O Estado (de Bem-Estar Social) como Ator do Desenvolvimento: Uma História das
Ideias
INTRODUÇÃO
O tema do Estado como ator do desenvolvimento é paradoxalmente tão vasto quanto
subteorizado. De fato, a ausência de um corpus teórico único e coerente convive
com um grande número de ideias e práticas, refletindo a fragmentação da
experiência, a pluralidade de perspectivas e a diversidade de campos
disciplinares que dele se ocupam. Ao contrário de lamentar esse estado de
coisas, nossa narrativa particular beneficia-se da riqueza dessa ampla reserva
de ideias e busca organizar o campo de interesse em torno de uma noção ampla de
Estado desenvolvimentista como sendo aquele que, seja por meio de políticas
pragmáticas, seja de planos ambiciosos, persegue o bem-estar, e não meramente o
poder, e muito menos o mal-estar.
Ao optarmos por esse enquadramento, estamos deliberadamente nos afastando de
narrativas convencionais que tematizam o Estado desenvolvimentista
exclusivamente como agente do desenvolvimento econômico, tomando como
automática a conversão deste em bem-estar, bem como de narrativas que
negligenciam o aspecto evolucionário da própria noção de desenvolvimento, que
se modifica no tempo histórico em resposta a experiências, repertórios
ideacionais e, evidentemente, embates. O enquadramento aqui sugerido como ponto
de partida é suficientemente amplo, e mesmo propositalmente vago, para acomodar
um variado e mutante conjunto de concepções de Estado desenvolvimentista. Nesse
percurso, à luz de concepções atuais que enfatizam a multidimensionalidade do
desenvolvimento, acabamos por recuperar os Estados de bem-estar social modernos
como atores centrais na promoção de desenvolvimento.
Nossa narrativa, vale insistir, se ocupa de concepções de Estado
desenvolvimentista, recorrendo a experiências concretas apenas na medida em que
estas são portadoras de visões específicas e identificáveis daquele e,
portanto, ocasião para a avaliação crítica de estilos de intervenção. A
“autoria” dessas concepções é atribuída tanto a economistas, cientistas
políticos, historiadores e sociólogos econômicos, quanto a burocracias
governamentais e de organismos internacionais, e organizações políticas como os
partidos.
Adotando uma perspectiva evolucionária, começamos registrando brevemente uma
mudança seminal de visão acerca das formas de Estado, de “Estado-poder” a
“Estado desenvolvimentista”, e justificativas para o progressivo envolvimento
de Estados nacionais na transformação econômica de países ao longo dos séculos
XVIII e XIX. Nessa seção, observamos que Estados nacionais foram revestidos da
“missão desenvolvimentista” em argumentos políticos, mas que o mesmo se passou
em argumentos econômicos, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial: de um
lado, a transformação econômica era vista como precondição para a construção e
fortalecimento de Estados nacionais; de outro, intervenções estatais eram
concebidas como essenciais para a superação do atraso econômico.
Porém, a crescente percepção de insucesso da arquitetura desenvolvimentista
conduzida pelo Estado em países tardios e medida em termos de catch upeconômico
é a senha para a produção de novas interpretações e contrastes ao longo das
últimas décadas do século XX e início do século XXI. Na seçãoPolitizando o
Estado para a transformação econômica, apontamos uma oscilação de percepções
sobre a intervenção: de inicialmente positivas a negativas – motivadas por
taxas de crescimento não sustentáveis e insuficiente promoção de bem-estar – e
de volta a positivas. Nessa seção, a novidade é a (re)politização do Estado
que, sublimada nas abordagens tradicionais da economia do desenvolvimento e
demonizada nas perspectivas liberais, acaba finalmente por vir à tona na
identificação de trajetórias baseadas seja em conexões com as elites econômicas
(empresários/negócios), seja em participação mais ampla e efetiva de estratos
não elite (populares/sociedade civil) da população. Uma abordagem mais
explicitamente política do Estado desenvolvimentista introduz (formas de)
democracia como objeto de atenção e identifica o Estado de bem-estar social
como forma de Estado crítica para a promoção da transformação econômica.
A seção seguinte apresenta uma perspectiva normativa que, ao propor uma
concepção multidimensional de desenvolvimento, envolvendo aspectos econômicos,
sociais e políticos, dialoga com aspirações e insatisfações detectadas na
sequência evolutiva. São, então, revisitadas as objeções da “abordagem das
capacitações” de Amartya Sen ao desenvolvimento entendido como transformação
econômica e à visão alternativa do desenvolvimento como transformação social,
na medida em que estas distintas visões trazem consequências para modelos de
Estado (de bem-estar) desenvolvimentista. Em particular, são apresentadas
visões de desenvolvimento mediado e não mediado pelo crescimento econômico. Em
seguida, uma breve apresentação do modelo socioeconômico dinamarquês ilustra
novos caminhos e estratégias de expansão de capacitações nas décadas recentes
dentro de uma concepção multidimensional de desenvolvimento. Finalmente,
conclui-se com a sugestão de temas para reflexão futura.
Uma última advertência: o texto não tem a pretensão de versão única e exaustiva
e sequência infalível de ideias (várias ideias abandonadas em nossa sequência
seguem vivas e férteis dentro dos nichos epistêmicos em que foram concebidas).
Procuramos fazer sentido de ampla variedade de percepções e concepções sobre o
Estado desenvolvimentista por meio de uma narrativa evolucionária, em que cada
nova alternativa engendra novos problemas e encoraja reações e contrastes,
muitos dos quais não antecipáveis. Embora nossa história se interrompa em um
“máximo local”, não há garantia de que novas tensões não abalem certezas
estabelecidas. Algumas dessas tensões já se anunciam, como apontamos nas
conclusões do artigo.
TRANSFORMAÇÃO ECONÔMICA E AÇÃO DO ESTADO
Relatos das origens do Estado moderno apontam o Tratado de Westfália de 1648
como marco histórico da conformação do mundo como um sistema de Estados
nacionais. Apesar de seu significado mais amplo ser aberto à disputa, é
geralmente aceito que o Tratado teria formalizado a soberania do Estado sobre o
seu território, perante sejam vizinhos sejam residentes no interior de suas
fronteiras geográficas, desse modo reduzindo a limites manejáveis as ameaças
externas, a fragmentação política interna baseada em religião ou outras
clivagens e as inevitáveis combinações entre esses elementos. No mínimo, o
Tratado gerou a expectativa legítima desse reconhecimento, cuja violação
justificaria o uso da violência por parte do Estado.
Expansões desta noção de Estado-poder incluíram mais tarde limites legais a
serem impostos ao soberano (como já presentes nas qualificações ao poder
soberano em Jean Bodin, mas principalmente na separação de poderes em John
Locke) e a noção, disseminada com o iluminismo e a Revolução Francesa, de que
poder implicaria responsabilidades. De fato, a noção de que os assuntos de
Estado ultrapassam a defesa e a ordem para incluir também a garantia de
liberdades e de bem-estar de indivíduos no território e mesmo assistência e
trabalho quando necessário encontra-se claramente expressa, por exemplo, no
artigo XXI da Declaração Francesa dos Direitos Humanos de 1793. E mesmo visões
liberais de ordem natural que emergiram de ambos os lados do Canal da Mancha no
mesmo século XVIII representaram o sistema legal em sua capacidade de assegurar
liberdades individuais e assistência pública como pilares desta ordem.
De acordo com estudos histórico-comparativos, obrigações positivas e negativas
do Estado provocaram seu envolvimento na transformação econômica de países,
entre outros motivos, para assegurar receitas e favorecer interesses
convergentes com propósitos do Estado (Chang,_2002; Evans,_1995; Heckscher,
1935). Evidências fortes deste desenvolvimento foram as políticas
mercantilistas adotadas na Europa e as políticas industriais e comerciais
amplamente utilizadas para assistir às indústrias nascentes no processo decatch
up britânico e na revolução industrial no século XIX, conforme fartamente
documentado em Chang_(2002), na contramão de interpretações de tipolaissez-
faire para o desenvolvimento inglês.
Com a Restauração Meiji no Japão (1868-1911), contudo, a transformação
econômica assistida pelo Estado, que até este ponto estivera principalmente
motivada por receitas, encontrou um novo estilo. Forçado a abrir seu comércio e
com capacidades empresariais insuficientes, o Japão recorreu a políticas
industriais como peça central de sua estratégia de mudança estrutural que levou
o Estado a desempenhar os papéis de empresário, financiador, facilitador,
coordenador e regulador de atividades econômicas (Wade,_2003; Chang,_2002). A
transformação econômica (industrial), por sua vez, pareceu dar suporte não
apenas à prosperidade material como à autodeterminação do país no âmbito do
sistema de Estados nacionais.
Trilhando um caminho exitoso após a Segunda Guerra Mundial com o experimento
MITI, o poderoso e operoso Ministério de Comércio Internacional e Indústria
(Johnson,_1982), o Japão estabeleceu um exemplo a ser seguido por outros países
no século XX, em especial por aqueles que, como a Coreia do Sul, empreenderam
esforços de desenvolvimento como forma de afirmação e fortalecimento de seus
Estados nacionais, após humilhantes experiências coloniais, devastação
provocada por guerras e enfraquecimento da autonomia política pela condição de
nações derrotadas. Nesse contexto, projetos de desenvolvimento econômico foram
instrumentalizados para afirmar alguma medida de autodeterminação política.
Envolvidos no processo de transformação de economias agrárias em industriais,
os Estados nacionais se diferenciariam ainda quanto ao planejamento das
mudanças. Alguns estabeleceram planos de desenvolvimento com objetivos
explícitos e coerentes, estratégias e agências de coordenação, ao passo que
outros, sendo não planejadores nesse sentido, conduziram políticas industriais,
comerciais e tecnológicas em bases pragmáticas (Inglaterra, Alemanha, França e
países escandinavos do pré-guerra). Dentre os planejadores, alguns foram
holísticos, com plano abrangente, mas deficiente em mecanismos de feedback
(União Soviética e países do Leste Europeu); outros adotaram modelos mais
gradualistas, com espaço para experimentação e aprendizado (Japão pós-Meiji,
Coreia, Taiwan, e a maioria dos países hoje desenvolvidos no pós-guerra). Não
surpreende que a necessidade de planejamento tenha sido mais intensamente
sentida por países que tinham longo caminho a percorrer para alcançar os
líderes industriais.
Porém, se parece claro por que a busca de prosperidade material teria capturado
a imaginação dos governantes – sendo autofinanciamento, autodeterminação e
legitimidade interna as razões com candidatura mais forte –, permanece ainda a
necessidade de compreender, tanto nos casos concretos como na teoria, de que
maneiras e por quais razões seria o Estado necessário para a transformação
econômica. De um modo ou de outro, muitos países tornaram-se planejadores após
a Segunda Guerra Mundial, e enquanto isto foi motivado pela reconstrução
naqueles diretamente envolvidos, foi com a construção a partir do zero no caso
de nações limitadamente ou recentemente independentes que escaparam à
destruição da guerra (Judt,_2005). Que argumento “econômico” poderia ser
invocado para o envolvimento do Estado?
De fato, foi na altura do segundo pós-guerra que o “problema do
desenvolvimento” chamou a atenção dos economistas e a “economia do
desenvolvimento” emergiu como campo teórico autônomo.
Desenvolvimento econômico, em uma primeira aproximação, significou ampliação do
produto doméstico; assim, modelos de crescimento (como os de Harrod-Domar e de
Solow) que identificavam a acumulação de capital como requisito para mudança
econômica poderiam ser de utilidade. No entanto, tais modelos, representando a
transformação econômica como consequência natural e cumulativa de alocações de
mercado sob dotações dadas, se aplicavam originalmente a países que se
industrializaram cedo. Essa especificidade motivou a emergência de abordagens
teóricas adicionais que, visualizando um processo de transformação descontínua
em economias atrasadas, melhor serviriam ao caso de países “subdesenvolvidos”.
Trata-se das assim chamadas teorias da primeira geração de economistas do
desenvolvimento (Agarwala_e_Singh,_1958). Na maioria das versões, a mudança
estrutural, entendida como industrialização, requer intervenção do Estado para
coordenar investimentos que, devido a externalidades, não se materializariam
via forças de mercado.
Notadamente, uma ramificação latino-americana emergiu no âmbito da Comisión
Económica para América Latina y el Caribe (Cepal) sob a liderança do economista
argentino Raúl Prebisch, em um caso de interação de mão dupla entre teoria e
prática: a escola da Cepal, através de sua descrição do subdesenvolvimento
latino-americano indutiva e orientada para ação, influenciou formuladores de
política, empresários e intelectuais da região (Bielschowsky,_2009) em uma
época em que muitos países experimentavam a industrialização por substituição
de importações com graus variados de sucesso.
Ao mesmo tempo que o desenvolvimento era escrutinado pela economia, dando lugar
a justificativas analíticas para a ação econômica do Estado, a necessidade do
Estado era reforçada por observação histórica sistemática como a empreendida
notoriamente pelo historiador Alexander Gerschenkron_(1962). O autor
identificou na Europa do século XIX um contínuo de situações no qual
instituições como o Estado eram instrumentais para a superação do atraso
econômico. Enquanto em um extremo estava a Alemanha, onde bancos universais
cumpririam a função de coordenação de investimentos, em outro estavam os casos
de extremo retardo, como Rússia e países do Leste Europeu, nos quais
empresários, força de trabalho disciplinada e financiamento estiveram ausentes,
e requereram intervenção intensiva e extensiva do Estado.
Mais tarde, esta descrição nuançada do ativismo estatal iria, juntamente com
teorias estruturais, fertilizar abordagens histórico-institucionais das últimas
décadas do século XX, capitaneadas por economistas políticos e sociólogos
econômicos (Hirschman,_1958; Herrick_e_Kindleberger,_1983; Evans,_1995; Chang,
2002). Teorias econômicas estruturalistas também acabariam por influenciar
teoriasneoestruturalistas mais recentes (Lin,_2011), que defendem a ação
estatal como complemento da alocação feita pelo mercado, aceitando, pois, a
ideia da necessidade do Estado para transitar de um estágio de desenvolvimento
a outro, já que o desenvolvimento reconhecidamente envolveria mudanças de
escala, infraestrutura e tecnologia, ainda que mantendo as referências
ortodoxas de primado da competição, dotação de fatores, vantagens comparativas
e soluções ótimas.
Ao fim e ao cabo, com exceção da visão que defende tão somente a ação de
mercados, a necessidade do Estado na transformação econômica encontrou
justificativa em uma variedade de perspectivas, com muito do pensamento teórico
resultando da observação das práticas de desenvolvimento, mais do que a teoria
influenciando a prática, embora maneiras indiretas de difusão de teorias não
devam ser subestimadas, como o caso da Cepal parece sugerir.
A próxima questão se refere a que capacidades do Estado estiveram envolvidas.
Embora não atraindo muita atenção na economia, esta questão teve considerável
ressonância em estudos histórico-institucionais. Cabe comentar que a desatenção
da economia tem uma de suas raízes na influência da teoria da escolha pública,
a qual notoriamente adverte sobre os perigos de captura do Estado por agentes
privados maximizadores e sobre ser o interesse público não mais do que
interesse privado disfarçado (Krueger,_1990)1. Outros contestariam o sequitur,
como veremos mais adiante. Mas, não apenas: outra raiz pode ser encontrada na
própria economia do desenvolvimento que mesmo em sua vertente estrutural é
silente em relação ao problema das capacidades do Estado, o qual é retido
mecanicamente, como algo eventualmente necessário e que se materializará na
ocasião propícia. Em contraste, estudos histórico-institucionais adotaram uma
abordagem mais sutil e se puseram a identificar as reais capacidades do Estado,
mobilizadas nas diversas experiências, as conexões de fato estabelecidas entre
o aparato estatal e setores sociais para o grande salto da industrialização e
seus efeitos perceptíveis.
As primeiras contribuições foram os estudos da decolagem de países do Leste
Asiático nos anos 1960 e 1970 (Johnson,_1982; Amsden,_1989; Chang,_2002; Wade,
2003) que deram origem ao difundido conceito de “Estado desenvolvimentista”
(Johnson,_1982)2. Essas experiências, ricas em inovações, se abririam a
diferentes interpretações. Assim, enquanto para o Banco Mundial, em um
relatório de 1993, os tigres asiáticos ilustravam o funcionamento benigno das
livres forças de mercado, os estudos histórico-institucionais identificavam
ação estatal pervasiva e multiforme, menos em propriedade e controle de
empresas, mais na função de facilitar o florescimento do capital privado (World
Bank,_1993). Como resultado, as experiências estimularam uma análise refinada
dos aspectos deestrutura e agência do Estado. Dentre os aspectos identificados,
destacaram-se a presença de uma burocracia weberiana autônoma, coerente e
coesa, e conexões do Estado com a sociedade civil, especialmente com
empresários, ou “sinergia” (Evans,_1995).
As experiências permitiriam ainda rastrear papéis diferenciados do Estado,
autônomo porém conectado, nos processos de transformação: custódio, demiurgo,
parteiro e pastor (Evans,_1995), na medida em que o Estado teria atuado,
respectivamente, como regulador, proprietário, promotor ou facilitador em
relação ao capital privado. Enquanto as primeiras experiências de
industrialização haviam se assentado mais em papéis regulatórios e as
intermediárias em Estados empresários, experiências posteriores, como Coreia e
Taiwan, optaram pela promoção de grupos privados através de crédito e outras
intervenções de facilitação. De forma geral, é a existência de certas
precondições o que define o papel apropriado: burocracia e conexões em
combinação com circunstâncias externas, as quais em diferentes ocasiões
indicariam os setores dinâmicos (Evans,_1995). Em suma, mesmo se o protagonismo
estatal é retido, dentro da tradição de Gerschenkron, não há papel, setores
específicos ou conjunto de políticas advogados de forma abstrata em relação a
circunstâncias, capacidades e conexões reais do Estado.
No entanto, posto que as análises entendessem os projetos de desenvolvimento
como equivalentes à industrialização de países, as relações entre Estado
desenvolvimentista e sociedade se resumiriam a ligações entre burocracia
estatal e capital privado, ou seja, conexões com a elite econômica, um passo
conceitual que colocaria novos problemas. Apesar de em alguns casos a falta de
uma burocracia autônoma e capacitada ter contribuído para impedir um processo
de crescimento sustentado, como no Brasil dos anos 1970 e 1980, em outros, como
na Coreia nas mesmas décadas, onde uma burocracia capaz e autônoma esteve
presente, estratégias de desenvolvimento de cima para baixo isolaram a
burocracia da influência e controle de amplos setores da população (o que
também ocorreu no Brasil). Não surpreende, então, que a “sinergia” da
industrialização terminasse por fazer brotar preocupações e protestos
contestando a legitimidade da trajetória particular empregada para a acumulação
de capital, sobretudo quando o modelo econômico passa a dar sinais de fadiga. O
intenso debate em torno do tipo de legitimidade que se pode obter quando o
processo de desenvolvimento é conduzido por um Estado autoritário em conexão
íntima com a elite econômica ilustra o mal-estar que por fim estimulou a
revisão dos elementos mais propriamente prescritivos dessa abordagem (Johnson,
1999).
Em consequência, emerge a questão a respeito de quais os meios apropriados para
a definição do conteúdo do interesse público em contextos de desenvolvimento.
Na próxima seção exploramos duas perspectivas alternativas, confrontando
mercado e democracia: a visão da teoria da escolha pública (com seu ceticismo
em relação à vida política) e a visão institucional das potencialidades das
experiências democráticas.
POLITIZANDO O ESTADO PARA A TRANSFORMAÇÃO ECONÔMICA
Retirando o Estado
A partir dos anos 1980, duas circunstâncias contribuíram para o descrédito da
intervenção do Estado para a transformação econômica. A primeira e mais
importante tem relação com as experiências de acumulação de capital conduzidas
pelo Estado que, embora tenham levado ao crescimento econômico, não se
traduziram em crescimento sustentado, e menos ainda em bem-estar, frustrando
expectativas teóricas e promessas políticas. Isto foi particularmente o caso de
países latino-americanos, africanos e do sul da Ásia, que experimentaram
trajetórias de crescimento não sustentadas, com desigualdade crescente e/ou
pobreza e lenta melhoria de indicadores sociais durante a industrialização por
substituição de importações conduzida pelo Estado nos anos 1960 e 1970 (Lin,
2011; Sen,_1983), seguidas da crise da dívida nos anos 1980. E, embora análises
histórico-institucionais fossem argumentar que as trajetórias falhas tinham
raízes na ausência de capacidades estatais apropriadas e em conexões frágeis
com a sociedade civil (Evans,_1995), o novo estado de espírito, reverberando o
mantra da teoria da escolha pública, fez recair a responsabilidade sobre a
intervenção econômica do Estado, por interferir no funcionamento das forças de
mercado e criar oportunidades de captura e má economia política.
A segunda circunstância se liga à estagflação e à crise fiscal, difundidas pelo
mundo desenvolvido a partir do início dos anos 1970 e ao longo da década
seguinte, e ao prestígio granjeado pela teoria das expectativas racionais,
resultando na atribuição de tais problemas à má gestão fiscal e monetária por
parte dos governos. Apesar de os problemas serem de naturezas diferentes e se
abrirem para diagnósticos alternativos, a visão predominante, sobretudo nos
organismos internacionais multilaterais, foi a do diagnóstico único: a culpa é
do Estado.
Sob este novo clima ideológico emergiu a segunda geração de economistas do
desenvolvimento, desta vez de dentro da economia neoclássica, argumentando
enfaticamente que o desenvolvimento requeria a reinstauração dos mecanismos de
mercado e o correto rearranjo de todas as políticas (getting all policies
right) (Meier,_2001): liberalizar o comércio e o investimento estrangeiros,
aplicar programas de estabilização, privatizar empresas estatais e restaurar o
sistema de preços.
O Chile está entre os primeiros países influenciados por esta vertente de
pensamento. Corrigiu suas políticas (no sentido acima) com relativo sucesso se
as taxas de crescimento são o foco, mas com resultados negativos se as
desigualdades e a ausência de democracia forem incluídas na fatura (Solimano,
2012). Ainda mais significativo foi o redirecionamento da política de
empréstimos do Banco Mundial, acompanhando a substituição do economista-chefe
Hollis Chenery, da primeira geração de economistas do desenvolvimento, por Anne
Krueger, da segunda geração, em 1982: a certa altura, países devedores estavam
pagando mais do que se beneficiando dos empréstimos (Goldman,_2005). Ainda
assim, no final da década de 1980, e apesar de crítica contundente em um
importante relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
documentar graves danos à saúde e à educação de crianças do Terceiro Mundo
associados a programas de ajustamento (Goldman,_2005), prevaleceu a ideia de
“retificação” das políticas, que foi absorvida no conjunto de dez recomendações
do “Consenso de Washington” (Williamson,_1990).
Com o tempo, problemas persistentes de desempenho econômico, crescimento fraco
ou nenhum crescimento, volatilidade, pobreza e desigualdade, na sequência da
adoção das recomendações, ao mesmo tempo que seguiram fomentando crítica e
protesto, tiveram o efeito de voltar a atenção das organizações financeiras
internacionais para as instituições dos países em desenvolvimento. A Nova
Economia Institucional (Williamson,_1985) já vinha há certo tempo argumentando
que mercados não emanam do vácuo. Sua explicação da trajetória de
desenvolvimento de países industrializados (North,_1990) e a desastrada
construção de economias de mercado das cinzas das sociedades socialistas do
Leste Europeu contribuíram para tornar claro que, para o bem e para o mal, as
instituições importam.
Apesar da incerteza teórica acerca de quais instituições se qualificam como
adequadas (Bardhan,_2005), as instituições de países em desenvolvimento, na
medida em que eram vistas como diferindo daquelas existentes em países
desenvolvidos nos quais os mercados prosperavam, tornaram-se o objeto de
diferentes recomendações de reforma (Williamson,_2004; Singh_et_al.,_2005). Uma
lista expandida de recomendações incluindo liberalização de mercados de
trabalho, padrões e códigos financeiros, independência do Banco Central,
eliminação de controles de capital, boas práticas de governança corporativa e
políticas sociais focalizadas foi incorporada ao arsenal de reformas das
instituições financeiras internacionais (Williamson,_2004; Rodrik,_2006). No
entanto, ao fim de uma década de reforma fracassada (os anos 1990), uma
reavaliação contida no relatório de desenvolvimento do Banco Mundial de 2005
reconheceu que as recomendações deveriam definitivamente afastar-se da norma
universal (one size fits all rule), enfatizando menos a eficiência e mais a
dinâmica do crescimento (Rodrik,_2006). No mesmo ano, no entanto, o FMI (Fundo
Monetário Internacional) reitera sua orientação, admoestando os países sob sua
tutela que tentem com mais afinco (try harder) (Singh_et_al.,_2005).
Reintroduzindo o Estado
A perspectiva do Banco Mundial (Lin,_2011) mencionada na seção anterior, o
chamado neoestruturalismo, que recupera o papel do Estado como complementar às
forças de mercado, é uma indicação da busca de novas maneiras de abordar o
desenvolvimento no âmbito dos organismos internacionais face ao fracasso do
fundamentalismo de mercado.
Outra indicação vem de um desdobramento de ideias provenientes do próprio campo
neoinstitucionalista e do interior da comunidade acadêmica que influencia o
Banco Mundial, sugerindo uma alternativa contextual ao “institucionalismo
universal”, que até então prevalecera naqueles organismos, e se aproximando do
institucionalismo histórico de Evans, Amsden e Chang, entre outros. Esta nova
perspectiva, mesmo admitindo que algo dera errado com a intervenção estatal nos
casos falhos de desenvolvimento, argumenta que aos países deveria ser permitido
construir suas próprias soluções institucionais a problemas de desenvolvimento
conforme sua própria percepção, e com base em suas experiências e
circunstâncias (Rodrik,_2000; Pritchett et al., 2010). Enquanto
institucionalistas históricos, como Chang, observariam que nem mesmo os países
hoje desenvolvidos teriam criado as instituições recomendadas pelos organismos
oficiais quando estavam se preparando para o takeoff – e que, portanto, muitas
das instituições teriam sido mais consequência do que causa do desenvolvimento
(Chang,_2002) –, outros, a partir de um dissenso interno à comunidade
institucionalista de policy dos organismos multilaterais, elaborariam
perspectivas mais “comunitaristas” ou diretamente “políticas” como alternativas
ao institucionalismo universal.
Na primeira dessas vertentes, a superação dos problemas para o desenvolvimento,
incluindo aqueles gerados pela própria intervenção estatal, seria encaminhada
com ênfase em projetos representando soluções enraizadas no ambiente de sua
aplicação. Seria algo como um caminho do meio entre o modelo de grandes
projetos concebidos à semelhança das melhores práticas e modelos
organizacionais de países desenvolvidos, que terminam por falhar em países não
desenvolvidos pela insuficiência de recursos de implementação para alcançar o
funcionamento ideal, e o de pequenos projetos de comunidades ou grupos, que
apesar de alcançarem sucesso não são capazes de se replicar nem alcançar
escala. O caminho do meio teria concepção modular, contemplaria aprendizado
organizacional com metas flexíveis e realistas no lugar de padrões de países
desenvolvidos, com genuíno comprometimento, compartilhamento de soluções,
capacidades de implementação e prestação de contas se desenvolvendo ao longo do
processo (Pritchett_et_al.,_2010; Pritchett_e_de_Weijer,_2010). Na outra
versão, tratar-se-ia de aprofundar as democracias (Rodrik,_2000): não
importaria tanto a escala dos projetos, se locais ou nacionais, e sim o regime
democrático, em particular se der voz efetiva aos segmentos não elite da
população, com genuína experimentação de desenvolvimento podendo ocorrer.
Empiricamente, enquanto a primeira vertente pode não mais que relatar
experiências avulsas de sucesso, a vertente política foi capaz de documentar
uma grande amostra de casos nos quais a democracia “participativa” superou
regimes alternativos na promoção de crescimento, em especial crescimento
estável, previsível, persistente e mais igualitário (Rodrik,_2000).
Aparentemente, regimes democráticos com mais intensa participação de não elites
no processo decisório superaram outros tipos de arranjos políticos na qualidade
de mecanismos de agregação de preferências, reunião de conhecimento e livre
experimentação e ajustamento de soluções institucionais.
A intervenção do Estado, que esteve sob forte suspeita por conta da crítica
empreendida pela teoria da escolha pública, ganhou novo alento com esse
desdobramento no campo institucionalista. De fato, ao estabelecer democracias
mais participativas como um enquadramento mais apropriado para a definição do
“interesse público” e das prioridades do desenvolvimento, a perspectiva de
aprofundamento democrático contribui com um argumento deefetividade para a
reabilitação da dimensão política, não meramente burocrática, do Estado no
pensamento desenvolvimentista. Nessa capacidade, ela contrasta distintamente
com abordagens que dão ênfase a conexões das burocracias planejadoras com a
elite (Johnson, Woo-Cumings, Amsden) ou ao mercado com redução do papel do
governo na alocação de recursos (Krueger).
De certo modo, a análise de histórias de sucesso de países desenvolvidos, nas
quais o alinhamento de acumulação de capital, crescimento sustentado e bem-
estar basicamente ocorreu, complementa o argumento de efetividade da democracia
no experimento desenvolvimentista com um argumento delegitimidade. Embora não
seja esta a interpretação canônica em teorias econômicas do desenvolvimento, é
notoriamente reconhecido que, nesses casos, a transformação econômica foi
assistida por ampla negociação da distribuição de seus bônus: um Estado de bem-
estar social politicamente negociado coevoluiu com a democracia, ajudando a
difundir bem-estar por meio de redistribuição e de provisão de bens públicos,
ao mesmo tempo em que a economia se expandia (uma das hipóteses em Kuznets_
(1955) para explicar a queda da desigualdade simultânea ao crescimento). De
fato, como analistas políticos observaram (Berman,_2006; Schmitter,_1974;
Streeck,_2009), na Europa continental a nova forma de Estado tanto era um
conjunto de políticas sociais de compartilhamento de riscos e provisão de
serviços, quanto se configurava como um mecanismo extraparlamentar de expressão
de demandas organizadas de elites e não elites, evoluindo conjuntamente com o
sistema político. Os casos da Alemanha, país pioneiro do Estado do bem-estar, e
da Coreia, um Estado do bem-estar emergente, ilustram bem este ponto, como
descrevemos a seguir.
A Alemanha de Otto Von Bismarck passou por mudanças aceleradas, não só na
industrialização e urbanização, como na demografia e no sistema político. Nas
últimas décadas do século XIX, a seguridade social foi proposta pelo governo
conservador em busca de controle social e neutralização da penetração
socialista. A partir de sua introdução, o sistema de bem-estar evoluiu como
resultado de negociação de classes e representação parlamentar, com a política
social se estabelecendo com base em contribuições do capital e do trabalho, se
estendendo para além dos trabalhadores industriais a outras ocupações,
assumindo novas formas e maiores benefícios. O sistema de bem-estar foi, pois,
construído como parte do processo de desenvolvimento, nem antes nem depois –
ainda que o ambiente político da Alemanha, e da Europa de modo geral, não tenha
logrado naquele momento reconciliar o emergente capitalismo com a sociedade
civil e a democracia, dando origem às décadas de perturbação do início do
século XX (Berman,_2006).
Já na reconstrução da Alemanha do pós-guerra, o experimento que coloca em
prática a doutrina social-cristã da “economia social de mercado” endossada por
Konrad Adenauer e sua União Democrata-Cristã (Kerstenetzky_e_Kerstenetzky,
2014b) se fez com acomodação exitosa entre forças de mercado e democracia, com
raízes na então já longa tradição corporativista, produzindo crescimento
pujante ao menos até os anos 1980. Um elevado grau de coordenação entre
questões econômicas e sociais assegurou proteção em relação a riscos para
bancos, indústria e trabalho, fazendo parte desta coordenação um Estado de bem-
estar financiado por contribuições. Este garante aos trabalhadores reposição de
rendimentos, nas então habituais circunstâncias de risco das sociedades
industriais capitalistas. Sob o arranjo de “parceria social” de estilo alemão,
sindicatos de trabalhadores e empregadores barganham salários e emprego de
forma autônoma, com consequências em termos de crescimento, inflação e
desemprego, enquanto aos sindicatos é garantida voz na gestão de firmas
individuais e na administração do sistema de seguridade social (Streeck_e
Hassel,_2004).
A relação entre desenvolvimento e democracia também lança luz sobre a
trajetória de países emergentes, como a Coreia e o Brasil (Kerstenetzky,_2014;
Kerstenetzky,_2012), que transitaram de regimes autoritários a democráticos. A
história coreana tem início na rápida acumulação de capital entre os anos 1960
e 1980, sob a condução de um governo autoritário (Woo-Cumings,_1999). Visando
ao rápido crescimento industrial, o Estado “parteiro” fomentou grupos
industriais e estabeleceu com eles uma relação próxima, com canalização de
recursos escassos em troca de compromisso de desempenho econômico e absorção de
tecnologia (Amsden,_1989). O rápido crescimento econômico que elevou
significativamente a renda agregada (também auxiliado por investimentos prévios
em educação e por uma reforma agrária) se fez acompanhar por um governo
autoritário, forte repressão política, atividade sindical fraca e bem-estar
social deficiente. O governo militar assegurou benefícios sociais para
segmentos selecionados da população (professores, soldados e funcionários
públicos), mas coube aos empresários prover obrigatoriamente benefícios aos
seus empregados (Sook,_2004) e às famílias (especialmente às mulheres) cuidar
dos inativos e desempregados (Gough,_2004).
O modelo de contenção de pressões acabou por romper-se nos anos 1980. A
insatisfação crescente com o governo trouxe mobilização política e
democratização e abriu caminho para o progresso em bem-estar social (Sook,
2004; Evans_e_Heller,_2015), que se intensificou especialmente após a crise
asiática, no final dos anos 1990. Apesar da acumulação de capital e do
crescimento rápido no período de catch up, foi com a democracia e uma nova
orientação na direção de um bem-estar universal que a proteção social se
difundiu, ao mesmo tempo que a economia seguiu crescendo (Evans_e_Heller,
2015). O caso brasileiro, de sucesso bem mais comedido, traça, contudo,
percurso semelhante, com período de crescimento acelerado sob regime
autoritário seguido, com um intervalo de quase duas décadas, pela combinação
recente de democracia, aumento de bem-estar social e crescimento moderado
(Kerstenetzky,_2012, 2014).
Se o Estado de bem-estar social foi um fator crítico para assegurar o bem-estar
na era industrial, e assim legitimar a mudança econômica, o mesmo parece se
aplicar às economias do conhecimento das sociedades pós-industriais
contemporâneas. Neste novo ambiente, os processos econômicos, em combinação com
mudanças demográficas e sociais, acrescentaram outros riscos sociais às
incertezas dos ciclos de vida e econômico: conexões precárias de mercado de
trabalho, composições familiares heterogêneas e envelhecimento das populações
(Esping-Andersen,_1999, 2009). Riscos sociais de nível elevado representaram um
provável impulso para a expansão do Estado de bem-estar nas economias centrais
nos anos 1980 e 1990 e para sua difusão a regiões como o Sudeste Asiático e a
América Latina nos anos 2000, onde ele se combinou com o processo de
democratização (Castles_et_al.,_2010; Haggard_e_Kaufman,_2008; Kerstenetzky,
2012).
Observou-se ainda que o Estado de bem-estar afeta diretamente a produção de
riqueza, uma função crítica em face das demandas e requisitos da economia do
conhecimento. De fato, estudos sobre experiências de desenvolvimento econômico
identificaram funções legitimadoras e “produtivistas” do bem-estar social, como
a negociação de esforços produtivos em troca de direitos sociais (Chang_e
Kozul-Wright,_1994; Kaspersen_e_Schmidt-Hansen,_2006) e estímulo adicional à
inovação via garantia de segurança econômica e políticas de educação e formação
de longa duração (Kangas_e_Palme,_2005; Boyer,_2008). Tais ações, que são a
marca registrada do modelo socioeconômico escandinavo, são examinadas no estudo
do caso dinamarquês apresentado mais adiante neste artigo, depois de abordarmos
mais uma perspectiva fundamental na próxima seção.
RESSIGNIFICANDO O DESENVOLVIMENTO E O ESTADO DESENVOLVIMENTISTA
A multiplicidade de experiências nacionais, sejam elas variadamente exitosas,
sejam fracassadas, suscita uma reflexão normativa a respeito do que se deve
propriamente entender por desenvolvimento. De um lado, observando o que em
termos econômicos geralmente se compreende como experiência bem-sucedida, o
catch updos tigres asiáticos, poder-se-ia argumentar, como alguns fizeram, que
tais países alcançariam ainda mais sob democracias no lugar de conexões
exclusivas entre a burocracia estatal e as elites. Por outro lado, experimentos
de crescimento econômico com resultados pobres em termos de bem-estar, de
“opulência sem propósito” (Drèze_e_Sen,_2002), como o Brasil dos anos 1970,
dificilmente se sustentam como casos de desenvolvimento, sem qualificação
adicional: houve crescimento acelerado e redução da pobreza de renda, mas
aumento significativo da já elevada desigualdade e insuficiente evolução de
indicadores sociais como mortalidade infantil, analfabetismo e acesso a
serviços básicos. Da mesma forma, a avaliação de trajetórias e realizações de
diferentes países desenvolvidos pode estimular comparações de sucesso relativo,
em aspectos que vão além dos rendimentos per capita, os quais, na realidade, os
diferenciam pouco. Um exemplo são os diferentes graus de desigualdade
econômica, resultantes, em parte, de configurações distintas de Estados de bem-
estar social, que aparecem na comparação da Dinamarca universalista (Gini de
0,24 em 2011) com a Alemanha corporativista (0,29) ou dos EUA (0,37) com países
da Europa continental (0,29). Em termos gerais, a reflexão normativa é
estimulada pela crescente insatisfação com a equiparação de desenvolvimento com
acumulação de capital e crescimento do produto/renda per capita, e pela reação
a ela, sob a forma de crescente fixação finalista em realizações, estados e
atividades humanas. A assim denominada abordagem das capacitações se destaca
por proporcionar referencial candidato a atender tais inquietações (Sen,
1983)3.
A abordagem das capacitações recupera a ideia original de desenvolvimento como
promoção de bem-estar e formaliza esta noção como expansão de reais liberdades
ou capacidades que pessoas e grupos possuem para viver vidas que considerem
significativas. Argumenta que estas não são redutíveis a crescimento do
produtoper capita. Liberdades reais incluiriam aspectos de oportunidade e de
agência: requerem condições sociais que permitam às pessoas tomar decisões
autônomas a respeito de planos de vida, inclusive por meio da participação em
decisões coletivas que afetam seus planos, e seguir o planejado. Se, como
sugerido, desenvolvimento se traduz em liberdade (Sen, 1999), políticas de
desenvolvimento deveriam tratar de criar e sustentar suas precondições, e o
produtoper capita não seria o único fator importante.
De fato, na perspectiva da abordagem das capacitações, a substituição dos
objetivos genuínos do desenvolvimento por algo que deveria permanecer apenas
como um dos meios para alcançá-los tem consequências negativas. Liberdades
reais não estão à venda nos mercados e podem estar ausentes enquanto o produto
cresce e as políticas estão fixadas no seu crescimento. O estado de saúde de
uma população é mais bem servido pelo cuidado dispensado à saúde do que através
de políticas de crescimento econômico (Sen,_1989; Drèze_e_Sen,_2002). A
liberdade de não passar fome se refere mais a titularidades – tanto de
propriedade como de troca, e de provisões sociais e políticas como proteção
social, direitos, democracia – do que a poder de compra (Sen,_1983, 1999). De
maneira geral, proteção social, direitos e democracia seriam centrais na
promoção de capacitações pouco relacionadas aos rendimentos, como saúde,
educação, igualdade social, autorrespeito ou liberdade em relação a “assédio
social” (Sen,_1983). Portanto, desenvolvimento nessa visão seria mais
apropriadamente descrito como mudança social, processo pelo qual o domínio das
circunstâncias e da sorte sobre os indivíduos é substituído pelo domínio dos
indivíduos sobre circunstâncias e sorte (Marxapud Sen,_1983).
Segue-se então um deslocamento da atenção dos mercados em direção à política,
na medida em que a mudança social dependeria de decisões coletivas (Sen,_1983).
Outra consequência é o papel central atribuído à escolha democrática sobre
itens e prioridades no interior do conjunto das capacitações, o que decorre do
reconhecimento de sua multidimensionalidade e da importância conferida à
dimensão da agência. Mas, ainda assim, não seria o crescimento do produto
favorável à expansão das capacitações?
Alguns estudos empíricos analisaram a relação entre crescimento econômico e
bem-estar (Drèze_e_Sen,_2002; Stewart_et_al.,_2011) e concluíram que
crescimento sem promoção prévia de capacitações (basicamente, saúde e educação)
não parece sustentar-se ou levar à expansão posterior de capacitações (Stewart
et_al.,_2011); e que políticas que procuram impulsionar o crescimento não são
suscetíveis de levar a crescimento sustentado a não ser que incrementos nas
capacitações também sejam diretamente perseguidos. Tais resultados são
compatíveis com recentes teorias do crescimento, que enfatizam educação e
investimentos em tecnologia como fatores reproduzíveis por meio dos quais o
crescimento presente pode se converter em crescimento futuro. Outros estudos,
relatados em Stewart_et_al._(2011), apontam em direção semelhante, ao observar
que certo nível de educação deve ser atingido antes que a economia se liberte
da armadilha de baixa renda, após o que o crescimento econômico ampliará
capacitações. Dentre os impactos mensurados de capacitações sobre o crescimento
estão os efeitos de aumento de produtividade relacionados à saúde e educação e
os de despesas em educação e saúde sobre o investimento privado. Investimentos
precoces em educação na Coreia ilustram o caso (Chang_e_Kozul-Wright,_1994;
Evans_e_Heller,_2015). Outras referências são os investimentos em educação
realizados por países de desenvolvimento retardatário, como a Alemanha e os
países escandinavos (Chang,_2002; Kangas_e_Palme,_2005). Porém, como abordagem
mais geral, a abordagem das capacitações elabora uma estrutura na qual as
funções instrumentais não esgotariam o valor da educação, que é vista como
objetivo de desenvolvimento em si, para além de sua utilidade para outros
propósitos (por exemplo, crescimento sustentado). O mesmo valeria para a
democracia. Esse modo de ver decorre da dupla natureza da liberdade real, como
oportunidade e como agência.
Na realidade, quando se trata da influência da renda agregada sobre as
capacitações, os resultados são mistos. Há suporte empírico para a noção de
que, por exemplo, reduções na taxa de mortalidade e incrementos na expectativa
de vida tenham sido induzidos por melhorias tecnológicas e, indiretamente, por
aumentos na renda agregada (Stewart_et_al.,_2011). Mas o registro histórico
também documenta casos em que aumentos nas capacitações são consistentes com
uma abordagem mais direta, não mediada pela renda. Há forte evidência, por
exemplo, de que, se a interação entre saúde básica e resultados em educação é
forte, ambos estão frouxamente relacionados com a renda (Drèze_e_Sen,_2002).
Casos conhecidos de desenvolvimento não mediado por crescimento econômico
contaram com a ação do Estado. Isso é sugerido, por exemplo, pelo notório
experimento de desenvolvimento do densamente povoado estado indiano de Kerala
(que conta com uma população de 32 milhões de pessoas). Na medida em que apoiou
a mobilização social para a promoção de capacitações básicas, a ação do Estado
foi capaz de dar início a um ciclo de realizações por meio do qual outras
liberdades se fortaleceram, entre elas a liberdade de participar da mudança
social.
Em Kerala, a ação pública (Drèze_e_Sen,_2002), empreendida por atores do Estado
em conjunto com organizações políticas e sociais, deu início em 1950 a um
processo de redistribuição de titularidades e realocação de prioridades que,
nas décadas seguintes, sob a liderança de governos de esquerda (aglutinados em
torno do Partido Comunista da Índia – Marxista), envolveu reforma agrária,
alfabetização e matrícula escolar em massa, gerando uma cidadania educada e
politicamente ativa que seguiu demandando oportunidades sociais e
empoderamento. A viabilidade prática desse processo não mediado por crescimento
foi garantida pela natureza intensiva em trabalho da provisão pública de
educação primária e de cuidados básicos de saúde, em uma economia de baixos
salários, e por complementaridades entre resultados educacionais e status de
saúde (Drèze_e_Sen,_2002).
Outro ingrediente, principalmente na segunda fase da experiência
desenvolvimentista nos anos 1990, foi a ampla mobilização social, como ilustram
a campanha de alfabetização em massa de 1991 e, sobretudo, o amplo processo de
planejamento participativo descentralizado iniciado em 1996 (Isaac_e_Franke,
2002). Nesse experimento, foi instrumental uma mudança doutrinária no âmbito do
PCI(M), que passa a considerar a descentralização democrática e a participação
popular direta na concepção, planejamento, gestão e controle de políticas
públicas como ação socialmente transformadora.
Superando a Índia em muitos indicadores sociais e apresentando realizações
comparáveis à Coreia em expectativa de vida, mortalidade infantil e
alfabetização, Kerala alcançou elevado desenvolvimento social apesar do
diminuto produtoper capita. O caso ilustra a força e a eficácia de fatores
políticos – uma democracia consolidada, um partido governante compromissado e
responsivo, e intensa mobilização política e social de organizações populares –
no redirecionamento das prioridades do desenvolvimento. Em um bom número de
interpretações da experiência de Kerala, a participação e o franco
empoderamento dos desprivilegiados são considerados objetivos finais do
processo de desenvolvimento (Isaac_e_Heller,_2003; Isaac_e_Franke,_2002; Véron,
2001) – ofuscando os resultados econômicos.
Quando considerados os casos de desenvolvimento mediado por crescimento, mais
uma vez, a provisão pública de oportunidades para capacitação, não o
crescimento em si, parece ter feito a diferença (Drèze_e_Sen,_2002; Kenworthy,
2010). Redistribuindo renda para financiar a provisão de oportunidades que
afetam o bem-estar das pessoas e suas perspectivas de vida, o Estado de bem-
estar foi a forma de Estado que prevaleceu: ao apoiar o progresso econômico,
contribuiu para aumentar a disponibilidade de recursos para a provisão pública
ampliada; com direitos civis e políticos garantidos, em um ambiente
democrático, contribuiu para aprofundar a democracia pela institucionalização
de mecanismos de negociação, coordenação e deliberação entre grupos da
sociedade; ao mitigar desequilíbrios sociais, contribuiu para aumentar o valor
dos direitos para os cidadãos. De fato, Estados de bem-estar reduzem a pobreza
e as desigualdades dos rendimentos de mercado em toda parte, em especial
aqueles mais robustos localizados em países europeus (OECD,_2008). Dentre estes
últimos, os mais universalistas, do norte da Europa, são os que promovem os
mais baixos graus de pobreza e desigualdade de renda pós-fisco e desigualdade
de oportunidades sociais (Checchi_et_al.,_2008).
Com o auxílio da abordagem das capacitações e, portanto, sob uma perspectiva
mais ampla não confinada à renda, o Estado de bem-estar aparece como um meio
geral de alcançar oportunidades para múltiplas capacitações, relacionadas seja
ao bem-estar, seja à agência dos cidadãos. Na próxima seção, detalhamos esses
efeitos amplos na experiência dinamarquesa, que abriga um dos mais robustos
Estados sociais da contemporaneidade ao lado de uma pujante economia de
mercado. Capacitações traduziram-se em cobertura de riscos sociais e provisão
de oportunidades sociais, extensiva e generosa, e um tipo peculiar de
democracia, participativa e altamente descentralizada.
UM ESTADO DESENVOLVIMENTISTA DE COMPARTILHAMENTO DE PODER E CRESCIMENTO:
DINAMARCA
Três características têm atraído a atenção dos estudiosos do modelo dinamarquês
de desenvolvimento: os padrões elevados de garantia de bem-estar e democracia;
o elevado nível de bem-estar apoiado em igualmente elevadas taxas de atividade
econômica; a atividade econômica e a promoção de capacitações baseadas em
estreita conexão entre Estado e organizações/associações da sociedade civil. A
evidência inclui altos índices de satisfação com a democracia
(Demokratiudvalget,_2004 apud Kristensen,_2011) e de emprego total, feminino e
de idosos (OECD,_2009); igualdade social e econômica e pobreza pós-fisco
reduzida (Checchi et al., 2009; OECD,_2009); satisfação no trabalho (European
Commission,_2004); e conciliação da vida familiar com o trabalho (European
Commission,_2004).
A história dessas interações virtuosas entre mercados competitivos, sociedade
civil ativa e Estado forte começa no final do século XIX, quando teve início o
apoio oficial a associações voluntárias, bem como inovações institucionais e de
políticas públicas, após um histórico de intensos conflitos sociais e políticos
e elevadas desigualdades (Obinger_et_al.,_2010; Atkinson_e_Sogaard,_2013).
Explicações sociocêntricas da origem desses arranjos no século XIX contestam
explicações estadocêntricas e vice-versa. Em todo caso, foi nessa época que
surgiu e se institucionalizou o estilo de parceria social dinamarquesa,
envolvendo densos grupos de interesse e o Estado em uma longa tradição de
elaboração de políticas por meio de consensos. Foi também nesse momento que
foram fincadas as raízes da prática de transformação econômica negociada,
incluindo troca de restrição salarial por direitos sociais. Outros ingredientes
a reforçar o experimento inicial foram a intensa mobilização política e os
governos social-democratas, que duraram cerca de cinquenta anos ao longo do
século XX até os anos 1970.
Após a Segunda Guerra Mundial, sob liderança social-democrata, tomaram forma os
contornos maduros do Estado de bem-estar dinamarquês que, após flertar
brevemente no entreguerras com princípios de seguridade baseada em
contribuições de tipo alemão, optou pelo universalismo, combinando elevados
níveis de adequação dos benefícios com uma visão abrangente de risco e proteção
social (Obinger_et_al.,_2010; Esping-Andersen,_1990). Foi concebida uma
variedade de benefícios e serviços de qualidade, financiados por impostos
gerais, para proteger a totalidade dos cidadãos (não apenas os trabalhadores)
das vicissitudes do ciclo da vida e das incertezas econômicas e infortúnios
intergeracionais.
Nos “anos dourados” do pós-guerra, o Estado de bem-estar veio a ser também
instrumental para o alcance de altos patamares de emprego e atividade
econômica. Foi importante fonte de empregos (em torno de 30%, em sua maior
parte feminino) e facilitou a participação econômica feminina, ao introduzir
creches universais e políticas de família, como as licenças-maternidade e
paternidade remuneradas e as prestações familiares. O modelo de família de duas
fontes de rendimentos (dual-earner families) foi fortemente encorajado, entre
outras medidas com a introdução do imposto de renda individualizado, o que
provou mais tarde ser um potente escudo contra a pobreza infantil e um futuro
pobre, colocando a Dinamarca em posição privilegiada nesse quesito entre os
países da OECD. O investimento público em educação na primeira infância também
se mostrou um equalizador de perspectivas de vida. Finalmente, a criação de um
sistema de emprego público, outra inovação do período, veio a revelar-se
estratégica nas décadas seguintes.
Quando sobreveio a crise dos anos 1970 e tornou-se clara a necessidade de
mudanças estruturais na economia e na sociedade, os dinamarqueses, ao mesmo
tempo em que se mantiveram fiéis ao estilo consensual de elaboração de
políticas, liberalizaram suas políticas econômicas e expandiram e recalibraram
suas políticas sociais, disto obtendo benefícios. De fato, embora tenha elevado
continuamente a despesa social de forma a ultrapassar a metade da despesa
pública e um terço do PIB nos anos 2000, a Dinamarca beneficiou-se da economia
do conhecimento e da globalização (Kristensen,_2011), atingindo os melhores
resultados no índice de competitividade do Fórum Econômico Mundial e de PIBper
capita nos anos 2000 (ibidem), além de níveis máximos de participação da força
de trabalho e baixo desemprego já nos anos 1990 (Kenworthy,_2004).
Duas inovações associadas ao alto grau de autonomia nacional na formulação de
políticas, raro em um contexto de liberalização econômica e integração
europeia, parecem responsáveis por alçar a Dinamarca à dianteira da economia do
conhecimento com prosperidade social.
A primeira é a “flexiseguridade” (flexicurity), uma combinação de mercado de
trabalho flexível e benefícios de bem-estar generosos com políticas de mercado
de trabalho ativas. Ao acomodar os anseios de mercados competitivos por
flexibilidade com os de trabalhadores por segurança econômica e prosperidade,
estas políticas proporcionam treinamento e retreinamento de longo prazo,
adicionando à flexibilidade do trabalho perspectivas de maior qualificação,
melhores postos de trabalho e aprendizado ao longo da vida.
A outra é o suporte público a investimentos privados em inovação. Este combina
coordenação e financiamento com despesas do Estado de bem-estar: educação
pública universal, treinamento e retreinamento da força de trabalho,
aprendizado ao longo da vida e educação na primeira infância, promotora de
habilidades cognitivas, em combinação com benefícios monetários que contribuem
para garantir a atividade contínua da população (Huo_e_Stephens,_2015). Estas
políticas interagiram positivamente com o chamado “aprendizado discricionário”,
forma de organização do trabalho que enfatiza a autonomia máxima do
trabalhador, disseminado pela maioria dos empregos dinamarqueses (ibidem), para
o que contribuiu a elevada densidade sindical típica do Estado de bem-estar
nórdico (Esser_e_Olsen,_2012). O aprendizado discricionário, muito valorizado
nos sistemas de inovação em rede (networked innovation systems), em que há alto
grau de cooperação entre firmas, empregadores, trabalhadores e localidades
(Kristensen,_2011), acarretou elevado nível de satisfação no trabalho entre os
trabalhadores dinamarqueses (European_Commission,_2004).
À medida que o Estado desempenhava novas funções – de fato, atualizando o
compartilhamento e atendimento a riscos sob as novas circunstâncias –, mais de
seu funcionamento interno ia se tornando aparente.
As burocracias nórdicas são conhecidas por sua qualidade, mas uma
característica adicional é terem florescido dentro da tradição democrática de
negociação e parceria com os principais interesses organizados. Na variedade de
comissões e comitês de consulta, preparação de legislação e implementação de
políticas, em conjunto com o sistema político, burocratas dinamarqueses
praticam sua relativa autonomia ao mesmo tempo em que dividem o espaço político
com atores sociais centrais (Kaspersen_e_Schmidt-Hansen,_2006). Estes, por sua
vez, acabam se “cultivando” em deliberação pública quanto ao bem-estar, à
organização de firmas e temas econômicos e sociais relevantes (Boyer,_2008) –
um processo que, embora não elimine conflitos, minimiza impasses e a
necessidade de intervenção governamental de cima para baixo. Mais recentemente,
a partilha do poder se estendeu a uma variedade de associações e agendas de
cidadãos e tornou-se menos centralizada, reforçando ainda mais o componente
direto da democracia dinamarquesa (Kristensen,_2011; Boyer,_2008). Este tipo
peculiar de estatização deve constituir uma das explicações para o reduzido
grau de insatisfação dos dinamarqueses com a globalização (Kristensen,_2011),
ao facilitar a negociação de direitos sociais por competitividade, e desse modo
tornar compartilhados os frutos do crescimento. Uma ilustração é a reforma do
mercado de trabalho de 1994 que introduziu a já mencionada “flexiseguridade”
(Kaspersen_e_Schmidt-Hansen,_2006).
Várias análises observam que o investimento centrado nas pessoas e ao longo de
suas vidas priorizado pelos dinamarqueses não significa necessariamente que sua
orientação igualitária se traduza em igualdade aqui e agora: o fato de uma
porção de pessoas se mover do emprego ao desemprego e de volta ao emprego ou
educação e treinamento, mesmo com segurança econômica, pode em alguns momentos
comprometer esse objetivo. Talvez onde com mais força essa orientação se
encontre resguardada seja em termos da igualdade de chances de vida e proteção
(Esping-Andersen,_1999), portanto igualdade ao longo da vida, especialmente à
medida que o país embarca na economia inovativa e experimental, um ambiente de
mudanças e incerteza (Kristensen,_2011).
Por estar o modelo socioeconômico enraizado em um etos febrilmente mercantil,
resta saber se será capaz de resistir às desigualdades crescentes e ameaças à
solidariedade social que assombram as economias do conhecimento. Até o momento
o processo foi em sua maior parte negociado e, em consequência, o alinhamento
de meios e fins do desenvolvimento, a alma do regime dinamarquês, segue
garantindo uma economia política que lhe dá suporte.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Conforme a ideia de desenvolvimento viaja no tempo, modifica-se a compreensão
da ação do Estado. Se por um longo tempo essa ideia esteve capturada pela noção
de transformação econômica, cuja promoção era conferida a um Estado
administrador-planejador, hoje é geralmente reconhecido que a dimensão política
é central para controlar a economia política do desenvolvimento: para quem irão
os frutos? Mas, não apenas “como fazer?” e, mais radicalmente, “o que fazer?”
são questões que já se consideram da alçada da cidadania, não exclusivamente de
burocratas insulados ou articulados com elites.
Ademais, a análise do desenvolvimento não se pode furtar a continuamente
ressignificar as experiências passadas à medida que olha para os novos
desafios. Já não é mais possível reduzir a experiência europeia do pós-guerra à
simples industrialização sem compreender o quanto se negociou e condicionou
esse processo ao consenso entre os atores sociais centrais quanto à repartição
dos frutos e participação no poder: não apenas garantias de bem-estar foram
construídas como também mecanismos de negociação e deliberação sobre políticas
públicas tornaram-se institucionalizados.
Em face de novos significados, dificilmente alguma experiência estará
solidamente estabelecida como um padrão a ser imitado. De fato, alguns dos
assim chamados países desenvolvidos podem parecer menos desenvolvidos, quando,
por exemplo, dão livre curso a crescentes desigualdades de bem-estar e, dentre
os menos desenvolvidos, alguns estarão aptos a ensinar uma ou duas lições,
quando, por exemplo, inovam em experimentos participativos.
Em termos abstratos, o conceito de desenvolvimento proposto por Sen, ao
proporcionar uma referência para se pensar a noção genérica de bem-estar,
procura capturar a plasticidade de significados. O desenvolvimento é expansão
das possibilidades de realização humanas, e, portanto, libertação das
constrições sociais que a tolhem. O conceito, porém, não lista as realizações
nem especifica as suas condições de possibilidade. Seu maior atrativo é
justamente delegar a fixação de conteúdos e condições à deliberação democrática
– implicitamente acomodando a natureza plural e até certo ponto incomensurável
do “bem”, isto é, os propósitos do desenvolvimento (p.ex., consumo,
participação, equidade, sustentabilidade).
A deliberação democrática, por sua vez, encontra justificação direta na
liberdade de agência humana (possibilidade de participação em decisões que
promovem mudança social) que, ao lado da liberdade substantiva para a
realização de demais potencialidades humanas, é central nessa perspectiva.
Democracia, portanto, não seria exclusivamente buscada por sua influência sobre
efetividade e legitimidade de experimentos desenvolvimentistas, mas também por
ser expressiva da condição de agentes livres dos cidadãos e, por isso,
componente integral do desenvolvimento.
Uma consequência evidente é que o Estado desenvolvimentista deverá não apenas
se valer de, como encorajar, mecanismos de escolha democrática. O lugar do
Estado segue justificado, na medida em que a categoria interesse público faz
sentido no discurso sobre o desenvolvimento e a mais ampla participação
política é mecanismo adequado de decisão quanto ao seu conteúdo.
Quando nos voltamos para as experiências nacionais, a forma de Estado que nas
décadas do pós-guerra pareceu mais efetivamente conduzir ao desenvolvimento de
capacitações e agência foi o Estado de bem-estar social. Em princípio isso
teria ocorrido por sua capacidade de neutralizar o “domínio das circunstâncias
e da sorte” sobre as liberdades reais dos indivíduos e de tornar a
transformação econômica mais legítima e efetiva como meio para a mudança
social.
Na realidade, democracias tornaram o Estado do bem-estar mais responsivo.
Quando associado a regimes democráticos, o Estado de bem-estar social pode
proporcionar o que a maioria dos eleitorados escolheu como as prioridades do
desenvolvimento. Este potencial se verificou não só em experimentos
produtivistas como o alemão e o coreano como também em casos marcados por
deliberado não produtivismo como o de Kerala, que, não obstante, podem ser
igualmente considerados como forma de Estado de bem-estar porque envolveram
redistribuição, provisão de bens públicos e mobilização política.
Reciprocamente, Estados de bem-estar podem contribuir para aprofundar
democracias: intervenções de promoção de igualdade aumentam o valor das
liberdades políticas para os menos favorecidos, e mecanismos de negociação e
participação tornam-nas mais diretas e representativas. Quando isto ocorre,
como na experiência dinamarquesa, Estados de bem-estar democráticos revelam
graus significativos de flexibilidade para lidar com circunstâncias que
representem novos riscos sociais, como a globalização, o envelhecimento das
populações e mudanças nas estruturas familiares.
Estados de bem-estar social e democracias, contudo, existem sob diferentes
formas e graus de sucesso em termos de desenvolvimento como liberdade. Alguns,
por exemplo, reduzem pouco as desigualdades de renda e de oportunidades e a
pobreza (OECD,_2008; Acemoglu_et_al.,_2013). Desse modo, são questões de
interesse, além do estudo da diversidade institucional e de economias políticas
de Estados do bem-estar e democracias, os diferentes elementos que compõem o
conjunto de capacitações objeto da escolha social. No estudo desses elementos,
é importante identificar tensões e complementaridades entre eles, por exemplo,
participação política e representação; participação e igualdade; padrões de
vida crescentes, desigualdades geradas pelo mercado e apoio político à
redistribuição; evolução de padrões de vida e sustentabilidade ambiental.
Ademais, do ponto de vista político, a identificação de coalizões
desenvolvimentistas, bem como de mobilização social e ação pública em sentido
amplo, parece central. Os dois casos de maior sucesso relativo aqui destacados
contaram com governos duradouramente dominados por coalizões de esquerda e
ampla e institucionalizada mobilização social e descentralização. Os partidos
de esquerda que lideraram essas coalizões vocalizaram concepções igualitaristas
(igualdade de condições) e participativistas (participação direta e localismo)
de desenvolvimento.
Cabe ainda assinalar que a escolha social de Kerala, de realizações várias sem
crescimento, já provoca tensões e reacomodações no modelo para atender a novas
exigências de bem-estar que, contudo, conflitam com equilíbrios sociais
previamente alcançados. Ademais, a ênfase em uma abordagem classista não teria
evitado clivagens societárias por casta/religião/gênero, mesmo que no confronto
com o restante da Índia estas tenham sido minimizadas. A escolha dinamarquesa
de bem-estar com crescimento baseado em inovações está aumentando a porção da
renda apropriada pelo um por cento mais rico (Esping-Andersen,_2013). Além
disso, a inserção diferenciada dos imigrantes atraídos pelo sucesso do modelo
ameaça o seu universalismo. Como se desdobrarão essas tensões? Há ainda o
problema da escala envolvendo as histórias de sucesso relativo de Kerala e
Dinamarca: seriam suas realizações possíveis em países como a Nigéria e o
Brasil, onde a ação social concertada, em virtude do mero tamanho, pode
mostrar-se mais difícil de alcançar? Ainda que neste último caso, a
descentralização seja uma avenida a explorar, não há como negar que estas
questões, essencialmente empíricas, deverão despertar interesse.
Em todo caso, parece inevitável que estudos futuros se voltem para a
diferenciação de formas de democracia e descentralização, e configurações
alternativas de Estado de bem-estar social, no esforço de compreender as
dinâmicas por vezes paradoxais da promoção do desenvolvimento.