A dimensão multilateral da política externa brasileira: perfil da produção
bibliográfica
Considerações sobre o conceito de multilateralismo
O multilateralismo praticamente nunca é enfocado tendo-se em mente o que Ruggie
denomina de dimensão qualitativa. Esse autor afirma, com razão, que não basta
levar em conta a existência de uma coordenação de políticas nacionais entre
três ou mais Estados para a configuração de um arranjo verdadeiramente
multilateral. Ou seja, a dimensão nominal ou quantitativa de interações
interestatais, embora necessária, não é suficiente, pois não enseja a
compreensão do que seria um aspecto essencial do multilateralismo, o que
explicaria sua eficiência e seu sucesso ou duração ao longo da história.
Além da dimensão nominal, Ruggie entende que o multilateral é definido por sua
dimensão qualitativa. Ou seja, segundo o autor, as relações multilaterais
referem-se à coordenação entre três ou mais Estados "segundo determinados
princípios", a serem respeitados por todos os Estados que delas participam.
Essa definição tem como corolários: 1) a indivisibilidade, no que diz respeito
ao tipo de comportamento que deve prevalecer entre os Estados membros de uma
coletividade, e 2) a reciprocidade difusa, conceito elaborado por Robert
Keohane, relativo ao tipo de expectativa que prevalece no arranjo multilateral
' contrariamente às expectativas específicas, típicas de acordos bilaterais, em
um acordo multilateral espera-se que os benefícios usufruídos pelos Estados que
o compõem se tornarão equivalentes ao longo do tempo.1
A segurança coletiva é certamente paradigmática do fenômeno multilateral. Os
Estados membros da Liga das Nações e da Organização das Nações Unidas (ONU)
partilharam e partilham a obrigação de defenderem-se em conjunto contra toda
ameaça de ataque, ainda que essa ameaça apareça concretamente como individual.
Exemplo recente de sua aplicação é a reação internacional à invasão iraquiana
ao Kuait, em agosto de 1990. O Conselho de Segurança adotou a Resolução 678,
autorizando os membros da ONU a utilizar "os meios necessários" (leia-se: a
força) para assegurar a implementação de resoluções anteriores que exigiam a
retirada do Iraque do Kuait e o restabelecimento da paz e da segurança
internacionais na área. Com base nessa resolução, a aliança militar liderada
pelos Estados Unidos dá início às operações militares contra o Iraque, em 17 de
janeiro de 1991.2
No caso, a agressão ao Kuait foi considerada, ipso facto, um ataque a todos os
membros da ONU. Tendo em mente a definição de Ruggie e os corolários referidos,
além da evidência de que a ONU é um arranjo inter-estatal, composto por mais de
três membros ' nominalmente multilateral ', deve-se destacar que esses membros
relacionam-se segundo princípios comuns. A segurança coletiva é o mais
relevante entre eles: indivisível, pois há que prevalecer entre todos os
membros, que compartilham de uma reciprocidade difusa, que é a expectativa, no
caso, de ser defendido por seus pares caso seja agredido.
Chama-se aqui a atenção para tal definição e conceitos por considerá-los
importantes à análise que não se preocupa puramente com a descrição dos
aspectos institucionais de uma organização internacional ou de um regime
internacional, tentando ir além para compreender sua contribuição à
governabilidade internacional, sua eficiência, e, por conseguinte, as
motivações para a existência de um grau razoável de efetiva adesão dos membros
aos princípios que regem tal organização ou regime.3
Deve ainda ser notada a existência de uma recente e interessante corrente
crítica ao multilateralismo, composta de um espectro acadêmico que vai bem além
dos conhecidos "detratores" realistas, englobando, entre outros, um importante
grupo de estudiosos do direito internacional público. Para estes, o
multilateralismo tornou-se "nossa religião secular", uma panacéia para todos os
males que afligem a humanidade, malgrado o desapontamento gerado pelo mau
funcionamento das instituições internacionais, como a ONU. Desafiam a difundida
crença de que se melhora o mundo com a expansão da competência e o enforcement
power das instituições internacionais. Apontam para o fato de que o "sistema de
segurança coletiva, desenhado depois do Holocausto, não impediu disputas intra-
estatais nem repetidas atrocidades em massa. No campo econômico, livre
comércio/livres forças de mercado (incluindo seus componentes
institucionalizados tais como a OMC, o NAFTA e as instituições financeiras
internacionais) reforçaram, na realidade, a busca de identidade étnica ao mesmo
tempo em que falharam em diminuir a defasagem entre nações ricas e pobres ou a
defasagem entre ricos e pobres no interior dessas nações." 4
Anne-Marie Slaughter, das representantes mais eminentes dessa corrente crítica,
lembra ainda que as instituições internacionais (incluindo aí também entidades
não-governamentais) agem constantemente de forma unilateral, sob o manto da
duvidosa legitimidade que advém do fato de o fazerem em nome de um grupo de
Estados ou dos interesses de uma coletividade qualquer. O que, de fato,
realizam é a defesa da supremacia de um Estado hegemônico ou de um grupo de
interesses. Slaughter sugere como exemplo alternativo à tradicional diplomacia
inter-estatal a utilização de redes transnacionais de atores domésticos,
governamentais e privados, tais como parlamentares e funcionários de bancos
centrais, que realizarão mais e de modo mais simples e rápida do que
funcionários internacionais o fariam.5
Enfim, advogam os críticos que nem sempre, ou muito freqüentemente, os
mecanismos multilaterais não são os mais apropriados para a solução de questões
que podem ser de interesse internacional, mas não deixam de ter um conteúdo de
forte interesse doméstico. Nesse sentido, apontam como exemplo os casos do
Camboja e de Ruanda. Em ambos os casos, passado o período de atrocidades, as
autoridades nacionais propugnaram a criação de tribunais ou comissões
nacionais, aos moldes da Comissão da Verdade, criada na África do Sul para
apurar os delitos cometidos sob o apartheid. Foi vencedora, porém, a ONU, com o
decisivo apoio da administração norte-americana.6
Tendo em mente que essas críticas têm bastante procedência, notadamente quanto
ao mito segundo o qual a multiplicação ad infinitum de arranjos multilaterais
seria o caminho para a paz e a prosperidade mundiais, algumas observações devem
ser feitas. A agenda internacional resulta sempre em grande medida do
predomínio estratégico e no plano dos valores da potência hegemônica. Os temas
visivelmente predominantes da agenda do mundo globalizado ' dos direitos
humanos, a democracia, a liberalização comercial, a proteção ambiental, etc. '
foram consolidados em razão da hegemonia norte-americana. Porém, não
unicamente. Se a geometria das relações internacionais unipolar amplia
substancialmente a hegemonia norte-americana no terreno dos valores, fenômeno
que percebemos como universalização desses valores, forçoso é constatar que
esse universalismo ou ampla existência de valores compartilhados não deixa
também de refletir um processo de construção de consenso e de incorporação de
diversidades.7
A bibliografia brasileira sobre o multilateralismo: os recortes necessários
O texto a seguir objetiva traçar um perfil, ainda que aproximativo, da produção
bibliográfica brasileira voltada para a interação multilateral do Brasil.
Tratando-se de tarefa tão ampla, alguns critérios de inclusão/exclusão foram
estabelecidos. Primeiramente, optou-se por incluir somente artigos de
periódicos. Exclui-se, portanto, livros, dissertações de mestrado e teses de
doutorado. Exclui-se, ainda, publicações que contêm notas de caráter sobretudo
informativo, como Panorama da Conjuntura Internacionale Carta Internacional, e
a produção acadêmica veiculada eletronicamente por RelNet (Site Brasileiro de
Referência em Relações Internacionais).8
Assim, o levantamento realizado teve como objeto principal os periódicos
brasileiros especializados em relações internacionais que são, em geral,
considerados pelos estudiosos como os mais importantes: Contexto Internacional,
Política e Estratégia, Política Externa e Revista Brasileira de Política
Internacional. Contexto internacional é publicada semestralmente pelo Instituto
de Relações Internacionais (IRI-PUC), Rio de Janeiro, desde 1985. Política e
Estratégia teve vida curta, porém bastante profícua: foi publicada de 1983 a
1991, pelo Centro de Estudos Estratégicos da Sociedade de Cultura Convívio (São
Paulo). Política Externa é publicada desde 1992 pelo NUPRI (Núcleo de Pesquisa
em Relações Internacionais e Política Comparada) da USP. A Revista Brasileira
de Política Internacional9 é publicada há mais de quatro décadas pelo IBRI
(Instituto Brasileiro de Relações Internacionais): de 1958 até 1993 o IBRI
tinha sede no Rio de Janeiro; desde então sua sede está em Brasília.10
Com tais parâmetros ou "filtros", o levantamento realizado permitiu de todo
modo observar a existência de uma produção vastíssima sobre os mais diversos
aspectos da atuação multilateral do Brasil. A publicação desses estudos, em
quantidade e em qualidade, reflete em geral a predominância que certos temas
adquirem, em momentos diversos, na agenda internacional e para a política
externa brasileira. Temas como o direito do mar, o colonialismo, a segurança e
o desarmamento, o Tratado da Antártida, o Tratado de Itaipu, as negociações
comerciais e multilateralismo econômico de forma geral, etc, foram discutidos
em muitos trabalhos. Sem dúvida alguma, porém, o desenvolvimento, elemento
paradigmático da política externa brasileira desde 1930, foi o tema mais
recorrente. Constata-se também uma expressiva expansão da temática
multilateral, enriquecida notadamente nos últimos anos com a atenção que
ganharam a proteção internacional dos direitos humanos, o meio ambiente, o
terrorismo e o narcotráfico.11
Feitas todas estas observações, escolheu-se, finalmente, estudar os menos
numerosos trabalhos que se propõem a realizar um balanço da atuação
multilateral brasileira. O conjunto desses trabalhos permite uma análise de
períodos mais longos, bem como detectar o peso relativo de determinadas
preocupações ou temas ao longo do tempo.
Enfim, cabe, por último, esclarecer a estratégia utilizada para organizar a
bibliografia encontrada. Primeiramente, trata-se dos estudos que enfocam a
dimensão multilateral da política externa brasileira no tempo médio, ou seja,
aspectos conjunturais, que têm, justamente por isso, uma relevância especial.
Em seguida, são comentados os trabalhos sobre períodos curtos, que os
historiadores têm denominado mais recentemente de história do tempo presente.12
Os estudos sobre o tempo médio: as conjunturas
Duas referências aparecem como pontos de passagem obrigatórios aos que queiram
estudar o desempenho multilateral do Brasil, seja qual for o assunto de seu
interesse específico. Com efeito, os estudos de Antônio Augusto Cançado
Trindade e de Clodoaldo Bueno, o primeiro jurista e o segundo historiador,
oferecem amplos e bem documentados panoramas da ação multilateral do Brasil,
sendo, pelos próprios propósitos estabelecidos pelos autores, de natureza
sintética. Estudos com conteúdo mais analítico do que descritivo ' o que
pressupõe, portanto, que o leitor tenha alguma familiaridade com a história da
política externa brasileira ', são os textos de Celso Lafer, de Paulo Roberto
de Almeida e de Alexandra de Mello e Silva.
O artigo de Cançado Trindade13 dedica-se a examinar "amostras de posições,
atitudes e pronunciamentos básicos da delegação do Brasil em alguns dos
organismos políticos internacionais em que se faz representar, selecionando
igualmente algumas áreas específicas de atuação"14 , englobando o período 1945-
final dos anos 70. Seu levantamento dá ênfase às posições brasileiras
consideradas mais significativas em órgãos e conferências da ONU: Assembléia
Geral, Conselho de Segurança, Unctad (Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e Desenvolvimento) e conferências sobre direito do mar, sobre o meio
ambiente, sobre o direito dos tratados e sobre população. O trabalho utiliza
principalmente documentos publicados pelo Itamaraty (relatórios anuais
apresentados pelo Itamaraty ao presidente, relatórios das delegações de
diversas reuniões, etc.), documentos da ONU e uma ampla bibliografia sobre os
temas tratados.
Um dos cinco subtítulos do artigo de Cançado Trindade (excluindo-se a
introdução e a conclusão) é inteiramente dedicado à Conferência de São
Francisco, que elaborou a Carta da ONU, e um longo subtítulo é dedicado à
Unctad. Com relação à Conferência de São Francisco, o destaque aqui se
justifica pelo fato de a reunião não ter merecido, em geral, mais do que poucas
linhas dos estudiosos. Cançado Trindade lembra, por exemplo, que o Brasil,
desde então, defendia a flexibilidade da Carta, ou seja, que seus dispositivos
pudessem e devessem ser objeto de revisão contínua, para que se adaptassem às
novas realidades.
Cançado Trindade, demonstra muito claramente o quanto na década de 80, quando
seu artigo é publicado, ainda sobrevivia a crença, marcante sobretudo nas
décadas de 60 e 70, de que a Unctad era o caminho privilegiado para alcançar-se
um comércio internacional mais justo. O Gatt, por sua vez, e provavelmente pelo
mesmo motivo, praticamente não recebe atenção do autor, sendo mencionado
somente obliquamente.15 É verdade que apesar dos hoje visíveis problemas de
ineficiência da Unctad, a instituição foi importante para que se introduzisse
no Gatt instrumentos legais que refletiam a ideologia desenvolvimentista.
Em sua conclusão, Cançado Trindade lembra justamente que o Brasil passou a
expressar maior apoio aos foros multilaterais a partir de 1968, II Unctad,
"como meio de neutralizar ou reduzir o considerável poder de coerção das
superpotências e grandes poderes nas relações internacionais".16
O estudo de Bueno17 é mais recente e retraça, através de eixos temáticos e
recortes temporais, o espectro da atuação da diplomacia brasileira no sistema
da ONU, de 1945 até 1988. Utiliza-se, sobretudo, de documentação diplomática do
Arquivo Histórico do Itamaraty e dos relatórios anuais apresentados pelo
Ministério ao presidente da República. Nota-se a preocupação do autor em
inserir os temas abordados em uma perspectiva mais geral da política externa
brasileira, possibilitando sua melhor contextualização histórica.
Bueno assinala que "a política multilateral brasileira não apresenta muitas e
significativas viragens", enfatizando, pois, o aspecto da continuidade, que
resultaria do alto grau de profissionalização do Itamaraty. "Por tal razão é
que mudanças significativas no plano interno nem sempre correspondem a mudanças
no mesmo nível de intensidade, na face externa".18
Segundo Bueno, logo tornou-se evidente para a diplomacia brasileira a
inexistência de um trade off compensatório entre custo de participação na ONU e
a transferência de recursos ' recursos financeiros e tecnologia. A participação
brasileira na ONU cedo foi percebida pelo Brasil como um exercício de
"prestígio multilateral caro", que "[proporciona] ganhos políticos, mas não
econômicos". Segundo Bueno, apesar de cedo ficar clara a inexistência de uma
relação compensatória entre o custo de participação na ONU e a transferência de
recursos ' recursos financeiros e tecnologia ' a fim de garantir o
desenvolvimento do país, a diplomacia brasileira teve na organização
internacional uma participação constante e cooperativa, assumindo posições
nacionalistas, que manifestavam sua preocupação com o tema do desenvolvimento;
posições estas que durante muito tempo traduziram-se na defesa da agro-
exportação.
Ainda assim, a diplomacia brasileira tem tido uma participação constante e
cooperativa na ONU, assumindo posições nacionalistas e que manifestam sua
preocupação com o tema do desenvolvimento. A busca do desenvolvimento é, assim,
o tema que permeia todo o estudo de Bueno. É a dimensão que dá conteúdo à
continuidade da política externa brasileira, presente em todos os temas
discutidos no trabalho. E são muitos: a participação brasileira no Conselho de
Segurança, na Assembléia Geral, no Ecosoc (Conselho Econômico e Social, órgão
muito importante nas duas primeiras décadas de funcionamento da ONU), no Gatt e
na Unctad; nos debates sobre o desarmamento, o colonialismo, fundos marinhos e
mar territorial, meio ambiente, população e a questão da dívida externa.
O estudo de Paulo Roberto de Almeida19 enfoca a construção da ordem
internacional desde o início do século XIX ' que recebe uma atenção muito
particular e dá especificidade ao texto ', dando ênfase a dimensão econômica no
histórico traçado. Os pontos de passagem destacados são o Congresso de Viena,
as conferências técnicas realizadas na segunda metade do século XIX, a Liga das
Nações e o sistema onusiano. O autor lembra que "o Brasil foi um dos países
ditos 'periféricos' que mais participaram da construção da ordem internacional
desde meados do século XIX até os dias atuais".20
Assim, as comumente muito pouco focalizadas conseqüências do Congresso de Viena
(1815) para o Brasil ' provavelmente por não ser independente à época ' são
indicadas por Almeida em seu trabalho. Naquele momento, o Brasil, de colônia,
passa à condição de Reino. Além disso, duas questões tratadas em Viena têm
repercussões para o Brasil: a livre navegação de rios internacionais e a
restrição ao tráfico de escravos.
O sucesso do Concerto Europeu garantiu a paz européia por praticamente um
século e serviu à expansão do capitalismo industrial. Já no começo do século
XIX aparecem as primeiras instituições internacionais, mas estas se
estabelecerão, sobretudo, a partir da segunda metade do século. Com efeito, a
intensidade do intercâmbio comercial, tecnológico e financeiro leva à
realização das primeiras conferências e instituições internacionais de
cooperação técnica, através das quais os governos nacionais buscam desmantelar
entraves ao desenvolvimento de suas economias. Surgem, entre outras, a União
Telegráfica Internacional (1865), a União Postal Internacional (1874), a
Associação Internacional do Congresso de Ferrovias (1884), a União Radio
Telegráfica Universal (1906), às quais o Brasil adere.
Lembra o autor que, dessas instituições, as organizações internacionais
políticas mais importantes do século XX, a Liga das Nações e a ONU, herdam o
universalismo e o aprendizado na esfera da institucionalização da cooperação
técnica, ou seja, as estruturas formais para que a cooperação se realizasse,
através, por exemplo, da criação de secretariados internacionais.
A criação da Liga das Nações traz como novidade e ambição a substituição dos
acordos políticos bilaterais e secretos por uma diplomacia universal e aberta,
ou pública. Este ideal wilsoniano não vingou, o que está demonstrado pelos
historiadores, tendo, inclusive, o Brasil protagonizado a primeira grande crise
surgida da contradição entre a velha e a nova diplomacia. Afora essa questão,
nada de substancial e de interesse brasileiro se passaria no âmbito do
multilateralismo econômico promovido pela Liga.
Sobre o impacto para o Brasil do perfil que ganha o multilateralismo pós-1945,
Almeida menciona, no âmbito comercial, o tratamento especial e mais favorável
para os países em desenvolvimento, para cuja aceitação a diplomacia brasileira
exerceu papel ativo, nos anos 1960-1980.
Lafer21 utiliza uma perspectiva de sistema em seu texto, buscando relacionar
os níveis global, regional e nacional a fim compreender "o relacionamento
político nacional e a política exterior [brasileira] até o fim do governo
Castelo Branco".22 Começando sua análise no Império, entende que nesse período
a política externa busca atuar de forma independente em nível global, não
aceitando passivamente o domínio britânico. No subsistema regional, entendido
aqui como América do Sul, o Império pratica a balança de poder, evitando
principalmente o predomínio da Argentina.23
O momento mais importante das primeiras décadas da República viria com a
indicação do Barão do Rio Branco para chefiar o Itamaraty (1912). Perspicaz e
consciente do inescapável e crescente poder norte-americano, Rio Branco busca
relações especiais com a potência emergente e, ao invés de opor-se à Doutrina
Monroe, vai reinterpretá-la e "multilateralizá-la". Esse importante
deslocamento conceitual coloca a defesa do continente americano nas mãos de
todos os países do continente, o que, até então, era unicamente fonte para a
ingerência unilateral norte-americana.24
Segundo Lafer, a "americanização" da política externa brasileira seguirá até o
fim da Segunda Guerra Mundial, o que torna compreensível que, naquelas décadas,
a participação do Brasil na política européia tenha, sobretudo, um caráter
ornamental. Embora o autor não a mencione explicitamente, pode-se provavelmente
pensar aqui no que tem sido interpretado como participação ornamental
brasileira na Liga das Nações.25 Em 1945, o Brasil teria aceito, no âmbito
interamericano e global, a tarefa de defender os interesses americanos. De
fato, percebe-se que a atuação brasileira na ONU e na OEA está impregnada da
visão norte-americana sobre o conflito Leste-Oeste, o que começa a ser
questionado por volta dos anos 1950. Surge, então, a Operação Pan-americana, de
iniciativa brasileira que propõe novas bases para o relacionamento multilateral
no continente, em que a batalha pelo desenvolvimento ficava em primeira linha.
Chega-se aos anos 1960 com a convicção que o campo adequado de atuação
internacional do Brasil deveria ser universal. Entre a OEA e a ONU, fica-se com
a última: "O País deliberou utilizar-se das vantagens da bipolaridade para
aumentar o seu poder de barganha e desta maneira reter a possibilidade de
autodeterminar-se."26 Estão aí as bases da Política Externa Independente,
política interrompida pelos militares em 1964.
Por seu turno, o artigo de Mello e Silva chama a atenção para o impacto das
idéias na formulação da política externa brasileira e, nesse sentido, para a
importância de se "reconstruir as principais crenças e idéias presentes em
nosso discurso diplomático"27 , identificando as concepções sobre a natureza e
a estrutura do sistema internacional, sobre o modo de inserção que teria o País
no sistema internacional e sobre a identidade nacional e sua manifestação
externa.
A autora caracteriza, inicialmente, a trajetória epistemológica dos estudos
sobre política exterior brasileira: remete-se, primeiramente, ao momento do
aparecimento desses estudos, marcado pela prevalência da história diplomática,
escrita em geral por estudiosos ligados à burocracia governamental; somente em
torno dos anos 60/70 a política externa brasileira passaria a ser
crescentemente objeto da pesquisa acadêmica. "[E]ssa institucionalização tardia
da pesquisa universitária teve repercussões não apenas sobre as temáticas e
enfoques teóricos dominantes nessa área, como também no fato de que o debate
acadêmico tendeu a privilegiar dimensões normativas e prescritivas"28 , sem dar
a devida atenção à dimensão cognitiva da formulação da política externa
brasileira contemporânea. Com essa constatação, Mello e Silva propõe-se a
identificar a origem das idéias e sua influência.
Lembra Mello e Silva que as insuficiências do realismo fizeram com que
aparecessem, no campo das relações, vertentes que procuravam enxergar mais do
que o Estado como ator (único e racional), tentando compreender o que a autora
metaforicamente denomina de "caixa preta", ou seja, a compreensão das variáveis
que, dentro e fora do Estado, informam a concepção de sua política externa.
"Tal análise ' buscada pela autora em seu estudo ' deve se pautar,
primeiramente, pela reconstrução das crenças presentes no discurso diplomático
para, a seguir, desvendar os mecanismos causais que explicam as influências
daquelas crenças sobre a formulação de políticas".29
O recorte empírico proposto é a atuação do Brasil na Liga das Nações e na ONU,
particularmente quando a diplomacia brasileira investe em tentativas de
participar do núcleo decisório dessas organizações internacionais. Realismo,
pacifismo, não-intervencionismo, respeito ao Direito Internacional, aspiração a
desempenhar um papel internacional protagônico são certamente idéias e crenças
duradouras que se destacam e que explicam o comportamento diplomático
brasileiro. A forte institucionalização do Itamaraty engendraria a reprodução
de uma tradição diplomática que reproduz aquelas idéias e crenças, e mais
generalizadamente, a reprodução de uma maneira de apreender o mundo,
assimilada, assim, por gerações e gerações de diplomatas.
Estudos sobre o tempo curto: a história imediata
Os trabalhos que seguem tratam da política multilateral do Brasil das últimas
três décadas: Wayne Selcher, Mônica Hirst e Letícia Pinheiro, Alessandra Mello
e Silva, Shiguenoli Myiamoto, Amado Luiz Cervo e Raúl Bernal-Meza. Ainda que
expressem avaliações às vezes bastante diferenciadas, têm, quase todos, como
traço comum a ênfase ao multilateralismo econômico, atribuindo significativo
espaço às questões envolvendo as estratégias para o Mercosul, a Alca e a OMC.
O livro de autoria de Selcher30 é mais um ponto de passagem obrigatório pelo
conteúdo analítico e instrumentos metodológicos utilizados pelo autor.
Originalmente tese de doutorado, Brazil's Multilateral Relations: between First
and Third Worlds,como o título indica, parte do pressuposto de que categorias
comumente utilizadas para indicar a inserção do Brasil no sistema
internacional, sobretudo a década de 70 ' América Latina, Terceiro Mundo, país
não-alinhado, relações Leste-Oeste ou Norte-Sul ' são pouco úteis para
compreender os reais interesses e posições assumidas pelo País, que se percebe
como potência média e que busca no período maior proeminência no cenário
internacional. O governo brasileiro não é primeiro e tampouco quer ser
considerado terceiro mundo, e, segundo Selcher tem uma visão marcadamente
instrumental dos contatos multilaterais, vendo-os como uma via para, de um
lado, melhorar sua posição na hierarquia internacional e exercer maior peso nos
processos decisórios, e, de outro, para fazer avançar seus relacionamentos
bilaterais pela cooperação tática com determinados países ou grupo de países.
Estudando o padrão do voto do Brasil na ONU, o autor confronta o nível
discursivo oficial da política externa brasileira com os seus reais limites
práticos, demonstrando que resulta daí uma política "com grande visibilidade em
certos temas multilaterais técnicos e econômicos, como direito do mar,
comércio, transporte marítimo, e de exposição mínima em questões mais
controversas, como os da África austral e do Oriente Médio".31
Finalmente, situando sua análise no período que vai do "milagre brasileiro"
(governo Médici), passando pela crise internacional do petróleo até as
readaptações do II PND-Plano Nacional de Desenvolvimento (governo Geisel), ou
seja, um período marcado por crescentes problemas no modelo de desenvolvimento
adotado pelo regime militar, Wayne Selcher vê mais do que a luz no final do
túnel, persuadido de que o governo brasileiro e sua diplomacia seriam, de fato,
capazes de alçar o País a uma posição de maior proeminência no cenário
mundial.32
HirstePinheiro33 estudam as mudanças e continuidades dos governos Collor de
Mello e Itamar Franco (1990-1994). Segundo as autoras, o governo Collor dá
início a um processo que se queria fundamentalmente oposto ao projeto de
inserção construído a partir de 1974, caracterizado pela opção autonomista,
independente e bastante ativa internacionalmente. O processo iniciado por
Collor mostrou-se, afinal, sem grande fôlego.34 O que se detecta é que, em
1993, fatores internos e externos levam a uma alteração nas estratégias de
inserção internacional do Brasil, o que não modifica substancialmente as opções
de inserção propriamente dita.
Esse é o argumento central das autoras, que têm, portanto, uma interpretação
que se diferencia das interpretações correntes, que colocam praticamente em
exclusivo destaque as novidades introduzidas pelo governo Collor. Com efeito,
afirmam que "as mudanças propostas para a política internacional brasileira não
alteraram seus aspectos essenciais, i.e., sua estreita vinculação com o modelo
econômico do país. Da mesma forma que a política de corte autonomista continha
um sentido fortemente instrumental para a estratégia desenvolvimentista
brasileira, pretendia-se que o novo padrão de política externa fosse um apoio
para os desafios internacionais a serem enfrentados pelo país a partir de seu
processo de reformas econômicas internas."35
Assim, o governo Collor teria, de fato, começado sob o signo do dinamismo e com
uma agenda que visava renovar o perfil internacional do país. As metas
anunciadas continham resumidamente três prioridades: atualização da política
externa segundo a nova agenda internacional, melhorar as relações com os
Estados Unidos e tirar do Brasil o rótulo de terceiro-mundo. Os resultados que
se destacam dão-se, sobretudo, na arena multilateral: o papel de liderança do
Brasil na Eco-92, a assinatura do Tratado de Assunção para a formação do
Mercosul, a criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle
de Materiais Nucleares (ABACC), a assinatura do Acordo Nuclear Quadripartite de
Salvaguardas com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e a
iniciativa de revisão do Tratado de Tlatelolco.
O fim abrupto do governo Collor compromete os objetivos traçados para a agenda
internacional. O neoliberalismo perde espaço para o neodesenvolvimentismo.
Itamar Franco, estando tanto na frente interna quanto na externa bastante
fragilizado, dá continuidade aos itens em andamento, ao mesmo tempo em que
retoma o discurso desenvolvimentista para o país. Novamente é na arena
multilateral que as opções são mais visíveis. Na ONU a diplomacia brasileira
torna-se mais ativa, tentando viabilizar a adoção da proposta brasileira de uma
Agenda para o Desenvolvimento e defender posições não-intervencionistas nas
discussões sobre os direitos humanos, o meio-ambiente e o terrorismo. Na OEA
defende o fortalecimento da democracia, mas também é contra o intervencionismo.
Nas discussões da Rodada Uruguai segue as alterações traçadas no governo
Collor, flexibilizando a oposição à inclusão dos novos temas, com vistas à
liberalização agrícola, em particular. Enfim, imprime-se às negociações do
Mercosul um sentido de prioridade.
Partindo da constatação de que a diplomacia brasileira demonstra nos anos 90
"uma razoável concentração de atenções e recursos sobre a reforma e ampliação
do Conselho de Segurança", visando a obtenção de um assento permanente, o texto
de Mello e Silva36 busca refletir sobre a questão a partir dos pronunciamentos
diplomáticos brasileiros, reveladores da percepção da diplomacia brasileira
sobre a conjuntura internacional e o que resulta como orientação para buscar a
inserção internacional adequada para o Brasil.
Nesse sentido, a autora observa que dois momentos distintos aparecem no pós-
Guerra Fria. O primeiro pós-Guerra Fria iria da queda do Muro de Berlim, em
1989, à Guerra do Golfo em 1990/91. Nele a diplomacia brasileira mostra-se
otimista e satisfeita com a ordem internacional, pois considera que predominam
internacionalmente forças de integração. Estas forças engendram a constituição
de uma comunidade internacional, pois seus membros partilham dos mesmos valores
básicos (as regras do mercado e da democracia liberal). O papel da ONU é
revalorizado. O Conselho de Segurança, não mais paralisado pelos vetos
constantes de Estados Unidos e União Soviética, passa a mostrar-se mais eficaz,
a exemplo de sua atuação durante a Guerra do Golfo.
O segundo pós-Guerra Fria começaria com a desintegração da União Soviética e da
antiga Iugoslávia. Ganham força os conflitos intra-estatais, de natureza
étnica, religiosa, etc. Os problemas que surgem nas diversas operações de paz
estabelecidas no período (na Bósnia e na Somália), bem como a atuação do
Conselho de Segurança durante a crise no Haiti, fazem do órgão o alvo de muitas
críticas e sua reforma e ampliação é rediscutida. O otimismo e a crença no bom
funcionamento do sistema internacional dá lugar, portanto, a uma orientação
realista, que entende que as instâncias internacionais devem adequar-se à
existência de novos pólos de poder. O sistema internacional redefine então suas
regras e o Brasil, por reunir uma série de atributos que o qualificam a uma
maior participação na elaboração dos novos mecanismos regulatórios das relações
internacionais, coloca-se como candidato a um assento permanente no Conselho de
Segurança.
Mello e Silva aponta em sua conclusão as ambigüidades que encerra a candidatura
ao assento permanente no Conselho de Segurança, reveladora "de uma tradição
diplomática que oscila entre a defesa da justiça e da igualdade e o anseio de
participação em 'diretórios' que refletem, de fato, a distribuição desigual de
poder no sistema internacional".
Shiguenoli Myiamoto37 busca responder à questão que está mais ou menos
implícita em todos os trabalhos aqui tratados: "Por que o Brasil sempre deu
importância às instâncias multilaterais e às reuniões internacionais?"38 Em
uma palavra, porque não as pode ignorar. Por sua característica de país médio,
que não optou pela utilização da força para resolver os conflitos em que se
envolve, o Brasil dos anos 90 defende seus interesses privilegiadamente pela
via institucional, seja pela participação em organizações internacionais, seja
pela sua inclusão em regimes internacionais.
Assim, Miyamoto enfoca as negociações multilaterais na década de anos 90,
buscando sua especificidade em relação a momentos anteriores. Durante o período
militar (1964-1985), comparativamente, embora não se ausentasse dos foros
internacionais, o binômio segurança/ desenvolvimento fez com que a política
externa brasileira fosse notoriamente mais defensiva. Com a redemocratização do
país, a desintegração da União Soviética, o fim da Guerra Fria, etc., o Brasil
multiplicará mais e mais sua presença multilateral. Para o autor, exemplos
dessa opção são a Eco-92 e a candidatura do Brasil a um assento permanente no
Conselho da ONU: ao desfazer uma imagem de país negligente quanto às questões
ambientais, a diplomacia brasileira ganharia em desenvoltura para reivindicar
posições de maior relevo no cenário internacional.
Outro exemplo das opções brasileiras nos anos 90 é o aprofundamento dos
processos de cooperação regional e inter-regional. No primeiro caso, o Mercosul
aparece em destaque; no segundo a cooperação Mercosul-União Européia. O autor
entende que na OMC a atuação brasileira tem sido ainda defensiva, a não ser na
crítica tenaz que faz ao protecionismo europeu e norte-americano à agricultura.
Shiguenoli conclui seu estudo laconicamente afirmando que "como a capacidade
que o [Brasil] tem de alterar as regras de funcionamento do sistema
internacional é extremamente limitada, resta apenas utilizar os expedientes de
que tem lançado mão ao longo dos últimos anos (...) clamando pela necessidade
de cooperação cada vez maior, já que sendo todos interdependentes, [os países
desenvolvidos] seriam afetados igualmente pelas crises dos países menos
desenvolvidos. Pelo que se tem observado nas reuniões entre os dois lados,
esses argumentos, contudo, parecem não ter surtido o efeito desejado".39
Os dois últimos artigos, de Amado Luiz Cervo e de Raúl Bernal-Meza, foram
publicados recentemente e analisam a política externa brasileira dos anos 90
até o presente de maneira bastante crítica, embora suas interpretações sejam
distintas em vários aspectos.
O artigo de Cervo40 dá maior ênfase ao governo de Fernando Henrique Cardoso,
sublinhando sua falta de estratégia de inserção internacional para o Brasil.
Segundo o autor, os dois mandatos de Cardoso desviaram a política externa de
sua estratégia mais contínua e relevante ' a busca de insumos para a realização
do desenvolvimento do país ', nada colocando em seu lugar, afora a abertura de
mercados, o que teria provocado um retrocesso.
Cervo identifica três orientações na política externa brasileira dos anos 90. A
década assiste a substituição do "Estado desenvolvimentista" ' agente do
desenvolvimento nacional, buscado através da superação da dependência econômica
do país e da via autônoma para alcançar sua segurança.' pela mal sucedida
mistura de "Estado normal"/"Estado logístico". O Estado normal, expressão
criada por Domingo Cavallo, é definido por Cervo como aquele cuja conduta dá-se
com três parâmetros: "como Estado 'subserviente' submete-se às coerções do
centro hegemônico do capitalismo; como Estado 'destrutivo', dissolve e aliena o
núcleo central robusto da economia nacional e transfere renda ao exterior; como
Estado 'regressivo' reserva para a nação funções da infância social."41 O
Estado logístico seria aquele que empreende uma inserção internacional madura,
possibilitando aos setores nacionais operarem de maneira competitiva no
exterior.
O Estado normal por excelência seria a Argentina de Menem. O Estado logístico
foi implantado à mesma época no Chile. Ao Brasil restou uma "indefinição
oriunda da coexistência paradigmática da política exterior (...) desde 1990",
levando "à agonia do Estado desenvolvimentista, à emergência do Estado normal e
ao ensaio de Estado logístico".42 A atuação multilateral brasileira é
resultado dessa confusão de paradigmas, que tem como acabamento um discurso
diplomático idealista de inspiração kantiana, em um mundo guiado pelo realismo
das grandes potências.
Raúl Bernal-Meza43 descreve e analisa a política externa brasileira dos anos
90, identificando especificidades dos diversos governos no período, assim como
continuidades.
No plano das especificidades, o autor considera que o governo Collor, marcado
pela modernização e adesão ao ideário neoliberal, teve como prioridades na
agenda externa a aproximação dos Estados Unidos e o abandono do discurso
terceiromundista. O governo Itamar Franco esteve marcado pela incorporação dos
novos temas da agenda internacional à política externa e pelo ativismo no plano
multilateral, que teria na busca de um assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU e na tentativa de construção da ALCSA algumas de suas
manifestações mais importantes. Caracterizou-se também, no plano bilateral,
pela construção de parcerias estratégicas. Os dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, enfim, são caracterizados pelo aprofundamento de
posicionamentos das gestões presidenciais anteriores, "com especial atenção à
gestão multilateral, com um marcado ativismo presidencial"44 , mais pragmático
e de menor perfil político.
É no âmbito das continuidades que a interpretação de Bernal-Meza diferencia-se
da de Cervo, entre outras. O autor identifica na formulação e reformulação da
política externa brasileira, mesmo dos últimos anos, a permanência de
conceitos-chave como o par desenvolvimento-autonomia. A exemplo de Hirst e
Pinheiro, entende que existe um aspecto de continuidade essencial, que é a
adaptação das estratégias de inserção internacional sem alterar-se o que há de
mais importante na opção de inserção.
Esse aspecto é bastante evidente, segundo o autor, nas relações que o Brasil
entretém com seus parceiros do Mercosul, notadamente com a Argentina. Entende
que no plano do multilateralismo regional é notória a inspiração realista tanto
dos policy makers quanto em seus intérpretes brasileiros. Nesse sentido, o
Mercosul foi visto como "uma instância negociadora frente ao eventual
estabelecimento de uma área hemisférica de livre comércio [Alca], e no âmbito
político, o bloco permitiria dotar o Brasil de uma base maior de apoio para sua
estratégia de alcançar reconhecimento como 'potência regional', em virtude da
liderança que exerceria no interior do bloco e, por meio deste, no Cone Sul."45
Portanto, a atuação da diplomacia brasileira nas negociações do Mercosul é
substancialmente realpolitik; para os brasileiros a dimensão competitiva teria
sempre prevalecido sobre a cooperativa.
Considerações finais
Viu-se que, de maneira geral, tem surgido, no Brasil e internacionalmente, uma
farta literatura sobre e os organismos internacionais, regimes, e o
multilateralismo de maneira geral, etc., o que parece atestar que
multilateralism matters46 , e que o mundo não será menos multilateral amanhã.
O presente texto focalizou a relativamente pouco numerosa bibliografia
brasileira que busca realizar um balanço da atuação multilateral brasileira.
Nesse conjunto de trabalhos foi possível observar que alguns deles têm caráter
mais descritivo e outros são mais analíticos. Também pôde-se ver que alguns
estudos têm como objeto a política externa brasileira propriamente dita e
outros o discurso diplomático, que explicita a visão que o Itamaraty tem sobre
sua prática e das relações internacionais.
Mas o levantamento, ainda que com todos os seus limites explicitados, permite-
nos também destacar temas que provavelmente devem ser revisitados, por vários
motivos, entre os quais, talvez o mais relevante, o acesso que se tem a novas
fontes. A política externa do governo Castello Branco, aparece como destaque.
Malgrado a visão preponderante de que, em abril de 1964, a Política Externa
Independente tenha sido abandonada pelos militares, vários sinais há de que o
argumento não pode ser generalizado.
Nesse sentido, a primeira Unctad ' que se desenrolava em Genebra no momento em
que os militares assumem o poder e, para cuja realização, o Brasil contribuíra
ativamente ' é reveladora. Sabe-se atualmente que não houve modificação de
instruções do que deveria ser defendido na reunião. E pode-se ir além para
afirmar que a diplomacia econômica não só não foi rompida em abril de 1964,
como aprofundada pelo governo Castelo Branco.47
Finalmente, viu-se como os paradigmas prestígio/desenvolvimento são tidos como
orientadores da política multilateral brasileira. O prestígio teria norteado a
ação externa do Brasil até os anos 30. O desenvolvimento marcaria todo o
período posterior. A relação entre tais paradigmas é vista praticamente de
mútua exclusão.
Como referência empírica desses paradigmas tem-se utilizado a atuação
brasileira na Liga das Nações e na ONU. A participação do Brasil na Liga das
Nações é tida como exercício de diplomacia ornamental por excelência porque
considera-se que as ações do governo brasileiro estiveram direta e unicamente
ligadas ao prestígio que lhe trazia sua presença no Conselho. O Brasil se
retiraria da Liga em 1926 ao ver que sua reivindicação a um assento permanente
no Conselho não seria atendida. Além disso, o Brasil pouco tinha a ver com os
problemas europeus que monopolizavam as atenções da Liga.48 No momento da
fundação da ONU a instrumentalidade já prevaleceria na condução política
externa brasileira. O Brasil teria aí uma ação constante, exercendo um papel
bastante ativo na inserção da ideologia do desenvolvimento.
Parece, entretanto, que a inserção multilateral do Brasil chega aos anos 90
marcada por uma tal complexidade que não seria mais possível separar, em nenhum
fórum multilateral, a dimensão instrumental daquela que seria, aos olhos de
alguns, meramente ornamental: a busca de recursos para o desenvolvimento
passaria necessariamente pela obtenção de posições de liderança. O esquema
prestígio versus desenvolvimento provavelmente não se prestaria para explicar a
complexidade das interações multilaterais do Brasil.49
Notas
1 Cf. RUGGIE, John G. Multilateralism: the Anatomy of an Institution. In:
RUGGIE, John. Multilateralism Matters. New York: Columbia University Press,
1993, p.4-11, principalmente.
2 O sistema de segurança coletiva previsto pela Carta da ONU nunca foi
aplicado. Segundo seu Capítulo VII, a segurança coletiva repousaria sob a
responsabilidade dos membros permanentes do Conselho de Segurança, a quem
"todos os Membros das Nações Unidas (...) se comprometem a proporcionar (...),
a seu pedido e de conformidade com o acordo ou acordos especiais, forças
armadas (...). O acordo ou acordos serão negociados o mais cedo possível
(...)." (Artigo, 43, 1) A paralisia do Conselho, em conseqüência dos vetos de
seus membros permanentes, produziu inovações, como a transferência à Assembléia
Geral da atribuição de manter a paz e a segurança internacionais, quando o
Conselho estivesse paralisado , conforme a Resolução Acheson, de 1950 (Uniting
for Peace Resolution). Com base nessa resolução, criou-se em 1956, a Força
Internacional de Emergência das Nações Unidas (FENU I), que atuou durante dez
anos da Península do Sinai. As operações de paz estão também amparadas no
Artigo 40, do Capítulo VII da Carta, que prevê que o Conselho de Segurança,
antes de recorrer a medidas de enforcement, poderá adotar medidas provisórias
para prevenir o agravamento do conflito.
3 A partir dos conceitos sugeridos por Ruggie, a autora intenta refletir sobre
os motivos da diminuição da relevância da OEA em BREDA DOS SANTOS, Norma.
Cinqüenta anos de OEA: o que comemorar, Revista brasileira de política
Internacional, ano 41, n. 2, 1998, p. 159-164.
4 ALVARES, José E. Multilateralism and its Discontents. European Journal of
International Law, v. 11, n. 2, 2000, p. 3.
5 SLAUGHTER, Anne-Marie. The Real New World Order. Foreign Affairs, v. 76, n.
5, set./out. 1997, p. 194.
6 Para detalhes que reforçam os argumentos dos críticos ver Alvares, p. 395.
7 Tullo VIGEVANI. Ciclos longos e cenários contemporâneos da sociedade
internacional. Revista Lua Nova, n. 46, 1999, p. 41, pondera ainda que "[é]
importante ressaltar que a liderança vincula-se à capacidade, como observado
por Ikenberry (1997), de projetar um formato de idéias políticas ou princípios
e valores que tenham conexão com aqueles compartilhados por um razoável número
de Estados. O campo dos valores sempre foi importante, mas ganha maior destaque
no fim do século XX. Quando a hegemonia busca afirmar-se pela manifestação
explícita de excesso de poder, corre o risco de sofrer erosão. Provavelmente
esta seja uma explicação plausível para as dificuldades enfrentadas pelos
Estados Unidos no equacionamento da crise do Iraque, que perduraram ao longo de
toda a década dos noventa." E que ainda perduram. Sobre a construção do
consenso e da legitimidade durante a vigência da bipolaridade Leste/Oeste e na
atualidade, também consultar a importante reflexão de FONSECA, Gelson. A
legitimidade e outras questões internacionais, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1998, p. 137-248.
8 Carta Internacional, publicada desde março de 1993, é um informativo mensal
do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI) da USP. Panorama da
Conjuntura Internacional é publicado bimensalmente pelo Grupo de Análise de
Conjuntura Internacional (GACINT), também da USP. RelNet é uma iniciativa
conjunta do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
(REL-UnB) e da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), vinculada ao Ministério
das Relações Exteriores (http://www.relnet.com.br).
9 Sobre a Revista Brasileira de Política Internacional, ver especialmente
ROCHA, Antônio Jorge R. da. O tratamento de temas multilaterais pela RBPI:
1958-1998. Revista Brasileira de Política Internacional, Especial 40 Anos,
1998, p. 121-132.
10 Poucos trabalhos não se enquadram no âmbito de publicações proposto. Ver a
seguir: Cançado Tindade, Selcher e Mello e Silva.
11 Tanto com relação à produção mais tradicional quanto à mais recente, não foi
aqui considerada uma grande quantidade de material bibliográfico que trata da
participação do Brasil em organizações, órgãos e conferências técnicas ou
bastante específicas. Para o leitor ter uma idéia desse universo: conferências
sobre produtos de base, sobre migrações, refugiados, população, questões
sanitárias, transferência de tecnologia, propriedade intelectual, comunicações,
etc.
12 O historiador francês Fernand Braudel classifica os tempos históricos em:
tempo longo, que trata das mudanças estruturais que acontecem ao ritmo dos
séculos; o tempo médio, que trata de mudanças conjunturais, que acontecem em
intervalos de décadas dentro do quadro estrutural, e o tempo curto ou história
imediata, que é contemporânea ao historiador. Ver, por exemplo, BRAUDEL,
Fernand. Une leçon d´histoire. Paris: Arthaud, 1990.
13 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Posições internacionais do Brasil no
plano multilateral. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 52, jan. 1981,
p. 147-216.
14 Ibid., p. 148.
15 A exemplo da citação que o autor faz de um discurso do Ministro das Relações
Exteriores (1968), Magalhães Pinto. Neste, o então ministro afirmava que o Gatt
era uma "instituição de propósito limitado a realizações que beneficiam muito
mais os países que já detêm a maior parcela de comércio internacional do que
aqueles que vêem ano após ano decrescer sua pequena participação nas trocas
mundiais". Ibid. p. 184.
16 Ibid., p. 211
17 BUENO, Clodoaldo. A política multilateral brasileira. In: CERVO, Amado L.
(org.). O desafio internacional. Brasília: Editora da UnB, 1994, p. 9-58.
18 Ibid., p. 132.
19 ALMEIDA, Paulo Roberto. A democratização da sociedade internacional e o
Brasil: ensaio sobre uma mutação histórica de longo prazo (1815-1997). Revista
Brasileira de Política Internacional, ano 40, n. 2, 1997, p. 76-105
20 Ibid., p. 76.
21 LAFER, Celso. Uma interpretação do sistema das relações internacionais do
Brasil.Revista Brasileira de Política Internacional, set./dez. 1967, p. 81-100.
22 Ibid., p. 81.
23 Em um sistema político internacional, considera-se que existe balanço de
poder quando o padrão de interações entre os Estados que o compõem visa a
limitar a busca da hegemonia de um de seus componentes e a conseqüente quebra
do equilíbrio geral. Foi com a finalidade principal de substituir o sistema de
balança de poder pelo da segurança coletiva que a Liga das Nações foi criada
após a Primeira Guerra Mundial, pois pregava o internacionalismo wilsoniano,
principalmente, ser aquele sistema o principal responsável pelas multiplicações
de conflitos bélicos no mundo.
24 Rubens Ricupero dá uma interpretação bem próxima à de Lafer em seu trabalho
sobre a vida do Barão do Rio Branco. Ver RICUPERO. Rubens. José Maria da Silva
Paranhos, Barão do Rio Branco: uma biografia fotográfica, 1984-1995.
Organização iconografia e legendas de José Hermes Pereira de Araújo. Brasília/
Rio de Janeiro: Funag , 1995.
25 Leia-se aqui, implicitamente, as únicas razões reais para que o Brasil
participe da Liga das Nações e a desenvoltura com que dela se afasta, em 1926.
Não tendo interesses a defender na Liga, além do prestígio (caráter ornamental)
que os mandatos seguidos no Conselho traziam-lhe, o Brasil pôde deixar a Liga
sem grandes prejuízos.
26 LAFER, Celso. Uma interpretação ..., op. cit., p. 91.
27 MELLO E SILVA, Alexandra de. Idéias e política externa: a atuação brasileira
na Liga das Nações e na ONU, Revista Brasileira de Política Internacional,
1998, n. 2, p. 148.
28 Ibid., p. 139.
29 Ibid., p. 154.
30 SELCHER, Wayne A.Brazil's Multilateral Relations: between First and Third
Worlds. Boulder: Westview Press, 1978.
31 Ibid., p. 211.
32 Vide também SELCHER, Wayne. As linhas fluidas da ação multilateral do
Brasil. A defesa nacional, n. 679, set./out. 1978, p. 137-148.
33 HIRST, Mônica & PINHEIRO, Letícia. A política externa do Brasil em dois
tempos, Revista Brasileira de Política Internacional, ano 38, n. 1, 1995, p. 5-
23.
34 Ibid., p. 6.
35 Ibid., p. 7.
36 Cf. http://www.usp.br/relint/
37 MIYAMOTO, Shiguenoli. O Brasil e as negociações multilaterais. Revista
Brasileira de Política Internacional, ano 43, n. 1, 2000, 119-137.
38 Ibid., p. 122.
39 Ibid., p. 135.
40 CERVO, Amado. Relações internacionais do Brasil: um balanço da era Cardoso.
Revista Brasileira de Política Internacional, ano 43, n. 1, 2002, p. 5-35.
41 Ibid., p. 6.
42 Ibid., p. 7.
43 BERNAL-MEZA A política exterior do Brasil: 1990-2002. Revista Brasileira de
Política Internacional, ano 45, n. 1, 2002, p. 36-71.
44 Ibid., p. 61.
45 Ibid., p. 44.
46 Título do referido livro organizado por John Ruggie.
47 Marcílio Marques Moreira era então diplomata e acompanhava assuntos
econômicos no Itamaraty. Afirma que "houve uma comissão [brasileira] muito
dinâmica de preparação [da primeira reunião da Unctad]. (...) [H]avia cinco
grupos de trabalho ' é por isso que eu digo que o problema não era só o Gatt;
era também o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. (...) O que essa
preparação mostra é que a política externa independente tinha afinal adquirido
uma dimensão econômica. Até então, ela, que procurava se aproveitar de uma
brecha possível na rivalidade Leste-Oeste entre países desenvolvidos, não tinha
apresentado uma vertente econômica consistente. A orientação era muito
marcadamente política (...)." Afirma ainda que a orientação traçada pela
referida comissão foi seguida, "mesmo depois da Unctad". E acrescenta: "Nossa
posição sempre foi reivindicatória, nunca deixou de ser. O que mudou foi a
retórica." (Moreira, p. 95-96 e 115)
48 A historiografia brasileira sobre o tema insiste sobre a idéia de "fiasco"
brasileiro em Genebra, produto da misperception das elites dirigentes
brasileiras, somada à necessidade do autocrático governo Bernardes de utilizar
a política externa para fins de legitimação política doméstica. A passagem do
Brasil pela Liga das Nações não pode, porém, ser compreendida realmente sem uma
perspectiva que busque inseri-la em um contexto mais amplo, que teria
basicamente a ver com o relacionamento entre as principais potências européias
e suas políticas em assuntos que diziam respeito à Liga. A tese de doutorado da
autora teve como objetivo fazer essa análise mais ampla, utilizando, além da
documentação brasileira pertinente, fontes britânicas e francesas,
particularmente. Cf. BREDA DOS SANTOS, Norma. Le Brésil et la Société des
Nations, 1920-1926. Tese de doutorado. Université de Genève/Institut
Universitaire de Hautes Etudes Internationales, 1996.
49 Sobre a candidatura brasileira ao assento permanente no Conselho de
Segurança, vide HERTZ, Mônica. O Brasil e a reforma da ONU. Revista Lua nova,
n. 46, 1999, p. 77-99.