O Mercosul e a Nova Ordem Econômica Internacional
Em 1991, ano em que surge o Mercosul, o mundo já vivia sob o impacto da
globalização e da regionalização. À época no entanto, esses dois fenômenos,
embora não fossem recentes, ainda desconheciam a intensidade com que hoje se
apresentam, menos de uma década depois.
Com efeito, a partir dos anos 90 a globalização se viu impulsionada por um
cenário político internacional que não mais encontrava os antigos obstáculos
colocados pela Guerra Fria; sem falar no enorme avanço tecnológico da
informática e dos meios de comunicação e de informação, que vêm revolucionar a
relação tempo-espaço no mundo contemporâneo. Por sua vez, a regionalização tem
assistido a um processo de multiplicação dos acordos de integração regional por
todo o mundo, sendo que, somente no período de 1992 a 1996, foram registrados
no Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt) cerca de 30 acordos
bilaterais, sub-regionais ou regionais.
Uma análise do Mercosul à luz da evolução desses dois movimentos é o que
intentamos nestas linhas. Qual foi o contexto internacional que possibilitou o
surgimento do Mercosul? Que condições sócio-econômicas presentes na América
Latina favoreceram a sua formação? Como evoluíram as propostas de regionalismo
econômico? Que propósitos e influências marcaram a definição do modelo de
integração do Mercosul?
Na tentativa de resposta a essas perguntas, inicialmente é debatido o conceito
de globalização com base em elementos extraídos da leitura de diversos autores.
Adiante-se que compartilhamos da idéia de que a globalização não está formando
uma sociedade homogênea, apesar de implantar, como nunca na história da
humanidade, uma ordem econômica de amplitude mundial. Na seqüência, são
expostas algumas noções básicas, mas substanciais, para a compreensão do que
estamos chamando de regionalização. Finalmente, numa abordagem histórico-
analítica que remonta à ordem econômica que emerge após a Segunda Guerra
Mundial, é desenhado o contexto internacional em que surge o Mercosul.
O objetivo principal é compreender o contexto mundial e a nova ordem
internacional que possibilitaram a criação do Mercosul, assim como as condições
que favoreceram a definição de seu modelo. No desenvolvimento da análise, a
globalização, embora seja vista como um processo multidimensional, é
considerada principalmente em sua dimensão econômica.
1. Um conceito em construção
Embora o termo globalização não possa ser considerado ainda um conceito
preciso, correspondendo a uma realidade empírica inequivocamente descrita na
literatura, há um relativo consenso entre os estudiosos das ciências sociais e
econômicas de que o mesmo está associado às mudanças significativas que vêm
ocorrendo nas relações políticas, econômicas, sociais e culturais do mundo
contemporâneo.
Para Giddens (1991), a globalização poderia ser melhor conceituada se os
sociólogos, em vez de darem uma importância indevida à idéia de sociedade, no
que ela significa um sistema limitado, a substituíssem por um ponto de partida
que se concentrasse em analisar como a vida social é ordenada através do tempo
e do espaço ' na problemática do distanciamento tempo-espaço. Assim, a
estrutura conceitual do distanciamento tempo-espaço dirige nossa atenção às
complexas relações entre envolvimentos locais e interação à distância. "O nível
de distanciamento tempo-espaço na era moderna é muito maior do que em qualquer
outro período precedente, e as relações entre formas sociais e eventos locais e
distantes se tornam correspondentemente 'alongadas'. A globalização se refere
essencialmente a este processo de alongamento, na medida em que as modalidades
de conexão entre diferentes regiões ou contextos sociais se enredam através da
superfície da Terra como um todo" (Giddens, 1991:69-70). Portanto, para esse
autor, a globalização pode ser definida como a intensificação das relações
sociais em escala mundial, ligando localidades distantes de tal maneira que
acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a grandes distâncias
e vice-versa.
Por seu turno, Santos (1997) distingue quatro constelações de relações sociais
que designa de "espaços-tempo estruturais": o espaço-tempo doméstico, o espaço-
tempo da produção, o espaço-tempo da cidadania e o espaço-tempo mundial.
Segundo ele, a problematicidade do tempo presente não advém de nenhuma dessas
constelações em separado, mas de sua conjunção. No entanto, é óbvio que o
espaço-tempo mundial, que tem uma maior influência sobre os demais, vem
aumentando sua relevância em virtude da intensificação da globalização da
economia e das interações transnacionais em geral nas duas últimas décadas. Seu
problema fundamental refere-se à crescente polarização entre o Norte e o Sul,
ou seja, à existência de desigualdades dentro do sistema mundial.
Apesar de coerente ao analisar as desigualdades mundiais a partir da divisão
entre Norte e Sul, a abordagem de Santos talvez não seja a mais adequada para a
conjuntura atual. Dividir o mundo entre Norte rico e Sul pobre parece-nos uma
simplificação que sombreia a complexidade dos conflitos e a heterogeneidade do
mundo contemporâneo. Compreender o processo de globalização exige também
compreender o comportamento das diferentes matrizes culturais: como estas
reagem àquela?
É certo que, segundo Ortiz (1996), muitos signos, símbolos, emblemas, figuras
ou ídolos circulam e flutuam pelo mundo desterritorializados. Porém, não
podemos imaginar que a sua apropriação pelas diferentes culturas se dê de forma
similar.
A circulação desses signos e símbolos, produzidos geralmente pelo Ocidente e
propagados por todo o mundo através dos canais de comunicação, cria uma
situação de ambigüidade: ao mesmo tempo em que alguns valores se tornam
universais, as diversidades de valores emergem de maneira substancial. Para
Featherstone (1996), a velocidade e a expansão dos meios de comunicação, embora
não assegurem condições igualitárias de participação, permitem que novos atores
entrem no jogo e reivindiquem o direito de ser ouvidos, ainda mais com a
facilidade do transporte-transmissão de pessoas, imagens e objetos através do
mundo inteiro e com o conseqüente aumento das dificuldades dos governos para
vigiar e controlar o volume de informação e imagens que atravessam suas
fronteiras. Assim, o processo de globalização não somente favorece o
aparecimento de uma cultura global unificada, mas, sobretudo, tende a promover
um campo de fragmentação, sincretismo e hibridização das culturas. Em suma, ele
revela a natureza multiforme e a extrema complexidade dos fenômenos culturais.
Por ser a identidade cultural ou étnica contrastiva, ou seja, ela se realça
quando em contato com outra, num mundo globalizado e heterogêneo, com forte
preponderância dos valores ocidentais, o contato entre as diferentes
identidades reforça as identidades em si, provocando muitas vezes uma reação de
oposição àqueles valores colocados como paradigmáticos pelo bloco que procura
manter sua hegemonia mundial.
Nesse sentido, a análise de Santos deve ser enriquecida pela abordagem
desenvolvida por Huntington (1997) em sua obra O choque de civilizações.
Huntington afirma que a modernização econômica e social não está produzindo nem
uma civilização universal significativa, nem a ocidentalização das sociedades
não-ocidentais. Os conflitos mais abrangentes e importantes do futuro não se
definirão entre ricos e pobres, ou grupos definidos em termos econômicos ou
ideológicos, e sim entre identidades culturais diferentes, ou seja, entre
civilizações1 .
Dentro desta perspectiva, o processo de globalização muda radicalmente o
contexto da política contemporânea, transformando suas condições, conseqüências
e atores, que por sua vez expandem o horizonte de ação ' sentidos, valores,
constituição de sujeitos e de identidades, alianças e antagonismos ' e
interpelam as categorias com que habitualmente são pensados seus principais
problemas, dilemas e desafios (Gómez, 1997).
É importante ressaltar no entanto que, para qualquer abordagem consistente
sobre o processo de globalização, deve-se tomar o cuidado de não cair na
ideologização ou mitificação do termo. Chesnais (1996), por exemplo, alerta-nos
sobre a popularização das expressões global e globalização no discurso político
neoliberal, muitas vezes com uma conotação ideológica, quando na verdade esses
termos são ainda vagos e ambíguos.
Hirst e Thompson (1998), buscando desmistificar alguns aspectos do processo de
globalização, defendem a tese da possibilidade de governabilidade nacional e
internacional no mundo contemporâneo. Para eles, a atual economia, altamente
internacionalizada, tem precedente, sendo uma das diversas conjunturas ou
estados da economia internacional que existiram desde a segunda metade do
século XIX. Sob certos aspectos, a economia internacional contemporânea é menos
aberta e integrada do que o regime que prevaleceu de 1870 a 1914. A mobilidade
do capital não está produzindo uma transferência maciça de investimentos e de
empregos dos países avançados para os países em desenvolvimento. Contrariamente
ao que pensam alguns defensores extremados da globalização, a economia mundial
está longe de ser global; os fluxos de comércio, investimento e capital
financeiro estão concentrados na Tríade formada pela Europa, Japão e América do
Norte. Os mercados globais estão fora da regulação e do controle, ainda que o
alcance atual e os objetivos da governabilidade econômica sejam limitados pelos
interesses divergentes das grandes potências e pelas doutrinas econômicas que
prevalecem entre suas elites.
Em síntese, sendo as características mais visíveis da globalização a
compactação espacial, a aceleração temporal e a produção de novas
heterogeneidades, produzidas em ' e dando origem a ' contextos sócio-naturais
de alta incerteza (Dreifuss, 1997), os seus diversos vetores podem ser
contraditórios e abertos a vários desdobramentos, às vezes conflitantes entre
si. A globalização se mostra assim como um processo complexo e multidimensional
que guarda não poucas ambigüidades. Daí em seu estudo impor-se a consideração
da ambivalência como uma importante categoria sociológica ou mesmo uma questão
metodológica, pois conforme alerta Beck (1997:22) "as categorias e os métodos
da ciência social falham diante da vastidão e da ambivalência dos fatos que
devem ser apresentados e considerados".
2. Elementos sobre a regionalização
O regionalismo econômico internacional é, junto com a globalização dos
mercados, um dos traços mais marcantes da economia mundial do Pós-guerra.
Percebe-se uma estreita relação entre a crise de legitimidade que atravessam
atualmente as grandes instituições econômicas internacionais e a proliferação
de acordos comerciais de várias ordens nos últimos 10 anos2 . Os países são
levados a renovar suas formas de cooperação, estreitando-as em escala
internacional nos processos integrativos (Deblock e Brunelle, 1996). Isto nos
faz interrogar sobre a natureza desse fenômeno que tomou importância tanto por
sua amplitude como pelo interesse que suscita em todas as partes do mundo.
Para Oman (1994), o movimento atual de regionalização responde em parte à
globalização econômica. Esses dois processos se opõem na medida em que o
primeiro é um movimento essencialmente centrípeto e político, ao passo que o
segundo é centrífugo e corresponde a um fenômeno microeconômico resultante
principalmente do comportamento e das estratégias das empresas transnacionais.
Mas nem por isso um e outro são antitéticos ou antagônicos. Antes, dado que a
regionalização contribui na consolidação do jogo da concorrência, os dois
processos tendem mais a se reforçar do que a se contrapor.
Se num primeiro momento as trocas comerciais predominam, a evolução do processo
de integração pode levar a sua ampliação para outros setores. Como afirmam
Deblock e Brunelle (1996), quaisquer que sejam as motivações de ordem econômica
que animam os atores estatais, os acordos regionais sempre responderam a
propósitos que vão além da esfera estritamente econômica, sobretudo quando têm
por objetivo a criação de blocos econômicos. Dizendo de outra forma, nenhum
acordo econômico regional jamais respondeu a preocupações de natureza
exclusivamente econômica.
A integração regional pode ser vista como uma passagem para uma nova estrutura
organizacional dos Estados-nações, na qual novas formas de relacionamento
interno e externo surgem formalizando um novo espaço comum ' o espaço
integrado. Como conseqüência, modifica-se radicalmente a concepção do interno e
do externo, chegando-se a um novo marco: as fronteiras do espaço comum
ampliado. A integração entre Estados nacionais implica um processo de inter-
relacionamento e interdependência multidimensional que obriga a ter presentes,
simultaneamente, diferentes planos da realidade social (Fernández, 1992).
Vários autores assinalam as condições (Galtung, 1968), potencialidades (Nye,
1971) ou pressupostos (Errandonea, 1977) para a integração entre Estados
nacionais. Embora nenhum afirme que qualquer desses fatores seja necessário ou
suficiente para o sucesso da integração regional, eles acreditam que a presença
de determinadas condições favorecem o desenvolvimento de redes de
interdependência que facilitam a transferência de lealdade do plano nacional
para o supranacional. Algumas delas são: (1) a existência de um substrato comum
de valores e interesses e, mais importante ainda, de uma escala de preferências
bem estabelecida entre eles, de modo que conflitos e dilemas possam ser mais
facilmente resolvidos; (2) uma relativa simetria econômico-social e político-
institucional, com certo grau de complementaridade entre os Estados envolvidos,
condição para que se amplie a interdependência; (3) a complementaridade e
consistência dos valores e interesses manifestos e compartilhados pelas elites
dos atores envolvidos; (4) o apoio e o compromisso de cada Estado nacional à
associação supranacional, contando com atores políticos capazes de assumir as
tarefas da integração com continuidade, competência e flexibilidade.
Existe uma dificuldade básica para qualquer tipo de integração, seja para as
organizações políticas e de segurança ou para as organizações econômicas: a
convergência e a comunhão de valores culturais. "As regiões são a base para a
cooperação entre os Estados, unicamente na medida em que a geografia coincida
com a cultura. Divorciada da cultura, a proximidade não gera por si só aspectos
em comum e pode mesmo induzir exatamente o oposto" (Huntington, 1997:161).
Desta forma, as alianças militares e as associações econômicas requerem a
cooperação entre seus membros; a cooperação depende da confiança e a confiança
brota mais facilmente de valores e cultura em comum.
Com várias experiências espalhadas pelo mundo, o processo de integração
regional se dá em diferentes modelos, que podem ser ou não fases sucessivas da
integração, a saber: zona de preferência tarifária, zona de livre comércio,
união aduaneira, mercado comum e união econômica. O Mercosul é um projeto de
construção de um Mercado Comum, cuja execução encontra-se na fase de União
Aduaneira parcial3 .
No interior das Américas podemos encontrar quatro grandes tipos de acordos
comerciais:
1) quatro uniões aduaneiras: o Mercosul (ao qual são associados o
Chile e a Bolívia), a Comunidade Andina, o Mercado Comum da América
Central (MCAC) e o Mercado Comum do Caribe (Caricom);
2) acordos de livre comércio, como o Acordo de Livre Comércio da
América do Norte (Nafta) e o Acordo entre o Grupo dos Três (Colômbia,
México e Venezuela), além de múltiplos acordos bilaterais assinados,
por exemplo, entre o México e o Chile, o México e a Costa Rica, o
Canadá e o Chile etc.;
3) acordos preferenciais, dentre os quais o acordo Canadá'Caraíbas
(Caribcan) e o entre os Estados Unidos (EUA) e os países da
Comunidade Andina, cujo objetivo, dentre outros, é lutar contra o
narcotráfico;
4) acordos de caráter mais geral, como a Associação Latino-Americana
de Integração (Aladi), os acordos de complementação assinados no
interior da Aladi e os diversos acordos de cooperação em matéria de
comércio e investimento (Canadá e Estados Unidos, principalmente), ou
ainda os acordos mais setoriais ou mais técnicos.
3. Inter-relações entre a globalização e a regionalização
Discutido o conceito de globalização e vistas algumas noções sobre
regionalização, podemos agora enfocar esses dois fenômenos e apontar as suas
inter-relações. Em nossa abordagem procuraremos sublinhar o aspecto da
historicidade e da complementaridade entre os dois movimentos, bem como
evidenciar as heterogeneidades existentes e, ainda, levar em conta as
preocupações estratégicas diferentes que podem motivar os diversos atores
envolvidos. Conforme já advertimos, a globalização, embora constituída de
múltiplas dimensões inter-relacionadas (Viola e Oliveira, 1997), será
considerada sobretudo em sua dimensão econômica, haja vista sua relação
intrínseca com o surgimento do Mercosul.
Segundo Brunelle e Deblock (1996)4 , a idéia de globalização econômica
inscreve-se dentro de uma perspectiva histórica marcada por dois momentos
fundamentais: (1) a implantação no Pós-guerra de uma nova ordem mundial baseada
numa matriz liberal cujo principal arquiteto foi John Maynard Keynes, e (2) o
fim da Guerra Fria, que abriu às empresas multinacionais a possibilidade de um
papel mais relevante na liderança do processo de globalização econômica. O
mesmo pode-se dizer da regionalização, daí sermos levados a dissociar o
regionalismo atual, qualificado por esses autores como sendo de segunda
geração, do regionalismo que o precedeu, ou seja, de primeira geração.
Desfaz-se dessa maneira a percepção de uma certa homogeneidade dentro dos
acordos estabelecidos pertencentes a uma mesma categoria. Em outras palavras
isso quer dizer que, mesmo tratando-se de dois acordos de livre comércio, ou de
duas uniões aduaneiras, eles podem diferenciar significativamente entre si: uns
podem se aproximar de um regionalismo de primeira geração e outros, de segunda.
Observa-se, assim, uma descontinuidade nos processos de regionalização marcada
principalmente pelas transformações impostas pela globalização econômica. Para
compreender melhor isto, nos reportaremos inicialmente à ordem internacional
que emerge nos anos 40.
3.1. Uma nova ordem mundial
A construção da ordem do Pós-guerra se fez em dois níveis: nacional e
internacional. Os Estados afetados diretamente pela Segunda Guerra Mundial se
dedicaram à reconstrução ou à reconversão de sua economia nacional. Sobre a
influência principal de Keynes, assiste-se à transformação do modo de regulação
social e econômico dos Estados a partir da construção do que se chamou de
providencialismo5 . Esta iniciativa requer uma colaboração estreita entre três
atores no plano nacional: o Estado, as organizações patronais e os sindicatos
de trabalhadores. O compromisso entre tais atores, comumente chamado de
tripartismo, foi essencial para a estabilidade da ordem do Pós-guerra.
Em nível internacional a influência teórica de Keynes (1978) foi também
marcante. O economista inglês tornou-se o grande arquiteto da nova ordem
econômica mundial que emerge na década de 1940. Inspirada em suas idéias, a
Organização das Nações Unidas (ONU) surge com um funcionamento calcado numa
concepção moderna do papel do Estado. A ONU se coloca como uma organização
compromissada em garantir uma visão universalista e pluralista da ordem
internacional.
Talvez seja Shotwell (1945), em seu livro La grande décision, um dos que mais
claramente expuseram a proposta de criação da ONU. Shotwell estava preocupado
em estabelecer instrumentos capazes de evitar novos confrontos mundiais,
buscando assim organizar uma comunidade internacional.
A proposta das Nações Unidas, segundo ele, tentava cobrir três grandes
problemas: segurança, bem-estar e justiça. Para cada um, dever-se-ia empregar
uma técnica diferente. Para o problema da segurança, a "action de police et
l'emploi de la force"; para o bem-estar, a criação "d'un mécanisme de
coopération"; e, para a justiça, uma expressão dentro de "une loi et une
procédure internationales" (Shotwell, 1945:37). Na verdade, estavam aí lançadas
as bases para a construção da nova ordem mundial.
Essa ordem se orientava em uma matriz liberal. Entretanto, é importante
ressaltar que existiam divergências entre os liberais da época. Alguns
propugnavam o intervencionismo por parte do Estado, já outros defendiam o não
intervencionismo. O encontro dos liberais em Lippmann, em 1938, foi um dos
momentos culminantes no acirramento das divergências entre os intervencionistas
e os não-intervencionistas. Liderados por Keynes, os liberais partidários da
primeira tendência formaram uma maioria. O economista Friedrich Hayek passará a
ser, nos anos 40, um forte crítico de Keynes, representando os liberais da
segunda tendência. Contudo, somente nos anos 70 é que Hayek, um dos principais
representantes do neoliberalismo, exercerá uma ascendência teórica maior,
enquanto a ordem econômica internacional seria marcada, em seus primórdios,
pela influência dos liberais intervencionistas.
Os Aliados, ao formularem uma nova ordem econômica internacional, tinham como
objetivo geral colocar o mundo fora do perigo da necessidade e da insegurança.
O alcance desse objetivo passava por dois níveis. No primeiro, o Estado
aparecia como o principal ator para garantir o progresso econômico e social; no
segundo, buscava-se a criação de um sistema organizado de instituições
econômicas internacionais, oriundas do sistema geral das Nações Unidas. O
sistema implantado em nível econômico deveria ser complementar ao organizado
para assegurar a paz. Fosse de forma individual ou coletiva, ele deveria também
engajar o conjunto das nações, independentemente de seus regimes econômicos e
políticos, na construção de uma ordem na qual esperava-se garantir a segurança
e a prosperidade mutuamente.
As instituições internacionais deveriam ter como tripé de sustentação o
universalismo, a diferenciação e o tripartismo. Ao mesmo tempo em que deveriam
ser considerados como iguais (idéia do universalismo), os países deveriam ter
responsabilidades diferentes dentro da ordem internacional (princípio da
diferenciação). Com referência ao tripartismo, Shotwell propõe o modelo da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) como sendo o mais indicado para
todas as organizações internacionais, visto que envolve outros atores sociais
na garantia do bem-estar. "C'est pourquoi nous avons suggéré ci-dessus que la
constitution de cet organisme (l'OIT) soit étudiée pour servir de modèle à
celle des organes autonomes qui seront nécessaires à la vie propre de
l'économie internationale" (Shotwell, 1945:222).
Entretanto, o tripartismo será aplicado mais em nível nacional, pelo Estado
providência, do que em nível internacional. Buscava-se com isto desenvolver a
cooperação e a solidariedade dos principais atores na reconstrução da economia
nacional, como também servir de contrapeso às idéias socialistas que ganhavam
força na Europa do Pós-guerra. No plano internacional, a ONU criará o Conselho
Econômico e Social (Ecosoc), inspirado no tripartismo, com a incumbência de
promover a prosperidade na comunidade internacional emergente6 . É importante
assinalar que houve uma forte complementaridade entre a questão nacional e a
internacional na construção dessa nova ordem mundial.
A Conferência de Bretton Woods, realizada nos EUA em 1944, deu origem ao Banco
Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e ao Fundo Monetário
Internacional (FMI), além de ter desencadeado o processo de implantação de
várias outras instituições internacionais, como a Organização para a
Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Foi ela importante não só para
definir o quadro internacional em seu conjunto, mas também para determinar a
posição da América Latina neste novo contexto, conforme se verá adiante
Do ponto de vista comercial, a economia internacional deveria liberalizar-se.
As barreiras tarifárias teriam de ser reduzidas em favor do comércio mundial.
Para normatizar a redução das barreiras (ou mesmo suprimi-las) e dar peso ao
livre comércio, criou-se, em 1947, o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e
Comércio (Gatt), fechando o quadro da nova ordem mundial7 .
Contudo, a ordem mundial concebida no Pós-guerra não foi totalmente efetivada.
Conforme assinala Hobsbawm (1999:224), "a Segunda Guerra Mundial mal terminara
quando a humanidade mergulhou no que se pode encarar, razoavelmente, como a
Terceira Guerra Mundial, embora uma guerra muito particular". Não foi criada
uma comunidade verdadeiramente internacional, mas um mundo marcado pela
bipolaridade entre os países capitalistas de um lado, liderados pelos EUA, e os
socialistas de outro, tendo a União Soviética à sua frente. Somente em 1989,
com a queda do muro de Berlim, a subseqüente desintegração do bloco soviético e
o fim do socialismo real, o quadro idealizado seria então implantado, mas não
sem alterações para se adequar à conjuntura atual. O fim da Guerra Fria
"retirou de repente os esteios que sustentavam a estrutura internacional e ...
as estruturas dos sistemas políticos internos mundiais" (Hobsbawm, 1999:251).
Se antes as empresas múlti ou transnacionais encontravam um obstáculo para
atuarem mundialmente, elas agora estão livres para liderarem o processo de
globalização econômica. Isto influenciará, sobremaneira, nos modelos de
regionalismo econômico.
3.2. A evolução do regionalismo econômico
O regionalismo econômico implantado no Pós-guerra se desenvolveu em paralelo
com o sistema multilateral do Gatt, inscrevendo-se num contexto internacional
particular marcado, de um lado, pela Guerra Fria e, de outro, pelas frustrações
em face da lentidão na edificação de uma ordem verdadeiramente internacional.
O Plano Marshall de 1947 exigia, em contrapartida à ajuda financeira oferecida,
que os países europeus destruídos pela guerra deveriam reagrupar-se e dotar-se
de instituições comuns. Impulsionada por esse plano, a Organização Européia de
Cooperação Econômica (Oece)8 foi criada em 1948, podendo ser considerada como
uma das primeiras grandes organizações econômicas regionais do Pós-guerra.
Explicitamente, ela respondia a preocupações de ordem geopolítica e econômica,
fazendo parte de uma estratégia dos EUA de conter o comunismo que rondava a
Europa, assim como de impedir que os países europeus se fechassem sobre si
mesmos. O regionalismo emergente saía do quadro multilateralista definido em
Genebra por ocasião dos encontros do Gatt.
As posições entre os países europeus eram incompatíveis umas com as outras,
resultando em duas direções diferentes: um projeto mais ambicioso (1957) de
formar uma Comunidade Econômica Européia (CEE) e um mais modesto (1959) de
formar a Associação Européia de Livre Comércio (AELC). Os dois projetos se
distinguiam, principalmente, pelo fato de o primeiro ser antes de tudo
político, enquanto o segundo era um projeto econômico de inspiração mais
liberal9 . Embora fossem distintos, ambos partilhavam de uma mesma preocupação:
a posição da Europa num mundo polarizado pelos EUA e União Soviética.
A criação da CEE irá servir de modelo catalisador e inspirador para a América
Latina, cujo primeiro acordo de integração, a Associação Latino-Americana de
Livre Comércio (Alalc), data de 1960. No entanto, conforme se verá adiante, as
propostas de integração latino-americanas guardarão uma certa originalidade em
relação ao modelo europeu, na medida em que se colocam explicitamente a serviço
de um projeto econômico e político de desenvolvimento.
Em que pesem as diferenças entre os diversos projetos de integração, observa-
se, em sua evolução, a presença de três aspectos convergentes. Primeiro,
através das discussões sobre os acordos regionais, os debates rapidamente foram
deixando o terreno da liberalização propriamente dita e passando para o da
integração econômica regional. Segundo, em todos os casos, os acordos tiveram
por finalidade última a formação de blocos econômicos homogêneos e de tamanho
suficiente para criar uma massa crítica no interior do sistema econômico
internacional. Terceiro, a linha de demarcação entre diferentes projetos
integrativos se situava menos no fato de implicar países industrializados e
países em desenvolvimento, e mais nas diferenças entre os projetos que se
traduziam num projeto político explícito e os que se revelavam mais num projeto
econômico (Deblock e Brunelle, 1996).
A primeira vaga de regionalismo se desenvolveu dentro de um contexto
intervencionista. O Estado e as instituições econômicas internacionais buscaram
introduzir uma certa racionalidade num mundo que passara por uma forte
depressão nos anos 30 e por uma guerra nos anos 40. Esta lógica engajava os
Estados coletivamente a produzir um bem público internacional, que seria o
livre comércio. O regionalismo econômico de primeira geração ficará marcado,
assim, por quatro características fundamentais: (1) estava voltado mais para
uma integração econômica do que para um regionalismo econômico; (2) partilhava
de uma visão construtivista de integração inspirada nos parâmetros keynesianos
de políticas públicas; (3) deveria permitir a ampliação da margem de manobra
dos Estados na condução de suas políticas nacionais, dentro do contexto de
liberalização10 ; (4) respondia a objetivos de cunho mais político ou
econômico, formando com isso um duplo movimento.
Essa última característica é um dos motivos pelos quais o regionalismo de
primeira geração veio a ser ultrapassado. Em decorrência de seu duplo
movimento, houve paralelamente o desenvolvimento de instituições comuns de
inspiração federalista, por um lado, e a integração econômica e liberalização
comercial, por outro. O paralelismo entre os compromissos regionais e os
engajamentos em nível internacional acabarão provocando problemas de ordem
política e econômica. O convívio com esses problemas só seria possível se fosse
mantida uma certa justaposição entre os níveis nacional, regional e
internacional, ou, como assinalam Deblock e Brunelle (1996), aplicando-se as
idéias de Keynes na política interna e as de Adam Smith na política externa11 .
O regionalismo de primeira geração entrará, dessa maneira, em contradição com a
lógica mesma da integração dos mercados em escala mundial.
Marcados pela crise do Estado providência, os anos 70 assistirão à ascensão dos
liberais não-intervencionistas, denominados de neoliberais. Fazendo escola na
Universidade de Chicago, onde lecionou, Friedrich Hayek receberá em 1974 o
Prêmio Nobel de Economia, passando a ser um dos principais mentores do governo
Ronald Reagan. Pouco depois, principalmente a partir dos anos 80, a
globalização dos mercados virá a ser um dado incontornável, minando o
compromisso histórico sobre o qual havia sido construída a ordem do Pós-guerra.
Os parâmetros da política econômica serão, a partir de então, definidos em
termos de competitividade e não mais em termos de progresso econômico e social.
É uma outra visão do papel do Estado face à sociedade civil que se coloca. De
sua parte, o perigo do comunismo deixará de existir nos anos 90, não se
justificando mais o tripartismo.
David Harvey (1996) denomina essa nova situação de "acumulação flexível". Ela
se apóia na flexibilidade dos processos e dos mercados de trabalho, bem como
dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, maneiras novas de fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de
inovação tecnológica e comercial12 .
Esse novo contexto possibilitará a passagem para uma nova forma de regionalismo
econômico, chamada de deep integration. Agora, busca-se mais uma integração em
profundidade das atividades das empresas no interior dos espaços cobertos pelos
acordos assinados, do que simplesmente um incremento das trocas comerciais.
Trata-se menos de um projeto político do que de uma forma de permitir aos
Estados melhor realizarem seus objetivos perante a cena da economia
internacional. A segurança dentro do contexto econômico internacional passa a
ser uma preocupação maior. Como sublinham Deblock e Constantin (2000), o
objetivo dos Estados signatários desses novos acordos é duplamente securitário:
primeiramente para as empresas, criando um ambiente normativo propício para o
desenvolvimento de suas atividades transfronteiriças; em segundo lugar para os
Estados em si, na medida em que é também, e paralelamente ao primeiro objetivo,
uma forma de melhor coordenar o seu ambiente internacional. As características
do regionalismo de segunda geração são mais evidentes no Nafta e na proposta da
Alca (Deblock e Brunelle, 1999) do que na União Européia e no Mercosul.
Sendo esses os desdobramentos verificados na ordem econômica internacional a
partir do fim da Segunda Guerra Mundial, cabe agora indagar de que forma a
América Latina se posicionou durante esse período. A resposta a essa indagação
nos ajudará a compreender melhor o contexto em que o Mercosul surge.
4. América Latina: da substituição de importações à abertura ao mercado mundial
A Conferência de Bretton Woods ficou mundialmente conhecida pela rivalidade
entre o Plano Keynes e o Plano White13 . Um representava os interesses da
Inglaterra, que perdia sua hegemonia. O outro, os interesses dos EUA, potência
emergente no cenário do Pós-guerra. A principal diferença entre os planos era
que Keynes defendia a implantação de apenas uma agência internacional e a
criação de uma nova moeda com peso internacional (bancor), enquanto White se
voltava para a criação de duas agências internacionais ' um fundo monetário e
um banco para a reconstrução ' e a fixação de paridade cambial ao dólar.
Sagrando-se vencedora a proposta americana, foram criados o FMI e o Bird.
Contudo, o que quase todos os autores deixam de historiografar é que, não
apenas dois, mas três projetos estavam em disputa no encontro de Bretton Woods.
O terceiro deles, o Plano Suárez, representava os interesses dos países do
Terceiro Mundo, em especial dos latino-americanos14 . É importante lembrar que
dos 44 países participantes em Bretton Woods 19 eram da América Latina. O que
reivindicavam esses países?
Na verdade, tanto o Plano Keynes quanto o Plano White estavam preocupados,
principalmente, com a reconstrução dos países destruídos pela guerra e com a
estabilização monetária. Os países latino-americanos não tinham sido afetados
diretamente pelo conflito, a ponto de necessitarem do benefício dos programas
de reconstrução. Portanto, para eles as novas instituições internacionais
deveriam se voltar não somente à reconstrução, mas igualmente ao
desenvolvimento.
Embora sua representação fosse quase a metade do total de participantes, a
única alteração lograda por esses países na conferência, ainda assim com certa
resistência, foi o compromisso de o banco recém-criado atuar na questão do
desenvolvimento. Na prática, no entanto, houve quase que somente a mudança de
nome do banco, que passou de Banco Internacional de Reconstrução e Fomento ' a
proposta original ' para Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento,
ficando a América Latina à margem da ordem econômica mundial que surgia15 . Ela
se voltará então para dentro de si mesma e, por meio da Comissão Econômica para
a América Latina (Cepal), se concentrará em seu programa de desenvolvimento
baseado na industrialização por substituição de importações.
Criada em 1948, no âmbito das Nações Unidas, a Cepal16 vai abrigar o projeto
de desenvolvimento da América Latina, o qual não havia encontrado espaço dentro
da ordem que se estabelecia no Pós-guerra. Tendo à frente o intelectual
argentino Raúl Prebisch, a Cepal se diferenciará das demais comissões
econômicas regionais da ONU pela originalidade de suas propostas17 . Prebisch
defendia a tese do nacionalismo econômico e a estratégia do desenvolvimento por
substituição de importações. A idéia central era que o livre comércio imposto
aos países menos desenvolvidos fazia crescer a sua dependência vis-à-vis a
produção e exportação dos recursos naturais não transformados. A imposição de
barreiras às importações de produtos manufaturados e o desencadeamento de um
desenvolvimento industrial endógeno colocavam-se assim como a única forma para
romper o círculo vicioso.
Essa estratégia prevalecerá no interior da Cepal, influenciando a maioria dos
governos latino-americanos. Os Estados vão se envolver na economia de modo a
favorecer o desenvolvimento do mercado interno e a encorajar a produção local,
fazendo uso, notadamente, do protecionismo (Cepal, 1998).
A estratégia de industrialização por substituição de importações já havia sido
adotada por diversos países nos anos 30, durante a Depressão. Todavia, ela será
retomada e intensificada nos países latino-americanos, atingindo seu auge na
década de 1950, até ser abandonada completamente na década de 1990. Essa
estratégia pode ser entendida como um processo de desenvolvimento "fechado" e
reativo às restrições do comércio exterior (Tavares, 1978), em que a dinâmica
substitutiva consiste na forma como a economia reage aos estrangulamentos
sucessivos de pagamentos. Através da compressão progressiva da lista de
importações, a industrialização passaria dos setores de instalação fácil, pouco
exigentes em matéria de tecnologia, capital e escala, a segmentos cada vez mais
sofisticados e exigentes (Bielschowsky, 1998).
Não nos cabe aqui encetar uma discussão sobre os diversos motivos que levaram à
falência desse modelo, visto não ser esse nosso principal objetivo. Iremos
apenas indicar alguns pontos para demonstrar como a América Latina foi
abandonando um modelo de desenvolvimento para dentro e se aproximando de um
modelo para fora (Cepal, 1994a e 1994b). Essa transformação não se fará sem
guardar uma relação direta com as mudanças em suas propostas de integração
regional, influenciando, conseqüentemente, o surgimento do Mercosul.
O regionalismo econômico fazia parte da estratégia de desenvolvimento por
substituição de importações. Era quase uma condição sine qua nonao processo de
industrialização. Os trabalhos iniciais da Cepal destacavam a necessidade de os
países da região se agruparem e desenvolverem entre eles as ligações de
complementaridade econômica necessárias à implantação de uma estratégia de
industrialização por substituição de importações. A idéia lançada nos anos 50
era criar um mercado comum latino-americano. A integração deveria, de um lado,
assegurar a sobrevivência do processo de industrialização, contornando o
obstáculo que representava o tamanho reduzido do mercado local18 . De outro
lado, deveria diminuir a vulnerabilidade das economias locais em face dos
mercados externos, a qual, paradoxalmente, tinha se agravado com a estratégia
de industrialização, principalmente devido a um aumento no déficit externo. A
integração deveria, enfim, estabelecer, no longo prazo, uma relação mais
favorável aos países da América Latina dentro da economia mundial, permitindo-
lhes modificar em seu favor, uma vez reestruturadas suas economias, os termos
das trocas internacionais (Prebisch, 1988). O regionalismo econômico tinha, com
isso, duas direções: a do desenvolvimento através da integração "voltada para o
interior", e a da transformação da relação centro-periferia19 (Marcoux, 1996).
Foi com essas bases em mente que os governantes da América Latina assinaram em
Montevidéu, em 1960, o acordo criando a Alalc. O objetivo último era promover a
livre circulação de "bens e serviços, homens e capitais ... sem nenhum
obstáculo, dentro de um vasto mercado comum latino-americano" (Marcoux, 1996:
4)20 . Desejava-se estabelecer uma zona de livre comércio em um prazo de 12
anos.
Embora tenha permitido um crescimento do comércio intra-regional em seus
primeiros anos, a Alalc mostrou-se aquém das expectativas suscitadas. A
disparidade crescente das políticas econômicas dos Estados-membros e a rigidez
com que o acordo fora estabelecido estão na raiz dos principais problemas que a
conduziram ao fracasso. Ademais, ela guardava várias características do
regionalismo de primeira geração, o qual, como já vimos, havia entrado em
choque com o movimento mais geral de gobalização econômica, intensificado nos
anos 80.
Paralelamente, inicia-se nos anos 60 um processo de autocrítica no interior da
própria Cepal que continua nos anos 70 e 80 quando, com a eclosão da crise do
endividamento externo, a paralisação das principais instituições que suportavam
o desenvolvimento e a forte queda do ritmo de crescimento, fica evidente que o
modelo de desenvolvimento para dentro, ou de substituição de importações,
chegara ao seu esgotamento.
Um novo tratado será assinado em 1980, em Montevidéu, criando a Associação
Latino-Americana de Integração (Aladi). Conservando o objetivo de longo prazo
de criar um mercado comum latino-americano, a Aladi não estabelecerá prazos
precisos nem procedimentos fixos. Terá um caráter de maior flexibilidade, se
comparada com a Alalc, e tomará mais a forma de um acordo de princípios,
servindo como um guarda-chuva para outros acordos bilaterais e sub-regionais,
desde que estes estejam abertos à participação dos demais membros. Sua inserção
se fará dentro do que a Cepal (1994a) passa a chamar de regionalismo aberto21 .
Enquanto isso, baseando-se nas medidas de ajustamento estrutural, os países da
América Latina vão um após o outro ' logicamente que guardando certa
singularidade em cada caso ' fazer uma virada fundamental, que os conduzirá a
orientar cada vez mais suas economias para o exterior. Serão elas liberadas das
regulamentações estatais percebidas como obstáculos a tal orientação. A
política de ajustamento estrutural será uma prerrogativa do FMI e do Banco
Mundial para a outorga dos apoios financeiros necessários aos países latino-
americanos para fazer frente ao aprofundamento da crise de suas dívidas
externas. É bem verdade que a crise da dívida, assim como os múltiplos
problemas com que se defrontaram os países da América Latina nos anos 80, não
fizeram mais do que precipitar os acontecimentos. No fundo, eles deveriam se
preparar, ou melhor, se ajustar ao novo contexto mundial.
Desta forma, inicia-se no interior desses países um processo que busca, entre
outros objetivos, limitar o papel do Estado, desencadear um programa de
privatização, diminuir os gastos públicos, eliminar a inflação, estabilizar a
moeda, aumentar as exportações e abrir suas economias ao mercado mundial.
Dentre os principais países da América Latina, o Chile foi um dos primeiros a
aplicar essa política, sendo o Brasil um dos últimos. Estaria aí, nos anos 90,
a América Latina se inserindo na ordem econômica internacional, revigorada com
o fim da Guerra Fria.
Se parece claro que a necessidade, por parte de um número crescente de países
latino-americanos, de optar por um modelo de desenvolvimento baseado em
premissas neoliberais permite explicar em boa medida a crise do modelo de
integração para dentro, a transição para um modelo de desenvolvimento aberto
permite, por sua vez, compreender por que nos anos 90 as propostas de
integração regional não poderiam ser de outra maneira que não para fora. Existe
uma coerência entre o modelo de desenvolvimento adotado pelo conjunto dos
países e suas propostas de regionalismo econômico. Mais do que isto, há uma
forte complementaridade entre os dois, bastando apenas lembrar que foi no
âmbito das negociações do Mercosul que o governo Collor se apoiou para diminuir
as barreiras tarifárias do Brasil em relação ao resto do mundo. Os acordos
estabelecidos nos moldes do regionalismo aberto vão se inscrever dentro de um
processo de liberalização paralelo e complementar ao que é seguido em nível
multilateral.
Sob o prisma desse contexto internacional é que o Mercosul emergirá. A Aladi é
o âmbito normativo que possibilita a assinatura do Tratado de Assunção em 1991,
o qual lhe dá origem. Em suas proposições, o Mercosul buscará agregar os temas
do desenvolvimento e da democracia, aliados à preocupação com a modernização
competitiva. Constitui-se numa visão distinta daquela derivada do modelo de
substituição de importações, de que a Alalc, na sua origem, foi exemplo.
Não obstante, o Mercosul guardará aspectos do regionalismo de primeira geração.
Sua inspiração primeira será a União Européia. Embora não tenha criado
instituições supranacionais, como por exemplo o Parlamento Europeu, seu modelo
de integração atenderá a outras questões que vão além daquelas relativas à
segurança para os investimentos, tão presentes no Nafta e na proposta da Alca.
No Mercosul existe uma forte motivação político-estratégica, especialmente por
parte do Brasil. Poderíamos dizer, assim, que a sua proposta se insere entre o
regionalismo de primeira geração e o de segunda geração, conjugando aspectos de
ambos esses regionalismos. Do primeiro podemos destacar a sua tendência
federalista e construtivista22 de integração, o recurso ao tripartismo23 , a
presença marcante do Estado e a sua motivação político-estratégica. Do segundo
destacamos, principalmente, a idéia de um regionalismo aberto, a sua sintonia
com a economia mundial, a busca de maior competitividade sob a base de um eixo
exportador e de uma liberalização frente às trocas internacionais. Enfim,
podemos afirmar que o Mercosul é, de certa forma, um projeto original.
5. Conclusão
A globalização é um fenômeno complexo que deve ser percebido através de suas
diferentes dimensões, contradições e ambigüidades. Após apresentar nossa
percepção mais geral sobre a globalização e alinhar alguns elementos sobre a
regionalização, buscamos analisar a globalização do ponto de vista econômico,
numa perspectiva histórica. Vimos que a globalização econômica não é um
fenômeno novo. Suas premissas remontam à década de 1940, quando se buscou
imaginar um quadro de regulação internacional capaz de assegurar a paz e a
prosperidade num mundo que acabara de passar por um segundo conflito
generalizado.
A regionalização econômica, por sua vez, é tão antiga quanto a globalização e,
diferentemente do que se possa pensar, não é uma conseqüência desta nem uma
resposta estrita dos Estados-nações a este movimento. Na verdade, trata-se de
dois fenômenos intimamente inter-relacionados. Do ponto de vista histórico,
ambos foram marcados pelo contexto internacional que emergiu logo após a
Segunda Guerra Mundial e, num segundo momento, pelo fim da Guerra Fria. Do
ponto de vista teórico, inspiraram-se inicialmente no keynesianismo, para
posteriormente se aproximarem das concepções neoliberais. Tanto as
transformações históricas quanto as de cunho teórico provocaram uma mutação nos
modelos de regionalismo econômico, podendo-se falar em duas gerações de
regionalismo.
A América Latina não deixará de receber influências dessas transformações.
Inicialmente, ao se verem à margem da ordem internacional surgida no Pós-
guerra, os países latino-americanos buscarão implantar um modelo de
desenvolvimento fechado, baseado na industrialização por substituição de
importações. A integração regional é vista como uma peça fundamental para o
sucesso dessa proposta. Com a criação da Alalc, implanta-se um regionalismo
voltado para dentro. Na elaboração dessa concepção de desenvolvimento, a Cepal
exercerá um papel fundamental, especialmente as teses defendidas por Raúl
Prebisch.
Nos anos 90, com o fim da Guerra Fria e com a ascensão das idéias neoliberais,
uma nova proposta de desenvolvimento e de integração emerge, desta vez baseada
na liberalização econômica e no modelo de regionalismo voltado para fora ou,
segundo a Cepal, um regionalismo aberto. A Aladi substitui a Alalc, servindo de
âncora normativa para a criação do Mercosul. Com características do
regionalismo de primeira e de segunda geração, o Mercosul é um projeto
econômico e político-estratégico que, embora tenha se inspirado no modelo
europeu, conserva sua própria originalidade.
Notas
1 Huntington identifica sete principais civilizações contemporâneas: sínica,
japonesa, hindu, islâmica, ocidental, latino-americana e africana.
2 Aos 30 acordos notificados no Gatt de 1992 a 1996 acrescentam-se outros 57
anteriormente existentes (Deblock e Brunelle, 1996).
3 De acordo com o Protocolo de Ouro Preto de 1994, o Mercosul tornar-se-á uma
União Aduaneira plena em 2006.
4 Esta abordagem se distancia das abordagens funcionalista e estruturalista. Os
funcionalistas abordam o regionalismo econômico numa perspectiva evolucionista.
É a perspectiva que adotam geralmente os economistas e as organizações
internacionais, na qual o regionalismo econômico participa do movimento de
globalização de duas maneiras: (1) permitindo progredir mais rapidamente uma
liberalização das trocas, conduzindo os países ao mercado mundial de maneira
seqüencial e passando por fases sucessivas de integração; (2) completando e
reforçando o sistema multilateral de cooperação. Já os estruturalistas abordam
o regionalismo como uma conseqüência direta das transformações ocorridas no
mapa econômico do mundo, causadas, em parte, pela tripolarização das trocas
internacionais. A primeira abordagem ignora as considerações geoeconômicas, e a
segunda minimiza o papel da articulação entre os níveis regional e mundial da
integração econômica (Deblock e Brunelle, 1996).
5 É importante também assinalar a influência de William Beveridge, tendo sido
ele um dos primeiros a teorizar a função assistencialista do Estado. Este
sociólogo irá fundar sua idéia de assistência na solidariedade nacional.
6 A ONU é constituída de uma Assembléia Geral, um Conselho de Segurança, uma
Corte Internacional de Justiça e um Conselho Econômico e Social, além de uma
Secretaria e do Trusteeship Council. Desta forma foram institucionalizadas as
três principais preocupações, anunciadas anteriormente, na constituição da ONU:
a segurança, a justiça e o bem-estar, respectivamente. A idéia da
universalidade está representada na Assembléia Geral e a da diferenciação,
principalmente, no Conselho de Segurança (Unam, 1995).
7 A proposta inicial era construir um instrumento mundial de cooperação
econômica que seria denominado Organização Internacional do Comércio. Mas, ante
as tensões entre Leste e Oeste, o projeto derivou na criação do Gatt (Tamames,
1990). Somente depois do fim da Guerra Fria e das evoluções nas negociações da
Rodada Uruguai (1986-1994) é que foi possível constituir, em 1995, a
Organização Mundial do Comércio (OMC), que veio ocupar o lugar do Gatt.
8 A Oece transformar-se-á, em 1961, num fórum mais amplo: a Organização de
Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).
9 Para os que haviam assinado o Tratado de Paris criando a Comunidade Européia
do Carvão e do Aço (Ceca), em 1951, e posteriormente o Tratado de Roma, em
1957, a integração econômica respondia a ordens de preocupação bastante
diferentes das que os EUA tinham na época. O mais original na proposta da CEE
era o objetivo de implantar instituições comuns e de fazer da integração
econômica a base sobre a qual deveria repousar o que mais tarde foi chamado de
"Maison Commune". Paralelamente, a decisão da Inglaterra de não aderir a esse
projeto conduziu à criação da AELC (Deblock e Brunelle, 1996).
10 Num primeiro nível, essa ampliação da margem de manobra passava pela
transferência de certas prerrogativas às instituições comuns; num segundo
nível, passava pela definição de políticas comuns; e, num terceiro nível,
passava para formas mais acabadas de integração decorrentes da própria evolução
desse processo.
11 O recurso a Keynes em nível da economia nacional aparecia como uma abordagem
capaz de garantir a justaposição entre o nacional, o regional e o
internacional. Por outro lado, uma das razões da existência da nova ordem
econômica internacional era a de reduzir, para não dizer eliminar, a empresa
dos Estados-nações sobre o conjunto das relações econômicas internacionais,
fossem elas ligadas ao comércio, aos investimentos ou ainda ao câmbio. Todavia,
no contexto da época, isto não queria dizer de forma alguma o retorno a uma
situação de laisser-faire, mas ao contrário: pretendia construir relações mais
seguras da mesma forma que poderiam ser as relações econômicas no interior de
cada uma das nações.
12 A análise de Harvey considera que houve uma mudança no regime de acumulação
capitalista a partir da intensificação do processo de compressão do espaço-
tempo inerente ao capitalismo ' e vinculado ao modernismo como força cultural
', implicando um encurtamento do tempo e um encolhimento do espaço, que se
processam não de modo gradual ou contínuo, mas através de curtas e intensas
implosões, durante as quais o mundo muda rapidamente, em direção incerta. Para
ele, a última implosão começou em torno de 1970, tendo origem na crise de
superacumulação do sistema capitalista sob o regime fordista de produção de
massa integrada e vertical. A resposta foi a emergência de um regime flexível
de acumulação.
13 Harry D. White era funcionário adjunto do Secretário da Tesouraria dos
Estados Unidos. A pedido desta Secretaria, preparou a proposta dos EUA
apresentada em Bretton Woods.
14 Eduardo Suárez, então Secretário da Fazenda e Crédito Público do México, foi
o chefe da Delegação de seu país na Conferência de Bretton Woods. Três
comissões foram constituídas durante a conferência: uma presidida por White,
outra por Keynes e uma terceira por Suárez. A Delegação do México apresentara,
em julho de 1944, uma declaração intitulada Reconstrucción y desarrollo en pie
de igualdad: propuesta de México en Bretton Woods. Esta declaração, que
continha a essência do que estamos chamando de Plano Suárez, obteve o apoio de
outros países latino-americanos, a exemplo do Brasil, Chile e Venezuela. Sobre
o tema pode-se consultar Suárez (1994) e Urquidi (1994).
15 É interessante perceber, no livro de Shotwell (1945), que a América Latina
praticamente não é citada, dando sinal de que objetivamente ela não existia na
perspectiva do cenário dessa nova ordem mundial.
16 Posteriormente incluirá o Caribe, passando a se chamar Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe.
17 Outros nomes importantes que devem ser citados na elaboração do pensamento
cepalino em seu início são: Celso Furtado, Osvaldo Sunkel, Aníbal Pinto, José
Medina Echavarría, Regino Botti, Juan Noyola Várquez, Jorge Ahumada, entre
outros.
18 A baixa demanda, sobretudo nos países menores, dificultava ' às vezes
impossibilitava ' a industrialização nos setores de bens de consumo duráveis e
bens de equipamentos.
19 Prebisch apresentava uma visão dualista do mundo marcada pela existência de
um "centro" industrializado e de uma "periferia" exportadora de matérias-
primas.
20 O autor cita as Nações Unidas.
21 O conceito de regionalismo aberto servirá de ponto de referência central
para se relançar a integração regional.
22 No Mercosul é marcante a perspectiva de um processo de evolução seguindo a
seqüência: Zona de Livre Comércio, União Aduaneira, Mercado Comum, podendo se
chegar a uma União Econômica. Segue a lógica do modelo de regionalismo europeu,
diferentemente da proposta do Nafta e da Alca, que não têm esse mesmo tipo de
pretensão.
23 O tripartismo é aplicado em alguns órgãos consultivos do Mercosul.