida de âmbito nacional
- padronização, classificação, embalagens, inspeção, tabelamento de preços. Por
sua natureza de "ponto de encontro", seria praticamente impossível que cada
caminhão carregado que saísse de uma Central de Abastecimento (com uma norma e
um padrão específicos) e entrasse em outra pudesse ser inspecionado sob os
mesmos critérios. Após tentativa fracassada de renegociação da dívida com a
participação do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e
com o início da discussão da privatização, as Ceasas entram na lista do PND16,
fato considerado pelos técnicos do setor um equívoco: a estrutura das Ceasas
compreende tão somente um ponto de encontro e a atividade ali realizada já era
de cunho privado; o braço estatal comportava a administração do complexo, a
coleta e a divulgação de informações.
Em 1988, os dirigentes das Ceasas constituíram a Associação Brasileira das
Centrais de Abastecimento (Abracen) como tentativa de manter as propostas do
Sinac. Em 2005, por intermédio do Ministério da Agricultura, foi criado o
Programa Brasileiro de Modernização do Mercado Hortigranjeiro (Prohort),
coordenado pelo Conab, com o intuito de revitalização das Ceasas17.
A Ceasa em Operação
A comercialização de hortaliças no Brasil ocorre dentro das Ceasas, embora nos
últimos anos as grandes redes supermercadistas tenham construído centrais de
distribuição próprias. Segundo o Regulamento de Mercado (Ceasa/SC, 1990), não
há interferência do poder público nas negociações e na formação de preços. Cabe
aos técnicos tão somente o gerenciamento do espaço e das atividades, como em um
condomínio (Lourenzani e Silva, 2004:389).
As Ceasas asseguram a "liberdade de entrada e saída" (conforme o modelo da
economia neoclássica). Achegada de produtos para negociação obedece apenas à
conveniência de compradores e vendedores, em negociações que seguem, segundo os
técnicos, o Regulamento de Mercado. A partir do final da década de 1980, como
já citado, com o desmonte do Sinac, surge a figura do "intermediário": ele
compra FLVs dos produtores e revende minutos mais tarde dentro da própria
Central, em geral para donos de quitandas, pequenos mercados, restaurantes,
entre outros. Esse procedimento nãoéalvo de punição pelo regulamento e
enfraquece ainda mais a condição de negociação do agricultor. Nas demais
Ceasas, mantém-se o mesmo modelo de Regulamento de Mercado, o qual segue as
especificações da Lei nº5.727 de novembro de 1971, complementada pelo Decreto
nº70.502/1972.
O Regulamento de Mercado prevê um espaço denominado como permanente dos
permissionários (atacadistas e outros prestadores de serviços) e o espaço dos
pavilhões reservado aos agricultores, chamado de Mercado Livre do Produtor
(MLP). Em algumas centrais, a exemplo da Companhia de Entrepostos e Armazéns
Gerais de São Paulo (Ceagesp) e da Ceasa Campinas, esse espaço é definido
apenas como Mercado Livre (ML), já que a maioria de seus ocupantes deixou de
ser produtor, dedicando-se exclusivamente à atividade de comercialização de
produtos18.
Na Ceasa/SC, observa-se que a distribuição do espaço no MLP é desfavorável aos
agricultores: eles estão dispostos linearmente dentro de três grandes pavilhões
(um agricultor ao lado do outro) e não podem observar as negociações, exceto as
de seu vizinho do lado. Caso o agricultor não tenha vendido seus produtos nas
primeiras horas do dia, a tendência é que o preço caia, ou seja, que ele aceite
uma oferta por acreditar que está sem opção. Os frequentadores "fortes" da
Ceasa/SC (conforme técnico entrevistado) são as centrais de compra dos grandes
supermercados. Eles também entram e negociam com os agricultores como qualquer
outro comprador, chegando mesmo a operar como os intermediários anteriormente
mencionados (Silva-Mazon, 2006). O leilão, lembrando a definição de Weber
(2004), que seria a maneira de garantir o encontro entre vendedores e
compradores, não é privilegiado nem mesmo é item do regimento de mercado. Os
leilões "formarão matéria de regulamento específico" (Ceasa/SC, 1990, art. 36,
§ 1º). Esse regulamento impõe severas penalidades aos boxistas e agricultores
que não saldarem suas dívidas com as Centrais de Abastecimento. No entanto,
nenhuma punição está prevista para aqueles que não pagam os agricultores. Nesse
assunto, ante os atos de compra e venda e pagamento direto entre usuários e
clientela, cabe à Ceasa/SC19 tão somente o papel de "simples espectadora" (art.
36, § 2º), o que, argumentamos, torna vulnerável a condição do agricultor.
Podemos sugerir aqui a ausência da coação apontada por Weber (2004) como
necessária para o funcionamento do mercado.
Os agricultores classificam as condições de recebimento como péssimas: quinze,
trinta ou até sessenta dias de prazo (ou no fim da safra, como no caso dos
atacadistas de tomate da Ceagesp) e com frequentes calotes. A compra realizada
é aquela observada por Garcia-Parpet (2003) como "compra não firme", ou ainda,
denominada no Brasil, "compra consignada", "compra especulativa" ou "preço por
fazer"20: o agricultor primeiro entrega seus produtos sem a definição do preço
(e com a nota fiscal em branco) e só terá acesso a essa informação depois da
realização da venda pelo atacadista a seu cliente final (Lourenzani e Silva,
2004:391).
O proprietário de uma pequena rede supermercadista de Florianópolis nos chamou
a atenção ao se declarar um cliente fiel e que sempre "paga" os produtos que
adquire na Ceasa; como se o compromisso de pagamento fosse uma característica
"extraordinária" de sua relação com os produtores. O problema da falta de
pagamento aparece no funcionamento de outras Ceasas e na relação de atacadistas
com agricultores que compram diretamente nas áreas de produção (Silva-Mazon,
2006). Aqui nos referimos a Durkheim para afirmar que essa relação entre
compradores e vendedores pode se caracterizar como um contrato injusto; há uma
parte mais forte do que a outra e bens e serviços não são trocados de maneira
justa e de acordo com o seu valor. O contrato consensual que caracteriza as
sociedades modernas, conforme Durkheim (1983), ainda não contempla os
agricultores.
Durkheim afirma que trocas injustas podem ser explicadas por astúcia,
habilidade, utilização manhosa das situações desfavoráveis, o que faz com que a
consciência social se contraponha ao contrato injusto. Esse fenômeno se repete
nos constantes calotes aos agricultores que comercializam na Ceasa/SC. Isso nos
foi relatado por um técnico entrevistado que fala dos acontecimentos do final
da década de 1970 e que permanecem, trinta anos depois, um problema atual. O
não pagamento ao agricultor é uma constante do mercado e atravessa o tempo21.
Em pesquisa com produtores de tomate e frequentadores da Ceasa/SC, nós
constatamos que há uma forma de oposição dos agricultores ao não pagamento,
como reação ao "contrato injusto", expressa no preenchimento das caixas com
galhos, frutos ruins, entre outros.
Cabe uma observação acerca do contexto das centrais. O aparato público
ineficiente constatado pelos autores da NEI pode ser posto em dúvida dado que
essa situação pouco poderia diferir a não ser em presença de pesados
investimentos no setor. A suspensão de investimento talvez encontre amparo no
clima das reformas liberalizantes como fruto da concepção de controle
predominante.
Na década de 1980, inicia-se o movimento de acordos multilaterais com a Rodada
Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, em inglês General
Agreement on Tariffs and Trade) da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio
e Emprego, precursor da OMC. Nessa década, a América Latina entra no sistema
agroalimentar de dimensão mundial. Conforme argumenta Wilkinson (2004), o
ajuste dos diversos países ao ambiente pós-Rodada Uruguai é marcado pela
substituição de importações por estratégias de crescimento orientadas para a
exportação. Todos os países em desenvolvimento experimentam um padrão de
desregulamentação interna e banalização da entrada dos IDEs com uma reforma
legal favorável aos investimentos estrangeiros; a prioridade é para o
desenvolvimento da capacidade de exportação de alimentos processados
(Wilkinson, 2004).
Nas décadas de 1980 e 1990, os países em desenvolvimento acompanham as
tendências dos países desenvolvidos no que se refere à segmentação de produtos.
Novos níveis de bem-estar econômico exigem da indústria agroalimentar inovação
e segmentação com uma estratégia multiproduto. As empresas diversificam tanto
para captar a demanda mais volátil e segmentada quanto para se adaptar às
demandas logísticas do grande varejo que conta com a ECR. Entramos aqui na era
da concepção de controle baseada no marketinge nas vendas, de acordo com
Fligstein (1990). O aumento do varejo de larga escala foi analisado como uma
consequência negativa para o setor da indústria alimentar (Wilkinson, 2002:
334).
Padrões de Difusão da Grande Rede Supermercadista
Segundo Reardon, Timmer e Berdegué (2004), a América Latina tem liderado as
mudanças do setor supermercadista nas regiões em desenvolvimento. A entrada de
empresas transnacionais é orientada pelas fusões e aquisições. Em uma primeira
onda, no início dos anos 1980 e antesdos IDEs, redes nacionais amplas compram
lojas independentes e redes regionais. Na segunda onda, entre o início e a
metade da década de 1990, a consolidação do setor supermercadista toma lugar
por intermédio de aquisições pelas firmas norte-americanas e europeias
estimuladas pela saturação de seus respectivos mercados locais. Nessa segunda
onda, as empresas transnacionais compraram muitas das grandes redes domésticas;
investimentos norteados pelos IDEs (Reardon e Berdegué, 2002:378).
Apenas um pequeno número de supermercados existia na maioria dos países em
desenvolvimento durante os anos 1980 e o início de 1990. O capital era
essencialmente doméstico, os supermercados eram situados nas maiores cidades e
em bairros mais ricos (Reardon, Timmere Berdegué, 2004:172). Em 2000, esse
número salta para 50%-60% na América Latina (Reardon e Berdegué, 2002:377).
Essa região, com exceção do Chile, experimentou, em uma única década, o mesmo
desenvolvimento da rede supermercadista que os Estados Unidos viveram em cinco
décadas (Reardon, Timmer e Berdegué, 2004:170).
No Brasil, o desenvolvimento do setor alimentar está dividido em três períodos,
conforme Alexander e Lira Silva (2002). O primeiro período é marcado pela
criação da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) em 1968, ano em que
os supermercados são reconhecidos como categoria diferenciada do varejo de
alimentos e com incidência tributária à parte. A partir desse momento, a
atividade de supermercados e de autosserviço é regulamentada22. Há uma mudança
na cobrança de impostos, incentivos de crédito, taxas de juros reduzidas e
prazos de pagamento estendidos (Belik, 2005). Na segunda fase, no início dos
anos 1970, os IDEs surgem no cenário brasileiro; a rede Makro chega ao país em
1972 e o Carrefour, em 197523. A terceira e última fase marca o final dos anos
1990 e conta com a introdução de cartões de crédito, marcas próprias e o
desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) (Alexander e
Lira Silva, 2002). Intensifica-se o movimento de fusões e aquisições, com
participação marcante da rede varejista europeia24 (Rocha e Dib, 2002). Essa é
a fase correspondente à concepção de controle da financeirização, segundo
Fligstein (1990).
No que tange às tendências mundiais na distribuição de FLVs, a ênfase de
nutricionistas e autoridades da saúde com relação ao consumo de produtos não
industrializados (particularmente frutas e vegetais) poderia constituir-se em
uma ameaça ao papel do varejo, em virtude da debilidade de fornecimento de
atacadistas tradicionais e de funcionamento das Centrais de Abastecimento
públicas. Contudo, dados recentes mostram como a rede varejistas e adaptou à
oferta de FLVs, criando suas próprias centrais de distribuição (Wilkinson,
2002).
PADRÕES DE SEGURANÇA E QUALIDADE EM CONSTRUÇÃO
Supermercados, como estratégia de sobrevivência, competem para conquistar
consumidores. Essa conquista acontece pelo corte de custo, pela constância na
entrega, pela geração de qualidade e pela diversidade (Reardon e Berdegué,
2002:378). Para o setor de FLVs, as reclamações dos atacadistas especializados
se referem ao funcionamento do atacado tradicional (como as Centrais de
Abastecimento): ausência de informação e de padronização, baixa qualidade dos
produtos, técnicas de colheita e controle de pós-colheita que deixam a desejar
(Reardon, Timmer e Berdegué, 2004:173). Interessante observar que estas são as
dificuldades anunciadas pelos técnicos das Ceasas no Brasil no final da década
de 1980 no sentido de uma crônica da tragédia anunciada no momento do desmonte
do Sinac. O discurso da comunidade dos engenheiros oriundos da esfera pública
não encontra eco; o discurso vindo do mercado se apresenta como motivo para
soluções urgentes e como competência da esfera privada.
A rede supermercadista de grande porte se afasta parcialmente do atacado
tradicional e estabelece quatro pilares para o sistema de compra: atacadistas
especializados; compra centralizada pelos centros de distribuição; suprimento
assegurado e consistente com fornecedores preferenciais; padrões privados de
qualidade e segurança impostos aos fornecedores (idem, ibidem).
Os supermercados investem na forma de apresentação dos produtos: menos a granel
e mais embalados, pré-processados, agroindustrializados e orgânicos (Guivant,
2003a). As FLVs funcionam como estratégia de marketinge âncora das lojas na
conquista e na fidelização dos clientes, bem como na geração de lucros. De
maneira semelhante ao mercado de moluscos franceses, também aqui os
distribuidores (supermercados) mobilizam uma indeterminação do mercado a seu
favor. O vazio das normas de classificação e padronização (as quais deixaram de
existir com o desmantelamento do Sinac) será preenchido pelos padrões da rede
supermercadista. Detalhamos esse processo com o exemplo da cadeia do tomate25.
Os cultivares de tomate mais comercializados no Brasil são Carmen e Débora,
ambos da Sakata Seed26. A característica principal desse tipo de semente é a
homogeneidade e a firmeza dos frutos, que se tornam mais resistentes aos longos
percursos no transporte (as caixas de tomate atravessam vários estados
brasileiros nas diferentes safras); isso não significa superioridade em
qualidades organolépticas e sanitárias.
Conforme relato de técnicos da Ceasa e agricultores, o tipo de semente é uma
imposição dos atacadistas/distribuidores, que demandam melhores condições e
menor quebra para a distribuição do produto27. Essa exigência encontra eco na
indústria de sementes, atualmente concentrada em alguns grandes grupos: Dupont
(maior indústria mundial), Monsanto (segunda maior corporação de sementes),
Novartis (fusão Sandoz/Ciba-Geigy), Aventis, Dow Agro Science, AstraZeneca
(fusão da Zeneca com o grupo farmacêutico Astra) e Sakata Seed. Neste artigo,
abordamos os direitos de propriedade, conforme Fligstein (2001a). Wilkinson e
Castelli (2000) destacam o clamor pela abertura comercial dos países em
desenvolvimento e, em 1991, há forte pressão norte-americana quando da
preparação do Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados
ao Comércio (Trips, em inglês Trade-Related Aspects of Intellectual Property
Rights) da OMC.
O Brasil apresenta, nesse mesmo ano, seu projeto de Lei de Patentes, que
estendia os direitos monopólicos de propriedade intelectual aos processos
relacionados a alimentos; e, em 1996, a nova Lei de Patentes foi aprovada. No
mesmo período, ocorre a tramitação da Lei de Proteção de Cultivares, liberando
apropriação privada sobre cultivares de plantas por empresas de melhoramento
genético; as duas leis entram em vigor em 1997 (ibidem:11). A partir da
implementação dessas leis, observa-se, no Brasil, uma tendência de concentração
no setor de produção de sementes por parte de empresas transnacionais junto a
uma estagnação na produção de sementes melhoradas pelo setor público. Somado a
isso, nos últimos anos a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
perdeu parceiros que operam como franqueados exclusivos das transnacionais.
Aparece como tendência no setor a redução da produção nacional de sementes com
a deterioração do setor (ibidem:81).
Além do investimento em sementes por parte do produtor, há o uso de insumos
químicos. Esse procedimento se inicia com a liberação do crédito rural na
década de 1970. O crédito para compra de insumos e máquinas, antes
"supervisionado" por técnicos agrícolas, passa a ser tão somente "orientado",
ou seja, os agricultores ficam livres para adquirir e aplicar a quantidade de
insumos químicos que desejarem. Os impactos da intensificação do uso de insumos
na saúde dos agricultores não são detectados pela vigilância sanitária (seja na
notificação dos óbitos, seja nos atendimentos médicos), conforme a informação
de técnicos da Companhia Integrada do Desenvolvimento Agropecuário de Santa
Catarina (Cidasc) entrevistados. Investigando a aplicação dos agrotóxicos e a
percepção de riscos à saúde entre agricultores, Julia Guivant (2003b) mostra
que uma prática muito difundida entre eles é a de não respeitar os períodos de
carência dos agrotóxicos aplicados (intervalo mínimo entre uma aplicação e
outra para garantir a não contaminação), pois os agricultores percebem perdas
financeiras caso não usem insumos químicos em quantidades acima do recomendado.
No entanto, não visualizam os prejuízos à saúde, o que essa autora chama de
"fatalismo químico"28 (Guivant, 1994:52).
O mercado de FLVs está contemplado no Regulamento de Defesa Sanitária Vegetal
(RDSV), Decreto nº24.114/1934, na Lei dos Agrotóxicos, Lei nº7.802 de julho de
1989, e no Decreto nº98.816/1990. A fiscalização no Estado de Santa Catarina
fica a cargo da Cidasc29, conforme Lei nº11.069 de 1998 e alterada pela Lei
nº13.238 de 200430.
As exigências da legislação quanto às FLVs consideram os riscos associados à
saúde (delimitação do número de aplicações de agrotóxicos) e ao meio ambiente
(normas de descarte das embalagens que ficam sob responsabilidade do
fabricante). As medidas sanitárias visam, entre outras, limitar os riscos de
contaminação humana com agrotóxico, restringindo o número de aplicações, em
particular próximo ao momento da colheita.
As normas de salubridade, a despeito do aparato legal e das visitas feitas aos
agricultores pelos técnicos, não implicam nenhum tipo de restrição à
comercialização. Conforme técnicos e agricultores entrevistados no Estado de
Santa Catarina, como a exigência dos atores do mercado é somente com relação à
aparência do fruto, os agricultores buscam garanti-la31. A ausência de
restrições à comercialização parece indicar que a qualidade sanitária é somente
aquela exigida pelos atores de mercado dominantes (atacadistas e redes
supermercadistas) e a quantidade de agrotóxicos nas FLVs é pouco relevante nas
decisões desses atores. Hernandez, Reardon e Berdegué (2007) analisaram
produtores que vendem diretamente aos supermercados na Guatemala: além de serem
mais capitalizados e mais especializados, mantêm uma prática de uso excessivo
no que diz respeito aos pesticidas e aos fungicidas.
Outro elemento fundamental do campo da distribuição das FLVs é a sazonalidade.
Voltemos ao tomate para falar do assunto. No Estado de Santa Catarina, como no
restante do Brasil, há produção sazonal em diferentes épocas do ano, o que faz
com que Centrais de Abastecimento e redes varejistas recebam produtos de
diferentes estados brasileiros. A chegada ao consumidor, porém, faz com que o
produto seja visto como homogêneo ao longo de todo o ano, embora a região de
origem e a técnica de produção possam apresentar diferenças.
A região serrana do estado, por seus aspectos climáticos (baixas temperaturas o
ano todo), é o local mais favorável ao plantio do tomate, com a taxa de
aplicação de agrotóxicos mais baixa do que em qualquer outra região do estado,
conforme dados do II Zoneamento Agroecológico e Socioeconômico do Estado de
Santa Catarina (Icepa/SC, 2000). Se essa condição diferenciada da produção
serrana estivesse vislumbrada na apresentação do produto no mercado, o
consumidor teria chance de optar por um produto com menor quantidade de
agrotóxicos. Além disso, antes de produzir apenas na entressafra de outros
estados, a região teria condições de abastecer o mercado em outros períodos do
ano; pelo menos para alguns cultivares. A Lei de Zoneamento é um dos aspectos
da constituição dos direitos de propriedade, conforme Fligstein e Mara-Drita
(1996). Nesse caso da não aplicação do zoneamento agrícola, os agricultores
serranos ficam vulneráveis: nos momentos de excesso de produção nas regiões
mais próximas dos centros compradores, a venda dos produtos dessa região fica
comprometida.
Passamos aqui a vislumbrar a qualidade - no que diz respeito ao tomate - como
um problema que clama por soluções que não são globais, mas justamente locais,
e que supõem, por um lado, o engajamento de atores locais e, por outro, a
revisão da legislação ambiental no sentido de que a verificação dos produtos
não ocorra apenas nas áreas de produção, mas também na esfera da
comercialização, no sentido de fundar novos princípios de relação entre
maneiras de produzir e a qualidade do produto, conforme já observado no mercado
de moluscos francês (Dubuisson-Quellier, 2003).
Se definirmos a qualidade de mercado como "o resultado do trabalho realizado
pelos atores do mercado, do produtor ao consumidor, consistindo em construir os
dispositivos fornecidos por seus atores para atribuir características aos
produtos" (idem, ibidem: 102), podemos dizer que, no caso das FLVs, em
particular do tomate, a qualidade de mercado se limita à qualidade que
interessa aos atores mais potentes do mercado. Tal definição pouco diz sobre a
qualidade organoléptica e sanitária32 dos frutos e considera esses produtos
dentro dos mercados de maneira homogênea (Dubuisson-Quellier, 2003). Mesmo que
as características do produto possam variar - modo de produzir, clima, solo,
frequência de aplicação dos agrotóxicos -, elas desaparecem na entrada do
produto na esfera da circulação.
A análise apresentada aqui abre espaço para duas observações sobre os padrões
de segurança e qualidade. Primeiro, a ideia de que a tendência à homogeneização
do sistema agroalimentar responde, entre outras, à demanda de um consumidor
exigente cai por terra. No caso do tomate, o consumidor tem à sua disposição um
produto em geral bastante contaminado. Segundo, se as diferentes dimensões de
qualidade e o grau de toxicidade do produto fossem contemplados no mercado de
FLVs, isso tornaria o ambiente propício para se desfazer da ideia de que a
comercialização desses produtos só pode se submeter a um enquadramento jurídico
de escala global, como preconiza a grande rede supermercadista.
Abordamos agora os números invisíveis do setor de produtos frescos. Mainville
et alii(2005) relatam a ausência de informações sobre os volumes
comercializados de FLVs no setor atacadista e no varejo. Apartir do momento em
que o Sinac foi desmantelado, não há uma maneira de registrar para o país o
volume de hortifrutigranjeiros comercializado. Em pesquisa anterior (Silva-
Mazon, 2006), técnicos da Secretaria da Agricultura e do Departamento de
Crédito Agrícola do Banco do Brasil relatam as dificuldades de levantamento do
volume produzido e comercializado pelos produtores de FLVs, já que grande parte
das vendas ocorre de maneira informal ou pelo método de "notas fiscais em
branco", como já citado. Aúnica maneira de levantar esses dados seguramente,
segundo eles, é buscar, nos pontos de venda de sementes o volume adquirido por
cada agricultor. Ou seja, perdas de safra, produtos estragados e os não
pagamentos são dificilmente contabilizados. Argumentamos que essa
invisibilidade do setor pode contribuir para o "contrato injusto": não há
estatísticas nas Ceasas, não é possível saber quanto um agricultor produziu,
quanto vendeu, quanto recebeu e, portanto, qual é o ganho real ou o prejuízo em
cada safra.
Aqui voltamos às instituições de mercado propostas por Fligstein (2001b) à luz
da ideia do contrato injusto. Nas regras de troca do setor alimentar, o
agricultor não tem seus direitos respeitados. Se a condição de comercialização
para os agricultores não encontra amparo no Regulamento de Mercado da Ceasa,
essa situação não se torna mais confortável quando falamos da grande rede
varejista que passa a negociar diretamente com os primeiros. Além da exigência
de melhoramento na forma de entrega e qualidade das frutas, as modalidades dos
contratos desvendam o desequilíbrio no poder de barganha (dado que as grandes
redes varejistas detêm grande parcela do mercado): assimetria de poder nas
negociações, prazos de recebimento longos, descontos de perdas dos produtos não
vendidos, impedimento por parte da rede varejista para que o produtor crie sua
marca ou selo próprio (Lourenzani e Silva, 2004:391-392).
O pequeno produtor é pressionado, de um lado, pela indústria de sementes, que
aumenta constantemente o valor unitário do produto colocado no mercado, e, de
outro, pelos atacadistas e pela rede varejista, que tentam transferir os riscos
de perdas ao agricultor pagando em geral só aquilo que conseguem vender. Com
relação às estruturas de governança e aos direitos de propriedade, o ambiente
legal propício para fusões e aquisições, via organismos multilaterais ou
bilaterais, consolida e concentra rapidamente tanto o setor da distribuição
quanto o da produção, ocorrendo o mesmo com as redes supermercadistas
transnacionais e o setor da indústria de sementes. Observa-se, nas regras de
troca do mercado de FLVs, um deslocamento parcial de negociações intermediadas
por atacadistas para um novo modelo dos sistemas privados (centrais de
distribuição da rede supermercadista), o qual mantém a condição de dominação
sobre o agricultor.
CONCLUSÕES
Neste artigo, foram analisadas as mudanças no terreno institucional do
abastecimento alimentar brasileiro no que tange aos produtos frescos, focando a
construção dos padrões de qualidade e segurança. A Nova Economia Institucional
(NEI) lê a elaboração crescente de padrões e grades privados no setor alimentar
como movimento de eficiência na cadeia e inexorável. Em oposição a esse grupo
de autores, à luz da Nova Sociologia Econômica (NSE), é possível apontar os
aspectos político-culturais da construção desses padrões.
O Estado, como réu da crise econômica da década de 1980, foi julgado
ineficiente e centralizador em diversos setores, incluindo o de abastecimento
alimentar nas análises próximas à NEI. Os autores da NSE convidam a uma análise
que mostra o Estado como ator fundamental na construção do mercado de frutas,
legumes e verduras, mesmo que sua ação seja a de retirar investimentos das
Centrais de Abastecimento públicas a partir das reformas liberalizantes.
A leitura dos padrões de qualidade e segurança da NEI segue a ideia de North de
custos de transação altos internos e externos às firmas, fenômeno considerado
típico para países em desenvolvimento. A análise pouco meritória do agricultor
pode reforçar regras de troca desiguais - nos termos de Durkheim, "contratos
injustos" -, ambiente no qual os agricultores são vítimas da inadimplência.
A construção do MCE mostra o rumo cultural dos padrões de segurança e
qualidade, o qual pode ajudar a entender as mudanças ocorridas no Brasil. As
mudanças trazidas pelo MCE focaram mais as regras de troca do que as estruturas
de governança e direitos de propriedade. O Brasil viveu uma experiência diversa
de abertura com foco nos direitos de propriedade e estruturas de governança.
Olhar essas particularidades do fenômeno no Brasil mais de perto pode ser uma
boa pista de pesquisa.
O caso do tomate sugere a investigação da interatuação Estado e mercado como
pista de pesquisa para explicar a condição dos pequenos agricultores produtores
de FLVs. Não há evidências de que os padrões privados estabelecidos pela rede
supermercadista sejam os mais eficientes.
NOTAS
1. Questionando os pressupostos da Teoria Econômica Neoclássica, os autores da
NSE defendem o postulado dos mercados como construções sociais. O autor que
cunha a expressão NSE é Mark Granovetter, propondo o conceito de redes para
explicar o enraizamento social dos mercados. Das críticas a esse autor surgem a
abordagem político-cultural dos autores aqui trabalhados, Pierre Bourdieu e
Neil Fligstein, e a abordagem cultural que explora os significados coletivos na
definição de estratégias econômicas (Wanderley, 2002). A abordagem político-
cultural enfatiza o papel do Estado como construtor de mercados, os atores como
desiguais e as normas e classificações pensadas junto com os interesses
antagônicos que as produzem (Fligstein, 2001b; Bourdieu, 2005).
2. Esse autor analisa a produção de móveis em Cuanajo, empreendimento dos
índios mexicanos. Constata a ilegalidade da madeira fornecida, níveis de
educação baixos, uma atmosfera de furtos entre os empregados e os problemas com
a polícia local como fatores que aumentam tanto os custos de transação internos
quanto os externos (Acheson, 1994). Boselie, Henson e Weatherspoon (2003:1155)
observam como desafio a construção da confiança entre supermercados e
agricultores em países em desenvolvimento, em virtude da volatilidade dos
preços, do isolamento dos agricultores com relação aos mercados (regiões
distantes e poucos canais de comunicação) e do desequilíbrio entre os atores.
Pequenos produtores, além de menores, são atores menos poderosos na cadeia.
3. Os G&S exprimem um conjunto de especificações técnicas, termos e
princípios de classificação e rotulagem. Eles incluem regras de medida
estabelecida por regulação ou autoridade (standards) e um sistema de
classificação baseado em atributos quantificáveis (grades). Eles dizem respeito
à qualidade (aparência, limpeza, sabor); segurança (resíduo de pesticida ou
hormônio artificial, presença de micróbios); autenticidade (garantia de origem
geográfica ou uso de um processo tradicional); e, por último, excelência do
processo produtivo (com respeito à saúde do trabalhador e sua segurança ou
contaminação ambiental) (Reardon e Farina, 2002:414).
4. Castro (2007) propõe pensar o desenvolvimento tecnológico da agricultura
brasileira em duas fases. Aprimeira, do período da Revolução Verde (tripé
pesquisa - extensão - crédito rural, difusores de uma tecnologia intensiva em
insumos e máquinas), e uma segunda fase, que demandaria qualidade e
desenvolvimento sustentável na organização dos mercados, em particular o das
commodities.
5. Accountabilitydiz respeito à prática de prestação de contas de atos públicos
por parte dos agentes governamentais à sociedade (Pereira, 1997).
6. Financeirização pode ser compreendida como a prevalência absoluta do ponto
de vista financeiro sobre outras considerações de estratégias da empresa e a
focalização do retorno dos investimentos dos acionistas (Useem, 1993 apudGrün,
2003).
7. No caso brasileiro, Grün (2003) mostra como um novo ambiente legal toma
forma a partir da década de 1990, expresso no movimento de fusões e de
incorporações de empresas e reforçado pela Lei das Sociedades Anônimas e o
"novo mercado de capitais", de 1999. Esse movimento aparece traduzido na
expressão "governança corporativa" e está relacionado ao processo de
privatização, o qual teve como consequências o esfacelamento de grupos sociais
que se haviam formado em torno das organizações estatais, tão bem como o
arrefecimento da defesa dos princípios sindicais. O mesmo autor pondera que a
defesa da governança corporativa ficou abalada pelos escândalos da Enron, Tyco
e da Arthur Andersen. Esta última, como uma das maiores empresas de auditoria
externa, atuava na vigilância de outros grupos empresariais e falhou em sua
própria. No caso mexicano, o objetivo da liberalização como eliminador do
comportamento rent seekingnão o eliminou, ao contrário, estimulou-o por
intermédio da discreta alocação de oportunidades para o setor privado (Pereira,
1997).
8. Conforme argumenta Fligstein (2002), essa afirmação coincide com a análise
de Harrison White; porém, aquilo que este considera um processo econômico
aquele considera um processo político.
9. O Codex Alimentarius é um fórum internacional de normalização sobre
alimentos. Foi criado em 1962 pela união da Organização das Nações Unidas para
a Agricultura e a Alimentação (FAO) com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Suas normas têm como finalidade proteger a saúde da população, assegurar
práticas equitativas no comércio regional e internacional de alimentos, criar
mecanismos internacionais dirigidos à remoção de barreiras tarifárias, fomentar
e coordenar todos os trabalhos que se realizam em normalização (ver Inmetro,
disponível em http://www.inmetro.gov.br/comites/ccab.asp. Acessado em 8/11/
2007).
10. Concordando com Fligstein e Mara-Drita, e a partir da economia heterodoxa,
Chang (2004) faz uma interpretação histórica sobre as estratégias de
desenvolvimento dos países industrializados com respeito à mobilização política
e às instituições em questão. Chang mostra que, quando esses países estavam em
processo de desenvolvimento, eles protegeram suas indústrias e deram enormes
subsídios às exportações - práticas hoje condenadas na lista das "boas
políticas" elaboradas pelo Consenso de Washington. Esses países estariam
dispostos a "chutar a escada" para os PBRs, pela qual eles próprios subiram
para atingir a condição em que se encontram hoje.
11. A ocorrência de saques em São Paulo e em outras cidades obriga o
Comissariado a regular o comércio varejista sem, porém, tocar nos interesses
dos atacadistas (Linhares e Silva, 1979).
12. Os hortomercados eram mercados varejistas de produtos hortícolas,
geralmente associados a um supermercado da Companhia Brasileira de Alimentos
(Cobal) (Mourão, 2007).
13. Na década de 1970, o Sinac identificou, em Minas Gerais, uma iniciativa de
comerciantes na venda de um mixde frutas e hortaliças a um preço único por
quilo; eram os sacolões. A partir dos anos 1980, eles receberam apoio do poder
público, inclusive da administração das Ceasas, e alcançaram êxito em âmbito
nacional (Mourão, 2007).
14. Os varejões tratavam da abertura das Ceasas uma vez por semana e também
quando não havia comercialização do atacado para o consumidor adquirir produtos
diretamente do produtor ou de comerciantes atacadistas. Os preços eram
administrados pela Ceasa, que estabelecia um teto máximo inferior ao preço
praticado no varejo da cidade (Mourão, 2007).
15. Em 1981, o governo estabeleceu por decreto a Comissão Especial de
Desestatização com o intuito de limitar a criação de novas estatais. A ideia de
que as empresas estatais podiam ser entregues ao setor privado passou a fazer
parte do discurso do governo e das elites em geral. Em 1985, o primeiro governo
democrático criou o programa de privatização e substituiu a Comissão Especial
pelo Conselho Interministerial de Privatização (CIP) (Tavares de Almeida,
1999).
16. O Congresso não participou nem opinou sobre a criação da Sest. Essa
situação mudou com a Constituição de 1988, quando o Congresso e o Judiciário
ganharam novas prerrogativas, e o Executivo perdeu a possibilidade de legislar
por decreto. A Lei nº8.031/1990, que criou o PND, não só fazia parte do pacote
de medidas provisórias (MPs) do Plano Collor como, depois de aprovada pelo
Congresso, foi modificada por MPs na gestão Fernando Henrique Cardoso até ser
transformada em nova lei em 1997, Lei nº9.491/1997 (Tavares de Almeida, 1999).
17. O Prohort foi elaborado por técnicos da Ceasa Minas (Contagem/MG) e da
Universidade Federal de Viçosa (UFV), em 1997, e conta com o apoio do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O intuito é reconstruir um
sistema nacional das Ceasas. Ele foi oficializado no quadro da Cobal pela
Portaria nº171 de março de 2005 (http://www.abracen.org.br. Acessado em 10/1/
2007). O primeiro passo foi implementar um banco de dados com informações dos
62 mercados atacadistas brasileiros. Em 2005, a Ceasa/MG doou o softwarecriado
para a inserção de dados, e o Conab desenvolveu um segundo softwarepara a
extração de informações. Em 2006, foi criado um portal: http://
www.ceasa.gov.br.
18. Os dados de Andreuccetti et alii(2005:392) mostram que grandes produtores
de tomate fornecedores da Ceagesp se transformaram em atacadistas quase sempre
especializados nesse mesmo produto. Esses autores observam uma concentração na
comercialização do tomate na Ceagesp por um número reduzido de atacadistas.
19. Um diretor técnico da Ceasa/MG, entrevistado em 2005, relatou que o
funcionamento do leilão (via painel eletrônico) era fundamental para a rotina
dessa Central. Nós a visitamos em 2008 e o painel eletrônico estava fora de
funcionamento.
20. Conforme Garcia-Parpet (2003), na compra firme, compradores são obrigados a
depositar uma caução e os preços são estabelecidos e negociados ao longo do
leilão, e não combinados a posteriori.
21. Em análise do momento atual, Pereira (2001) pondera que, no mercado
atacadista do tomate, os ganhos do produtor não passam de 30% do total pago
pelo consumidor.
22. Até 1950, a legislação que regulamentava o comércio de alimentos era
favorável às pequenas lojas de secos e molhados e às padarias, as quais se
caracterizam como negócios familiares. Esses pequenos empreendimentos adotavam
como rotina o funcionamento nos fins de semana e até às 20h. O trabalho
assalariado da grande rede varejista não encontrava amparo na lei (Belik,
2005).
23. A rede Carrefour, a partir de 1999, começa um processo de aquisições no
Brasil: Lojas Americanas, Planaltão, Roncetti, Mineirão, Rainha, Dallas e
Continente. Hoje é a segunda empresa no rankingda Abras com um faturamento de
12,5 bilhões em 2005 (Super Hiper, 2006).
24. A participação dos supermercados na distribuição de alimentos cresceu de
26% para 85% entre 1970 e 1996 (Rojo, 1998). Em 1994, as vinte maiores empresas
do Brasil representavam 56% do faturamento total dos supermercados com 16% de
capital externo. Em 2001, os IDEs saltaram para 57% das vendas do setor nas
vinte maiores empresas (ver Abrasnet, disponível em http://www.abrasnet.com.br.
Acessado em 1º/8/2007). Cabe lembrar que, enquanto em 1990 nenhum varejista foi
incluído na lista das quinhentas maiores empresas globais da revista Fortune,
em 2002 eles eram mais de cinquenta nesse grupo (Oosterveer, Guivant e
Spaargaren, 2007). Em 2007, o maior varejista no Brasil é o Carrefour, seguido
do Pão de Açúcar e do Wal-Mart (Facchi e D'Ambrosio, 2007). O grupo chileno
Cencosud anunciou, no final de 2007, a aquisição da rede sergipana GBarbosa, a
maior rede de supermercados do Nordeste (Valor, 2007).
25. Por ser procurado com maior frequência pelo consumidor, o tomate é o
produto que comanda a variação de preço das outras hortaliças. É também
responsável pelo maior volume financeiro de comercialização dentro das Ceasas
(Della Giustina, 2005). As reflexões com relação à cadeia do tomate podem se
estender às outras hortaliças, dado que atacado e varejo utilizam padrões
semelhantes de comercialização para os diferentes cultivares (Lourenzani e
Silva, 2004).
26. O setor de sementes também experimenta participação significativa dos IDEs.
As empresas multinacionais chegam ao Brasil entre as décadas de 1960 e 1970:
Cargill, Limagrain e Asgrow em 1971, Dekalb em 1978 e Ciba-Geigy em 1979. A
indústria de sementes tem um número expressivo de empresas atuantes, mas a
atividade de pesquisa é dominada por poucas firmas, sendo que permanece
relevante a participação do Centro Nacional de Pesquisa da Embrapa (Wilkinson e
Castelli, 2000:53).
27. Parte dos dados apresentados aqui teve como base pesquisa feita em meu
mestrado em 2004 e 2005 sobre a montagem do mercado do produtor de Urubici/SC.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com agricultores do município e
frequentadores da Ceasa, técnicos da Ceasa/SC e da Ceasa/MG, da Empresa de
Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), do Instituto
de Planejamento em Economia Agrícola de Santa Catarina (Icepa), da Cidasc,
funcionários e gerentes de redes supermercadistas atuantes em Santa Catarina
(Silva-Mazon, 2006).
28. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciou, em 2001, o
Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) seguindo
metodologia preconizada pelo Codex Alimentarius e inova ao colher as amostras
dentro dos supermercados. Em 2008, as análises atingiram quinze estados e
dezessete itens de FLVs. A análise engloba ingredientes ativos de agrotóxicos e
limites máximos permitidos para cada cultura (ver Anvisa, 2008).
29. A Companhia Integrada do Desenvolvimento Agropecuário de Santa Catarina
(Cidasc) é vinculada à Secretaria da Agricultura. O estado está dividido em
zonas agrícolas e uma equipe técnica desse órgão visita as propriedades
regularmente.
30. Ver www.cidasc.sc.gov.br. Acessado em 1º/8/2007.
31. As especificidades com relação à aparência das FLVs estão contempladas em
manuais que os supermercados utilizam como guia de orientação para recepção e
verificação das mercadorias nas lojas. Um manual de FLVs da rede
supermercadista detalha a padronização do produto (pH, peso, cor, aspecto,
condição de armazenamento, temperatura, defeitos graves e leves aceitáveis),
além de informações da posição das FLVs na loja, distribuição no setor (jogo de
cores, layout)(Comper,s/d).
32. Na intenção de subsidiar políticas públicas de segurança alimentar, a
cúpula mundial de alimentação (uma arena de representação dos países ligados à
Organização das Nações Unidas (ONU)) adotou, como consenso sobre o tema, que
essas políticas devem contemplar produção e distribuição conectadas a valores
fundamentais, como saúde, higiene, autenticidade e solidariedade. O eixo
ecológico ou orgânico diz respeito à qualidade do alimento (Camargo Almeida et
alii, 2006).