O Brasil e as negociações multilaterais
Introdução
O texto procura mostrar que, ao longo dos últimos anos, em função das grandes
transformações ocorridas no mundo, o Brasil, com capacidade limitada de poder e
de influência, tem atribuído considerável importância às organizações
internacionais. Esta tendência tem se acentuado sobretudo nos anos 90, com o
país criticando as assimetrias de poder vigentes, os protecionismos, e
reivindicando melhores condições de participação no comércio internacional,
solicitando investimentos e transferências de tecnologia. São estas as posturas
adotadas pelo país quando participa nas instâncias multilaterais ou em
encontros como a Reunião de Cúpula América Latina-Caribe-União Européia,
realizada em junho de 1999 no Rio de Janeiro.
A atuação em foros diversos converteu-se em uma das tendências marcantes da
política externa brasileira nos anos 90. Na realidade, o Brasil sempre
privilegiou as negociações multilaterais em seu relacionamento com os demais
Estados-nações.1 Isto pode ser verificado, por exemplo, nas participações do
país em foros globais ou regionais, em instâncias extremamente variadas como a
Organização das Nações Unidas ou o Tratado de Cooperação Amazônica, da
Organização dos Estados Americanos ao Mercado Comum do Sul (Mercosul), na
Conferência Mundial de Direitos Humanos, no Grupo do Rio, na Agenda para o
Desenvolvimento, na Cúpula das Américas ou na Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa.
É bem verdade, também, que ainda há poucos anos, mais precisamente na década de
70, o Brasil oscilava entre o Primeiro e o Terceiro Mundo tentando tirar
proveito de sua particular condição: não tão atrasado que justificasse sua
presença como membro integral do Terceiro Mundo, nem tão avançado que pudesse
ser caracterizado como parceiro pleno do Primeiro Mundo.2 Daí a oscilação entre
um e outro bloco, de acordo com as conveniências. Como tentavam explicar as
autoridades brasileiras daqueles anos, o Brasil estava adiantado em relação aos
países do Terceiro Mundo e defasado em relação aos do Primeiro Mundo. Ou seja,
procurava manter-se com um pé em cada mundo, como se isso fosse possível.
Procurava o Brasil, de um lado, ter os mesmos benefícios percebidos pelos
Estados mais pobres e, de outro lado, desejava participar mais ativamente das
decisões junto aos países que eram grandes potências.
Não custa lembrar que naqueles anos ainda vigorava, apesar do esmaecimento do
conflito Leste-Oeste, um regime autoritário no país, como de resto acontecia em
grande parte do continente sul-americano. A partir de meados dos 80, quando se
encerram as ditaduras militares na região, o Brasil desempenhava, como aliás
sempre foi desde os anos 20, o status de potência média.3
A idéia de Grande Potência também fez parte das elucubrações nacionais no final
da década de 60 e início de 70, quando o país experimentou apreciável
crescimento econômico, mas com fôlego curto, já que os índices sócio-econômicos
desabaram pouco tempo depois. Apesar dos revezes e amargurando grandes
disparidades internas, o Brasil transformou-se em um país moderno,
caracterizado por uma ocupação desordenada e predatória do território,
significativa população concentrada em grandes centros urbanos carentes de
infra-estrutura, razoável processo de industrialização, com vontade de
exercitar, cada vez mais, papel de realce no tabuleiro mundial do poder.4
Se durante o ciclo militar, que vigorou de 1964 a 1985, uma das características
que imprimiram rumo à política externa brasileira foi o uso e abuso do binômio
segurança e desenvolvimento, o mesmo não se pode dizer do período que se segue.
São nítidas as diferenças em diversos planos e também as semelhanças tanto
no que diz respeito às políticas domésticas, quanto no que se refere à presença
e atuação no sistema internacional.
Com a redemocratização, a Doutrina de Segurança Nacional deixou de ser uma das
linhas norteadoras da política nacional e, por extensão, da política externa
brasileira, embora não se possa afirmar que temas sensíveis como o da defesa e
da segurança tivessem sido em qualquer momento negligenciados. Prova disso é
que apenas em meados dos 80, o Brasil já com um presidente civil, um plano para
proteção da Amazônia foi finalmente elaborado o Projeto Calha Norte, cujo
nome completo é "Desenvolvimento e segurança na região ao norte das calhas dos
rios Solimões e Amazonas" seguido na década de 90, pelo Sistema de Proteção
da Amazônia/Sistema de Vigilância da Amazônia (SIPAM/SIVAM). Ainda mais, em
1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso, formulou-se, pela primeira vez
no país, uma Política de Defesa Nacional, culminando, após muitas discussões,
com a criação do Ministério da Defesa (com o ex-senador Élcio Álvares, um civil
no seu comando) em 1999, já na virada do século.
O Brasil e as instâncias multilaterais
Enquanto transformações se sucediam bruscamente no plano internacional, na
formulação da política doméstica a participação do Brasil em instâncias
multilaterais foi aprofundada sensivelmente nos últimos anos. Uma das
características da política externa brasileira, em todos os momentos, inclusive
no regime militar, foi a presença constante em foros congregando países sob as
mais diferentes óticas, das culturais às políticas, das econômicas às
militares. Em 1964, por exemplo, o Brasil participou ativamente da Conferência
das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Da mesma forma,
marcou forte presença na Força Interamericana de Paz que interferiu na
República Dominicana em 1965;liderou a criação do Tratado de Cooperação
Amazônica, firmado em julho de 1978 por mais sete países da região; propôs a
Zona de Paz e de Cooperação no Atlântico Sul em 1986 envolvendo latino-
americanos e africanos; sediou a Conferência das Nações Unidas para Meio
Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD-Eco Rio) em 1992 e a I Conferência Ibero-
americana em 1999, além do Mercosul em 1991.
Não se deve, ainda, esquecer as freqüentes visitas de representantes de
organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento-Banco Mundial (BIRD) no país,
motivada principalmente pela captação de recursos, pela necessidade de mostrar
que está fazendo bem seus deveres de casa e de realizar ajustes nas contas
nacionais, atendendo às recomendações e exigências dessas instituições. Outras
participações e iniciativas brasileiras poderiam ser aqui listadas, mas pouco
acrescentariam à idéia de que a presença em organismos internacionais é um dos
traços mais permanentes na atuação do país, seja no âmbito regional seja no
contexto mais global.
Não há, provavelmente, uma única ocasião em que a presença brasileira não se
tenha verificado nas organizações internacionais ou em conferências de chefes
de Estado e de governo, se bem que os resultados nem sempre se manifestaram de
maneira uniforme ou favorável aos interesses do país, em uma ou outra
instância. O que, aliás, é perfeitamente natural na conduta de qualquer país,
já que, em seus diversos momentos históricos, as prioridades dificilmente são
as mesmas à falta de um projeto nacional de largo tempo - ainda mais quando
um Estado atua simultaneamente em várias frentes.
Não existe, pois, um momento que possa ser definido com precisão em que as
instituições e reuniões internacionais passaram a ter papel de relevo na pauta
da política externa brasileira. Elas sempre foram importantes para que o país
pudesse defender seus interesses e reivindicar maior participação nas arenas
mundiais.
Claro que a "postura universalista", adotada pelo governo brasileiro,
possibilitou também que, internamente, fossem feitas críticas intensas à
interferência dessas instituições nos negócios domésticos, com a oposição
governamental denunciando com freqüência a quebra da soberania nacional,
principalmente nos anos mais próximos.
Por que o Brasil sempre deu importância às instâncias multilaterais e às
reuniões internacionais? Pela mesma razão que orienta a política exterior de
todos os Estados nacionais. Nenhum país do mundo, por mais autônomo que seja ou
pretenda ser, pode prescindir deste tipo de relacionamento fechando suas
fronteiras e mantendo-se isolado. Ou seja, a troca de informações, de
experiências e acesso às tecnologias que os outros Estados descobrem, é vital
para o próprio desenvolvimento dos outros países. Se considerarmos a conjuntura
dos dois últimos lustros, com o aumento da interdependência e da globalização,
fica mais fácil entender o papel exercitado pelos policy-makers na consecução
das políticas públicas.
Pode-se, inclusive, dizer que este tipo de comportamento aumenta conforme as
expectativas que um país tem de desempenhar papel de realce no contexto
mundial. No caso brasileiro, quanto mais o governo tenha pretensão de assumir
importância nos negócios internacionais, cresce proporcionalmente seu grau de
participação nos organismos, tentando mostrar aos demais Estados que é um país
maduro, parceiro confiável e que todos só têm a ganhar se implementarem
intercâmbio mais amplo com ele. Tal maneira de conceber a realidade, portanto,
é observável não só em suas ações enquanto ator individual, mas também na forma
como se movimenta dentro dos blocos do qual o Brasil faz parte.
Pode-se considerar, por outro lado, que a contrapartida é igualmente
verdadeira. Se um país se julga suficientemente forte para ditar as regras da
política mundial ou impedir que medidas contrárias aos seus interesses sejam
aprovadas e executadas - e influenciar mais o sistema internacional do que é
por ele influenciado, ele não só pode prescindir de fazer parte das
organizações internacionais, como também participando das mesmas decidir não
acatar as determinações tomadas quando estas afetem seus interesses nacionais.
Este é, por exemplo, o caso de países como os Estados Unidos que vetaram a
recondução de Boutros Galli ao cargo de Secretário Geral da Organização das
Nações Unidas, ameaçando abandonar esta instituição, ou de grandes potências
como a França ou a China que detonam artefatos nucleares sem dar maiores
satisfações, ignorando simplesmente qualquer apelo, sabendo de antemão que não
sofrerão nenhum tipo de represália. Outros que não desfrutam desse status, mas
que dispõem de tecnologia nuclear, apesar de sujeitos a penalidades
internacionais, criticados e ameaçados com boicotes econômicos, etc., também
não parecem muito dispostos a abrir mão de tecnologia de tal porte, desde que
considerada de vital importância para seu país, casos específicos da Índia e do
Paquistão.
Visivelmente tais nações, conscientes de suas capacidades, executam políticas
de poder que determinam como deve funcionar o mundo, medindo forças, assumindo
riscos na verdade muito reduzidos já que inexistem instâncias punitivas que
possam agir contra elas mesmas.
Países médios, entretanto, como o Brasil, que não dispõem desse tipo de
tecnologia, nem utilizam a força para resolver suas divergências, tendo aderido
ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e assinado o Tratado de Prescrição
de Armas Nucleares na América Latina, têm apostado em outro tipo de
participação nos assuntos mundiais, via instituições e regimes internacionais.
Isto é, têm trabalhado principalmente através do aumento de sua presença
diplomática no cenário político e econômico, procurando ampliar cada vez mais
seu papel na grande comunidade das nações. Esta já era uma das tendências
perceptíveis na conduta dos formuladores da política externa brasileira na
segunda metade da década de 80, quando se desenvolveu no Uruguai a Rodada do
GATT. Caminham nessa direção, os protocolos de integração firmados pelo país
com a Argentina, a posterior formação do Mercosul e a abertura dos mercados,
culminando com a venda das empresas estatais nos anos que se seguem.
O cenário que emergiu com a desestruturação do bloco soviético, o final da
Guerra Fria, e a Rodada do Uruguai foram, sem qualquer sombra de dúvida, entre
outros, alguns dos elementos importantes para dar novo colorido à política
brasileira dos anos 90, dentro da tendência de formação de blocos, em um mundo
cada vez mais próximo e interligado. Outro indicador fundamental foi a
estabilidade da moeda, com o Plano Real, que possibilitou a formulação da
política externa brasileira em bases mais sólidas, apesar dos inúmeros
percalços que ao longo do tempo iriam se suceder.
Movimentando-se dentro deste quadro, a presença do país em foros multilaterais
foi se multiplicando cada vez mais porque esta era a opção mais plausível para
um Estado com as características do Brasil. Por isso, já no começo da década de
90, o Brasil sediou a Eco-92 imbuído do espírito de mostrar-se ao mundo como um
país cujo governo se preocupava com o meio ambiente, reduzindo assim as
críticas que eram intensas, há quase duas décadas.
A preocupação era desfazer a imagem de negligentes que as autoridades
brasileiras tinham internacionalmente ao não tratar convenientemente dessas
questões, omitindo-se perante a destruição da fauna, da flora e das populações
florestais, ou contribuindo com o efeito estufa ao permitir as queimadas da
selva amazônica. Esta era, portanto, uma forma de marcar presença no cenário
mundial apresentando-se, agora, como um país com justas aspirações a
desempenhar papel de relevo. Daí, também, a pretensão de reivindicar em
determinado momento vaga de membro permanente no Conselho de Segurança das
Nações Unidas, o que, obviamente, aumentaria seu prestígio, pelo menos no plano
regional.
Nos governos de Fernando Collor de Mello (15 de março de 1990 a 29 de dezembro
de 1992) e Itamar Franco (29 de dezembro de 1992 a 1º de janeiro de 1995), a
intenção brasileira de participar mais ativamente nos negócios internacionais
já era patente, sendo que com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso à
Presidência da República em 1995 (reeleito para novo mandato a partir de 1999)
esta tendência foi se tornando cada vez mais acentuada.
A diplomacia presidencial, como foi cunhada a política exterior de Fernando
Henrique Cardoso, caracterizou-se desde o primeiro momento em mostrar o quão
importante era a política externa para o desenvolvimento do país. Em inúmeras
viagens ao redor do mundo feitas não só pelo presidente e ministros, como
também pelo corpo diplomático, este foi o recado transmitido à comunidade
internacional, principalmente às grandes potências e às organizações econômicas
multilaterais. A busca incessante de recursos para subsidiar o desenvolvimento
nacional converteu-se, assim, em mecanismo de extrema importância para ajudar a
aumentar o peso do Brasil no mundo.
É bem verdade que, em praticamente todos os estágios da história brasileira, os
investimentos internacionais sempre foram considerados bem-vindos. Contudo,
houve também fases em que o país adotava posturas se não de confronto, pelo
menos de visível descontentamento relacionado com as políticas implementadas
pelos então chamados países do Primeiro Mundo.
Na segunda metade dos anos 80, com José Sarney (15 de março de 1985 a 15 de
março de 1990), a posição brasileira era marcadamente terceiro-mundista. Tal
comportamento, no final dos anos 90, simplesmente inexiste, tendo havido
sensível mudança na forma como o país passou a defender sua inserção no sistema
global.
Como dizia o então chanceler Fernando Henrique Cardoso em 1993, o país passou a
buscar mercados, recursos financeiros e principalmente tecnologia "em um mundo
onde só tem acesso a essas molas propulsoras do progresso quem tiver condições
de se apresentar como parceiro atraente e de influir no traçado das regras ora
em definição na cena internacional".5
Por isso, ocorreu a abertura dos mercados brasileiros, flexibilizando-se a
legislação, possibilitando a entrada cada vez maior de investimentos. Não só
isso, mas procurando mostrar que o país, com estabilidade política e econômica,
tendo regras claras sobre investimentos e lucros, era confiável, conclamando as
empresas estrangeiras a canalizar para cá seus recursos em um mercado
extremamente atraente, além de servir como trampolim para o Mercosul.
Ou seja, a percepção do governo sobre o mundo globalizado, interdependente, é
que só agindo sob este parâmetro o Brasil será capaz de se inserir
favoravelmente no contexto mundial. Os discursos e ações das autoridades
governamentais nos últimos anos são muito indicativos a este respeito.
A política externa dos 80 aos 90
A ascensão de José Sarney à Presidência da República em 1985, primeiro civil a
ocupar o cargo no período pós-ditadura, em virtude do falecimento do presidente
eleito, Tancredo Neves, não serviu para mudar significativamente a conduta da
política externa brasileira daquela que era implementada pelos governos
militares.
Sob muitos pontos de vista, a política conduzida pelo Ministério das Relações
Exteriores apenas deu prosseguimento àquilo que já vinha sendo realizado, mesmo
porque sendo, no plano interno, um período de transição, enfrentando ademais no
plano externo as adversidades da conjuntura internacional pouco poderia inovar
ou ser feito. A linha condutora da política externa brasileira, em termos
globais, deu, portanto, continuidade à política desenvolvimentista que tinha
caracterizado os dois últimos governos militares, de Ernesto Geisel (15 de
março de 1974 a 15 de março de 1979) e João Baptista Figueiredo (15 de março de
1979 a 15 de março de 1985).
Uma atuação mais próxima aos países latino-americanos, também, foi uma das
diretrizes da política externa brasileira, e que pode ser verificado nas
constantes atenções aos vizinhos, não só do governo de José Sarney, mas em
todos os anos anteriores.
Para tentar ocupar espaços no cenário mundial, em época difícil como a dos anos
80, os instrumentos utilizados pouco diferiam nas últimas décadas:
fortalecimento do poder nacional, proteção às indústrias, ainda com pouca
capacidade competitiva criando reservas de mercado em áreas sensíveis
investimentos externos e a procura de mercados para vender produtos
manufaturados, em patamares cada vez maiores desde os anos 70.
Com uma postura altamente defensiva e terceiro-mundista nos anos iniciais, o
governo Sarney enfrentou não só a crise da dívida externa que afetava grande
parte da América Latina, como teve que bater-se inúmeras vezes com as
autoridades norte-americanas, em itens que abarcavam desde o contencioso da
informática ao problema da propriedade intelectual, além das divergências sobre
a legislação de patentes para produtos farmacêuticos.
Ao mesmo tempo em que criticava asperamente as desigualdades internacionais, o
Brasil dirigia suas atenções contra os protecionismos praticados tanto pelos
países europeus quanto pelos norte-americanos que bloqueavam a entrada de
produtos nacionais. O Brasil queria usufruir de maior participação no comércio
internacional, enquanto discutia em foros multilaterais como o GATT, assuntos
tradicionais, principalmente os ligados aos setores têxteis e alimentares.
Esta atuação do Brasil não era de se estranhar porque, dotado de pouca
capacidade competitiva no plano industrial, não via com bons olhos a inserção
de novos temas em foros como a Rodada Uruguai, onde nitidamente levaria
desvantagem. Isto é, com a entrada de temas desta natureza, sua capacidade de
atuação e de barganha no cenário internacional seria sensivelmente reduzida.
Por isso mesmo, a postura do governo brasileiro foi sempre a de reivindicar
alteração de comportamento dos grandes países, e tentar convencê-los a
propiciar àqueles em estágios menos desenvolvidos como o Brasil, investimentos,
empréstimos e transferência de tecnologia. Com esses recursos os países pobres
poderiam melhorar seu desempenho, habilitando-se a competir em igualdade de
condições com as demais nações.
No início de seu governo, Sarney lançou mão de mecanismos protecionistas, mesmo
expediente utilizado pelos Estados Unidos, pelo Japão e pela Europa.
A percepção de que o mundo rapidamente se transformava fez com que nos últimos
anos a conduta do governo de José Sarney se tornasse mais flexível, inclusive
melhorando o relacionamento com os Estados Unidos que impunha, costumeiramente,
barreiras à entrada de produtos brasileiros naquele mercado.
Neste clima de grandes mudanças, que coincide com a substituição do governo de
Sarney pelo de Fernando Collor de Mello, uma outra ótica vai passar a permear o
relacionamento do Brasil com o mundo. As negociações do GATT no Uruguai, a
proposta Iniciativas para as Américas de George Bush, o final do conflito
Leste-Oeste e o Mercosul, entre outros fatores, vão fazer com que a política
externa brasileira veja na interdependência e na cooperação as diretrizes nas
quais se deve apoiar para melhor se inserir mundialmente.
A abertura de mercados iniciada com o governo de José Sarney e aprofundada
por Fernando Collor de Mello indica claramente que a política externa e a
política interna vão estar cada vez mais estreitamente vinculadas, dando
prosseguimento à liberalização econômica em todos os setores, culminando com a
privatização até mesmo das grandes empresas estatais. A entrada acelerada de
capitais estrangeiros torna-se importante para auxiliar o desenvolvimento
nacional, embora a industria local não estivesse ainda devidamente preparada
para enfrentar tal concorrência, nem recebesse maiores subsídios, motivos pelos
quais o governo foi asperamente criticado pelo empresariado nacional.
O consenso de Washington torna-se o inspirador das políticas públicas
brasileiras, como de resto acontece em toda a América Latina; visando tornar o
país competitivo, o governo reestrutura a política industrial em 1990 lançando
o programa denominado PICE-Política Industrial e de Comércio Exterior.
O fim gradativo das barreiras não-tarifárias e outras medidas tomadas como o
debate sobre a legislação de produtos farmacêuticos que não era prioridade
para José Sarney a revisão do Código de Propriedade Intelectual, tudo isso
fez com que as relações com os Estados Unidos fossem sensivelmente melhoradas,
pelo menos naqueles anos, ainda que em outros setores divergências ocorressem,
como aliás é perfeitamente normal no intercâmbio entre dois países cuja pauta é
relativamente extensa.
Tratava-se, sobretudo, de em um mundo globalizado e interdependente (e que deve
servir de referencial para orientar a conduta de qualquer país que queira atuar
com destaque no sistema mundial), utilizar os recursos da melhor maneira
possível, para aumentar a capacidade de competição do país, ampliando portanto
suas margens de negociação e manobra, procurando usufruir de espaços sempre
maiores no cenário global.
Em sua breve passagem como chanceler no governo de Itamar Franco, o depois
ministro da Fazenda e futuro presidente da República, Fernando Henrique
Cardoso, dando posse a Luiz Felipe Lampreia no cargo de secretário geral do
Ministério das Relações Exteriores, já afirmava em 1992 que os princípios
norteadores da política externa brasileira na última década do século deveriam
ponderar que o papel da diplomacia seria o de detectar oportunidades que
pudessem propiciar ao país melhor acesso aos mercados e aos fluxos de capitais
e de tecnologia.6 Seriam abandonadas, assim, posturas defensivas, que eram
ainda adotadas, tanto no âmbito do GATT quanto em outros foros multilaterais.
Ou seja, o que iria orientar a conduta brasileira no contexto internacional
seria uma visão de realismo e objetividade no tratamento de temas que dissessem
respeito aos interesses do Brasil, visando fazer com que o país se inserisse de
maneira satisfatória em um mundo contemporâneo caracterizado por uma
globalização tanto interdependente quanto competitiva.7
Para que essa inserção na economia globalizada fosse possível, importância era
atribuída à estabilidade interna, tanto econômica quanto política, e à retomada
do crescimento do país. Para alcançar os objetivos de fazer do Brasil um país
desenvolvido e com capacidade de atuar satisfatoriamente no cenário mundial, os
esforços deveriam, portanto, levar na devida conta o realismo das relações
internacionais. Mas sem que houvesse quebra das regras do jogo, porque a
capacidade de barganha que o país detinha impedia a adoção de comportamentos
desta natureza. Mesmo porque tentativas nesta direção, ao invés de auxiliar,
poderiam colocar o país fora do jogo.8
Neste cenário competitivo, as relações com os Estados Unidos ora melhoravam ora
sofriam problemas porque o país já era visto como competitivo em alguns
setores, embora não tivesse, também, credibilidade e sofresse críticas ácidas
em vários tópicos como a questão ambiental e direitos humanos.9 O embaixador em
Londres, Rubens Barbosa, considerava esses fatos como corriqueiros,
justificando que à medida que o país voltasse a crescer, a ampliação de
contenciosos entre os dois países, também se daria na mesma escala, porque o
"relacionamento entre países é governado por interesses claros e definidos, não
havendo lugar para vagos sentimentos afetivos".10 Era o mesmo realismo
apregoado por Fernando Henrique Cardoso, e que vai caracterizar fortemente a
atuação do país no cenário internacional nos anos que fecham a década.
Contudo, demonstrações de boa vontade na relação com países potências como os
Estados Unidos estavam sendo feitas nos inícios dos anos 90, quando a lei de
patentes já tramitava no Senado Federal desde 1993 havendo, ainda dois projetos
de lei sobre direitos autorais, enquanto a nova lei brasileira de propriedade
industrial (n.º 824/91) tinha sido aprovada pela Câmara dos Deputados em junho
do mesmo ano. Não havia ainda proteção às patentes sobre produtos alimentícios,
farmacêuticos ou químicos.11
A política externa brasileira na virada do século
Como presidente da República, Fernando Henrique Cardoso não acreditava no fim
das ideologias, como expunha em terras portuguesas, na Universidade de Coimbra,
em 24 de julho de 1995 ao receber o título de Doutor Honoris Causa daquela
tradicional Universidade. Um dia depois, ao receber idêntica homenagem na
Universidade do Porto, a tecnologia e a ciência eram colocadas como elementos
prioritários para o desenvolvimento nacional, afirmando que "as possibilidades
de participar com eficiência na economia globalizada é cada vez mais pela
capacidade dos países de investir em ciência e tecnologia e de dispor de
recursos humanos qualificados".12
Ao lado desses itens, uma das preocupações básicas do governo Fernando Henrique
era com os fluxos internacionais de capital, percebido como um problema global
sem possibilidade de ser resolvido por qualquer país, por maior que fosse, em
termos estritamente individuais. Para dar conta desse assunto, a cooperação
internacional se tornava cada vez mais importante, como dizia na Conferência
Ibero-americana realizada na mesma cidade portuguesa do Porto, alguns anos
depois, em 18 de outubro de 1998.13
A necessidade de estabilizar o Sistema Financeiro Internacional é percebida
como fator crucial nas atuais relações internacionais, porque com o decorrer o
tempo, ocorreu um envelhecimento das instituições que já não estão mais
preparadas para enfrentar adequadamente as novas realidades mundiais.
Qualquer problema que possa afetar os países emergentes contribuirá,
obviamente, para desestabilizar o próprio sistema. As conseqüências são claras.
Não se trata, portanto, simplesmente de mais um jogo de soma zero , onde o que
um lado ganha o outro perde na mesma proporção, mas de situações em que os dois
contendores saem perdendo, o que não é interessante para nenhum dos agentes.
O entendimento de Fernando Henrique da ordem internacional apóia-se na
convicção de que a "globalização, a despeito das assimetrias que se mantém
produziu nova comunidade de interesses entre o Norte e o Sul, sendo que (...)
do êxito dos países emergentes depende a estabilidade da própria economia
internacional".14 E este é um problema que todos deveriam entender, com a
cooperação ocupando o eixo das preocupações de todos.
Essa ordem mundial que continua sendo injusta e seletiva, aprofundando as
desigualdades entre industrializados e nações em desenvolvimento, continua
favorecendo principalmente interesses dos primeiros, seus produtos e serviços,
enquanto os produtos oriundos dos países pobres continuam sendo prejudicados
pelas barreiras tarifárias e não-tarifárias, pelas políticas protecionistas dos
Estados industrializados.
Neste mundo globalizado, como enfatizou Fernando Henrique em pelo menos duas
oportunidades em 1996, no México e em Johannesburg, para contrapor-se aos
efeitos negativos da globalização os governantes deveriam "aceitar certos
condicionantes da ordem econômica em gestação com realismo e sentido de
pragmatismo. A novidade do processo e a velocidade das transformações exigem
formas inteiramente novas de agir no cenário internacional".15
Nesta perspectiva, a cooperação regional e inter-regional é uma das prioridades
da política externa brasileira, motivo pelo qual se atribui a ela importância
crescente. O Mercosul tem sido um bom exemplo desse pensamento.
O Mercosul, entendido como elemento importante para a política brasileira é
constantemente ressaltado pelo presidente Fernando Henrique, por exemplo, em
1997, em Londres, ao considerar que a "organização de um novo espaço sul-
americano é uma das prioridades da política externa brasileira, o que
entendemos como etapa essencial para a liberalização econômica em escala
hemisférica".16
As constantes divergências verificadas com o governo argentino em torno da
fixação de cotas em uma série de produtos, como no setor automotivo, e algumas
medidas unilaterais, de um e de outro lado, contudo, tornaram conturbadas as
relações no seio do próprio Mercosul;chegou-se inclusive a delicados momentos,
como o verificado no começo de 1999, após a desvalorização cambial brasileira,
quando os empresários e o governo argentino sentiram-se bastante ressentidos,
por não terem sido avisados previamente pelas autoridades de Brasília
Sobre a idéia de cooperação e integração inter-regional, a posição brasileira
era de que o aprofundamento das relações entre blocos diferentes, como o
Mercosul e a União Européia só iria beneficiar a ambos, porque além de
facilitar o intercâmbio em todos os níveis, aumentaria ainda a capacidade de
cada um deles frente aos Estados Unidos, ampliando desta forma o poder de
barganha no cenário mundial. As negociações entre ambos, portanto, não apenas
no setor privado, mas também na esfera governamental, se fundamentariam em
interesses concretos, que se traduzem mutuamente em investimentos crescentes.
Como afirmava Fernando Henrique Cardoso em fevereiro de 1999, na primeira
reunião do Foro Empresarial Mercosul/Europa para que um intercâmbio mais
aprofundado ocorra, necessário se faz , contudo, que as barreiras técnicas,
sanitárias e fitossanitárias que dificultam o acesso dos produtos brasileiros
aos principais mercados sejam repensadas, porque nada mais são do que
protecionismos mal disfarçados.17
Para justificar o quanto a Europa teria a ganhar no relacionamento com o Brasil
e com o Mercosul, Fernando Henrique menciona que de 1990 a 1996 as importações
realizadas pelo Mercosul provenientes do continente europeu aumentaram 274%,
enquanto no sentido contrário a exportações para a Europa sofreram um aumento
de apenas 25%. Na prática, constava-se que apenas a União Européia estava sendo
beneficiária do regionalismo aberto praticado pelo Mercosul. A União Européia
constituía-se, ainda, no principal investidor estrangeiro no Mercosul,
basicamente em setores estratégicos dinâmicos e de forte valor agregado.
Para reforçar suas reivindicações, o governo brasileiro sustenta que o país
abriu seus mercados enquanto os países europeus não deram a sua contrapartida.
Quer dizer, a reciprocidade não está ocorrendo.
Se durante os primeiros anos da década de 90 a ênfase principal do governo
brasileiro foi e continua sendo em grande parte o Mercosul, nos anos que se
seguem, principalmente com a subida de Fernando Henrique à Presidência da
República, a cooperação internacional tem sido o mote constante tanto de seus
discursos quanto de sua atuação, principalmente dentro do Mercosul. Isto porque
percebe-se que os benefícios aumentam gradativamente quando as negociações são
realizadas em grupo e não em termos individuais.
Com este espírito firmou-se, em dezembro de 1995, o acordo Marco de Cooperação
Inter-regional entre o Mercosul e a União Européia.
Mas, ao mesmo tempo em que elogiava este acordo, o presidente Fernando Henrique
Cardoso reclamava dos subsídios agrícolas concedidos pelos países europeus. A
posição brasileira sobre a questão agrícola era aquela definida pelo Grupo de
Cairns, que defendia a remoção de subsídios à exportação. E foi em torno deste
tema que se concentraram, em grande parte, as ressalvas brasileiras em foros
diversos dos últimos anos, reunindo os países dos dois lados do Atlântico, por
exemplo em meados de 1999 na Reunião de Cúpula América Latina, Caribe e União
Européia, realizada na cidade do Rio de Janeiro.
Jório Dauster, representante do Brasil em Bruxelas nos últimos sete anos e
atual presidente da Companhia do Vale do Rio Doce, enfatizava no Instituto
Brasil-Europa nas discussões preparatórias, poucos dias antes da Reunião de
Cúpula, que na realidade não eram apenas os subsídios agrícolas que ocupavam o
centro das discussões. Tratava-se, diz Dauster, de mais do que isso, ou seja,
fundamentalmente devia-se pensar na política protecionista implementada pelos
países desenvolvidos.18
Portanto, nada de diferente daquilo que já ocorria desde a década passada e que
se constituiu em motivo de reclamações freqüentes de países como o Brasil que,
inclusive, se sentia claramente discriminado, já que outros vizinhos latino-
americanos usufruíam de condições muito mais favoráveis para exportar seus
produtos rumo aos mercados norte-americano e europeu.
O embaixador lembrava, ainda, que na realidade havia necessidade de se
"derrubar os mitos das negociações agrícolas com a União Européia, e com a
França em particular, porque quem produz beterrabas são grandes empresas
francesas que tem interesse em manter protecionismo". Este fato, inclusive, era
reconhecido pelo francês Jean Pierre Simonnet, presidente do Instituto Brasil-
Europa.19
Entre as inúmeras divergências verificadas entre as duas instâncias
encontravam-se questões como a da fixação de datas para se começar a
liberalização do comércio agrícola, visto que no bloco europeu havia posições
diferenciadas, com a França manifestando-se contrária a esta política antes de
julho de 2003, enquanto a Alemanha propunha o encaminhamento da mesma para
dezembro de 2000.
A preocupação francesa, por um lado, tinha razão de ser, porque 40% da
exportação do Mercosul dirigida para a União Européia são compostas de cereais,
carnes, laticínios, verduras e vinhos.20 Isto é, tratava-se de assegurar o
máximo possível os privilégios para seus produtores.
Para o Brasil, a idéia era lançar negociações entre os dois blocos sem,
contudo, estabelecer qualquer data definitiva. Considerava-se mais interessante
convocar uma reunião rápida do Conselho Conjunto de ministros dos dois blocos,
com a finalidade de definir melhor os calendários, grupos de trabalho, etc.21
A posição brasileira foi centrada nas discussões e decisões já tomadas
anteriormente na Cúpula do México em maio de 1999, quando os países do
continente fecharam questão em torno da feitura de acordos completos,
integrais, impossibilitando que qualquer setor da pauta de negociações ficasse
excluído. Serviu de referência o conceito utilizado naquela ocasião, de single
undertaking, onde nada seria acordado até que tudo estivesse devidamente
acertado, aprovado em blocos e não em partes, da mesma maneira que o efetuado,
por exemplo, no âmbito do NAFTA.22
Na verdade a posição brasileira não era a de demonstrar pressa na fixação de
acordos. Conforme dava a entender o embaixador José Alfredo Graça Lima,
subsecretário geral de Assuntos Econômicos, de Integração e de Comércio
Exterior a atitude nas negociações seria de muita prudência, já que o governo
terá um prazo bastante longo para realizar a abertura nos acordos com a União
Européia. Segundo ele, "estamos falando de um horizonte de 2005. Durante esse
período teremos condições de nos prepararmos do ponto de vista econômico e
administrativo para montar uma equipe negociadora e para nos aparelharmos para
a negociação".23
Se oficialmente o governo tinha esta posição os empresários não pensavam
exatamente da mesma forma. Tanto é que constantemente sentiam-se alijadas dos
processos de decisão, reivindicando maior parcela de participação em
negociações desse tipo. Assim o Fórum Empresarial Mercosul/Europa, por exemplo,
entregou no dia 28 de junho, quando se realizava a Reunião de Cúpula, um
documento constando uma agenda de temas que eles gostariam de ver discutidos
com sua presença. Entre essas demandas constavam temas como: acesso a mercado,
redução de barreiras tarifárias e não tarifárias, privatização, exigências
sanitárias e fitossanitárias e regra de jogos.
Para outros empresários como Roberto Teixeira da Costa, coordenador da seção
brasileira do Conselho de Empresários da América Latina, o maior entrosamento
deveria ser feito com maior rapidez com a ALCA e não com a União Européia, em
função de vários motivos. Entre esses, pelo menos três: o primeiro de ordem
geográfica, já que o território americano é muito mais próximo; em segundo
lugar a pauta de negociações com os Estados Unidos está muito mais avançada do
que com os países europeus; e, por último, porque é mais difícil negociar com a
Europa, já que é composta de vários países, enquanto os Estados Unidos se
constituem em um único bloco, monolítico.24
Segundo dados recentes, nove entre dez dos principais produtos vendidos pelo
Brasil ao continente Europeu são constituídos por matérias-primas ou itens que
possuem baixo valor agregado como as commodities. Por exemplo, de janeiro a
abril de 1999 o país exportou para a União Européia 33% de suas exportações,
enquanto para os Estados Unidos o total foi de 26% .25
No que diz respeito aos subsídios agrícolas, 29 membros da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico OCDE gastam em torno de 366 bilhões de
dólares em subsídios, sendo que deste montante, 142 são utilizados por 15
países europeus, 97 bilhões pelos Estados Unidos e 56 bilhões pelo Japão.26
É contra esta política de subsídios que países como o Brasil tem fincado pé,
porque se torna praticamente impossível competir nesses mercados com as mesmas
chances de igualdade.
Como esta questão era tratada pelo governo brasileiro? O chanceler Luiz Felipe
Lampreia é muito claro a este respeito. Para um país, diz ele, "como o Brasil
que é um dos países mais eficientes na produção e exportação de produtos
agrícolas e que conta com condições naturais ímpares na produção desses bens, a
agricultura será o tema prioritário nas negociações".27
Dentro daquilo que se considera uma visão realista e pragmática de atuação do
governo brasileiro, entretanto, não era por causa disso, que o país se
recusaria a levantar outras questões. Segundo Lampreia "não podemos contudo,
nos furtar das negociações de tarifas na área industrial, onde teremos
necessariamente que fazer algumas concessões para conseguirmos contrapartidas
nas nossas áreas de interesse prioritário".28
Apesar de os europeus considerarem que o Brasil ainda se mantêm muito na
defensiva e protecionista no setor financeiro, em outras áreas o governo já se
mostrava disposto a iniciar as negociações imediatamente.
Entendo as discussões com a União Européia e Alca como perfeitamente
compatíveis e normais nas relações econômicas brasileiras, Fernando Henrique
Cardoso dizia que isto não era uma contradição, nem oposição, mas simplesmente
a ampliação de oportunidades. Conforme o presidente brasileiro, inclusive já se
podia inclusive tomar algumas medidas: fixar julho de 2001 como limite para o
início das discussões referentes às barreiras tarifárias existentes entre
Mercosul/Chile/União Européia, frisando que a data era um limite final e não
inicial. Prosseguindo dizia que "em relação às barreiras não tarifárias, não
estabelecemos limites de tempo, elas podem iniciar imediatamente".29
Os produtos agrícolas permanecem sendo um ponto sensível para o governo
brasileiro. Nas discussões de Seattle, realizadas no início de dezembro de
1999, a questão agrícola continuou sendo altamente considerada porque as
exportações brasileiras desses produtos para o continente europeu eram cerca de
46% do total, sendo que 34% das vendas para a Europa eram constituídos de
derivados de soja, café solúvel e suco de laranja, sendo que este último
produto era taxado em 36,4%, mais ad valorem de 22,3 euros para cada l00 quilos
importados; o café solúvel sofria uma taxa de 13,7%, conforme informava a
Confederação Nacional de Indústrias, enquanto o similar colombiano recebia
tratamento tarifário especial, tornando o café brasileiro pouco atraente para
os paladares e bolsos europeus.30
Tratamento diferenciado também era dispensado até às cotas de outros produtos
como a carne. Enquanto ao produto brasileiro se tinha estabelecido uma
quantidade de cinco mil toneladas, Argentina e Uruguai juntos exportavam 34 mil
toneladas.31
Apesar de todas essas divergências, o governo brasileiro tem considerado a
União Européia como elemento central em sua política externa. Alguns dados
indicam o porque desta postura. Conforme dados do embaixador Souto Maior, a
União Européia detém o maior estoque de investimento estrangeiro direito em
nosso país, em torno de 57 bilhões de dólares. O comércio entre o Brasil e o
continente europeu que era de 15,1 bilhões de dólares em 1992, sofreu
considerável aumento nos anos posteriores, chegando a 31,5 bilhões. Como dado
negativo, a balança comercial nesse período manifestou-se, por outro lado,
completamente desfavorável aos interesses brasileiros, passando de um superávit
de seis bilhões de dólares em 1992 para um déficit de 2,1 bilhões,
principalmente em função do protecionismo praticado pelos países europeus no
setor agrícola.32
A presença brasileira não só na Reunião de Cúpula, mas em instituições como a
Organização Mundial do Comércio, tem indicado bem quais os interesses em jogo.
Se na OMC grande parte da atuação brasileira tem se manifestado de maneira
ainda um tanto reticente, mais na defesa, apesar dos discursos contrários
já no que diz respeito à questão agrícola a postura adotada tem sido diferente.
Para defender-se de que tem utilizado expedientes protecionistas, como o
Programa de Exportação PROEX, o governo alega que, antes de implementá-lo,
notificou a OMC, justificando mesmo que ele não traz danos aos concorrentes.
Neste caso específico, o Brasil lança mão de cláusula da própria OMC de
benefício a países em desenvolvimento, utilizando o conceito de nação menos
favorecida, que prevê a redução gradativa de subsídios em áreas importantes
para o desenvolvimento do país.
Nos demais setores onde a postura defensiva tem sido observada, a explicação é
de que esta timidez "tem sido pautada pelas preocupações com as carências
competitivas das empresas brasileiras e com a redução da liberdade no manejo
das políticas públicas domésticas".33
Enquanto tem procurado atuar cada vez mais nos foros internacionais, na defesa
dos seus interesses, pautando-se pelo aumento da interdependência, o Brasil nem
por isso deixou de lado outros temas, como a necessidade de assinar o Tratado
de Não-Proliferação Nuclear, a ênfase em questões ambientais e nos direitos
humanos. Outros itens como o tráfico de drogas e o terrorismo, tem ocupado
igualmente, no âmbito regional, a atenção do governo brasileiro.
Observações finais
Como dizia o embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, coordenador da Reunião de
Cúpula, a política externa brasileira estava atuando em quatro planos: "a
construção do Mercosul, o seu aprofundamento rumo a um mercado comum, as
associações com outros parceiros como o Chile e a Bolívia e os planos bi-
regionais (ALCA e União Européia)".34
Com várias frentes simultaneamente, deve-se concluir que todas elas estejam
operando interligadas. Ou seja, como lembrava o embaixador, trata-se de uma
atuação como se fosse em um jogo de xadrez, quando se move uma peça afeta o
jogo como um todo, no caso a política externa brasileira.
Por isso mesmo, a posição do governo brasileiro não era de assumir compromissos
definitivos. Em seminário preparatório para a Reunião de Cúpula entre os países
da América Latina e Caribe e União Européia, realizado em 10 de junho de 1999
na cidade de São Paulo, o chanceler Luiz Felipe Lampreia informava que "é claro
que nós não vamos tomar decisões finais (...) o que pretendemos é lançar as
negociações em bases equilibradas, que reconheçam os legítimos interesses de
todas as partes, e que portanto levem em consideração o nosso interesse direto
em uma liberação crescente e uma aproximação nova".35
O próprio mandato negociador obtido pela União Européia é um valioso elemento
para as pretensões brasileiras, já que com este instrumento pode-se utilizá-lo
para mostrar aos Estados Unidos que não há necessidade de se tomar decisões
precipitadas para acelerar a formação do Acordo de Livre Comércio das Américas-
ALCA.
O comportamento da Chancelaria brasileira obedece a princípios pragmáticos e
realistas, inúmeras vezes realçado pelo governo. Sem pressa para tomar
decisões, o país tem investido nas negociações multilaterais porque não tem,
ainda, capacidade suficiente para ditar regras. A participação nos processos de
integração regional e inter-regional insere-se dentro da estratégia global
brasileira de que, isoladamente, o país não conseguirá projetar-se da maneira
como deseja.
Enquanto isto, procura preparar-se da melhor maneira possível para enfrentar os
desafios frente aos demais países grandes potências, inclusive capacitando
pessoal técnico, ainda insuficiente para operar em várias frentes
simultaneamente, como admite o próprio governo brasileiro.
A participação em blocos regionais ou interregionais é percebida como
conveniente não só para o caso individual, mas também para os demais parceiros
do Mercosul e da própria União Européia que assim vêem reforçadas suas posições
frente aos Estados Unidos abrindo, portanto, outras opções.
Embora isto seja uma verdade, países como o Brasil não têm se esforçado para
concluir com rapidez o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União
Européia. Este comportamento é justificado pelo fato de que, além de estar
enfrentando problemas com seu balanço de pagamentos, o país já vem reduzindo de
maneira satisfatória as tarifas nos últimos tempos.
As críticas que o governo brasileiro têm feito às nações altamente
industrializadas, contra os protecionismos, a falta de maiores investimentos e
transferência de tecnologia, são realizadas com o intuito de tentar
sensibilizá-las, procurando retoricamente convencê-las de que todos sairiam
ganhando, ao melhorar as condições dos países que se encontram em estágios de
desenvolvimento menos avançados. Contudo, o governo tem consciência de que as
relações internacionais não são fundamentadas em princípios que levem em
consideração as disparidades internas dos países, nem as assimetrias entre
eles.
Como a capacidade que o país tem de alterar as regras de funcionamento do
sistema internacional é extremamente limitada, resta apenas utilizar os
expedientes de que tem lançado mão ao longo dos últimos anos, como tem feito
dentro do contexto do mundo globalizado, clamando pela necessidade de
cooperação cada vez maior, já que sendo todos interdependentes, seriam afetados
igualmente pelas crises dos países menos desenvolvidos. Pelo que se tem
observado nas inúmeras reuniões entre os dois lados, esses argumentos, contudo,
parecem não ter surtido o efeito desejado. Daí o resultados pouco satisfatórios
do encontro de Seattle ao final de 1999, com os governos da América Latina,
entre eles o Brasil, preparando-se, desde já, para os debates de 2005.
Notas
1 A este respeito ver, por exemplo, Paulo Roberto de ALMEIDA, O Brasil e o
multilateralismo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999.
2 Cf. Wayne SELCHER. Between First and Third Worlds. Boulder, Colorado:
Westview Press, 1972.
3 Sobre esta questão, consultar, Ricardo Ubiraci SENNES. As mudanças da
política externa brasileira nos anos 80: uma potência média recém-
industrializada.Dissertação de Mestrado em Ciência Política apresentada à
Universidade de São Paulo em 1996, mimeo.
4 Sobre a política externa de maneira global, ver Amado CERVO e Clodoaldo
BUENO. História da Política Exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992. Sobre o regime militar consultar, Paulo G. F. VIZENTINI. A
política externa do regime militar brasileiro.Porto Alegre: Editora da UFRGS,
1998.
5 Cf. Fernando Henrique CARDOSO. "Política externa: a opção universalista", O
Estado de S. Paulo, 24 de janeiro de 1993.
6 Cf. Fernando Henrique CARDOSO. Política Externa em Tempos de Mudança.
Brasília: Ministério das Relações Exteriores/Fundação Alexandre de Gusmão,
1994, p. 27
7 Idem, idem
8 Cf. Fernando Henrique CARDOSO. Política Externa em Tempos de Mudança,
op.cit., p. 187.
9 Cf. Rubens BARBOSA, "Brasil e Estados Unidos mudam relação econômica",
Correio Braziliense Internacional, 2 de agosto de 1993, p. 2.
10 Idem, idem.
11 Cf. Maria Helena TACHINARDI. "A boa notícia que Cardoso não dará a Clinton",
Gazeta Mercantil, 18/21 de abril de 1995, p. 3.
12 Cf. Gazeta Mercantil, 24 de julho de 1995, p. A-8
13 Cf. Fernando Henrique CARDOSO, http://www.mre.gov.br.
14 Idem, idem.
15 Cf. Fernando Henrique CARDOSO, http://www.mre.gov.br. Para uma análise mais
crítica sobre estas posições ver Sebastião VELASCO E CRUZ. "As idéias do poder.
Dependência, globalização, crise e o discurso de FHC", Primeira Versão, IFCH/
Unicamp, (77), outubro de 1998.
16 Cf. Fernando Henrique CARDOSO,http://www.mre.gov.br.
17 Cf. Fernando Henrique CARDOSO, http://www.mre.gov.br. Uma discussão mais
aprofundada sobre este tema pode ser verificada, por exemplo, na publicação
editada pela Fundação Konrad Adenauer de São Paulo que reúne os textos do
seminário por ela organizada em 1996, com o título de O Brasil, a União
Européia e as relações internacionais, Debates nº 13, 1997.
18 Cf. Lívia Ferrari "Dauster faz crítica a países desenvolvidos", Gazeta
Mercantil, 15 de junho de 1999, p. A-4.
19 Idem, idem
20 Cf. Assis MOREIRA- "Resistência francesa dificulta união com Mercosul",
Gazeta Mercantil, 3 de junho de 1999, p. A-5.
21 Cf. Assis MOREIRA "Mercosul e EU avaliam negociações", Gazeta Mercantil,
21 de junho de 1999, p. A-5.
22 Cf. Maria Helena TACHINARDI & Lívia FERRARI. "Acordo com EU reforça
política externa do país", Gazeta Mercantil, 28 de junho de 1999, p. A-4.
23 Cf. Maria Helena TACHINARDI E OUTROS. "Estratégia brasileira é retardar o
livre comércio", Gazeta Mercantil, 30 de junho de 1999, p. A-4.
24 Sobre este parágrafo e o anterior ver matéria de Lívia FERRARI E Lídia
REBOUÇAS. "Empresários querem participar das negociações", Gazeta Mercantil, 29
de junho de 1999, p. A-11.
25 Cf. João Carlos de Souza MEIRELLES. "Começa a concentração para 2005",
Gazeta Mercantil, 24/25 de junho de 1999, p. A-2.
26 Idem, idem.
27 Cf. Luiz Felipe LAMPRÉIA. "Jogo de xadrez comercial", Carta Internacional,
São Paulo: NUPRI/USP (78), agosto de 1999, p. 1-2.
28 Idem, idem.
29 Cf. Lívia FERRARI e Luciano SOMENZARI. "Economia já está em recuperação diz
FHC", Gazeta Mercantil, 29 de junho de 1999, p. A-10.
30 Cf. Maria Clara R. M. do PRADO. "A questão agrícola na Rodada", Gazeta
Mercantil, 28 de outubro de 1999, p. A-3.
31 Idem, idem
32 Cf. Luiz A. P. SOUTO MAIOR. "Cimeira América Latina-Caribe-União Européia:
estratégia e realidade". Carta Internacional, São Paulo, NUPRI/USP (77), julho
de 1999, p. 3.
33 Cf. Sandra Polônia RIOS."Os empresários e a OMC", Carta Internacional, São
Paulo: NUPRI/USP (76), julho de 1999, p. 6.
34 Cf. Maria Helena TACHINARDI. "Acordo com EU reforça política externa do
país", op. Cit.
35 Cf. http://www.mre.gov.br.
Junho de 2000
* O objetivo deste pequeno texto é extremamente limitado. A única intenção é
mostrar, ainda que rapidamente, como o país tem se comportado frente às
políticas de integração regional e inter-regional. Por isso, as notas de
referência restringiram-se ao mínimo possível, evitando-se sobrecarregar o
texto com citações e bibliografias que ocupariam espaço demasiado.