Governando a China: a quarta geração de dirigentes assume o controle da
modernização
A economia chinesa encetou um salto qualitativo que poderá levá-la, dentro de
vinte a trinta anos, ao estágio de economia de dimensão continental,
solidamente integrada sobre moderna infra-estrutura de comunicações e
transportes. Para administrar esse salto, o Partido Comunista Chinês (PCC)
remodelou, no XVI Congresso (2002), suas instâncias superiores: Comitê Central
(CC) e Bureau Político (BP). O Comitê Permanente (CP) do BP, que é o efetivo
governo da China, foi totalmente renovado. Sua composição foi ampliada de sete
para nove membros e, das personalidades que formavam o velho comitê, somente Hu
Jintao concorreu à reeleição. Reeleito, foi incontinente designado Secretário-
Geral do PCC. Na prática chinesa, modificações na cúpula dirigente, aprovadas
num congresso do PCC, são reproduzidas na cúpula do governo, quando se reúne no
ano seguinte a Assembléia Nacional do Povo, que é o Legislativo do regime. Isso
ocorreu em março de 2002, sendo de destacar as substituições: de Jiang Zemin
por Hu Jintao (Chefe do Estado); de Li Peng por Wu Bangguo (Presidente da ANP);
de Zhu Rongji por Wen Jiabao (Primeiro Ministro).
Hu Jintao vem sendo reiteradamente apresentado como "o núcleo da Quarta
Geração". A referência, aí, é a uma categoria sociológica estudada por toda uma
gama de cientistas sociais e que, no caso chinês, começou a ser usada para
descrever a coorte de dirigentes, com visão do mundo grandemente coincidente, a
quem toca governar o país durante um certo período. Não pretendo envolver-me
com os aspectos teóricos que cercam o conceito. Procurarei, apenas, verificar
como ele está servindo para nortear a transição da China para o século XXI1.
Cumpre, contudo, salientar a natureza elitista da "geração", enquanto forma de
governo. Os governantes que compõem a categoria saem das elites dos respectivos
regimes. Na China2, eles precisam ter galgado ao CC do PCC, que é a
instituição-chave da república. Para ali converge a nata dos dois corpos
militantes que fizeram e continuam a sustentar a Revolução Chinesa: o PCC e o
ELP (Exército de Libertação Popular). Na fase heróica do maoísmo, o desempenho
na luta revolucionária e a firmeza ideológica eram as grandes credenciais para
a ascensão ao CC. Com a remodelação do regime promovida por Deng Xiaoping,
passaram a ser favorecidos os "engenheiros vermelhos", militantes convictos e
com formação universitária. O primeiro CC da era dengista, eleito no XII
Congresso (1982), é considerado um divisor de águas nessa tendência em favor
dos tecnocratas, que na China se definem como alguém formado numa disciplina
técnica, ocupando na administração funções relacionadas com a sua
especialidade. Distribuem-se eles por todas as avenidas e travessas do regime,
como os responsáveis diretos pelo funcionamento do regime. Na altura do XV CC
(1997), já era impressionante o avanço dos tecnocratas na cúpula do partido:
mais da metade dos trezentos e quarenta e quatro membros do CC; dezoito dos
vinte e quatro membros do BP; todos os sete membros do Comitê Permanente3.
Paralelamente ao aparelho do partido, o estamento militar é outra sementeira de
profissionais com educação terciária a alimentar os efetivos do CC. Uma das
Quatro Modernizações postas em marcha em 1979 tem cuidado da profissionalização
permanente das Forças Armadas chinesas, mas as exigências de um domínio
aprofundado das técnicas relacionadas com a defesa nacional não vêm afastando
os militares de preocupações políticas. Os professores americanos Li Cheng e
Lynn White realizaram pesquisa, muito citada, sobre o fluxo de militares para o
CC do PCC4, focalizando o comitê eleito no XIV Congresso (1992). Dos cinqüenta
e cinco membros plenos então chegados ao CC, dezessete vieram do exército, a
eles se juntando sete, dentre vinte e oito membros suplentes que passaram a
plenos na ocasião. Contando os militares que já estavam no CC, havia agora
quarenta e seis deles. Desses, 67% eram diplomados de instituições de ensino
superior, em geral academias militares. Mais de 30% dos oficiais no XIV CC
haviam exercido cargos de direção em academias ou escolas técnicas militares, o
que possibilitava postular que, a exemplo do que vinha acontecendo no mundo
civil, laços de coleguismos começavam a sobrepor-se a outros vínculos, entre os
militares. Durante mais de quatro décadas, a relação comandante-comandado fora
a principal determinante das lealdades no seio do ELP. Tomavam agora a
dianteira os velhos laços escolares.
Personalidade que teve muito a ver com o florescimento da tecnocracia chinesa
foi Jiang Nanxiang, um colaborador de Mao Zedong de quem foi Ministro da
Educação. Entre 1952 e 1966, Jiang presidiu a Universidade Qinghua, de Pequim,
fundada em 1911 por educadores americanos. Com o objetivo de preparar
estudantes amigos para irem fazer cursos de pós-graduação nos Estados Unidos,
aqueles educadores criaram a universidade com dinheiro proveniente da
"Indenização Boxer", o tributo monetário que a China estava sendo obrigada a
pagar a um grupo de potências ocidentais, a título de "reparação" por danos a
elas infringidos durante a Rebelião dos Boxers (1900). Com o tempo, Qinghua foi
absorvida pela realidade chinesa, vindo a ser por exemplo uma arena de lutas
durante a Revolução Cultural. Durante o seu mandato, Jiang Nanxiang criou um
Sistema dos Conselheiros Políticos (SCP), para o qual eram recrutados alunos de
todos os níveis com bom desempenho político (prioritariamente) e acadêmico.
Eram eles estimulados a permanecer na Universidade por mais um ano, após a
conclusão dos respectivos cursos, "a fim de aprimorarem suas habilitações".
Jiang foi assim criando uma rede de formandos, que ele via como celeiro de
futuros dirigentes. E com efeito, na fase modernizadora impulsionada por Deng
Xiaoping, foi possível detectar a presença em altos cargos da república de
membros da rede tecida por Jiang Nanxiang. Membros de relevo do que hoje se diz
"a máfia de Qinghua" são Zhu Rongji e Hu Jintao5.
Jiang Nanxiang esteve afastado de Qinghua durante os dez anos da Revolução
Cultural e só readquiriu influência após a derrota dos radicais, num processo
ligado de perto à reabilitação de Deng Xiaoping. Entre os primeiros atos de
Deng, após retornar ao poder em 1978, esteve a convocação de uma Conferência
Nacional de Ciência, para cuja organização ele chamou Jiang Nanxiang. Jiang foi
o secretário-geral do evento, assumindo depois as funções de Vice-Presidente da
Comissão Estatal de Ciência e Tecnologia. Deng Xiaoping por sua vez, ao
praticamente inaugurar sua era com iniciativa dedicada ao trabalho científico,
tornou patente a determinação de atribuir à ciência e tecnologia (C&T) o
papel de base das três outras "modernizações", com cuja promoção se
comprometera. Isso foi-se tornando mais claro à medida que eram adotadas
políticas destinadas a reestruturar a comunidade científica, dizimada e
desmoralizada pela Revolução Cultural, que proclamara a necessidade de os
intelectuais se adaptarem à "visão proletária do mundo". Deng Xiaoping cuidou
de elevar o estatuto dos cientistas enquanto grupo social, afastando da chefia
de instituições científicas "generalistas" do partido, em favor de
profissionais das áreas correspondentes. E formulou, ao ensejo da Conferência
de 1978, duas importantes revisões ideológicas. Classificou as atividades de
C&T entre as "forças de produção", e não como parte da "superestrutura";
valia dizer: atividades nem burguesas nem proletárias. Corolário dessa
redefinição foi a aceitação dos cientistas e intelectuais como "partes da
própria classe operária".
Não disporei de espaço para acompanhar a formulação e implementação, ao longo
dos anos 1980 e 1990 do século passado, das políticas de reestruturação da
comunidade científica e tecnológica da China. Vou ter de recorrer ao julgamento
de um abalizado especialista que, ele sim, acompanhou o assunto de forma
sistemática e bem informada: o Professor Richard P. Suttmeier, da Universidade
de Oregon (Estados Unidos). Num artigo escrito em colaboração com Cong Cao,
pesquisador do Centro de Estudos sobre a Ásia e o Pacífico (Honolulu),
Suttmeier pôde diagnosticar, em 1999: "A China fará face aos desafios do século
XXI, tendo ao seu dispor uma substancial comunidade científica, de qualificação
variada mas crescentemente capaz. Nas duas últimas décadas, passou ela por
abrangentes reformas institucionais e mudanças políticas, com o objetivo
precípuo de torná-la mais socialmente expressiva, economicamente confiável e
apta a competir na busca da excelência na pesquisa e na inovação tecnológica.
As políticas reformistas proporcionaram compensações, materialmente expressivas
e simbolicamente valiosas, às instituições e indivíduos que foram julgados os
mais brilhantes e os melhores. De tudo resultou que o elitismo na ciência veio
a adquirir, na última década, um nível de aceitação desconhecido desde o começo
dos anos 1960"6.
Cao e Suttmeier recorrem à expressão americana "banco de cientistas" para
designar o estamento em que se vem agregando uma elite de cientistas,
recrutados pela Academia Chinesa de Ciência (ACC) e pela Academia Chinesa de
Engenheiros (ACE). Efetua-se tal recrutamento segundo o sistema dito yuanshi,
que além de premiar cientistas e engenheiros por suas realizações individuais,
vai formando lideranças aptas a darem assistência profissional aos dirigentes
políticos, com os quais são estimulados a manter um relacionamento próximo, mas
autônomo, nas questões nacionais que envolvam aspectos de C&T. A
institucionalização do sistema yuanshi enfrentou muita oposição, estabilizando-
se partir de 1994, quando a ACE foi criada como entidade distinta da ACC. A
eleição para esta ou aquela academia processa-se hoje de maneira semelhante às
eleições para a National Association of Science, dos Estados Unidos, ou a
British Royal Society. Em 1997, o processo eleitoral foi inclusive modificado
para dificultar intervenções do PCC na seleção dos membros das academias.
Na perspectiva deste estudo, não vem ao caso avaliar o efeito do sistema
yuanshi sobre a qualidade da ciência na China. O que está em foco é a sucessão
das "gerações" de dirigentes responsáveis pela modernização do país, tratando-
se então de verificar como a nata de especialistas produzida pela ACC e ACE
tem-se entrosado com esse processo. Será preciso, antes de mais nada,
distinguir entre o "banco de cientistas" e a massa de tecnocratas que povoam os
canais administrativos da China. Cao e Suttmeier levantaram boa informação
sobre os primeiros, acentuando que as oportunidades de ascensão para os
cientistas de elite deixou de depender da lealdade política. A filiação ao PCC
não é a condição para carreiras científicas bem sucedidas, funcionando a
contrário como honraria oferecida a cientistas de valor. As pesquisas mostraram
que, entre 1955 e 1997, foi maior o número de cientistas não membros do PCC
aceitos na ACC, do que o de membros da ACC que se filiaram ao PCC. Galardão
muito usado é a designação de cientistas como deputados ao Congresso Nacional
do Povo ou à Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, entidades sem real
poder político mas de grande prestígio. De todo modo, sempre há um pequeno
número de cientistas com atuação partidária, no plano central ou no provincial.
No XV Congresso do PCC (1997), por exemplo, cinco acadêmicos da ACC foram
eleitos para o CC do partido, na qualidade de membros-suplentes. E com ou sem
filiação partidária, os membros da ACC vêm cada vez mais prestando assistência
profissional aos dirigentes, em questões que vão do ensino da biologia no curso
ginasial a grandes projetos de engenharia como a construção de hidrelétricas.
Deng Xiaoping já estava com setenta e quatro anos ao assumir a liderança
suprema da China. Tinha consciência de como era curto o tempo para a tarefa,
que lhe parecia essencial, de deslocar o regime da tradicional luta de classes
para uma trajetória de desenvolvimento econômico e tecnológico. A revolução
comunista já fora feita na China. Tratava-se agora de erigir o PCC na promoção
e garantia da construção de uma sociedade socialista plenamente integrada na
modernidade em mutação. Deng vivera e trabalhara na França dos dezesseis aos
vinte e um anos, no seu pleno período formativo. Ligou-se de longe ao nascente
movimento comunista chinês, em contato direto com a agitação dos operários
franceses. Na França, Deng firmou laços de amizade e identificação intelectual
com Chu En-lai, seis anos mais velho do que ele, mas companheiro de lutas nas
décadas em que os dois foram ascendendo ao topo do PCC. Unia-os a convicção,
nascida na vivência de ambos no exterior, de que a China só superaria o atraso
trazido por um século de colonialismo, se se abrisse para o mundo, disposta a
aprender com o mundo. Chu En-lai foi o idealizador das "Quatro Modernizações",
transformadas em programa de governo por Deng (1978), com a determinação
adicional de abertura da economia chinesa para o mercado internacional.
Quando Deng Xiaoping voltou ao centro do poder, após a morte de Mao Zedong e o
fim da Revolução Cultural, encontrou a cúpula do PCC enleada no que se chamava
a norma dos "dois o quê quer quê": diante de qualquer problema, valia o quê
quer que Mao tivesse dito ou feito. Deng insurgiu-se contra essa submissão à
autoridade e conduziu sua própria ascensão à liderança do partido, brandindo o
argumento de que "a prática é o único critério da verdade". Transformou essa
asserção numa completa teoria da modernização, exposta com segurança em
reuniões do partido, em 1978 e 1979. A visão pragmática do mundo,
característica central do pensamento dengista, tem desde então marcado todo o
extraordinário reerguimento da China.
No XII Congresso do PCC (1982), Deng procurou preparar o partido e o governo
para a boa implementação da abertura ao exterior e as "Quatro Modernizações"
(da agricultura, da indústria, das forças armadas e das atividades de ciência e
tecnologia), fixando-lhes para os anos 1980 uma agenda em quatro pontos: (1)
reestruturar a administração e a economia; (2) construir uma civilização
socialista, cultural e ideologicamente avançada; (3) coibir com firmeza
atividades criminosas; e (4) corrigir o estilo de trabalho do partido. Este
último ponto foi exigindo a substituição maciça dos velhos quadros, em geral
pouco educados, por jovens crescentemente profissionalizados. Também a
institucionalização gradual do serviço partidário, através da adoção de limites
de idade e duração dos mandatos nos diversos níveis hierárquicos, inclusive nos
escalões superiores. No XIII Congresso (1987), Deng deu exemplo quase sem
paralelo de coerência com a própria pregação, renunciando voluntariamente à
condição de membro do BP e do CC. Com isso, compeliu mais de noventa anciães a
também deixarem as duas instâncias. O único maior de oitenta anos a permanecer
foi Yang Shangkun, que era o Chefe do Estado e Vice-Presidente da Comissão
Militar Central. Deng era o Presidente dessa CMC, e decidiu continuar por algum
tempo no cargo, a fim de manter Yang Shangkun sob seu controle.
As reformas postas em marcha por Deng Xiaoping e suas rigorosas medidas de
aprimoramento do partido e do governo provocaram não pouca resistência da velha
guarda do regime. Dois quadros sucessivamente designados por Deng para sucedê-
lo na liderança suprema - Hu Yaobang e Zhao Ziyang - viram-se compelidos a
deixar a cena política. As iniciativas do segundo, em particular, despertaram
muita polêmica, havendo contribuído para os trágicos acontecimentos de
Tiananmen, em maio de 1989. Dois meses depois reunia-se a Quarta Plenária do
XIII Comitê Central (os CC são conhecidos pela numeração do Congresso do PCC
que os elegeu) e Zhao Ziyang foi destituído de todos os seus postos no partido,
como viria a ser depois dos postos no governo. Tornou-se urgente a escolha de
um novo Secretário-Geral, vindo a ser eleito Jiang Zemin, o secretário do
partido em Xangai, onde se destacara pela maneira firme, mas não sangrenta,
como soubera controlar manifestações contra o regime do tipo das ocorridas em
Pequim. Deng foi o patrono de Jiang e, determinado a não ver falhar uma
terceira escolha de sucessor, cuidou de dar maior substância à figura do novo
Secretário-Geral, pondo em relevo sua posição de "núcleo da Terceira Geração de
dirigentes". Na oportunidade, Deng mencionou a si próprio como o núcleo da
Segunda Geração e Mao o da primeira.
Essa inesperada alusão a uma seqüência de "gerações" foi simples recurso
argumentativo de Deng Xiaoping. Na verdade, ele estava introduzindo ali o
modelo, a fim de dar consistência e legitimidade ao mandato de Jiang Zemin. No
mesmo espírito, Deng iria passar a Jiang, alguns meses mais tarde, a
presidência da CMC, começando a manobrar com vistas à aposentadoria de Yang
Shangkun. Isso viria a ser obtido no XIV Congresso (1992), e Jiang Zemin
assumiria logo a seguir também a Chefia do Estado.
Jiang crescera numa família de militantes. Perdeu o pai muito cedo e foi
adotado por um tio, também falecido antes da vitória comunista, em condições
que lhe garantiram ser incluído no rol dos "mártires do partido". Isso
proporcionou ao órfão facilidades para formar-se em engenharia pela prestigiosa
Universidade Jiaotong, de Xangai, e ir fazer pós-graduação na União Soviética.
Trabalhou, por quase duas décadas, no Primeiro Ministério da Indústria de
Construção de Máquinas e, no início dos anos 1980, deslocou-se para o trabalho
partidário, alcançando projeção como o Secretário do PCC em Xangai. Na sua
trajetória pelos corredores do governo e do partido, foi tecendo ao seu redor
uma rede de outros tecnocratas, em geral mais jovens do que ele e que o
acompanhariam na ascensão à cúpula do regime. A decisão de Deng Xiaoping de
colocar Jiang Zemin à frente do partido e do governo foi recebida com ceticismo
nos meios políticos de Pequim. Os conservadores do partido, mas também
jornalistas e acadêmicos estrangeiros, descreviam Jiang como político sem
carisma, desprovido de bases próprias de poder e, de modo geral, incompetente.
Num comentário publicado na edição de 3 de junho de 1990, o correspondente do
New York Times referia-se à opinião corrente em Pequim de que Jiang Zemin não
sobreviveria no poder, "dois anos após a morte de Deng Xiaoping". Em anos
posteriores, Jiang veio revelando aptidões insuspeitadas de paciência,
flexibilidade e ardileza política. Mas parece certo dizer que ele não se teria
firmado sem o empurrão inicial que lhe deu Deng7.
Na virada dos anos 1980 para os 1990, o velho líder estava tendo de enfrentar
grandes desafios. O "socialismo real" desmoronava na Europa Oriental, e a velha
guarda do PCC usava isso para agitar contra as reformas esposadas por Deng
Xiaoping. As potências ocidentais tinham montado um sistema de pressões contra
o regime chinês, ao ensejo dos trágicos acontecimentos de Tiananmen. Os
capitais de fora escasseavam e a economia doméstica marcava passo, com reflexos
negativos sobre a estabilidade social e política. Tudo isso criava conflitos no
âmbito do partido, que via aproximar-se o momento de ter de substituir
lideranças. Momento de grande tensão nos partidos leninistas que não tinham
sabido desenvolver normas processuais para a seleção e instalação de um novo
líder supremo. A resposta de Deng a toda essa contrariedade foi recorrrer ao
modelo da "geração", como forma de renovação permanente do papel diretor do
partido.
Na visão pragmatista de Deng Xiaoping, coortes de dirigentes estruturados num
encadeamento de gerações, cada uma com atuação previsível de dez anos, iriam
levando adiante, indefinidamente, a tarefa do desenvolvimento e da modernização
tecnológica da China. A cada geração cabia adequar a realidade social,
econômica e política do país às mutantes exigências domésticas e do quadro
internacional. Ao personagem reconhecido como o núcleo de cada geração
competiria velar pela compatibilidade organizacional do partido com os
ajustamentos introduzidos por sua coorte. Dessa maneira, tornava-se possível
antecipar o gradual acúmulo de conquistas concretas, através das quais o PCC
legitimaria continuamente sua presença na governança do regime.
A Terceira Geração foi até agora, na China, o único exemplo do gênero com
princípio e fim. É inescapável examinar as soluções empiricamente encontradas
por ela para a constituição e funcionamento de uma geração, mesmo não se
podendo garantir que tais soluções venham a repetir-se nas gerações vindouras.
Quando Deng Xiaoping colocou Jiang Zemin no centro dessa primeira experiência,
sua maior preocupação foi assegurar uma transição pacífica na liderança do
regime, diante da iminência de sua própria partida. No processo, Deng terá
percebido a validade do modelo para futuras transições e, no XIV Congresso
(1992), agenciou a eleição de Hu Jintao, então com quarenta e nove anos, para o
CP do BP, já na presunção de que ele pudesse assumir a liderança da Quarta
Geração, dez anos mais tarde. Hu era membro do CC desde 1982, mas não chegara a
servir no BP. Não obstante, Deng optou por ele numa lista de três candidatos
para o Comitê Permanente, tendo em vista tanto os méritos já acumulados por Hu
quanto a conveniência de obter o apoio, para seus planos de institucionalização
da vida partidária, de um grupo liderado pelo veterano Chen Yun do qual era
membro de destaque outro veterano, Song Ping, padrinho político de Hu Jintao8.
A história pessoal e a ascensão política de Hu Jitao9 são exemplos perfeitos da
teoria das "duas linhas", elaborada por Mao Zedong, nos anos 1960, para definir
o caminho a ser seguido por eventuais aspirantes à liderança do regime chinês.
A teoria prevê que um aspirante deve dedicar-se ao longo dos anos à boa
implementação das tarefas diárias do gerenciamento do partido (primeira linha),
sob a direção de um membro mais experiente (segunda linha), que é suposto
avaliar e orientar as qualidades e capacidades do pupilo. Com o máximo possível
de objetividade, havendo no partido normas não escritas que coíbem o nepotismo
puro e simples.
Hu Jintao nasceu em 1942 numa cidade do interior, tendo como pai um contador de
armazém local. Provavelmente por esforço próprio, foi admitido aos dezessete
anos na Universidade Qinghua, onde se formou em engenharia hidroelétrica em
1965, como um dos últimos estudantes a obter grau universitário antes da
suspensão dos cursos pela Revolução Cultural, iniciada em 1966. Dois anos antes
ele se inscrevera no PCC, e depois de formado permaneceu trabalhando na
Universidade, como um conselheiro político segundo o modelo de Jiang Nanxiang.
Hu casou-se com uma colega da Universidade e manteve-se à margem dos violentos
choques entre facções rivais dos Guardas Vermelhos, no interior da instituição.
Quando Mao pôs termos a esses choques, deportando em massa os estudantes para a
zona rural, Hu foi enviado para a remota província de Gansu, onde iria
trabalhar por mais de uma década em obras hidráulicas e secretariando comitês
do partido. Foi em Gansu que Hu chamou a atenção de Song Ping, o poderoso
Secretário provincial do PCC, cuja mulher ocupara cargos do partido em Qinghua,
quando Hu lá estudara. Song Ping tornou-se seu primeiro padrinho político,
responsável pela frutuosa associação de Hu com a Juventude Comunista Chinesa e
sua posterior designação para estudar na Escola Central do Partido, onde Hu
reencontrou Jiang Nanxiang no cargo de Vice-Presidente da Escola.
Aproximava-se o XII Congresso do PCC (1982), e o Primeiro Ministro da época, Hu
Yaobang, procurava jovens quadros para reforçar o CC do partido. Caçadores de
talentos foram despachados, e Hu Jintao foi detectado, inclusive pelo fato raro
de possuir um diploma universitário, no imediato pós-Revolução Cultural. Hu
Yaobang tornar-se-ia o segundo padrinho político de Hu Jintao, levando-
o consigo em circuitos de inspeção pelo país e terminando por colocá-lo à testa
da Liga da Juventude Comunista Chinesa.
Em 1985, Hu Jintao deixou o movimento juvenil para trabalhar diretamente na
estrutura central do partido. Foi nomeado Secretário do PCC em Guizhou, a
província mais pobre da China, notável também pela forte presença de minorias
étnicas. A experiência como secretário de província é julgada fundamental na
formação de um quadro do PCC, e a designação de Hu, aos quarenta e três anos,
para tal posto deveu-se a Hu Yaobang, que estava testando as aptidões do
protegido. Hu permaneceu em Guizhou de 1985 a 1988, quando foi designado para
secretariar o partido na Região Autônoma do Tibete. O secretário anterior, um
militar, fora demitido por não ter conseguido controlar manifestações violentas
de grupos separatistas tibetanos. Hu assumiu em Lhasa com o primeiro secretário
do partido de filiação civil. Teve, no entanto, de trabalhar sob a Lei Marcial,
coordenando a ação do ELP na contenção da revolta. Sua atuação no episódio
ainda não foi escrutinada.
Em 1990, com um diagnóstico de "mal da altura", Hu obteve licença para tratar-
se em Pequim, assim permanecendo durante dois anos, sem cortar o elo com o
Tibete. Song Ping estava na capital em posição de comando, e Hu foi chamado
para missões de vários tipos, acabando por impressionar Deng Xiaoping, que se
tornou seu terceiro padrinho político. Conforme já ficou visto, Deng alçou Hu
Jintao, em 1992, ao CP do CC.
A brilhante trajetória profissional de Hu Jintao e a qualidade superior dos
seus padrinhos políticos não teriam, talvez, bastado para sagrá-lo como "o
sucessor" do líder supremo, se ele próprio não houvesse cuidado de bem
administrar suas oportunidades. Afinal, é de imaginar que outros aspirantes
estivessem também acumulando credenciais. Basta citar o caso de Zeng
Qinghong10, o assessor mais diretamente ligado a Jiang Zemin, que já
patrocinara sua eleição para o BP e, em novembro de 2002, assegurou sua entrada
no respectivo comitê permanente. A imprensa ocidental especulou durante meses
sobre a eventualidade de Jiang Zemin frustrar a ascensão final de Hu Jintao,
fazendo de Zeng Qinghong o Secretário-Geral do partido. Zeng é um lídimo
representante da categoria dita dos "principezinhos". Filhos e filhas de
líderes do regime, que crescem em contato com outro figurões, usufruindo de
facilidades abertas à elite partidária e governamental. Têm suas carreiras
facilitadas, o que não quer dizer que não possam ser efetivamente capazes e
preparados. Zeng Qinghong, filho de dois militantes de relevo dos começos da
RPC, é um cientista especializado em foguetes, cooptado depois para o trabalho
partidário. Adquiriu fama de político habilidoso e maquiavélico, arquiteto de
muitos dos triunfos de Jiang Zemin nas escaramuças de cúpula. É citado também
como um dos principais formuladores da política externa da China, em particular
diante dos Estados Unidos. Aparentemente, está fazendo boa liga com Hu Jintao,
no CP do BP.
Nos dois anos passados em Pequim no início dos anos 1990, licenciado das
obrigações do Tibete, Hu Jintao assessorou Song Ping no monitoramento,
treinamento e realocação de membros seniores do partido, além da supervisão de
entidades ancilares como a Liga da Juventude Comunista e a Federação Sindical.
Song Ping e outros veteranos deixaram o CP do BP no XIV Congresso (1992),
abrindo vaga para a eleição de quadros mais novos como Zhu Rongji e o próprio
Hu Jintao. Este recebeu o acompanhamento dos assuntos do partido entre suas
atribuições, vindo a desempenhar diretamente as tarefas em que antes secundara
Song Ping. Em 1993, Hu foi designado para presidir a Escola Central do partido,
instituição que recebe anualmente levas de quadros do "terceiro escalão",
selecionados por autoridades provinciais e ministeriais para um treinamento
intensivo indispensável para promoções futuras. Hu revelou-se presidente
dedicado da Escola, dando aulas pessoalmente e desenvolvendo estreito
relacionamento com muitos alunos, com os quais seguiu se correspondendo após o
retorno deles para suas várias regiões.
Ainda na condição de membro do comitê permanente, Hu tornou-se responsável
pelos assuntos do Noroeste da China, com a obrigação de viagens periódicas à
região, a fim de avaliar os líderes locais e recomendar seu aproveitamento
futuro. Por toda parte, Hu encontrava colegas e subordinados do seu tempo na
direção da Liga da Juventude, e via surgirem novas oportunidades para ampliar
sua rede de influência. Mas, para aumentar suas chances de suceder a Jiang
Zemin, como o núcleo da Quarta Geração, Hu Jintao ainda precisava obter a luz
verde dos militares e o apoio decidido do próprio Jiang. Esse apoio começou a
consolidar-se em 1995, quando Hu colocou-se firmemente ao lado do Secretário-
Geral, num dos embates decisivos da afirmação de Jiang Zemin como o núcleo da
Terceira Geração: a demolição política de Chen Xitong, membro do BP e Prefeito
de Pequim. À frente de um verdadeiro império de corrupção na capital, Chen
Xitong parecia estar tramando um ataque contra Jiang, que reagiu abrindo
rigorosa devassa contra Chen. Chamado a ocupar-se do assunto, Hu Jintao
conduziu com eficácia as investigações e as medidas administrativas que
encerraram o episódio.
Com o beneplácito de Jiang Zemin, Hu Jintao iria ser nomeado Vice-Presidente da
República na sessão de março de 1998 da Assembléia Nacional do Povo. Aos
cinqüenta e seis anos, o mais novo Vice-Presidente da história da RPC, Hu
recebeu imediatamente o espinhoso encargo de supervisionar a liquidação de
todas as operações comerciais e industriais do ELP, em implementação de medida
adotada na mesma sessão da ANP. Junto com Zhu Rongji, companheiro de CP que
acabara de ser empossado como Primeiro Ministro, Hu Jintao deu conta da tarefa
com a característica eficiência e presteza, sem provocar a ira dos generais.
Durante os longos anos de luta contra os japoneses e os nacionalistas do
Kuomintang, os grupos armados embriões do ELP tinham tido de prover à própria
subsistência, sem exações sobre as populações camponesas que lhes davam
guarida. A auto-suficiência tornou-se a norma, num tipo de solução que levaria
à edificação, na futura República, de um complexo industrial-comercial para a
produção e distribuição de armas e tudo mais de que precisassem as Forças
Armadas. De Mao Zedong a Deng Xiaoping, os dirigentes foram tolerando a
existência desse império, de que se dizia abarcar vinte mil empresas por todo o
país, com lucros anuais da ordem de 600 milhões de dólares. Um contexto
propício a abusos e corrupção, que os homens da Terceira Geração se sentiram
livres para coibir, após a morte de Deng Xioping (fevereiro de 1997) e
aproveitando a movimentação associada ao XV Congresso (1997). Congresso esse
visto como o limite extremo da influência dos velhos revolucionários da
Primeira e Segunda Gerações.
A maneira correta como Hu Jintao soube aplicar o princípio maoísta de que "o
partido comanda o fuzil sem jamais deixar que o fuzil tome o comando do
partido" abriu caminho para sua nomeação em 1999, sem reação negativa dos
militares, para o cargo de Vice-Presidente da Comissão Militar Central. A
chefia dessa CMC - recorde-se - fora passada por Deng Xiaoping a Jiang Zemin,
em 1989, como a peça final de edificação da liderança de Jiang. Ele tivera de
trabalhar com prudência e finura, durante alguns anos, até ser aceito pelos
militares como o presidente incontestável da CMC, posto que traz consigo o
Comando-em-Chefe das Forças Armadas. Jiang chegou inclusive a ser visto pelos
militares como um deles, na medida em que se tornou o paladino das diversas
reivindicações materiais da corporação. Sob sua égide, foram feitas três
remodelações da CMC e de alguns departamentos centrais do ELP, de tal modo que
o Alto-Comando veio a estar repleto de oficiais na faixa etária de Jiang
Zemin11.
Hu Jintao tomou assento no segundo posto da CMC, em condições bem mais
favoráveis do que as enfrentadas dez anos antes por Jiang Zemin, ao assumir o
primeiro posto. Segundo relatos de imprensa, um escritório foi instalado para
Hu no edifício central do ELP e um oficial de ligação de alta-patente foi
designado para servi-lo. Hu participa de reuniões-chaves do estabelecimento
militar, inspeciona regiões e é mantido regularmente informado dos principais
desenvolvimentos. Tendo sido já confirmado como Secretário-Geral do partido e
Presidente da República, não parece haver dúvida de que Hu Jintao assumirá, no
devido tempo, a chefia da CMC.
Examinando como funcionou a Terceira e vai-se estruturando a Quarta, vêem-se as
gerações políticas, na China, com uma face pública que é o Comitê Permanente do
Bureau Político. Nele está contido o núcleo da geração, ou seja, o Secretário-
Geral do partido e Presidente efetivo ou potencial da Comissão Militar Central.
Cada membro do CP é responsável por instituição como a ANP ou algum setor da
vida político-econômica, à frente de rede de aliados e comandados tecida ao
longo das respectivas carreiras. Por trás, portanto, da face visível da geração
há algumas dezenas de quadros de segundo e terceiro escalões, acumulando pontos
no CC ou no BP, na esperança de chegar ao CP. A triagem para tal ascensão
processa-se segundo o modelo das "duas linhas", tão brilhantemente seguido por
Hu Jintao. É processo lento, tornando-se possível identificar com antecedência
os prováveis vitoriosos na corrida para o CP. Em artigo publicado no número de
janeiro de 2001 da revista australiana The China Journal, o professor taiwanês
Parris H. Chang deu belo exemplo disso, fornecendo com precisão os nomes dos
seis dirigentes que deveriam asceder ao CP no XVI Congresso, em torno do
inamovível Hu Jintao. Só faltaram os dois dirigentes que tiveram de ser
buscados à última hora para preencher as vagas resultantes da ampliação do CP
para nove membros. É interessante verificar que a equipe eleita em novembro de
2002 só inclui um membro mais novo (um ano de diferença) do que Hu Jintao, ou
seja, o atual CP não inclui dirigente habilitado a reivindicar a condição de
núcleo da Quinta Geração, quando chegar a hora de empossá-la, dentro de dez
anos em princípio. O assunto terá de ser dirimido, presumivelmente, no XVII
Congresso, em 2007.
A esse propósito, cabe também notar que a composição de novo CP é,
majoritariamente (seis em nove), de aliados de Jiang Zemin. Há um membro ligado
ao setor de segurança, que foi patrocinado pelo cessante Li Peng, e outro que
era o vice de Zhu Rongji e já o sucedeu como Primeiro Ministro. Hu Jintao
manteve sua posição, mas aparentemente não trouxe ninguém de seu para o CP.
Isso reforça a tese de que o período até o XVII Congresso será tomado por um
jogo de cristas, no qual Hu Jintao procurará afirmar sua autoridade e projetá-
la na definição da Quinta Geração. Companheiro de CP que parece afinar-se com
Hu é o Primeiro Ministro, Wen Jiabao. Wen foi um dos preteridos por Hu, na já
citada lista tríplice submetida a Deng Xiaoping em 1992, para ingresso no CP.
Continuou, porém, sua ascensão, tendo tido Song Ping como seu principal
padrinho político. Assessorou de perto Zhao Ziyang, mas escapou às punições
partidárias que caíram sobre esse ex-Secretário-Geral, em função dos trágicos
acontecimentos de Tiananmen. Geólogo de formação, Wen Jiabao teve uma longa
trajetória por zonas rurais, mas chefiou também, durante sete anos, o
Escritório de Assuntos Gerais do PCC, encarregado de preparar a agenda das
reuniões partidárias e proceder à distribuição interna de documentos. Ganhou
fama como perito em agricultura e meio-ambiente, tendo sido chamado por Zhu
Rongji, em 1998, para um dos postos de Vice-Primeiro Ministro, responsável pela
modernização da agricultura e a reforma financeira. Sob sua direção,
importantes passos foram dados no sentido da criação de uma infra-estrutura
financeira mais sólida, na China, mas seu melhor desempenho foi no setor da
economia rural, em particular na concessão de maiores direitos aos camponeses
sobre as terras que cultivam. A expectativa é que Hu e Wen levem o partido a
dar maior peso às lideranças rurais e façam avançar a democracia no campo,
reforçando por exemplo as eleições no nível de aldeias e municípios12.
Apesar das medidas regulamentadoras introduzidas nos anos 1990, as relações
políticas na cúpula do regime chinês ainda se equacionam em termos de homens,
mais do que princípios. Mas como os líderes já não podem invocar serviços como
na fase heróica da Revolução, suas posições de liderança tendem a apoiar-se
cada vez mais numa legalidade institucional, construída sobre consensos e
compromissos no plano da elite partidária. No mesmo passo, cuidam os dirigentes
de legitimar a hegemonia do PCC, fazendo valer sua condição de promotor e
garantia do robustecimento da economia nacional e conseqüente melhoria da vida
material da população. Isso caminhará por etapas, num encadeamento de gerações,
cada uma delas levando até certo ponto o processo de adequação do regime às
cambiantes realidades do país e do mundo. Jiang Zemin captou bem o pensamento
de Deng Xiaoping a esse respeito, assim também quanto ao dever dos núcleos de
geração de assegurarem a compatibilidade organizacional do partido com os
ajustamentos característicos de cada etapa. Sob impulsão de Jiang, o aparelho
administrativo central foi consideravelmente descentralizado, no partido e no
governo. No tocante ao pessoal, estimularam-se a criação de carreiras de Estado
e o aperfeiçoamento (mais jovens, mais educados e mais profissionais) dos
quadros e funcionários. Passos largos foram dados na profissionalização das
Forças Armadas.
No XV Congresso (1997), com a aposentadoria de Qiao Shi e a transferência para
a chefia do Legislativo de Li Peng, Zhu Rongji assumiu as funções de Primeiro
Ministro. Ele tinha trabalhado com Jiang Zemin em Xangai, onde tinham aprendido
a respeitar-se mutuamente. Zhu não podia, contudo, ser considerado membro da
"máfia de Xangai", obediente a Jiang; seu círculo de apoio é a rede de
tecnocratas da Universidade Qinghua, onde ele é decano de uma Faculdade. De
todo modo, Jiang Zemin e Zhu Rongji tornaram-se no final dos anos 1990 as
figuras-chaves da Terceira Geração, atuando em tandem no ajustamento da China
às exigências de um mundo que se globalizava.
Em maio de 1997, como preparação para o XV Congresso, Jiang desenvolveu na
Escola Central do PCC uma argumentação cerrada em prol da ampliação do setor
privado na economia chinesa. Em julho, Zhu efetuou circuito de doze dias pelo
Cinturão Industrial do Nordeste, trocando em miúdo as teses de Jiang para os
diretores das encalacradas empresas estatais. Na seqüência, o Congresso de
setembro redefiniria os limites da propriedade do Estado na China, de maneira a
incluir na economia socialista as sociedades por ação e as associações do
Estado com investidores privados13. Em março seguinte, ao tomar posse como
Primeiro Ministro, Zhu Rongji submeteu à ANP um abrangente e ousado programa de
reforma das estatais e de reformulação das relações com investidores
estrangeiros. Propugnou também pelo ingresso da China na OMC. Era um programa
que só poderia ser bem sucedido se as medidas propostas fossem promovidas
entrelaçadamente, com a reforma das estatais servindo de fulcro. E Zhu achava
que a pressão estrangeira pelo ingresso da China na OMC haveria de reduzir as
resistências domésticas à reforma das estatais.
A implementação do programa de Zhu enfrentou resistências bem maiores do que
ele esperava, dando margem inclusive a manifestações de operários e camponeses
contra o aumento do desemprego. As perspectivas pareciam melhores no plano
externo, com os sinais recebidos do Presidente americano, de boa disposição
para com a entrada da China na OMC. Em abril de 1999, Zhu viajou a Washington
levando uma generosa concordância da China com as regras da OMC, por cuja
aprovação ele e Jiang tinham tido de lutar, numa reunião do BP. Bill Clinton
voltou atrás, no entanto, quando Zhu se apresentou em Washington. De volta a
casa, Zhu teve de enfrentar meses difíceis, só perseverando no cargo graças ao
apoio recebido de Jiang Zemin. Ele retomou a busca de um acordo com os Estados
Unidos na questão da OMC, trabalhando agora junto a corporações americanas com
seu fascínio pelo mercado chinês. Em começos de novembro de 1999, a
Representante para o Comércio, Charlene Barshevsky, viajou a Pequim e, no dia
15 desse mês, foi assinado o acordo sino-americano que abriu à China as portas
da OMC14.
Vitoriosos na questão da OMC, Jiang e Zhu puderam lançar-se a uma verdadeira
releitura do legado teórico de Deng Xiaoping. Em fevereiro de 2000, num
discurso em Cantão, Jiang delineou algumas idéias para a reatualização do PCC
na perspectiva do século XXI e da globalização. Um passo adiante era dado no
tocante à formulação de Deng, que incluíra os intelectuais na classe operária,
acentuando não deixarem eles de ser trabalhadores pelo fato de trabalharem com
a inteligência. Jiang rompia agora com a primordialidade da classe operária,
identificando o partido com todos os elementos mais progressistas da sociedade.
As teses de Jiang Zemin foram rotuladas de "As Três Representações" e teóricos
do partido foram chamados para dar maior consistência a elas. Hu Jintao teve
participação ativa na consolidação e difusão do pensamento de Jiang Zemin, e o
próprio Jiang desdobrou suas idéias num importante discurso (01.07.01)
comemorativo dos 80 anos da fundação do PCC. Esse discurso tornou-se conhecido
como "o discurso de 1º de julho de Jiang", numa referência ao histórico
discurso pronunciado por Deng Xiaoping na mesma efeméride, dez anos antes.
Todo esse esforço de reelaboração teórica, no quadro do qual Jiang Zemin chegou
a contestar algumas noções da teoria marxista do valor, a pedra-angular das
economias comunistas, afluiu para o XVI Congresso (2002), quando se procedeu à
revisão da Carta do PCC. Enquanto a Carta anterior estatuía no Preâmbulo: "O
Partido Comunista Chinês é a vanguarda da classe operária chinesa; o
representante leal dos interesses de todas as nacionalidades da China; e a
liderança central da empresa socialista na China", a nova versão do mesmo
parágrafo passou a afirmar que o PCC "representa as exigências de
desenvolvimento das forças avançadas de produção; a direção progressista da
cultura de ponta da China; e os interesses fundamentais da vasta maioria do
povo chinês". Estavam consagradas as "Três Representações".
A nova abordagem já se expressou na abertura a empresários da filiação ao PCC.
Numa reunião plenária em outubro de 2000, o CC já decidira reforçar o peso do
setor privado na economia, substituindo por "apoiar e guiar" o compromisso do
Estado com esse setor, que na redação aprovada no XV Congresso (1997) limitava-
se a "permitir e encorajar". A nova fórmula prenunciava o desmantelamento,
antes mesmo de ter sido completada a reforma das empresas estatais, de
barreiras políticas à ação dos homens de negócios. Manifestava-se, aí, uma
importante característica do gradualismo com que os dirigentes chineses
implementam seu programa de reformas. Eles não se limitam a agir pausadamente.
Vão também introduzindo elementos inovadores, num sistema em que seguem fortes
velhos elementos. Robustecer o setor privado é visto, no caso, como mais
importante do que demorar-se na reforma das estatais. Usa-se o avançado para
suplantar o atrasado15.
Quando afinal se reuniu o XVI Congresso, em novembro de 200216, um grupo de
empresários de relevo foi incluído entre os mais de dois mil delegados. No
discurso inaugural, Jiang Zemin anunciou que o partido pretende dar às
companhias privadas condições de funcionamento equivalentes às das estatais,
embora devam estas continuar a desempenhar o papel dominante na economia, como
de esperar numa economia de cunho socialista. Os dirigentes chineses insistem
em que estão construindo um socialismo de mercado, ou seja, uma economia de
mercado administrada não por capitalistas e sim pelo partido comunista. Mas
dão-se conta, realisticamente, de que o fortalecimento do setor privado começa
a ser fundamental para a própria continuidade do controle do PCC sobre a
inquietação social. Uma reportagem do Financial Times (06.11.02) revelou, por
exemplo, que cerca de metade das novas oportunidades de emprego, naquela época,
estavam sendo proporcionadas pelo setor privado, o qual entrava igualmente com
parte significativa da arrecadação fiscal do país.
Em 2003, então, a Quarta Geração assumiu a governança da China17. Na sua face
visível alinham-se nove engenheiros, todos civis. Todos com longo traquejo dos
caminhos do partido e folhas-de-serviço repletas de tarefas bem cumpridas, nos
mais variados setores da vida político-econômica do país. Não foram escolhidos
aleatoriamente e, embora sem passar por algum tipo de votação popular, chegaram
aonde estão através de sucessivos credenciamentos por seus pares: ser feito
delegado a um Congresso do PCC; sair eleito para o CC; após algum tempo, ser
eleito para o grupo seleto do BP; galgar finalmente ao CP. No caminho, vencer
uns tantos obstáculos estatutários, como a obrigação de cursar a Escola Central
do Partido. Evidentemente, como em qualquer outro país do mundo, relações de
parentesco ou de clientelismo facilitarão alguns desses acessos, mas o critério
do merecimento predomina nas promoções. Não são raros os casos de alto
dirigente que enfrenta dificuldades para promover algum assessor seu.
Por trás da face visível da geração alinham-se as redes de influência, no
âmbito do BP e do CC, de cada um dos membros do CP. E para lá do partido,
cresce desde o início dos anos 1990 uma multidão de representantes de novos
setores da elite chinesa, frutos do próprio avanço da modernização e abertura
da China. São profissionais liberais, intelectuais de vários tipos, artistas e
empresários. Focalizei mais acima os cientistas e engenheiros reunidos na ACC e
na ACE, que inclusive já conquistaram assentos no CC. Vale também citar uma
reportagem de Business Week (05.06.95), dedicada ao que a revista chamou a
"classe de 77". Legiões de homens e mulheres, atualmente na faixa dos quarenta
anos de idade, e que foram os mais bem sucedidos dos doze milhões de jovens que
em 1977/78, com o término da Revolução Cultural, puderam matricular-se nas
melhores universidades chinesas. Eram jovens sedentos de saber, ansiosos por
coroar com a teoria as ricas lições práticas que haviam recebido em anos de
degredo, trabalhando na base da pirâmide social. Muitos deles foram depois
aperfeiçoar-se no Ocidente, e hoje estão no topo dos setores de ponta do país.
Precisamente o tipo de pessoas que o PCC procura abarcar sob a fórmula das
"Três Representações", de Jiang Zemin.
A "classe 77" faz papel de paradigma. Muitas outras classes se formaram no meio
tempo nas grandes universidades chinesas e vieram adensar a camada de moços e
moças que, juntamente com jovens empresários chegados por outros caminhos,
mantêm a China entrosada com a sociedade global do conhecimento. Uma pesquisa
publicada em três números da Far Eastern Economic Review, no mês de dezembro de
2002, fornece visão estatística de parcela expressiva dessa juventude: os com
menos de trinta e cinco anos nas cidades de Xangai, Pequim e Cantão, principais
centros comerciais do país. Mais da metade deles é fluente em inglês; 80% se
declaram proficientes no uso de computadores e da internet; quase 100% possuem
telefone celular e mais de 80% usam cartões de crédito. O estado de espírito
desses jovens é de otimismo com relação ao destino da China e de confiança no
próprio futuro. Vêem com bons olhos o ingresso do país na OMC. Mantêm-se em dia
com o progresso da aparelhagem tecnológica que utilizam; e dão preferência de
modo geral aos eletroeletrônicos da produção nacional. A Legend, fabricante de
computadores vendidos com sucesso no exterior, controla parcela substancial do
mercado doméstico.
O Professor Joseph Fewsmith, da Universidade de Boston, é possivelmente o mais
dedicado analista do crescimento e diversificação dos interesses societais na
China pós-Deng Xiaoping. Em vários estudos sobre o assunto, Fewsmith coloca o
comportamento da Terceira Geração, nos anos 1990, na perspectiva do esforço
secular da elite chinesa por "modernizar" a China sem sacrificar a
especificidade chinesa. Sob a liderança de Jiang Zemin, a Terceira Geração
avançou com muita cautela na reforma política, pondo ênfase na separação entre
a economia e o governo. Nesse sentido foram as medidas aprovadas no XV
Congresso do PCC (1997) e a decisão de buscar o ingresso na OMC. Os anos 1990
foram marcados por vários debates intelectuais, com os integrantes da "classe
de 77" e seguintes, esquadrinhando as conseqüências do colapso da União
Soviética, a marcha da globalização, a profissionalização e internacionalização
dos intelectuais, etc. Fewsmith acompanha esses vários debates, chegando à
surpreendente conclusão de que os dirigentes chineses vêm-se mostrando mais
"liberais" do que a maior parte da intelectualidade do país. O comportamento
dos intelectuais chineses em episódios como o do bombardeamento da Embaixada da
China em Belgrado ou o do avião espião americano forçado a descer na Ilha de
Hainan revela, na verdade, um repúdio ao cosmopolitismo, em favor de um
nacionalismo pragmático, que se expressa em termos de patriotismo. A juventude
se identifica aí com a promoção, pelos dirigentes posteriores a Deng Xiaoping,
de um nacionalismo despojado de idéias abstratas, que inclusive rompeu com a
doutrina leninista do combate de classes ao Imperialismo. Nação e Estado se
confundem, sob a direção do PCC, que é o condutor do projeto magno de
integração da China com tudo que possa haver de mais avançado no globo em
matéria de ciência e tecnologia, graças ao livre intercâmbio comercial e
cultural com todos os países do mundo. Cuidado sempre tido de manter vivas as
"características chinesas", a maior das quais resulta ser a adesão inarredável
à soberania nacional18.
Outro autor a tomar em consideração é Manuel Castells, que na sua trilogia
sobre a moderna sociedade em rede oferece análise abalizada da problemática
chinesa, atualizada até o final de 1998. Castells rejeita a opinião dos que
subordinam o desenvolvimento futuro da China à emergência, ali, da democracia,
e vêem o poder do PCC fadado a desmoronar, à medida que crescerem as novas
classes urbanas e surgir uma sociedade civil mais robusta. Castells afirma que
as informações por ele mesmo levantadas na China não embasam tal expectativa.
Considera remotas as possibilidades de expansão de uma sociedade civil autônoma
e de consolidação da democracia, enquanto o PCC preservar sua unidade e o
Estado chinês mostrar-se eficiente na administração dos conflitos entre as
diferentes esferas do governo e entre as diferentes províncias, com o ELP
servindo de fiel a tudo isso.
Na abertura do novo milênio - continua Castells -, a China terá sem dúvida de
enfrentar uma série de problemas difíceis, nenhum deles relacionado com a
democracia, de cuja boa solução dependerá o futuro do país. Castells organiza
esses problemas sob quatro títulos, a saber: (1) o êxodo rural maciço provocado
pela modernização e privatização da agricultura; (2) tensões criadas entre as
províncias pelo desenvolvimento desigual das mesmas e a liberdade que lhes deu
o governo central de se associarem individualmente com a economia
internacional; (3) continuar a desenvolver a economia sem provocar o
descontrole do desemprego e o desmantelamento do sistema de segurança; e (4)
solidificar a base tecnológica apenas incipiente, a fim de integrar a China na
Sociedade do Conhecimento19.
Enfrentar os desafios cobertos por essa agenda, num país de nove milhões e meio
de quilômetros quadrados com um quinto da população do globo, meteria medo a
governantes menos preparados para a tarefa do que os nove homens do comitê de
frente da Quarta Geração. Mas além do preparo, o modelo das gerações dá a eles
a vantagem de só precisarem, na primeira década do século, lançar os alicerces
da economia continental chinesa. Três outras gerações vão ter ainda de ser
chamadas até a consolidação, entre 2030 e 2040, de economia com um PIB
equivalente ao dos Estados Unidos de hoje. E só lá para meados do século é
possível esperar a concretização do postulado "socialismo de mercado". A
montagem da infra-estrutura para tudo isso foi iniciada pela Terceira Geração.
Em 1993, inspirando-se no modelo americano das Superestradas da Informação, o
governo chinês da época instituiu a Infra-estrutura Nacional da Informação para
promover as telecomunicações, as tecnologias da informação e a indústria do
entretenimento. Grandes passos foram dados nessas diversas frentes,
exemplificados pelos cento e vinte milhões de usuários da internet previstos
para 2004. Vieram também crescendo as malhas rodoviária e ferroviária. A China
entrou no século XXI com mais de trinta mil quilômetros de boas estradas de
rodagem e outros tantos já programados, de maneira a atingir, na altura de
2020, uma rede rodoviária só superada pela dos Estados Unidos. No setor
ferroviário, planeja-se acrescentar até o final da década sete mil quilômetros
de trilhos aos já existentes sessenta e oito mil quilômetros. As estradas-de-
ferro foram uma das áreas mais protegidas sob a economia centralmente
planificada. Agora, com o ingresso da China na OMC, foi o setor aberto aos
capitais estrangeiros: a partir de 2002, investidores de fora puderam
participar, minoritariamente, de empresas locais de frete; em 2004 poderão
tomar participações majoritárias; e em 2006 serão levantadas todas as
restrições ao capital estrangeiro no setor de cargas, continuando fechados os
serviços de passageiros.
Em 2001, já nas preliminares para o XVI Congresso do PCC, em 2002, foi lançado
o X Plano Qüinqüenal cobrindo ampla gama de objetivos, coincidentes, grosso
modo, com os problemas alinhados por Castells. O cerne do plano é a Estratégia
para o Desenvolvimento da Região Ocidental da China, uma verdadeira conclamação
à "Marcha para o Oeste". Dois projetos básicos dessa integração continental da
economia chinesa já estão tomando corpo. O primeiro é o gigantesco complexo
hidroelétrico das Três Gargantas, no Iang Tse, que já começou a produzir
eletricidade em meados de 2003. O segundo é a transformação da decrépita e
poluída Chungqing na "Chicago da China". Uma área três vezes maior do que a
Bélgica, no curso médio do Iang Tse, foi elevada a Municipalidade Autônoma de
Chungqing (à semelhança de Pequim, Xangai e Tianjin) e a um custo de 20 bilhões
de dólares por ano, durante dez anos, procurará repetir o papel de Chicago na
continentalização da economia dos Estados Unidos no século XIX: entroncamento
ferroviário de alcance nacional e centro redistribuidor da produção agrícola do
Grande Oeste. Para coordenar toda a estratégia de desenvolvimento dessa ampla
região foi criado, em 2001, um poderoso comitê de vinte altas autoridades sob a
presidência do Primeiro Ministro Zhu Rongji e o Vice-Primeiro Ministro Wen
Jiabao de sub-chefe. Wen Jiabao tornou-se agora o responsável máximo pela
estratégia de desenvolvimento das regiões ocidentais e, confirmando sua
reputação de homem de grande visão nas questões ambientais, passou a defender
um ritmo mais lento de desenvolvimento, prestando atenção ao controle da
poluição do ar e da água.
Não tem, por exemplo, demonstrado entusiasmo com o faraônico projeto do governo
anterior de transferir água do Iang Tse para três outros rios mais ao norte.
Esse projeto se prende à questão crucial de que terá de ocupar-se a Quarta
Geração: o suprimento de água tratada para uma população em vias de urbanizar-
se aceleradamente. As estimativas oficiais prevêem duzentos e quarenta milhões
de pessoas movendo-se do campo para as cidades, nos próximos vinte anos. A
pressão daí resultante e os compromissos já assumidos com a OMC estão forçando
o governo a suspender restrições à entrada de firmas estrangeiras no serviço
público da água. Em julho de 2003, pela primeira vez na China, uma
administração municipal na província de Jiangsu abriu licitação internacional
para participação de 70%, durante cinqüenta anos, no tratamento e fornecimento
de água para o município.
Wen Jiabao mostrou logo ao que viera, quando seu governo apenas empossado
precisou fazer frente à irrupção, que poderia ter sido devastadora, da síndrome
respiratória aguda grave (SARS, na sigla inglesa). Usando com rapidez e
destemor os recursos de autoritarismo do regime chinês, mas demonstrando a
capacidade de enfrentar positivamente os impedimentos políticos e burocráticos
responsáveis pela opacidade e ineficiência da reação governamental a situações
como a da SARS, Wen Jiabao pôde conter os estragos a ponto de cair sobre a
economia chinesa, introduzindo no mesmo passo medidas de aperfeiçoamento do
sistema de saúde do país e de adequação das regras internas à prática
internacional. A 29 de abril de 2003, Wen efetuou sua primeira viagem ao
exterior como Primeiro Ministro, indo reunir-se em Bangcoc com os dez Chefes de
Estado e Governo da ANSEA (Associação das Nações do Sudeste Asiático). Medidas
concretas para defender a sub-região contra a SARS foram adotadas por
unanimidade nessa reunião, que marcou também o aprofundamento do trabalho da
China com seus vizinhos sulistas. Em conseqüência, já foi anunciado que a China
vai assinar, até o fim de 2003, o Tratado de Amizade e Cooperação que criou a
ANSEA, em 1976. O tratado é aberto à adesão de países não exatamente do Sudeste
Asiático, havendo sido assinado pela Papuásia-Nova Guiné, em 1989.
Em novembro de 2002, numa outra reunião da ANSEA, dessa vez na capital do
Camboja, o Primeiro Ministro Zhu Rongji deu impulso à constituição de uma área
de livre comércio entre a China e os países do Sudeste Asiático, prevista para
começar a funcionar em 2010. Paralelamente, vinha a China se firmando como o
sustentáculo da crescente convergência entre as economias do Nordeste Asiático,
conforme reconhecido num Livro Branco sobre comércio internacional, publicado
pelo governo japonês em junho de 2002. A China substituía o Japão como o novo
dínamo de toda a Ásia Oriental, com quase 40% do PIB da região. Essa
centralidade da economia chinesa foi consagrada pela VIII Conferência
Internacional sobre o Futuro da Ásia (Tóquio, maio de 2002). Doze países da
Ásia-Pacífico debateram ali o tema: "A Emergência da China e o Quadro Regional
em Transformação".
O dinamismo da economia chinesa começa a projetar-se sobre toda a Ásia. Em
2000, Pequim aderiu a um pacto pouco conhecido, o Acordo de Bangcoc, concluído
em 1975 sob os auspícios da Comissão Econômica e Social para a Ásia, das Nações
Unidas. Membros fundadores foram Índia, Coréia do Sul, Bangladesh, Sri Lanka e
Laos, e o propósito era expandir o comércio entre os signatários através de
reduções preferenciais de tarifas. A China interessou-se pelo pacto em função
do seu ingresso na OMC, passando a trabalhar pela ampliação dos objetivos
colimados. Resultado concreto dessa movimentação foi o acordo China-Índia de
fevereiro de 2003, estabelecendo reduções tarifárias para cerca de duzentos
itens, em favor da Índia na maior parte. Acesso favorecido ao mercado chinês
foi também estendido a firmas indianas, numa estratégia que pretende partilhar
as conquistas do desenvolvimento chinês com os países em desenvolvimento do
continente.
Desde o início das reformas de Deng Xiaoping, a modernização social e econômica
da China tem sido conduzida passo a passo com a abertura do país ao mercado
internacional. A busca de investimentos estrangeiros, o gradual aperfeiçoamento
dos sistemas financeiro e bancário, a maior transparência da ação do Estado, o
ingresso na OMC foram todas medidas com vistas à integração da economia
continental em construção, no mundo globalizado do século XXI. Que isso vem
sendo conseguido fica evidente pelo crescimento dos investimentos estrangeiros:
mais de 50 bilhões de dólares em 2002, e pela explosão das exportações. Entre
1985 e 2001, as exportações chinesas se multiplicaram por dez, alcançando 266
bilhões de dólares e permitindo o acúmulo de 300 bilhões de dólares de reservas
cambiais. No tocante às exportações, é importante notar a grande diversificação
ocorrida, em favor de produtos de alto valor agregado. Itens agrícolas e
siderúrgicos, que em 1985 ainda representavam 49% das exportações chinesas,
estão hoje reduzidos a 12% das mesmas. O aprimoramento da pauta exportadora da
China é fruto, sobretudo, da intensa e extensa interação da economia chinesa
com as redes produtivas globais, num processo mediado pela diáspora chinesa. A
China é hoje a quarta economia industrial do mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos, Japão e Alemanha, mas é também a maior base produtiva de manufaturas do
globo. A ação coordenada do governo e empresários chineses, a ser agora
continuada pela Quarta Geração, veio montando na China um ambiente
manufatureiro de primeira linha, apto a fazer do país um dos beneficiários da
globalização.
Agosto de 2003
1 Dentre os cientistas sociais que se têm ocupado do problema da geração como
categoria política de elite, destacarei Emile Durkheim e Karl Mannheim. Este
último, em particular, tem conceitos muito úteis para a análise teórica do caso
chinês. Cf. a respeito o artigo do Prof. Li Cheng, do Hamilton College de Nova
York: "Jiang Zemin's Successors: The Rise of the Fourth Generation of Leaders
in the PCC" (The China Quarterly, n. 161, March 2000), que foi o texto à minha
disposição mais próximo da leitura por mim feita do modelo da geração, como
sistema de gerenciamento dos avanços da China por muitas décadas futuras.
2 A análise das relações políticas entre os dirigentes chineses tem tomado
vulto, como subárea da disciplina Estudo da China Contemporânea. Há uma grande
safra de livros e artigos acadêmicos voltados para o assunto, mas por motivos
de ordem prática eu me limitei a três revistas especializadas: The China
Quarterly, Asian Survey e The China Journal, além do noticiário da imprensa
periódica e da contínua análise jornalística de The Far Eastern Economic
ReviewFEER, de Hong Kong. The China Journal (anteriormente The Australian
Journal of Chinese Affairs), órgão do Centro da China contemporânea da
Universidade Nacional da Austrália, dedicou dois números (34, julho de 1995, e
45, janeiro de 2001) a um debate entre grandes nomes da sinologia sobre a
evolução da política de elite na China. Os textos correspondentes muito me
ajudaram a entender o modelo chinês da geração.
3 Para a ascensão dos tecnocratas, cf: Xiaowei Zang, "The Fourteenth Central
Committee of the CCP: Technocracy or Political Technocracy?", in Asian Survey,
vol XXXVIII/3, March 1998.
4 Li Cheng e Lynn White, "The Army in the Succession to Deng Xiaoping", in
Asian Survey, vol XXXIII/8, Aug. 1993.
5 Cf. Li Cheng, "University Networks and the Rise of Qinghua Graduates in
China's Leadership", in The Australian Journal of Chinese Affairs, n. 32 July
1994.
6 Cong Cao e Richard P. Suttmeier, "China's Brain Bank Leadership and Elitism
in Chinese Science and Engineering", in Asian Survey, vol XXXIX/3, May/June
1999, p. 525. Suttmeier acompanha as atividades científicas na
China desde a época da Mao Zedong, sendo possível encontrar textos seus em The
China Quarterly e Asian Survey da década dos 1970. É dele um dos primeiros
estudos sobre o assunto após o deslanchamento das reformas modernizadoras de
Deng Xiaoping: "Reform, Modernization, and the Changing Constitution of Science
in China", in Asian Survey, vol XXXIX/10, Oct. 1989. Foi
chamado para escrever um dos capítulos da seção C&T, na coletânea "China's
Economic Dilemmas in the 1900s", organizada pelo Joint Economic Committee do
Congresso dos Estados Unidos, em 1993.
7 Para a trajetória partidária de Jiang Zemin e sua história pessoal v. no n.
45 de The China Journal (jan. 2001), os artigos: Lowell Dittmer, "The Changing
Nature of Elite Power Politics"; Frederick C. Teiwes, "Normal
Politics with Chinese Characteristics"; David Shambaugh, "The
Dynamics of Elite Politics During the Jiang Era".
8 Jeremy Paltiel, "Jiang Talks Politics Who Listens? Institutionalization and
Its Limits in Market Leninism", in The China Journal, n. 45 (Jan. 2001), fornece boas indicações sobre como Deng Xiaoping visualizava o
papel das gerações e seu respectivo núcleo na legitimação continuada do PCC.
9 Para as trajetórias pessoal e profissional de Hu Jintao, cf.: You Ji, "The
Heir Apparent", in The China Journal, n 48 (Jul. 2002); Richard Daniel Ewing, "Hu Jintao. The Making of a Chinese General
Secretary", in The China Quarterly, n. 173 (March. 2003).
10 Sobre Zeng Qinghong, v. Susan V. Lawrence, "Make Room at the Top", in FEER
(18.04.02).
11 V. You Ji, "Jiang Zemins' Command of the Military", in The China Journal, n.
45 (Jan. 2001).
12 Susan V. Lawrence, "Wen Jiabao Is No New Zhu", FEER (14.03.02).
13 Sobre o ambiente político do XV Congresso e as modificações econômicas e de
pessoal nele aprovadas, v. Richard Baum, "The Fifteenth National Party
Congress": Jiang Takes Command, in The China Quarterly, n. 153 (1998).
14 Para uma análise abrangente e bem informada do programa de Zhu Rongji v.
David Zweig, "China's Stalled Fifth Wave: Zhu Rongji's Reform Package of 1998-
2000", in Asian Survey, XLI/2 (March/April 2002; também Xiaobo
Hu, "The State, Enterprises, and Soiety in Post-Deng china", in Asian Survey,
XL/4 (July/Aug. 2000). Sobre a novela do ingresso da China na
OMC, desde o tempo do GATT, v. matéria especial de The Economist (20.11.99);
também Susan V. Lawrence, "Jiang's Two Faces", in FEER (02.12.95).
15 Para o fundo de cena da preparação do XVI Congresso (2002); do lançamento
das "Três Representações"; e da aceitaçÃo de empresários no PCC, v: Susan V.
Lawrence, "Three Cheers for the Party", FEER (26.10.00); Bruce
Gilley, "Jiang's Turn Temptf Fate", FEER (30.08.01); Sesan V.
Lawrence, "Jiang Ensures Party Endures", FEER (21.11.02); James Kynge, "It Is a Glorious Thing to Join the Party", Financial
Times (06.11.02).
16 Para uma abrangente análise do XVI Congresso, v. Joseph Fewsmith, "The
Sixteenth National Party Congress: The Succession That Didn't Happen", in The
China Quarterly, n. 173 (March 2003)
17 V. Andrew J. Nathan e Bruce Gilley, "Os Novos Dirigentes da China" in
Política Externa (São Paulo: Paz & Terra) 11/4 (março-abril-maio 2003).
18 A referência, aqui, é ao livro China Since Tiananmen: The Politics of
Transition. New York: Cambridge University Press, 2001. Fewswith tem vários
outros livros sobre o tema e um importante artigo: "The New Shape of Elite
Politics", in The China Journal, n. 45 (Jan. 2001).
19 Manuel Castells, A Era da Informação. Vol 3, Fim de Milênio. São Paulo: Paz
& Terra, 1999, p. 348-373.