Metamorfoses da Questão Geracional: O Problema da Incorporação dos Jovens na
Dinâmica Social
Varias generaciones viven en el mismo tiempo cronológico. Pero como el único
tiempo verdadero es el tiempo vivencial, se puede decir propiamente que todas
viven en un tiempo interior que, en lo cualitativo, es plenamente diferente a
los otros (Mannheim,_1993[1928]:200).
INTRODUÇÃO
Karl Mannheim apresentou, em 1928, uma seminal (e ainda atual) discussão sobre
“o problema das gerações”, que o tomava como dimensão central de qualquer
teoria da mudança social. Em suas palavras, o tema era “um dos guias
indispensáveis para a compreensão da estrutura dos movimentos sociais e
intelectuais” (Mannheim, 1928:522)1, “sem cujo esclarecimento não é possível
compreender a história em seu devir” (ibidem:565)2. Seu interesse residia tanto
nos mecanismos pelos quais as sociedades incorporam as novas gerações na vida
coletiva, procurando transferir a elas a herança cultural e simbólica herdada
do passado e abrindo, nesse processo, espaço para a renovação dos horizontes
culturais, normativos e cognitivos da vida em comum, quanto nos problemas
resultantes da convivência, no mesmo espaço social, de diferentes perspectivas
e orientações sobre aqueles mesmos horizontes, esposadas por gerações
sucessivas.
Desde a publicação deste e de outros importantes estudos sobre o problema das
gerações, surgidos antes3, o tema frequentou de muitas maneiras a teoria e a
pesquisa social, assumindo novos conteúdos ao longo do século XX. Embora as
perspectivas e os olhares sobre a relação entre as diferentes gerações que
habitam o mesmo espaço social tenha mudado ao longo do tempo, uma ideia de
fundo permaneceu, segundo a qual toda sociedade precisa se haver com o desafio
da incorporação contínua de novos entrantes no fluxo populacional, que tensiona
de muitas maneiras o tecido social.
Neste artigo, utilizando a discussão de Mannheim como fio condutor, proponho
uma interpretação (curta como requer o espaço disponível) sobre as metamorfoses
da questão geracional no mundo desenvolvido, com o objetivo de pôr em
perspectiva a experiência brasileira e iluminar especificidades que julgo
centrais para a compreensão de nossa dinâmica social mais geral e,
principalmente, de nossos padrões de incorporação das novas gerações à vida
coletiva. Para isso, na próxima seção recupero a discussão clássica de Mannheim
e sua apropriação por Shmuel Eisenstadt nos anos 1950 e 1960, chamando a
atenção para o viés fortemente normativo de ambas as construções do “problema
das gerações”. Esse viés mostrou sua face quando contraposto ao pendor
totalitário de parte da juventude europeia (em suas versões “hitlerista”,
“fascista”, “franquista” etc.) e também na crise social dos anos 1960 que,
dentre outras coisas, revelou o descompasso entre as promessas de bem-estar,
autonomia e liberdade da “era de outro do fordismo” (Boyer,_1995) e a realidade
alienante da sociedade de massa.
Discuto, a partir disso, o caráter da socialização no mundo contemporâneo (e
seu projeto republicano de equalizar oportunidades por meio de políticas
públicas universais), e abordo algumas consequências da crise dos empregos para
esse modelo de dinâmica intergeracional. E apresento, na seção final, uma
interpretação sobre o padrão brasileiro de transição geracional, mostrando que
o Estado esteve, sempre, muito distante dos mecanismos de estruturação das
trajetórias sociais da maioria da população, que precisou construir por si
mesma seu presente e seu futuro em ambientes marcados por grande insegurança e
vulnerabilidade socioeconômicas. Em suma, procuro contrapor o que considero um
padrão eminentemente público (e republicano) de estruturação das oportunidades
de vida das novas gerações, típico do mundo europeu, a outro, eminentemente
privado (e mercantilizado), característico do Brasil, que estaria, porém, em
processo de mudança nos últimos anos, ainda que muito lenta.
RECUPERANDO UM TEMA CLÁSSICO
Para cada geração, viver é [...] uma tarefa com duas dimensões, uma
das quais consiste em receber o vivido - ideias, valores,
instituições etc. - pela [geração] antecedente; a outra, deixar fluir
sua própria espontaneidade(Ortega_y_Gasset,_1966[1923]:149).
Ao elaborar seu “problema das gerações”, Karl Mannheim se interessou muito de
perto pelo trabalho do historiador da arte Wilhelm Pinder, proponente, na
Alemanha do início do século XX, de uma influente teoria geracional da arte
(Pinder,_1926apud Mannheim, 1928:516), segundo a qual a ordem social se
caracterizaria pela “não contemporaneidade dos contemporâneos”, isto é, pela
convivência de várias gerações (e suas perspectivas, valores e aspirações, que
constituíam, como queria Pinder, certo espírito de época) no mesmo espaço
sócio-histórico. Do ponto de vista da teoria do conhecimento que propunha
Mannheim, a renovação da cultura decorreria, dentre outras coisas, do fato de
que as novas gerações não teriam por que viver a memória, os compromissos e os
projetos das gerações passadas.
Para facilitar a compreensão do argumento, Mannheim usou um artifício
engenhoso: levou o leitor a imaginar uma sociedade em que a primeira geração de
homens (ele escrevia sempre no masculino) nunca morresse, nem novas gerações
entrassem no fluxo populacional. Esta seria uma sociedade em que a tradição não
precisaria ser ensinada, porque teria sido construída pelos contemporâneos. Nem
a tradição sofreria mudanças importantes, a não ser que eventos inopinados
(como guerras ou hecatombes naturais) exigissem novas descobertas, ou que os
contemporâneos tivessem uma especial capacidade de abstração para abandonar sua
posição confortável atual e idealizar utopias críveis. Nada disso, escreveu
Mannheim, produziria transformaçõesradicais na ordem. Estas demandariam novas
gerações entrando continuamente no fluxo populacional, pois elas “nos ensinam a
esquecer o que não é útil, e a almejar o que ainda não foi conquistado”
(Mannheim, 1928:533). E ele completaria: “uma espécie que vivesse eternamente
teria que aprender a se esquecer de si mesma, e compensar a falta de novas
gerações” (ibidem:535), sem o quê a vida em comum se tornaria insuportavelmente
a mesma.
As novas gerações, para Mannheim, “portam” o novo não porque se organizam ou
agem coletivamente para isso, por exemplo, propondo intencionalmente novos
movimentos culturais ou correntes de opinião, novas enteléquias, como queria
Pinder. Estas podem até se constituir, e a novidade bem pode emergir de
movimentos assim, que configurariam uma unidade geracional, ou, se se quiser,
uma subjetividade coletiva centrada (Domingues,_2002), ou consciente de sua
unidade. Mas, embora ocorram com frequência, unidades geracionais não seriam as
únicas responsáveis pela mudança cultural. As novas gerações, na verdade,
introduziriam naturalmente econtinuamente no fluxo da vida novos pontos de
vista sobre a herança cultural, selecionando dela aquilo que lhes parecesse
mais adequado a seus próprios anseios e aspirações, que seriam, sempre,
testados e negociados com as várias gerações que convivem no mesmo tempo
histórico. Nesse sentido, se é possível falar-se de um “espírito de época”, ele
seria o resultado da sobreposição das múltiplas enteléquias compartilhadas por
diferentes gerações.
Mannheim escreveu seu clássico em meio à efervescência sem precedentes da
juventude europeia, cujos movimentos coletivos estavam convergindo,
voluntariamente ou de maneira forçada, e pelo menos desde o início dos anos
1920, para a Juventude Hitlerista, a Juventude Fascista, a Juventude Franquista
e outras equivalentes4. Ou seja, enquanto ele escrevia sobre o papel renovador
das novas gerações, o nazismo e o fascismo estavam mobilizando e militarizando
os jovens em vários países, rumo ao totalitarismo e à guerra. Isso levaria
Mannheim, mais tarde, a ponderar o tom claramente otimista da proposta de 1928.
Durante a Segunda Guerra Mundial, na conferência “O problema da juventude na
sociedade moderna”, proferida em 1943 e publicada em 1952, ele pregou maior
intervenção estatal na educação dos jovens, para evitar, justamente, que sua
energia, que “está pronta para tudo o que há de novo” (Mannheim, 1952:62),
fosse canalizada para a violência, o conservadorismo ou o totalitarismo.
De um tema central da teoria do conhecimento, a questão geracional (ou “o
problema da juventude”) se apresentou, desde logo, como um problema social. Mas
a experiência nazista não levou Mannheim a rever sua percepção das novas
gerações como transgressoras, apenas o alertou para o papel central que os mais
velhos precisavam assumir na socialização dos mais jovens, muito especialmente
em situações críticas ou revolucionárias.
Os movimentos da juventude alemã, é bom lembrar, por seu ineditismo já haviam
atraído a atenção de muita gente, incluindo Max Weber, ele mesmo membro, desde
sua própria juventude e até 1918, de uma fraternidade cujo código de
honorabilidade assentava no duelo, portanto numa noção marcial de honra que era
muito comum nos movimentos juvenis das classes médias e altas, para não falar
nos que se originavam na aristocracia (os mesmos movimentos que, radicalizados,
chamariam a atenção de Mannheim). Weber, como se sabe, proferiu duas
importantes conferências para os jovens da Sociedade dos Estudantes Livres, e
tinha verdadeira aversão à educação diletante e pacifista pregada por algumas
fraternidades estudantis. Para ele, honra e responsabilidade eram valores que
os jovens deveriam professar, e as escolas, ensinar. O libertarianismo de
determinadas correntes estudantis e de parte do sistema escolar era visto como
politicamente deletério, logo, como mecanismo desagregador, que não levaria a
Alemanha ao destino desejado por ele, isto é, de país protagonista no concerto
das nações5. Posição que, como a de Mannheim anos depois, reconhecia a
centralidade da questão geracional na dinâmica social mais geral, ainda que
eles não compartilhassem a mesma noção de honra ou de grandeza da Alemanha6. E
o “problema da juventude”, aqui, tinha a ver com a responsabilidade das
gerações mais velhas na incorporação “adequada” dos jovens no fluxo da vida
coletiva.
O tema, nesta chave propriamente conservadora, porque voltada para aintegração
regrada das novas gerações na vida social, continuou a interessar aos
sociólogos. Num importante livro publicado em 1956, Shmuel Eisenstadt construiu
abrangente teoria sobre gerações que deve ter surpreendido seus contemporâneos,
ou ao menos aqueles que não compartilhavam de sua perspectiva analítica,
funcionalista e centrada nos mecanismos integradores da sociedade7. O mundo, e
muito particularmente a Europa, saíra havia dez anos de uma segunda guerra
mundial, e a experiência europeia no entreguerras fora tudo menos “de paz”. Os
pretensos mecanismos coesivos presentes na teoria de Eisenstadt (como a
família, as estruturas de parentesco e os rituais de iniciação nas sociedades
“primitivas”, a escola e as muitas instituições estatais nas sociedades
modernas), responsáveis por transferir a herança cultural e os padrões
civilizatórios às novas gerações, haviam dado caldo de cultura, como já se
mencionou, aos movimentos juvenis totalitários, sustentáculos entusiasmados de
máquinas de guerra.
Eisenstadt operava com o corpo teórico e conceitual parsoniano. Conflitos e
tensões sociais, nesse recorte, resultam da assincronia no funcionamento das
instituições e subsistemas sociais, decorrente do processo de permanente
diferenciação das esferas da vida, marca da modernidade. Eram vistos, portanto,
como elementos centrais da mudança social, mas o interesse da teoria repousava
sobretudo nos mecanismos que garantiam o sempre instável equilíbrio sistêmico,
ou a coesão social. A juventude, momento crucial da experiência geracional,
ganhava centralidade analítica. Contudo, em lugar de se ocupar da renovação dos
horizontes da cultura, quase toda a construção de From Generation to Generation
tinha por referência os problemas relacionados com as transições para a vida
adulta e com o modo como diferentes ordenamentos sociais lidavam com o tema da
socializaçãode pessoas aptas a “assumir plenamente seu status de adulto”, ou de
“pleno pertencimento à sociedade” (Eisenstadt,_2002:xxxii), socialização que se
completaria, justamente, no período juvenil das gerações sucessivas, tendo na
família e na escola os momentos principais.
Ainda assim, o Mannheim de 1928 e o Eisenstadt de 1956 compartilhavam uma
imagem da juventude como um período de “moratória social”, no qual ao indivíduo
em processo de socialização era permitido experimentar, de maneira
relativamente descompromissada, diferentes “papéis” antes de filtrar as
escolhas que o habilitariam à vida adulta8. Mas a experimentação deveria ser
regrada, ou controlada pelas velhas gerações, o que torna um tanto estranha a
insistência em noções como “criatividade social”, “inovação”, “abertura para o
novo”, encontráveis nos textos de ambos, ou a de que a juventude se identifica
“com os valores e símbolos últimos da vida em comum”, recorrente em Eisenstadt.
Assim também, o Mannheim de 1943 compartilhava com o Weber de 1917 a ideia de
que as energias juvenis precisavam serdomadas e direcionadas segundo objetivos
definidos fora do indivíduo em processo de socialização, objetivos cujo
horizonte deveria ser a democracia, a paz e o bem comum (e, para Weber, a honra
e eventualmente a guerra em nome da honra), todos eles definidos na disputa
política e civilizatória travada pelas gerações mais velhas, que estavam no
poder nos diversos âmbitos de definição dos fins da ação pública, muito
particularmente no aparelho de Estado.
Mannheim e Eisenstadt compartilhavam, também, a convicção de que a acolhida das
novas gerações era aspecto decisivo da dinâmica social mais geral, por
tensionar as estruturas mesmas de sustentação e reprodução da ordem. Isso
porque raciocinavam num momento da história ocidental no qual as instituições
modernas (não apenas públicas) eram vistas como centrais na definição das
fronteiras e limites da experiência possível. Segundo esta percepção, as
instituições (a família, a escola, o mercado de trabalho regulado por muitas
instituições, a teia institucional estatal etc.), mesmo quando abertas ao novo
e à criatividade, como é típico da modernidade, organizavam a memória social,
formatavam as aspirações, desenhavam os objetivos possíveis, delimitavam os
horizontes de expectativas, apontavam caminhos e organizavam os percursos da
maior parte das pessoas, de tal modo que suas vidas podiam ser agregadas em
coletivos significativos sobre os quais era possível tecer, com razoável
previsibilidade, probabilidades agregadas de destino social9. Ou seja, os mais
jovens eram “acolhidos” no mundo das gerações anteriores pensado como um
sistema relativamente unificado, cujas regras eram conhecidas (e compartilhadas
pelos mais velhos, ao menos pela maioria deles) e podiam ser transmitidas pela
socialização. Na “típica vida ideal de um mundo industrial intacto”, como
escreveu Ulrich Beck_(2010:203), a família educaria para a escola, a escola
educaria para o trabalho, o trabalho daria acesso à vida adulta, tipificada na
constituição de uma nova família, fechando-se, assim, o ciclo da transição
geracional. Nenhum deles pensava no problema das gerações como vazado por
clivagens de classe, raça ou gênero. A trajetória típica, de cujo desvio
poderiam resultar problemas sociais, era a do jovem homem branco de classe
média.
UMA CONSTRUÇÃO NORMATIVA
Parece claro que boa parte dessas construções tinha inevitável viés
normativo.Deveria ser papel das instituições modernas socializar os jovens para
a democracia, a república, a honra e o bem comum, e também para o trabalho.
Deveria ser sua tarefa transferir a herança cultural e as tradições, ainda que
de forma aberta, permitindo espaço à criatividade social, à inovação, à
mudança. O potencial contestatório da juventude deveriaser canalizado para a
construção social, não para sua degradação ou destruição. E a tarefa das velhas
gerações seria a de garantir tudo isso, sem maiores sobressaltos, por meio das
instituições que elas haviam herdado e que elas mesmas haviam transformado e
modernizado com sua ação.
É curioso, nesse particular, que Weber e Mannheim escrevessem em meio à
efervescência e posterior chacina de parcelas expressivas das novas gerações
pela guerra, ou que Eisenstadt tenha publicado seu livro no momento em que a
juventude socializada durante a Segunda Guerra estava começando a questionar os
padrões culturais herdados do passado. Allen Ginsberg publicou Howl em 1956,
inaugurando um movimento literário que revelaria o Jack Kerouac de On the Road
(de 1957) e o William Burroughs de Naked Lunch (de 1959). Kerouac escreveu um
livro autobiográfico, isto é, ele era um outsidervivendo experiências
libertárias na estrada no momento em que Eisenstadt publicava seu livro sobre
os mecanismos integradores da sociedade. Marilyn Monroe estrelaraNiagara (em
português, Torrente de Paixão) em 1953, e desfilara seu glamour pelo mundo
promocional do filme com roupas curtas e decotes que, mais do que chocar as
audiências e granjear a Norma Jean a fama de vulgar, sugeria que algo de novo
estava em curso na transmissão intergeracional da moral puritana da família
norte-americana, cuja hipocrisia era escancarada por seu comportamento sexual
“escandaloso”. James Dean morreu como um ícone em 1956, aos 24 anos, depois do
estrondoso sucesso de East of Eden (Vidas Amargas) e Rebel without a Cause
(Rebelde sem Causa), ambos de 1955 e ambos incendiários da cena cultural local
e logo mundial, ao retratar uma juventude “transviada” e de futuro incerto.
Elvis Presley estourara em 1955, e em 1956 já era um nome internacional, e
encarnou o sonho americano de sucesso pelo talento, algo que também ajudara a
construir a imagem e a aura de Monroe e Dean, mas bebia na música negra de seu
país para criar um novo estilo musical que revolucionaria a música dali por
diante, sacudindo os costumes e a herança cultural das gerações passadas.
Também em 1956, Françoise Sagan publicaria Un Certain Sourire, um clássico
narrando a ansiedade e a angústia de uma jovem de 20 anos, amante de seu tio
quadragenário e casado, num ambiente universitário (a Sorbonne) de grande
liberação sexual. E Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir viviam um casamento
aberto, tendo ela publicado o clássico feminista O Segundo Sexo em 1949,
expondo as mazelas da condição feminina numa sociedade machista, um libelo
libertário de grande acolhida em todo o mundo10. Esses exemplos da cena
artística e cultural de meados dos anos 1950, muito mais rica e efervescente do
que é possível enumerar aqui, foram tomados como “desvios” de conduta de
“rebeldes sem causa”, portanto, manifestações individuais “fora do padrão”. Mas
eles, na verdade, eram expressão de um mal-estar que, se ainda não explodira
socialmente, seria transferido à geração seguinte, que faria a revolução
cultural dos anos 1960.
A Europa, por seu lado, estava vivendo o sonho da reconstrução do pós-guerra.
Estados fortes e uma institucionalidade robusta construída, dentre outras
coisas, para conter a revolução socialista (Przeworkski, 1989; Korpi,_1983),
estavam gerando bem-estar social para as massas trabalhadoras em escala sem
precedentes. Isto é, os Estados europeus estavam consolidando os arranjos
normativos que alguns denominaram “capitalismo organizado”, outros, Estado de
Bem-Estar, outros “sociedade salarial” e outros, ainda, simplesmente de
“fordismo”11. E os países estavam mesmo moldando instituições voltadas para a
integração das novas gerações, de maneira severa e regrada12, na modernidade
fordista13. Parte dessa “severidade” (que também tinha um viés normativo, como
mostraria o maio de 1968) era uma resposta ao passado totalitário de parcelas
da juventude europeia. Se elas estavam prontas a “tudo o que há de novo”, como
queria Mannheim, cumpria lhes ensinar a ser humanistas, republicanas,
democráticas, livres e eventualmente universalistas, além de criativas. Mas
muito do que foi visto pela literatura como “norma” e “regra” escondia, como
sugerido, o mal-estar que explodiria em 1968.
De fato, a década de 1960 jogaria por terra boa parte da aposta normativa das
teorias sobre “o problema das gerações” e, principalmente, sobre a capacidade
de as velhas transferirem a herança cultural às novas, ou de garantirem a elas
trajetórias padronizadas e sempre ascendentes14. O maio de 1968 na França, que
incendiou os países ricos neste e nos anos seguintes, não foi apenas uma
revolta estudantil. Foi também uma revolta operária contra a modernidade
fordista e seu padrão de exploração da força de trabalho. André Gorz, um dos
muitos intérpretes daquele momento, escreveu, no calor da hora, que uma
sociedade democrática não podia conviver com o despotismo vigente no mundo do
trabalho, sobretudo na fábrica fordista, onde o trabalhador abria mão de sua
cidadania ao trocar a roupa diária pelo macacão de trabalho (Gorz,_1973). Todas
as teorias que haviam celebrado o “fim das ideologias” em razão da prosperidade
fordista e do “fim do proletariado”15, também foram postas em questão pelo
ressurgimento da luta de classes na Europa no fim dos anos 1960 e no início dos
anos 1970, que resultou num grande ciclo grevista que só arrefeceria na década
seguinte16
Nesse ambiente novamente conturbado, Shmuel Eisenstadt voltou ao tema das
gerações numa série de artigos, o mais importante dos quais argumentando que,
pela primeira vez na história, ao menos partes desses movimentos
tendem a se tornar inteiramente dissociadas dos movimentos sociais ou
nacionais mais gerais, do mundo adulto17, e tendem a não aceitar
quaisquer associações ou modelos adultos – com isso expressando
descontinuidade e conflito intergeracional sem precedentes
(Eisenstadt,_1971:169).
Dentre outras coisas, o autor argumentou que os pais não teriam conseguido
transmitir às novas gerações os significados dos traumas do passado
(relacionados às duas guerras); sua “permissividade” teria aguçado a
criatividade dos jovens; mas o mundo burocratizado e rotinizado teria frustrado
essa criatividade e as expectativas criadas pelas promessas de liberdade e
autonomia do “capitalismo organizado”. Ecoando Mannheim, Eisenstadt dirá que os
jovens não se sentiriam parte dos compromissos assumidos por seus pais, que
resultaram na guerra e numa reconstrução que teria institucionalizado a
revolução socialista em estados de bem-estar que, contudo, eram incapazes de
cumprir suas promessas para os jovens, sendo um mundo burocrático fechado e
controlado pelos mais velhos.
A avaliação do funcionalista Eisenstadt sobre o caráter burocrático da
modernidade, que os jovens estudantes em 1968 teriam recusado, estava
estranhamente em linha com a leitura libertária de Herbert Marcuse sobre as
mazelas do capitalismo “unidimensional”, militarizado, dominado pela ciência,
pela técnica e pela razão instrumental, marcado pela prosperidade geral e pelo
consumismo, um capitalismo “sem oposição” (Marcuse,_1964). Aliás, Marcuse e sua
teoria crítica, mesclando Marx e Freud para propor a possibilidade de uma
civilização não baseada na repressão da sexualidade (Marcuse,_1955), repressão
que estava na base da interpretação de Freud sobre a origem e a natureza da
civilização ocidental, seria um dos inspiradores dos revoltosos de 1968. Ele
também refletiria sobre aqueles movimentos, emContrarrevolução e Revolta (de
1972), buscando neles as possibilidades libertárias da nova revolução social.
Os movimentos teriam mostrado a viabilidade de finalmente se reconciliar
natureza e cultura, restaurando o caráter multidimensional da experiência
humana. Claro que Marcuse não compartilhava do otimismo de Eisenstadt quanto à
“pureza” da juventude e sua identificação com ideais últimos da sociedade,
pureza que teria vindo à tona em 1968 para resgatar as promessas civilizatórias
de liberdade e autonomia, soterradas pela burocracia. A revolução cultural que
Marcuse pregava tinha no horizonte areeducação dos sentidos dos jovens,
socializados de maneira “unidimensional” na sociedade dominada pela técnica.
Isso, obviamente, conferia um papel demiúrgico ao filósofo crítico, capaz de
abrir as portas e guiar os jovens pelos caminhos da liberdade. Seja como for,
ele se alinhava aos outros autores tratados aqui na percepção das novas
gerações como depositárias da potência transformadora da sociedade, e contava
com elas para radicalizar a transformação dos costumes e superar a opressão do
capitalismo18.
A SOCIALIZAÇÃO
O sonho da incorporação regrada das novas gerações teve na escola seu
instrumento mais importante. Em Paris, os movimentos de 1968 envolveram jovens
educados, na infância e na adolescência, num sistema educacional público, de
corte republicano, altamente centralizado e controlado pelo Estado, ainda que
profundamente hierárquico. A esmagadora maioria dos filhos concebidos nos anos
de guerra e posteriores recebeu uma educação que, embora destinasse as melhores
escolas aos filhos das elites econômicas, era pública e gratuita. Os estudos de
Bourdieu_e_Passeron_(1964 e 1974) e Bourdieu_(1979) não deixam dúvidas quanto
ao caráter de classe das desiguais oportunidades educacionais dos franceses no
sistema público de ensino19. Ainda assim, interessa ressaltar aqui (para efeito
da comparação com o Brasil, mais adiante) o caráter público dos mecanismos de
construção de hierarquias educacionais, o que quer dizer que, se nem todos
tinham as mesmas oportunidades, as que haviam eram ordenadas por burocracias
estatais (e também pelo sindicalismo docente e o séquito de profissionais da
educação ligados ao poder público), que construíam e ensinavam a ideologia da
educação republicana e igualitária. O sistema alemão também era profundamente
hierárquico, e cabia à escola (portanto ao Estado, porque o ensino fundamental
era e continua sendo quase exclusivamente público) decidir se o estudante tinha
vocação para seguir o caminho da universidade ou do ensino técnico, decisão que
era tomada pela escola, o que ocorria por volta dos 10 anos de idade do aluno.
Este sistema foi em parte flexibilizado, mas ainda hoje a maioria dos 16
estados alemães (que têm autonomia para regular seu sistema educacional)
controla rigidamente o percurso educacional das crianças e dos jovens, e as
probabilidades de carreira ainda são decididas muito cedo em suas vidas. Na
Suécia o sistema educacional era igualmente centralizado e controlado pelo
governo e o parlamento (Miron,_1993).
Nesse quadro de centralização e de amplo controle estatal sobre os sistemas
educacionais, era “natural” que o próprio Estado e seus agentes percebessem a
socialização como inculcação da “civilização” nos corpos e mentes das novas
gerações, que estariam predispostas, pela educação familiar, a recebê-la como
uma espécie de “destino” imposto coletivamente, e pelo bem da coletividade.
Mais do que uma tarefa dos mais velhos, o “problema das gerações” tornou-se
responsabilidade compartilhada entre as famílias e o Estado, e este, desde
muito cedo na Europa, tratou a educação como um direito de cidadania, que
ganhou materialidade em políticas públicas educacionais que universalizaram
muito cedo o acesso ao ensino fundamental e o Estado aparecendo como um dos
agentes centrais da construção dos horizontes de expectativas dos mais jovens e
da normatização de suas oportunidades de vida20.
Se isso é verdade, os movimentos de 1968 em diante deveriam ter lançado
imediatamente ao limbo as teorias da socialização das novas gerações que a viam
comoinculcação de valores, normas e padrões culturais (como em Eisenstadt), ou
de internalização dos imperativos funcionais do sistema (como em Parsons,
inspirador de Eisenstadt), ou de formação de indivíduos morais “ajustados” à
ordem (como em Durkheim, antes deles). Se jovens de 1968, educados nas famílias
e depois nas escolas (os ambientes “seguros” construídos pelas gerações
anteriores), contestavam a ordem em suas múltiplas dimensões, da economia à
política, dos costumes à religião, das ideologias às utopias21, então, de duas
uma: ou a família, a escola, o trabalho e mesmo o Estado não tinham “feito seu
trabalho direito”, já que passaram a ser vistos como mecanismos de dominação
dos mais velhos sobre as novas gerações; ou a socialização como inculcação
unidirecional de valores, ideologias ou pacotes cognitivos e afetivos, que
partiria da sociedade e moldaria corpos, corações e mentes de indivíduos
complacentes, precisava ser repensada.
Em 1991, depois de passar em revista as principais teorias sobre a
socialização, de Piaget a Parsons, de Berger e Luckman a Bourdieu, de Mead a
Weber e outros, ClaudeDubar_(1991), ancorado em Jean Piaget, propôs a ideia de
que, numa sociedade moderna, democrática e aberta, a socialização é, antes, um
processo dialógico, no qual os indivíduos em processo de construção de sua
identidade social negociam o tempo todo com os códigos e conteúdos oferecidos
pelas várias instituições (e pessoas) responsáveis por sua socialização, isto
é, as gerações passadas. A “sociedade” não pode ser pensada como uma unidade
coerente cujos conteúdos possam ser sistematizados de modo a serem “inculcados”
também de maneira coerente e unitária nas mentes e nos corpos das pessoas. Um
processo de aprendizado é sempre múltiplo, os pais precisam aprender a ensinar,
e frequentemente aprendem com os próprios filhos, que impõem limites, apontam
alternativas, sugerem caminhos para sua educação22. Mais do que tudo, o
processo ocorre em múltiplas esferas da vida, muitas delas com códigos próprios
e não redutíveis uns aos outros, de tal modo que a pessoa em formação precisa
construir ela mesma a unidade que será sua identidade social, sempre de modo
ativo, e também infindável, já que a socialização não é algo que se encerra
quando o indivíduo atinge “a maturidade plena”, como queria Eisenstadt. As
“idades da vida” (Mauger,_2013) são também idades de constante aprendizado,
portanto, de constante socialização.
Esta concepção do processo socializador supõe que, mesmo a ideia central por
trás da noção de “maturidade plena”, isto é, a de que o indivíduo, a partir de
certa idade, é capaz de ação autônoma (pelo quê se deve entender capacidade de
manter-se por si mesmo e de julgar as consequências dos próprios atos ou
omissões, e ser responsável por eles), mesmo isto não se adquire de uma vez
para sempre. O mundo contemporâneo, globalizado, é mais aberto do que nunca,
mas as competências (e a autonomia) adquiridas numa parte do planeta não servem
necessariamente para o lugar no qual, por exemplo, o indivíduo migrante decide
escolher para viver (caso consiga migrar) (ver Beck,_2010:cap. 5). Um acidente
ou a guerra pode obrigar a pessoa a reaprender a viver numa cadeira de rodas ou
sem um membro. Traumas emocionais podem ter efeito semelhante etc. Migrações do
campo para a cidade num país como o Brasil também requerem o reaprendizado da
vida em comum, como veremos. Além disso, escolhas ocupacionais ocorrendo muito
cedo na vida dos jovens, num ambiente sempre mutante em termos de oportunidades
de emprego, estenderam, e muito, o período de qualificação para o trabalho,
sendo cada vez mais comum, por exemplo, o retorno aos estudos depois de
repetidas frustrações ocupacionais (Larue_et_al.,_2009).
DE VOLTA AO PROBLEMA GERACIONAL
É claro que o pós-1968 e a renovação da compreensão sobre o processo
socializador23 não tornaram obsoleta a discussão sobre o “problema das
gerações”. Se a socialização dos mais jovens não pode ser vista como um
movimento unidirecional da “sociedade” para o indivíduo24 (compreensão que, por
sinal, já estava em Mannheim), ainda assim continua sendo tarefa das gerações
presentes acolher as novas no fluxo populacional, oferecendo a elas (e criando
com elas) oportunidades e condições para o eventual exercício futuro da
liberdade e da autonomia, ainda que, no capitalismo cada vez mais globalizado,
estas continuem promessas sempre longínquas, e não estejam igualmente
distribuídas segundo as classes sociais.
Na verdade, a partir de meados da década de 1970 o “problema das gerações” foi
reposto, agora com novos significados, de maneira dramática pela reestruturação
neoliberal do capitalismo, que se seguiu à crise do arranjo fordista. A
reestruturação inaugurou, de maneira surpreendente, uma nova era de incertezas
e de insegurança socioeconômica para as gerações contemporâneas da crise. Isso
porque a reestruturação (aprofundada nos anos 1980) trouxe de volta algo que se
julgava sepultado pelo “capitalismo organizado”: altas taxas de desemprego, e
este se tornou novamente longo e continuado, quer dizer, estrutural,
principalmente para os mais jovens. Se, antes, o “problema das gerações” estava
relacionado com a negociação intergeracional de horizontes de expectativas,
padrões culturais, valores etc., a partir dos anos 1970 aqueles horizontes se
tornaram opacos para parcelas crescentes dos mais jovens.
Na emblemática França, parteira das revoltas de 1968, o desemprego de pessoas
na faixa etária de 15 a 24 anos saltou de 5% em 1970 para 14% em 1980. Na
Itália, de 10% para 16%. Na Alemanha, com seu sistema educacional segmentado,
que garantia emprego imediato aos que deixavam a escola, o salto foi de 0,4%
para quase 4%, e de 11% a 14% nos Estados Unidos. Na Espanha o desemprego
juvenil já atingia 28% em 1980, tendo saído de 12,4% em 197725. E a cifra
atingiu espantosos 47% em 1985. Neste mesmo ano, 18% dos jovens ingleses, 10%
dos alemães e 20% dos franceses estavam desempregados, segundo a mesma fonte.
Completar os estudos, mesmo no caso do ensino superior, já não significava
encontrar um emprego, aumentando, assim, a ansiedade tradicionalmente associada
às escolhas profissionais.
Ao lado disso, já no começo da década de 1970 a literatura identificava (e
louvava) o processo de massificação da educação superior nos países ricos26,
que continuaria pelos anos seguintes. A França tinha mais de meio milhão de
universitários em 1968, e em 1975, 20% dos jovens em idade universitária a
estavam cursando. A taxa era de 25% na Suécia, 32% no Canadá e 40% nos Estados
Unidos (Kerr,_1991:100). Mas na aurora da década de 1980 e depois, o processo
antes saudado como alvissareiro, tendo em vista a clara associação entre
escolaridade e oportunidades de vida e trabalho27, passou a ser lido como
“inflação de credenciais”, que estaria reduzindo de forma crescente os retornos
monetários dos diplomas universitários, que deixaram, também, de assegurar
acesso imediato a um emprego28. Tornou-se comum, no ambiente incerto criado
pelo neoliberalismo dos anos 1980 e 1990, a expressão “educação para o
desemprego”. Ainda era melhor ter um diploma do que não ter, em termos de
oportunidades de trabalho e renda, mas ele não era mais uma chave universal,
sobretudo num mercado de trabalho em rápida transformação, que terminaria, com
o tempo, por desvalorizar algumas credenciais.
Desde então o problema só se acentuou. A Tabela_1, que compila dados para a
média da década de 1990 em 11 países europeus, mostra que os jovens diplomados,
às vezes, tiveram taxas mais altas de desemprego do que os jovens com menos
anos de estudo. E na Espanha e na Itália, 1 em cada 4 jovens com educação
superior estava desempregado nos anos 1990, sendo de quase 12% a média de
desemprego de nível superior nesses países.
Tabela 1 Taxas de Desemprego dos Jovens de 15 a 29 Anos em Países Selecionados,
na Década de 1990, segundo a Escolaridade
País Educação FundamentaEnsino MédioSuperior Total
Espanha 29,4 26,9 24,5 26,9
Finlândia 43,3 23,2 11,6 26,0
Itália 20,5 21,3 24,2 22,0
França 25,6 14,8 11,5 17,3
Irlanda 28,2 14,1 9,2 17,2
Grécia 11,8 17,3 15,4 14,8
Suécia 23,5 15,1 5,5 14,7
Portugal 8,4 10,8 8,2 9,1
Alemanha 11,5 7,3 5,2 8,0
Áustria 8,9 5,3 5,0 6,4
Suíça 6,4 4,4 7,9 6,2
Média 19,8 14,6 11,7 15,3
Fonte: Barceinas-Paredes et al. (s.d.p.) Obs.: Taxa média para períodos
variados na década de 1990 (de 1992 a 1999, dependendo do país e da
disponibilidade de dados).
Desemprego juvenil de nível superior significa, quase sempre, dificuldade de se
encontrar o primeiro emprego depois de deixar a universidade, em países nos
quais as taxas de acesso à educação superior na idade apropriada (18 a 24 anos)
ultrapassou os 50% já em meados dos anos 198029. Este fato (dificuldade de se
encontrar o primeiro emprego, tendo-se deixado a universidade) significou, para
uma parcela expressiva dos jovens de alguns países, o rompimento de uma
promessa importante do “capitalismo organizado”, e elemento central da solução
do “problema das gerações”, qual seja, a de que, por meio da educação, as
famílias conseguiriam transferir a seus filhos, se não valores ou tradições, ao
menos oportunidades de ascensão social, sustentadas por credenciais antes
valorizadas pelo mercado de trabalho30.
O capitalismo continuou produzindo muita riqueza, mas, nos anos de
neoliberalismo, a distribuição da riqueza produzida passou a se dar por
mecanismos cada vez menos mediados pelo Estado de Bem-Estar, numa ordem
econômica que se tornou mais individualizada, mais precária, mais
mercantilizada e muito mais competitiva. Como sugere Vandenberghe_(1999), a
modernidade tardia trouxe, ademais de individualização, destruição de formas
tradicionais de construção de identidade e abertura dos horizontes de
possibilidades de identificação dos jovens de todas as classes sociais,
estimulando sem dúvida a criatividade social (ver também Domingues,_2002), mas
produzindo sempre renovadas fontes de incerteza.
Neste novo ambiente, a incerteza da condição juvenil tornou-seinsegurança e
vulnerabilidade das condições de vida das novas gerações, que não decorrem
apenas da redução de alternativas de escolha profissional ou identitária,
embora isso também seja importante. Trata-se, para várias camadas sociais, das
mais às menos vulneráveis (e é claro que as classes sociais não vivem esse
processo da mesma maneira), de efetivofechamento de vias “virtuosas” de
inscrição social, isto é, vias que, uma vez perseguidas, resultem em
trajetórias pessoais bem-sucedidasvis-à-vis os projetos e aspirações
individuais. Situação que se aprofundou na década seguinte, e se tornou
socialmente explosiva depois da crise de 2008.
A crise, que ainda não foi debelada (escrevo em 2014), atualizou as análises
catastrofistas dos anos 1990 sobre “o fim dos empregos”31. O desemprego de
jovens de 15 a 24 anos chegou à inimaginável cifra de 58% na Espanha em 2013,
marca suplantada apenas pela Grécia (quase 65%). Na Zona do Euro, o desemprego
juvenil atingiu 23,7% no mesmo ano, o mais alto em muitas décadas, e mais de um
terço era desemprego de longa duração32, isto é, um tipo de desemprego que
costuma afetar por muito tempo as trajetórias de vida das pessoas33. Mais do
que nunca, os jovens passaram a demandar, em lugar de igualdade ou liberdade,
como em 1968, emprego para todos, recolocando o trabalho (e a falta dele) no
centro do “problema das gerações”, e dos mecanismos de construção de projetos
de vida, anseios e identidades sociais34.
Estas cifras são expressão de uma crise importante e continuada, nos países
mais ricos, dos mecanismos de socialização e ordenamento das trajetórias
sociais das novas gerações, muito especialmente o sistema escolar e o mercado
de trabalho, e o futuro dos jovens de hoje é bem mais inseguro do que o futuro
de seus pais ou avós. Tal quadro renovou, uma vez mais, o “problema das
gerações”. Os “rebeldes sem causa” dos anos 1950 se insurgiram, de maneira
individualizada e mesmo heroica, contra a moral hipocritamente puritana de seus
pais. Mas no mundo em reconstrução do pós-guerra, não havia desemprego, muito
ao contrário, havia carência de mão de obra. Os rebeldes de 1968, por seu lado,
se sublevaram, de maneira coletiva e organizada, contra o “mal-estar da
civilização” (“seja realista, exija o impossível” foi o lema dos universitários
da Sorbonne, inspirado em Marcuse), e realizaram a revolução nos costumes e no
mundo do trabalho contra o enrijecimento burocrático da modernidade fordista,
também num ambiente de pleno emprego. Os rebeldes de 2008 em diante se
insurgiram contra a financeirização desumanizadora do capitalismo, que resultou
na drenagem da riqueza social por uma diminuta, mas sempre poderosa, categoria
social (rentistas, banqueiros e especuladores em geral), e contra a
desestruturação dos mercados de trabalho em toda parte, que produziu taxas sem
precedentes de desemprego e o que alguns autores estão (de maneira um tanto
apressada) denominando “precariado”, uma nova, ampla e heterogênea categoria
social vulnerável, com empregos estruturalmente precários, insegurança na
renda, precariedade das redes sociais de sustentação de suas trajetórias e
insegurança quanto ao futuro35.
Mais ainda: parte substancial da juventude hoje desempregada foi socializada
num período (anos 1980 e 1990) em que a ideologia (neoliberal) dominante sobre
as melhores formas de inserção social eram o empreendedorismo, o “faça você
mesmo”, a empregabilidade (Boltanski_e_Chiapello,_1999), aspectos da valorizada
liberdade de trabalho na “nova economia” informacional e criativa que, como já
se disse, estavam na raiz dos movimentos de 1968. O acesso a esse mundo de
sonhos, no qual o assalariamento era visto como coisa do passado, seria
facultado pelo diploma universitário e a qualificação continuada ao longo da
vida. Nada disso está disponível para boa parte dos mais jovens na Europa, como
mostram as cifras de desemprego. A crise, nesse sentido, pode ser lida na chave
de um conflito geracional, já que os mais velhos estão empregados (a taxa de
desemprego de adultos de 30 anos ou mais com nível universitário é próxima de
2% na Europa, segundo a mesma fonte das cifras apresentadas antes), e o sistema
econômico que eles criaram parece satisfazer seus interesses em detrimento da
emancipação dos mais jovens.
O “PROBLEMA DAS GERAÇÕES” NO BRASIL
Esse quadro de referência, forçosamente superficial, permite pôr em relevo
algumas especificidades da situação brasileira. O Brasil é um país de história
de migração campo/cidade muito intensa e recente, o que quer dizer que a
modernidade urbana e industrial, que fascinou Mannheim e Eisenstadt e era a
matriz de sua formulação do problema geracional36, também é recente. Em 1950,
apenas 36% dos brasileiros viviam nas cidades. Nos dez anos seguintes deixaram
o campo o equivalente a 24% da população rural contada no início. Isto é, 1 em
cada 4 moradores do campo procurou as cidades, totalizando perto de 8 milhões
de migrantes. Nos anos 1960 saíram 36% dos rurícolas existentes no início (mais
de 1 em cada 3 pessoas), num total de 13,4 milhões de pessoas; e ao longo da
década seguinte, nada menos que 42% da população rural contada em 1970, ou mais
de 17 milhões de brasileiros deixaram o campo37. Em 30 anos, pois, as cidades
receberam quase 40 milhões de pessoas. Em consequência, em 1980 70% da
população já estavam vivendo nos centros urbanos que, contudo, não geraram
infraestrutura suficiente para alojar os migrantes, garantir sua saúde e, muito
especialmente, educar seus filhos.
Para que se tenha uma ideia dos montantes, em 1960, a taxa de frequência no
ensino fundamental da população de referência (7 a 12 anos) era de apenas 47%
no Brasil, equivalente à encontrada na Índia e na Turquia. No Uruguai a cifra
era bem mais alta, de 87%, chegando a 90% na Argentina e 98% no Paraguai e na
maioria dos países da Europa, além da África do Sul (Morrisson_e_Murtin,
2009)38. Segundo o Censo de 1960, não chegava a 0,7% a proporção de brasileiros
de 18 a 40 anos com ensino superior completo, e 40% da população adulta (18
anos ou mais) eram analfabetos. No mundo urbano em gestação, o analfabetismo
afligia 1 em cada 4 pessoas39.
A urbanização acelerada significou melhoria de vida para parte significativa da
população que abandonou o campo em fuga da pobreza, das secas, dos movimentos
de concentração fundiária ou qualquer outra razão. Mas a combinação de
políticas salariais restritivas (que mantiveram o salário mínimo quase sempre
abaixo das necessidades básicas da população, como mostrado, dentre outros, por
Oliveira,_1972, e, mais recentemente, Cardoso,_2010), com oferta abundante de
mão de obra pouco qualificada, trazida às cidades pela migração, contribuiu
para depreciar a renda de todos. Em consequência, a população vinda do campo
estabeleceu-se no mundo urbano em patamares muito baixos de renda, o que
limitou suas oportunidades por gerações sucessivas.
Neste processo de mudança estrutural, a educação sempre foi um limite à
melhoria das condições de vida. Em primeiro lugar, a escola não era valorizada
no campo. As pessoas começavam a trabalhar muito cedo, antes dos 10 anos de
idade ajudando na lide agrária (se meninos) ou doméstica (se meninas). Com
isso, as taxas de evasão escolar sempre foram muito altas. Como mostrado por
Cardoso_(2010), 40% dos jovens brasileiros e 50% das jovens com 15 anos de
idade, e que viviam nas cidades, já não estavam na escola em 1970. Entre os de
16 anos a taxa era de 50% para eles e de 60% para elas. Na idade padrão de
conclusão do ensino médio (18 anos), quase 70% dos jovens citadinos já tinham
deixado a escola, a maioria deles para trabalhar, no caso dos homens, ou para a
inatividade, no caso das mulheres. No campo a taxa de evasão era ainda maior,
com quase 80% dos jovens fora da escola aos 15 anos de idade, e taxa de
analfabetismo superior a 50%.
Isto significa que os jovens começavam a trabalhar muito cedo. A probabilidade
de um jovem de 17 anos, vivendo na cidade, estar trabalhando era de 43% em
1970, taxa que se elevava a 52% entre os jovens homens de 18 anos. Entre os
habitantes do mundo rural as proporções eram de 80% e 85%, respectivamente40.
No Brasil, pois, o trabalho fazia parte do processo de incorporação das novas
gerações ao fluxo da vida coletiva, porque ocorria muito cedo nas biografias. O
movimento não foi no sentido de socializar ou educarpara o trabalho, mas,
antes, de socializarpelo trabalho, educar pelo trabalho. E como o nível escolar
era sempre muito baixo, o trabalho era, forçosamente, de má qualidade. Isso era
ainda mais grave no mundo rural, onde 40% das crianças de 10 anos não
estudavam, chegando a 70% no caso dos jovens de 15 anos.
Além disso, apesar do abandono precoce da escola por proporção significativa
dos jovens, homens e mulheres igualmente, a obtenção de uma ocupação, se era o
destino mais provável dos homens que deixavam a escola, não era o único
possível. Cerca de 10% das crianças de 10 anos estavam fora da escola em 1970,
e destes, 90% não estavam no mercado de trabalho. Entre os adolescentes de 15
anos, um terço dos 40% que não estudavam tampouco estava no mercado de
trabalho. No campo as proporções eram bem menores em termos relativos, mas a
taxa de crianças de 10 anos fora da escola e não trabalhando era de 27% (ou 55%
dos que tinham deixado a escola). Entre os de 15 anos, 11% não estudavam nem
trabalhavam41.
Por fim, e talvez o mais importante, ainda que os jovens homens já se tivessem
majoritariamente inserido no mercado de trabalho ali pelos 22 anos de idade
(83% na cidade e 94% no campo em 1970), esta inserção não se deu em condições
tipicamente fordistas de trabalho. O assalariamento urbano nunca foi universal
no Brasil42. Em 1940, 36,4% dos ocupados em atividades não agrícolas eram
trabalhadores por conta própria (Prandi,_1978:63). Em 1970 os trabalhadores por
conta própria eram 20% dos ocupados nas cidades (idem). Somem-se a isso os
assalariados sem carteira e teremos pelo menos metade da população total
empregada em ocupações não reguladas pela institucionalidade herdada do período
Vargas, representada pelo assalariamento com carteira e os direitos sociais
relacionados com ele43. Junto à população jovem a taxa de não regulação era
superior a isso.
Esses processos apresentavam grande inércia estrutural. Os censos sucessivos de
1970, 1980 e 1991 registraram poucas mudanças nesse padrão de incorporação das
novas gerações, com leve aumento da proporção de jovens estudando e trabalhando
a cada decênio, e com redução da proporção daqueles que não estavam nem na
força de trabalho nem na escola. Mas em 1991, 89% dos jovens urbanos de 10 anos
de idade estudavam, mesma proporção encontrada em 1970, e a cada decênio, 17
anos configuravam uma fronteira etária que, cruzada, lançava fora da escola
pelo menos metade dos jovens urbanos brasileiros do sexo masculino. Para os
jovens rurais a fronteira da expulsão da maioria era os 13 anos. Isso só
mudaria ao longo dos anos 1990. Claramente, o sistema educacional demorou
décadas para se adequar ao aumento da demanda provocado pela intensa migração
campo/cidade.
Mudança sensível nesse padrão de inserção social dos jovens só ocorreria nos
anos 1990, como mostra o Gráfico_1. Em termos muito gerais, essa mudança
resultou no rompimento da simetria da relação entre os dois destinos típicos:
sair da escola deixou de significar arrumar um emprego. Primeiro, porque, para
proporção crescente dos jovens, escola e trabalho deixaram de ser alternativas
excludentes. Uma proporção cada vez maior deles passou a estudar e trabalhar, e
isso tanto no campo quanto na cidade (20% dos jovens de 16 anos na cidade, 30%
no campo, 22% e 24% dos de 18 anos), o que contribuiu para que retardassem a
saída da escola. Quase 88% dos jovens urbanos de 15 anos estavam na escola em
2000 (75% no campo), contra 68% (e 28%) em 1980. Em segundo lugar, porque o
desemprego (que atingiu 10% dos jovens de 18 anos em 2000) ganhou relevância
como destino provável dos egressos do sistema escolar. Esse fato inaugura um
novo cenário na relação escola/trabalho como mecanismos de inscrição social dos
jovens. Agora, ao deixar a escola, os jovens transitam, ou para a força de
trabalho, não necessariamente empregada; ou para a inatividade pura e simples.
De fato, dos jovens urbanos de 17 anos que haviam deixado a escola para
ingressar na força de trabalho (26% do total), metade estava desempregada ou
fora da PEA (população economicamente ativa). Entre os de 16 anos, 55% estavam
nessa condição, taxa que chegou a 65% entre os de 15 anos. Ou seja, quanto mais
cedo o jovem urbano deixou a escola em 2000, maior a probabilidade de que seu
destino fosse o desemprego ou a inatividade. Em 1980 estes valores eram 21,8%,
27,5% e 35,3%, respectivamente. Muito inferiores, portanto.
Fonte:
Microdados do Censo Demográfico de 2000.
Gráfico 1 Relação Escola/Trabalho na Inserção Social de Jovens do Sexo
Masculino Nascidos entre 1978 e 1990, Situação em 2000
Por fim, o Gráfico_2 mostra que pouco mudou no padrão de incorporação social
dos jovens na década de 2000 em relação à anterior. Aumentou a proporção de
jovens rurais que só estudavam, principalmente entre os mais jovens entre eles;
e aumentou muito a proporção dos que não estudavam nem trabalhavam, tanto no
campo quanto na cidade, sendo que no campo a situação era bem mais séria. Ainda
assim, tal como em 2000, aos 18 anos metade dos jovens brasileiros já estava
fora da escola em 2010.
[/img/revistas/dados/v58n4//0011-5258-dados-58-4-0873-gf02.jpg]Fonte:
Microdados do Censo Demográfico de 2010.
Gráfico 2 Relação Escola/Trabalho na Inserção Social de Jovens do Sexo
Masculino Nascidos entre 1988 e 2000, Situação em 2010
No caso das mulheres, embora elas fossem metade da população em 1970, eram
apenas 21% da população economicamente ativa (18% em 196044). A taxa de
atividade das jovens de 22 anos era de 28,5% em 1970, e 64% delas não estudavam
nem trabalhavam. Mas, segundo a mesma fonte dos gráficos 1 e 2, a taxa de
participação na escola por parte das mulheres foi quase sempre menor quando
comparada com a dos homens, se somarmos a proporção que estava apenas na escola
e a que estava estudando e trabalhando. Isto só mudaria durante os anos 1990,
de tal modo que, em 2000, ao menos para quem tinha até 17 anos de idade, a taxa
de frequência escolar delas superava a deles, se bem que muito ligeiramente45.
Contudo, para as mulheres a inércia estrutural geral foi bem menor do que para
os homens. Ainda que seja lento o processo de aumento da participação escolar
feminina46, a proporção das que não trabalhavam nem estudavam caiu bastante a
cada década. Tomando-se, por exemplo, as mulheres de 22 anos em 1970, 64% não
trabalhavam nem estudavam, taxa que cairia a 55% em 1980, 47% em 1991, até
atingir 30% em 2000. Por fim, também para as mulheres a principal mudança nos
anos 1990 foi a emergência do desemprego como fenômeno importante, destino de
cerca de 20% das jovens de 18 anos ou mais naquele ano. A inatividade já não
era o destino mais provável, competindo intensamente com a escola, o emprego e
o desemprego. E somando-se empregadas e desempregadas, chegava-se a que 61% das
mulheres de 22 anos estavam na força de trabalho em 2000, proporção que atingiu
66% em 2010, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
Ou seja, até 1991, a maioria das mulheres, diferentemente dos homens, ao deixar
a escola não buscava uma ocupação. Elas se tornavam inativas em sua maioria.
Esta situação era a contrapartida feminina do percurso dos homens, que deixavam
a escola para empregar-se de forma precária e insegura. As mudanças estruturais
profundas dos anos 1990 mexeram bastante neste quadro, com as mulheres
permanecendo por mais tempo na escola e, dentre as que a tinham deixado, uma
proporção maior passou a pressionar o mercado de trabalho, com isso reduzindo a
taxa de inatividade por comparação com as décadas anteriores, mas aumentando
proporcionalmente a taxa de desemprego, sobretudo entre aquelas com 17 e 18
anos. Seja como for, aos 18 anos, 55% das mulheres citadinas estavam fora da
escola em 2000, proporção que caiu um pouco em 2010 (53%), ainda assim muito
alta.
Mais ainda, a variação no interior do país foi sempre muito grande. Em 1970, na
Bahia, metade das crianças de 10 anos estava fora da escola, cifra que subia a
55% no Maranhão, Piauí e Paraíba e 62% no Acre, contra apenas 7% no Distrito
Federal e em São Paulo. Ainda em 1991 a taxa de exclusão escolar dessas
crianças variava de 30% a 40% no primeiro grupo de estados, contra os mesmos 7%
no segundo.
Dizendo de outro modo: comparando com a experiência europeia brevemente
discutida antes, e como mostrado em Cardoso_(2010), nós também tivemos nosso
capitalismo organizado, nosso Estado de Bem-Estar, nossas políticas públicas de
redução das desigualdades de oportunidades. Constituiu-se, aqui como alhures,
um mercado de trabalho regulado pelo Estado, e as gerações sucessivas também
viveram, em termos médios, melhor do que seus pais, ao menos a partir da década
de 1930, quando se intensificou o ritmo de migração dos campos para as cidades.
O país viu seu PIB ser multiplicado por 15 entre 1940 e 1980, e o PIB per
capita multiplicar-se por 5. Nossos jovens, malgrado a penúria da condição real
da maioria, podiam olhar para o futuro e imaginá-lo melhor do que sua vida
presente47. As pesquisas de opinião sempre o comprovaram: os brasileiros, desde
que se tem notícia de pesquisas deste tipo, sempre acreditaram que estariam
melhor amanhã do que estão hoje48.
Mas a média, num país muito desigual como o Brasil, mais esconde do que revela
os processos sociais subjacentes. Aspecto distintivo de nossa experiência de
modernização capitalista é o fato de que nenhum dos mecanismos de ajustamento à
ordem burguesa em construção se universalizou, com exceção parcial do acesso ao
ensino fundamental, cuja universalização, é bom salientar, ocorreu apenas em
fins da década de 1990 (Costa_Ribeiro,_2009). Desde 1950 até pelo menos meados
da década de 2000 a renda individual de 75% dos brasileiros foi igual ou menor
do que R$1.000 (Santos,_2006). O mercado formal de trabalho, regulado pelo
Estado, nunca acolheu mais do que 60% dos trabalhadores, tendo caído a 40% no
fim dos anos 1990, mesma proporção encontrada em 1940, início do processo de
efetivação da “cidadania regulada” (Santos,_1979). Ainda em 2012, apesar da
grande formalização ocorrida no mercado de trabalho depois de 2003, a taxa de
formalidade era a mesma de 1980 (Cardoso,_2013). Além disso, os empregos sempre
foram muito instáveis. Perto de metade da população perde o emprego todos os
anos no Brasil, e mais de 30% têm vários empregos por ano, ou emprego nenhum.
Entre os jovens as taxas sempre foram muito mais altas do que isso (dados em
Cardoso,_2010).
Também contrariamente à experiência europeia, a posse de um diploma
universitário nos anos 1980 e 1990 ainda credenciava os jovens às melhores
posições na estrutura ocupacional. A “inflação de credenciais” entre nós só
mostraria sua face nos anos 2000, muito em razão da avalanche de diplomas
oriundos do ensino privado de má qualidade. Por aqui, o ensino superior vem se
democratizando pelo mercado, e o acesso das camadas inferiores à universidade
gerou outras dimensões nas desigualdades de oportunidades. O ensino superior
privado é não apenas, na média, de má qualidade, como é também muito
concentrado em algumas poucas carreiras, o que piora as chances de sucesso dos
recém-formados49. A “inflação de diplomas”, pois, afeta sobretudo os mais
pobres dentre os diplomados.
Ainda assim, a “democratização” ainda é muito restrita. Em 2012, segundo dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), apenas 34% dos jovens de
18 a 22 estavam estudando, e destes, não mais que 32% estavam na universidade.
Metade ainda cursava o ensino médio. Daqueles com 22 a 25 anos, apenas 23%
estavam cursando ou haviam terminado a universidade, mais de 70% deles em
escolas privadas50, valores, como vimos, equivalentes ao que a França atingira
nos anos 1970, e os Estados Unidos, no início dos anos 1960.
A avalanche populacional pós-década de 1940, que produziu nossos espaços
urbanos segregados, excludentes e desiguais, fruto da diminuta capacidade de o
Estado (em seus diversos níveis federativos) responder às carências da
maioria51, resultou, para as camadas mais pobres, em processos eminentemente
privados de incorporação das novas gerações à dinâmica social. Entre os mais
pobres, o “problema das gerações” foi equacionado, primeiro, pelas famílias e
suas redes sociais e comunitárias, e depois, pelo mercado de trabalho e seus
empregos precários, com o Estado participando marginalmente, e por um período
muito curto, do ordenamento das trajetórias de vida, por meio de um sistema
escolar que só universalizou a escolaridade fundamental (8 ou 9 anos, segundo o
sistema escolar) no final da década de 1990, como já se disse52.
Aquelas redes sociais e comunitárias, é bom marcar, foramconstituídas nas
cidades de destino dos migrantes, num processo de adaptação/negação/
ressignificação das trajetórias pretéritas que não tem nada da ideia de
“transmissão das tradições culturais herdadas do passado”, cara aos autores
discutidos antes. A migração intensa e recente significou, em grande medida, a
diluição dos horizontes de expectativas de todos, pais e filhos, num projeto
geral, mas difuso, de “melhoria de vida” na cidade. A vida de todos, migrantes
e filhos, se voltou, de um modo ou de outro, para o futuro, cuja construção se
deu, porém, em condições muito precárias de vida no presente, o que dificultou
ou mesmo impediu que parte considerável das famílias realizasse o sonho, sempre
adiado, de escolarização de seus membros.
Mesmo as famílias das classes médias e altas seguiram vias privadas de
socialização de seus filhos, já que, no passo em que a pressão populacional
aviltou a qualidade do ensino público, a maior parte daquelas transferiu os
filhos para escolas privadas, cuja maior qualidade diferencial passou a ser
condição para o acesso, via vestibular, ao ensino superior público. Assim,
segundo o Censo Demográfico de 2010, nas famílias com renda per capita entre os
10% mais ricos, 77% dos que frequentavam o ensino fundamental estavam numa
escola particular53. No ensino médio, 66% estavam nessa condição. Nas famílias
entre as 40% mais pobres, as proporções eram inferiores a 5% nos dois níveis
escolares. Em cidades com 500 mil habitantes ou mais a taxa foi ainda mais
alta, de 85% (ensino fundamental) e 72% (médio) dos filhos das famílias entre
as 10% mais ricas estavam em escolas privadas, contra apenas 10% ou menos entre
as 40% mais pobres.
Isso aprofundou as clivagens já existentes na situação geracional54, já que
aqueles jovens condenados ao ensino público fundamental de má qualidade quase
nunca acederiam ao ensino superior público, ou mesmo a qualquer ensino
superior. Ainda segundo o Censo de 2010, nas famílias com renda per capita
entre os 40% mais pobres, apenas 1 em cada 5 jovens de 19 a 25 anos estava
estudando, enquanto nas 10% mais ricas, 1 em cada 2 frequentava escola. A
desigualdade de oportunidades, num mundo privatizado e cheio de filtros e
gargalos no acesso às posições superiores (como o vestibular, os concursos para
cargos públicos, o preconceito racial, a discriminação de gênero etc.) tende a
perpetuar as clivagens e hierarquias sociais, ao estruturar de maneira também
desigual e hierárquica as chances de vida das novas gerações.
Se o peso da socialização das novas gerações esteve quase sempre nos ombros das
famílias, mesmo estas eram (e são) arranjos muito instáveis e vulneráveis (ver
Zaluar,_2014), principalmente entre os mais pobres, que sempre foram a maioria
da população. Em 1970, por exemplo, tomando-se apenas o antigo Estado da
Guanabara (hoje cidade do Rio de Janeiro), perto de 58% das famílias viviam com
até 1 salário mínimo por mês de renda per capita55. Porém, 25% do total de
famílias eram chefiados por mulheres, quase todas sem cônjuge, e a rendaper
capita de 65% delas era igual ou inferior a 1 salário mínimo. Mais da metade
eram mulheres com filhos56. O fenômeno de mulheres pobres criando sozinhas seus
filhos não é novo no Brasil (Costa_Ribeiro,_2009), e sempre foi um dos
principais responsáveis pela transmissão intergeracional das desigualdades. E
estamos falando de um dos municípios mais ricos do país. Ainda em 2010, e
malgrado todo o apressado alarde em torno do crescimento da “nova classe média”
(Neri,_2010), 48% (ou quase metade) dos brasileiros viviam em domicílios cuja
renda familiar per capitaestava entre os 40% mais pobres, isto é, era igual ou
inferior a R$450 por pessoa57, em valores atualizados (de janeiro de 2014).
O Estado vem penetrando muito lentamente os mecanismos de socialização das
novas gerações, e ainda hoje não se pode dizer que se tenha rompido o padrão
privatizado que sempre os caracterizou. A Constituição de 1988 instituiu, por
exemplo, os conselhos tutelares da criança e do adolescente, e desde então vêm
se delineando outras políticas públicas relevantes voltadas para estas
dimensões, como o bolsa-escola nos anos 1990, de baixa cobertura, e,
atualmente, o bolsa-família, além da política de valorização do salário
mínimo58. São também importantes o combate ao trabalho infantil e o aumento
gradativo da idade mínima de entrada no mercado de trabalho, hoje em 16 anos,
ao menos na lei59. Conquanto importantes como mecanismos de redução da
estrutural vulnerabilidade das novas gerações nascidas em famílias mais pobres,
os programas de transferência de renda não melhoram a qualidade da educação ou
da saúde pública, que exige investimentos de outro tipo, e muito mais
vultuosos, embora se invista mais nesses setores, hoje, do que jamais se
investiu no Brasil (Cardoso,_2013: Introdução).
Entre nós, pois, o “problema das gerações” adquiriu um rosto próprio, muito
diverso do padrão europeu esboçado nas primeiras seções deste texto. Por
décadas as novas gerações foram acolhidas num fluxo populacional que era isso
mesmo, população em fluxo, movendo-se do campo para a cidade e nela
reconstruindo padrões de sociabilidade, reinventando tradições culturais e
lutando por meios de vida em condições muito vulneráveis, o que fez do trabalho
precoce dos jovens um mecanismo central de sua socialização. Num sentido muito
profundo, a experiência das gerações sucessivas foi de efetiva construção
social de sua realidade, já que as cidades foram inteiramente transformadas
pela avalanche populacional, e seus mercados de trabalho e suas instituições
públicas nunca foram suficientes para incorporar produtivamente todos os
migrantes, com o que boa parte deles precisoucriar meios de vida por conta
própria e por fora daquelas instituições60. O abandono precoce da escola
reduziu o tempo de exposição de boa parte dos jovens à institucionalidade
pública e aos mecanismos públicos de transmissão da “herança cultural”,
transferindo aos próprios jovens, e de novo muito cedo em suas trajetórias de
vida, o ônus de unificar a experiência do mundo em identidades individuais e
coletivas. Estas foram forjadas, sobretudo entre os mais pobres, maioria da
população, na negociação privada de experiências com outros jovens e com o
mundo dos adultos, materializado nos recursos sociais e econômicos cujo acesso
esteve sempre desigualmente distribuído, em privilégio das camadas mais ricas
da população. Estas, por seu lado, nas grandes cidades mais do que no resto do
país, foram aos poucos construindo um mundo próprio, higienicamente distante da
maioria, fechado em condomínios seguros, escolas privadas, shopping centers,
mundo também privado61, porém em nada semelhante ao ambiente vulnerável e
turbulento que acolheu as gerações mais pobres.
Nesse sentido, “o problema das gerações”, no Brasil, deve ser conjugado no
plural. A experiência geracional foi sempre muito desigual e hierárquica, e as
diferentes classes sociais experimentaram à sua maneira os processos de
privatização da socialização, e construíram à sua maneira a sucessão
geracional, maneiras, muitas vezes, incomensuráveis e irredutíveis umas às
outras. Houve, e há, obviamente, inúmeros pontos de contato entre essas
maneiras. Nem todas as famílias mais ricas mantêm seus filhos em escolas
privadas, e uma parcela dos mais pobres consegue ser educada nelas. Parte dos
mais pobres consegue acesso ao ensino superior público de qualidade, assim como
parte dos mais ricos paga por escolas ruins. O ambiente cultural das grandes
cidades oferece inúmeras oportunidades para o compartilhamento da experiência
geracional, assim também o mundo da participação política e, mais recentemente,
as redes sociais virtuais. E mesmo que vivam, no processo de socialização,
trajetórias divergentes, proporções não desprezíveis destas frações geracionais
se encontrarão no mundo do trabalho e compartilharão, por exemplo, o destino de
sua empresa, mesmo que estando em posições hierárquicas muito distintas. Tarefa
sempre atual de pesquisa é, justamente, desvendar os mecanismos pelos quais
experiências geracionais tão díspares no ponto de partida, porque clivadas por
grandes desigualdades de classe e de oportunidades de vida, resultam nesse
amálgama turbulento e em instável equilíbrio que é a sociedade brasileira.