A busca de um novo paradigma: política exterior, comércio externo e federalismo
no Brasil
Introdução
Apesar da sua juventude como experimento político dos últimos dois séculos, o
federalismo ' entendido como uma forma entre outras de estruturação da ordem
política geograficamente distribuída ' é tema que vem ganhando densidade
crescente no estudo das relações internacionais. Muito já se disse sobre o
federalismo no Brasil e no mundo, mas recente e parco é o adensamento
bibliográfico sobre a conexão extraordinária ' que abre avenidas para o
desenvolvimento das políticas exteriores dos Estados ' entre os níveis
distintos da autoridade política no interior de tais Estados e o meio
internacional, de forma comparada.
Na literatura política moderna, o federalismo está associado à idéia de
construção da unidade na variedade. A imagem do equilíbrio perfeito no seio da
experiência republicana ocidental vem fazendo uso das vantagens do sistema
federalista. Há os apaixonados pelo federalismo como há os que dele se afastam.
O objetivo do presente estudo é, portanto, contribuir para o entendimento das
conexões entre a dimensão federativa do Estado brasileiro e as relações
internacionais do Brasil, com ênfase especial à política de comércio exterior.
Embora política exterior e política de comércio exterior não sejam
necessariamente equivalentes, uma não subsiste sem a outra, como demonstra a
experiência histórica da América Latina.1
Na primeira parte do estudo, trata-se de propor a renovação dos marcos
analíticos e paradigmáticos para o estudo do federalismo brasileiro no campo
atinente às relações internacionais e comerciais do país. Na segunda parte,
avaliam-se algumas das negociações comerciais em curso e prioritárias para o
Brasil. Na terceira parte, avalia-se o peso relativo das secretarias e agentes
subnacionais, em diferentes estados da federação, em sua ação externa no campo
do comércio exterior. Ênfase é conferida à experiência do Estado do Ceará, uma
das unidades subnacionais mais ativas no incremento de relações comerciais
externas, apesar de sua relativamente modesta histórica contribuição à pauta
exportadora do Brasil. Nas conclusões faz-se o balanço e sugerem-se alguns
conceitos e políticas para o aperfeiçoamento dessa dimensão federativa da
política de comércio exterior do Brasil.
Renovando os marcos analíticos do estudo do federalismo brasileiro no campo
atinente às relações internacionais e comerciais
Há que se fazer ressaltar a necessidade de uma profunda revisão dos paradigmas
que orientam as relações internacionais dos estados federativos. Esse movimento
vem acontecendo, em escala diferenciada, em todo o mundo e expressa a elevação
gradual de status quo dos entes federativos ou das unidades subnacionais no
processo de gestação das relações internacionais do mundo contemporâneo.
No caso brasileiro, a chamada paradiplomacia dos entes federativos vem
demonstrando vigor excepcional nos últimos anos, sinalizando fenômeno original
na conformação do processo decisório da política exterior e comercial do país.
Inédita é a introdução de um certo "federalismo social", em torno do qual a
autoridade política descentralizada atua mais próxima às realidades e
interesses socialmente constituídos. Essa nova dimensão, que emerge na base das
transformações que ocorrem nos planos mais locais da vida federativa, vem
impregnando positivamente a gestão do estado.
A percepção acima descrita não quer dizer, de forma automática, que o
federalismo brasileiro tenha avançado de forma célere nos últimos anos. Ao
contrário, o Brasil é um exemplo extraordinário de descompasso entre os
aspectos formais e reais, no que tange à dimensão da ação externa dos entes
federativos. Há quase um abismo entre palavras e gestos.
A criação, no Ministério das Relações Exteriores, apenas em 1997, de uma
divisão específica para tratar dos interesses e assuntos federativos, expõe o
quanto o assunto chegou tarde à chancelaria. A então Assessoria de Relações
Federativas não chegou a possuir status elevado no processo decisório do
Itamaraty, até sua fusão mais recente com os assuntos parlamentares em outra
assessoria criada mais recentemente: a Assessoria Especial de Assuntos
Federativos e Parlamentares.2 Nomeou-se, para a Embaixada do Brasil em Buenos
Aires, em 2004, um diplomata para cuidar das articulações federativas do Brasil
naquele país.
A instalação, nos primeiros meses do governo Lula, de uma Subchefia de Assuntos
Federativos na própria Presidência da República, vem permitindo engendrar
movimentos políticos inéditos. Seu titular, Vicente Trevas, já conseguiu
alcançar um lugar mais visível na articulação e no gerenciamento de projetos
cooperativos na área internacional, como nos casos de interlocução de
prefeituras de cidades paulistas com cidades italianas da Planície do Pó. Uma
outra iniciativa da subchefia vem sendo o esforço da aproximação desse novo
lugar estratégico, próximo ao presidente da República, com as assessorias e
secretarias de assuntos internacionais dos entes federativos.3
De onde se originam as dificuldades do federalismo brasileiro? Da história
nacional, que quase sempre oscilou entre avanços normativos e contenções
práticas de reação à autonomia dos entes federativos. Essa tensão pareceria
superada a partir de 1988, ante a inovação jurídica que emergiu no quadro da
democratização do país. A Constituição brasileira inovara em relação aos demais
sistemas republicanos federativos. A forma federalista tornou-se cláusula
pétrea, tornando-a impossível de ser objeto de proposta de emenda que tente
aboli-la.4 Os municípios fizeram-se membros da federação e passaram a ter
autonomia política, jurídica e administrativa em relação ao governo federal.
Constituições dos Estados-membro foram escritas em nome dessa autonomia. E, até
segunda ordem, a Constituição de 1988 reservou aos Estados-membro da federação
todas as demais competências que não lhes são vedadas pela própria lei maior.5
A novidade jurídica da "relativa autonomia" das municipalidades e da "semi-
autonomia"6 dos estados da federação ' muito embora ambas as formas de
autonomia jamais tivessem sido pensadas como desvinculadas do conceito paralelo
de "cooperação" com a União ' foi digna de nota na literatura internacional e
apreciada pelos federalistas viscerais. Estudiosos de todo o mundo debruçavam-
se sobre essa crescente autonomia das municipalidades, do poder local e do
poder dos estados da federação e das regiões brasileiras.
Naquele momento, em que os ventos democráticos fariam supor a construção do
equilíbrio natural entre as três bases do Estado federativo, sonhou-se com a
idéia de que haveria uma simbiose natural entre funções, deveres e
responsabilidades. Pareceria que municípios e estados brasileiros emergiam
frente aos constrangimentos da União para um nirvana no qual quase tudo se
podia fazer. Da arrecadação dos impostos à autonomia na utilização de parcela
relativa do arrecadado, passando pela capacidade de empreender no campo da
educação e da saúde, aliviando a União da sua centralidade jurídica e prática;
todos esses campos de ação das unidades subnacionais proviam a idéia de um
certo federalismo social no Brasil.
Não foi bem isso o que aconteceu. A evolução da 'autonomia relativa' e da
'semi-autonomia' cooperativas se fez de forma atabalhoada. Estados e municípios
foram acuados pelo poder central, acusados de terem contraído dívidas e não
poderem pagar. Moratórias estaduais e municipais foram freqüentes. Choques
entre coalizões políticas diferenciadas entre o poder central e os entes
federativos criariam ampla frente de tensão, com exemplos que podem ser citados
a exaustão. O acumulado de quase duas décadas de crescimento econômico baixo,
bastante aquém das possibilidades históricas da economia brasileira, aceleraram
o Estado de natureza fratricida que se estabeleceu.
Duas vias se impuseram na recente quadratura da história do federalismo
brasileiro inconcluso. A primeira foi o choque de recentralização clássica, via
reconcentração das responsabilidades da gerência do Estado nacional.
Instrumentos como as reformas previdenciária e tributária, já no governo Lula,
bem como a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no governo Cardoso,
expõem o quanto o Brasil centralizou matérias de interesse estratégico, apesar
da propalada defesa do chamado "pacto federativo".
A segunda via de constrangimento do federalismo esgarçado do Brasil vincula-se,
mais precisamente, ao universo das relações internacionais. O tratamento
economicista ortodoxo, no coração do poder político da União, da dívida externa
do país contraída no passado, mas acelerada a partir do processo desenfreado de
liberalização comercial e financeira ocorrida no Brasil nos anos 90, de Collor
de Mello a Cardoso, fez do Tesouro e do Banco Central, as células pulsantes e
propulsoras do controle central rígido da chamada "estabilização monetária". A
conta social elevada gerada pela alta crescente da taxa de juros, embora comova
a todos, em especial àqueles que militam em favor de um projeto federativo
social mais ativo ' em torno de programas de alívio e erradicação da pobreza e
da fome, por exemplo ' continua sendo tratada de forma conservadora e
centralizada no governo central.
A adoção com baixo senso crítico dos ditames do Consenso de Washington e a
abertura dos braços aos riscos da globalização assimétrica, especialmente
aquela gerada pelo regime de fluxos financeiros instáveis e gananciosos, foram
o golpe final contra o esforço de construção de certa autonomia relativa dos
entes federativos e inibidor de um verdadeiro federalismo social e cooperativo.
O tratamento de todas essas matérias foi ' e segue sendo ' fortemente
concentrado na União.
A mobilização de esforços no sentido da consecução de superávits fiscais de
agrado do FMI contaminou, em muitos casos, as relações do poder central com
governos subnacionais. A declaração unilateral de moratória do governador do
Estado de Minas Gerais, Itamar Franco, em 1999, foi emblemático das
dificuldades entre a União e alguns governos subnacionais no Brasil.
Quais as conseqüências desse ambiente político e institucional para o tema do
federalismo e das relações internacionais do Brasil? Qual o impacto dessas
formas de inserção internacional para as políticas de comércio exterior?
Apesar dos avanços jurídicos de 1988, impera no Brasil a visão démodé, mas
suficientemente cristalizada nas elites nacionais, de que a única voz válida é
a voz unitária do Estado. O Estado central ' por meio dos vitoriosos nas
coalizões no governo central, ao lado dos grupos controladores do aparato de
funcionamento de suas instituições, acompanhados pelas resistências
corporativas das burocracias que se afirmam, via a força da "pena" e da
"alocação de recursos" ' não aprecia a idéia da fragmentação da autoridade nas
questões internacionais. A tese da iminência do descontrole interno e a
hipótese das dificuldades que emanariam da descentralização coordenada na
formulação de políticas públicas com impacto internacional são comuns na
burocracia federal, particularmente do Itamaraty e do Banco Central. A idéia da
formulação pela coordenação da diversidade de interesses do federalismo social,
a envolver as unidades subnacionais, recebe ainda forte reação contrária do
poder central.
Esse senso comum vem, no entanto, enfrentando invulgar resistência daqueles
que, operando em um ambiente internacional cada vez mais confuso e complexo,
provocam o abalo do paradigma tradicional da voz unitária do Estado-nação. O
conceito de "Estado logístico" ' que vem ganhando força como um novo paradigma
na política exterior do governo Lula ' vem provendo os processos decisórios de
política comercial com um inédito senso de realismo e de oportunidade, que
implica maior mobilização interna dos entes federativos.7 A formação de
coalizões internacionais ao Sul ' como aquela pragmática e realista frente de
interesses da qual emanou, na Conferência da OMC em Cancun, o Grupo dos 20
(G20), bem como a parceria do G3 ou IBSA (Índia, Brasil e África do Sul) '
demanda mais ação concertada no plano interno dos Estados entre os entes
federativos e o poder central.
Os resultados práticos da mais recente rodada de negociações da OMC, em
Genebra, (julho-agosto de 2004), ' da qual a Índia e o Brasil verbalizaram os
anseios e as preocupações do G20, no que se refere ao acesso aos mercados do
Norte ' ao desentravarem os impasses de Cancun, demonstra a abertura que vem
sendo feita nessa área por tais coalizões internacionais ao Sul.8 Mas elas não
terão sustentação se não por um uma via mais participativa dos entes
federativos no interior dos Estados nacionais. Essa é uma percepção que começa
a se espraiar com mais convicção no Brasil.
A mudança de paradigma se faz necessária. O conceito tradicional de soberania
estatal é posto em xeque, ao permitir engendrar a revitalização de áreas
incontestavelmente ligadas a interesses e cooperações com as unidades
subnacionais. Esse é o caso da política comercial do Brasil para a formação de
um grande mercado sul-americano de intercâmbios, bem como da expansão do
comércio Sul-Sul, à maneira que vem sendo postulado pelo núcleo duro de poder
nacional na formulação da política exterior bem como da política comercial do
país.9
Como ampliar o comércio com os países da franja oriental do Atlântico Sul sem a
força da diversidade operacional e da capacitação de operadores da cooperação
internacional nos estados e municípios? Como agir na transformação dos padrões
obsoletos de um comércio internacional com logística precária, ' por exemplo,
exporta apenas cerca de 8% das suas tão relevantes exportações por mar em
navios nacionais ' sem envolver uma indústria de estaleiros sustentável em
parceria com os entes federativos? Como exportar mais carne de frango para a
China, sem uma base de informação de oportunidades e capacidade gerencial e
técnica na base, nos estados da federação particularmente, capazes de operar as
máquinas de exportação? Vamos entregar o processo exportador apenas a grupos
transnacionais e oligopólios que agem diretamente no Estado central, a obterem
prebendas e acessos a subsídios para a exportação de suas subsidiárias para
suas próprias matrizes no coração da hegemonia capitalista?
Ante esse quadro, faz-se mister envolver os governos subnacionais de forma
cooperativa, mas a reconhecer-lhes sua "relativa autonomia". O paradigma
estatocêntrico inicia, apenas recentemente, seu processo de erosão. A ampliação
da pauta exportadora, mecanismo a mais de constituição de poupança e meio de
contenção do financiamento interno via capitais perniciosos, é tarefa que não
pode se restringir ao Estado central. Essa brecha inédita e relevante para o
comércio exterior do Brasil vem sendo explorada pelos estados da federação,
apesar dos constrangimentos jurídicos e operacionais.
Os estados da federação passaram a reivindicar seu lugar na agenda do comércio
exterior. Essa reivindicação adquire, de forma crescente, eco e interesse em
Estados nacionais continentais como o Brasil, cuja territorialidade extensa
acrescenta valor ao desejo de mais flexibilização nessa matéria. Governadores
de estados vêm sublinhando que seus interesses são bastante diversos e o quanto
essa diversidade deve ser considerada na formulação da política exterior e
comercial.
Ganha força no Brasil, a diplomacia de múltiplas camadas, exercida em
diferentes níveis do processo decisório. A high politics, encaminhada pela
diplomacia estatal clássica do Itamaraty, aceita e acata, mas também reage e
convive de forma cooperativa, com a diversidade da low politics, espaço natural
dos entes subnacionais. Na acepção de Barros Leal Farias, que estudou de forma
pioneira o caso brasileiro, a paradiplomacia federativa vem crescendo, ainda
que de forma discreta.10 Nesse aspecto, reconhece a estudiosa, a tendência já
sugerida por Panayotis Soldatos e Ivo Duchacek, para quase todo os quadrantes
do planeta, onde há experiência de estados federativos.11
Nesse sentido, o novo paradigma da valorização dos entes subnacionais coincide
com a emergência do paradigma do Estado logístico no Brasil. O Estado
logístico, ao procurar expor a vontade de fortalecer o núcleo nacional da ação
externa do Brasil, passa a operar diretamente na transferência à sociedade da
responsabilidade empreendedora, ajudando-a a atuar no ambiente externo. A busca
por um melhor modo de equilibrar os benefícios da interdependência por meio de
uma inserção madura no mundo globalizado é o elemento aglutinador das posições
e opções. O esforço do governo Lula em romper os graus da interdependência
servil em favor de uma interdependência de oportunidades não poderá se afastar
do desiderato da valorização dos mecanismos federativos que já estão
garantidos, em parte, nos textos jurídicos.
Os marcos das negociações comerciais em curso do Brasil: entre o poder do
Estado nacional federativo logístico e a diversidade de interesses em jogo
A carga de negociações comerciais externas do Brasil vem se ampliando nos
últimos anos. O leque de parcerias também se diversificou nos últimos quatro
anos, após o retraimento da condição brasileira de global-trader, marca dos
anos 70 e parte dos anos 80. O recolhimento na década de 1990 esteve
visivelmente associado à crise do modelo de inserção internacional do nacional-
desenvolvimentismo.12
No período mais recente, relativo aos últimos anos do governo Cardoso e o
início do governo Lula, tanto parceiros estratégicos já consagrados como a
Argentina, o México ou a África do Sul, assim como novos e crescentes sócios na
mesma latitude, como a Índia e a China, vêm ganhando densidade na pauta
comercial do Brasil. O plano das relações bilaterais vem sendo reforçado por
meio da articulação de uma visão mais realista das relações internacionais e do
distanciamento em relação sonhos kantianos de uma ordem internacional reformada
pela governança global liberal, falha já nos fins dos anos 90.
O governo Lula, nesse caso, se aproxima mais do conceito de Estado logístico no
qual o comércio exterior tem peso extraordinário. O conceito de Estado
logístico supõe a superação tanto do modelo de inserção liberal desenfreada
quanto do desenvolvimentismo nacionalista de antes. Por esse paradigma, o
repasse de responsabilidades do Estado- empresário cabe mais à sociedade bem
como aos agentes subnacionais. Essa estratégia não significa, no entanto, o
rechaço ao empreendimento estatal, desde que este apresente capacidade de
construir competitividade sistêmica global. São dois os componentes da
formulação logística posta em marcha: por um lado, advoga-se a construção dos
meios de poder e, por outro, sua utilização para fazer valer vantagens
comparativas de natureza intangível, como a ciência, a tecnologia e a
capacidade empresarial.13
Isso significa dizer que as negociações comerciais multilaterais mantidas pelo
Brasil têm um sentido mais sistêmico e menos conjuntural. Elas estão voltadas
para a superação da dependência estrutural em relação aos fluxos financeiros
voláteis internacionais e orientadas para a superação da crise de financiamento
e poupança internas. Ademais, orientam-se politicamente no sentido de refrear,
por meio da construção de novas estruturas anti-hegemônicas bem diferentes do
velho idealismo Sul-Sul, um novo patamar para a negociação dos interesses
comerciais Sul-Sul.14 O relançamento da chamada "política africana" do Brasil
pelo governo Lula tem, evidentemente, a marca da retomada do braço sul-
atlântico do comércio internacional do Brasil, apesar da retórica recursiva da
"africanidade brasileira".15
Estão, de fato, em jogo interesses vitais para o Brasil uma vez que sem um
crescimento exponencial das exportações, a armar um superávit expressivo na
balança comercial, permanecerá o país condenado à vulnerabilidade econômica. É
evidente que o histórico de diversificação de parcerias, tanto ao Sul quanto ao
Norte, ajuda muito a desbravar o redescobrimento de novas fronteiras
comerciais. O caso da presença chinesa nas relações comerciais do Brasil é
fenômeno que vem sendo registrado com grande regozijo pelos setores
exportadores e pelo governo central, mas também por governos subnacionais, como
os estados do sul do Brasil, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.16 Em
vários desses casos as compras chinesas vêm sendo feitas ao lado de negociações
de investimento.17
O caso do agronegócio brasileiro ocupa papel todo especial à inserção
internacional do Brasil nas regras duras do comércio internacional. A área
disponível para novos plantios é equivalente ao território somado de vários
países europeus. Desde 1990, em plena segunda década perdida, a safra de grãos
aumentou em torno de 125%, enquanto a área plantada cresceu menos de um quarto.
Aspecto essencial nas últimas negociações da OMC, em Genebra, o Brasil vem se
habilitando como um dos maiores produtores e exportadores de produtos agrícolas
do mundo. O acordo firmado em Genebra vai significar aumento de aproximadamente
US$ 10 bilhões nas vendas de produtos brasileiros ao exterior, segundo
estimativas do ministro das Relações Exteriores Celso Amorim, baseada na
redução gradual e na eliminação de subsídios agrícolas à exportação praticados
pelos países ricos. A dramaticidade das reuniões em Genebra, na primeira semana
de agosto de 2004, mostraram o quanto se ganhou nesta área. Como lembrou o
chefe da Missão brasileira na OMC, o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa:
"Não basta mais o consenso entre americanos e europeus. Há uma nova matriz, o
G2O. Essa coalizão não se limita a criticar ou obstruir. Tem propostas
concretas. Espero que a mudança seja permanente."18
Alguns criticam a concentração da negociação externa e mesmo da pauta
exportadora brasileira no agronegócio. Argumentam o fato de o país estar
regredindo ao modo do comércio internacional do Brasil do século XIX, ante a
ênfase agroexportadora. Outros insistem que essa foi uma brecha estratégica bem
construída por setores dinâmicos da exportação nacional, mesmo sem grande apoio
logístico do Estado. Uma terceira linhagem de intérpretes anota o fato de que
programas como o Moderfrota, um programa do governo federal de apoio à
modernização das máquinas agrícolas via juros baixos, ter permitido renovar,
nos últimos anos, um terço da frota de tratores e quase metade das
colheitadeiras no país. Em certa medida, o Estado central esteve atuando
fortemente na readequação desse setor à competitividade internacional.
O fato é que esse setor, envolvendo toda a cadeia produtiva, do plantio à
comercialização, deve movimentar, até o final de 2004, cerca de R$ 537,7
bilhões, cerca de um terço do Produto Interno Bruto (PIB). Emprega 18 milhões
de brasileiros (cerca de 38% da força de trabalho) e representa 42% das
exportações nacionais, algo em torno de R$ 90 bilhões. Esse desempenho é, sem
margem de dúvida, resultado direto do investimento pesado em ciência e
tecnologia. Os novos dados são animadores: o faturamento com a venda de soja no
mercado externo em 2003, por exemplo, injetou R$ 24 bilhões na economia
brasileira; em junho de 2004, as exportações do agronegócios totalizaram US$
4,4 bilhões, um recorde histórico mensal; em doze meses, com exportações de US$
35,5 bilhões, o saldo comercial do agronegócios superou pela primeira vez a
cifra de US$ 30 bilhões.19
Os avanços nos setores citados, no entanto, embarram em estruturas de
negociação particularmente burocratizadas e centralizadas no governo central.
Sob a coordenação do Itamaraty, do Ministério da Agricultura e do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), em especial da
Secretaria de Comércio Exterior ' esta última sob a direção do secretário Ivan
Ramalho ' e da própria Secretaria-Executiva ' sob a supervisão do secretário
Márcio Fortes ' as negociações, tanto no plano bilateral quanto no
multilateral, são conduzidas por mecanismos de coordenação entre essas áreas do
governo central, sem envolvimento direto das secretarias de comércio e de
desenvolvimento das unidades sub-nacionais.
O argumento crucial dos negociadores internacionais da União, ávidos para
manterem a verticalidade dessa plataforma negocial, está no fato de que o
emaranhado e a complexidade das várias negociações simultâneas exige
coordenação central. Nesse sentido, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) já
seria suficiente como lugar de interação dos atores domésticos no processo
interno de circulação de informações e tomada de decisões. Se esse argumento é
dotado de grande racionalidade e plausibilidade, o mesmo tem servido para
reforçar o caráter centralista e estatocêntrico das negociações.
Adepto do livre comércio, do multilateralismo como padrão de conduta nas
relações internacionais e, portanto, preocupado com a consolidação da OMC, para
levar adiante a Agenda de Desenvolvimento de Doha, o Brasil vem, certamente,
desenvolvendo uma apropriada diplomacia comercial. Ao propugnar pela criação do
G-20, na base da primeira grande coalizão de países emergentes com peso nas
negociações comerciais multilaterais, o Brasil avança no sentido de se afastar
das frustrações anteriores como a rodada comercial do Uruguai ou os
entendimentos nefastos de Blair House.
Nesse sentido, como demonstrou mais recentemente a reunião de Genebra, a
Conferência da OMC de Cancun não foi um fiasco, como apregoado por alguns, mas
uma vitória política da diplomacia brasileira e dos países do Sul preocupados
em manter espaço para a sua própria industrialização soberana e em criar
estruturas mais duradouras que contenham a liberalização comercial de curso
único. O tema dos subsídios agrícolas concedidos pelos países do capitalismo
avançado foi apenas a ponta do iceberg para a constituição de certas estruturas
anti-hegemônicas ao Sul.
No entanto, mais uma vez, essa grande negociação internacional ' que envolve
relevante concertação no plano interestatal ' foi criticada por setores
domésticos no Brasil ante a tênue consulta interna, a baixa agilidade de
interlocução entre os setores públicos e privados, bem como pelo baixo
envolvimento, na coordenação de posições, de atores sub-nacionais. Apesar dos
talentos negociadores do chanceler Celso Amorim bem como do ministro Furlan, do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, permanece o déficit de consulta
institucional e envolvimento das secretarias estaduais de desenvolvimento e
comércio nessas matérias.
Outro déficit que se projeta de forma clara no comércio exterior do Brasil é
sua assimetria interna. Concentra-se o comércio externo em certas unidades
subnacionais em detrimento de outras. Concentram-se as exportações nacionais em
certas regiões em desfavor de outras. Essa tendência, que embora tenha mudado
ligeiramente no início da nova década, foi tendência histórica da
industrialização brasileira ' concentrada no sul e no sudeste ' e da expansão
também concentradora do agronegócio. A tabela_I indica o algo grau de
assimetria regional das exportações nacionais em alguns anos da década passada.
Quando comparada à atual, não houve ainda modificação substantiva no global,
muito embora algumas novas tendências possam ser observadas para certos Estados
mais empreendedores nessa área.
Finalmente vale lembrar que o novo ativismo comercial do Brasil, que encontra
algum paralelo com o modelo do nacional-desenvolvimentismo, relegado em período
mais recente da história nacional, encontra inédito paralelismo com o ativismo
comercial engendrado na última década por países da América Latina, como o
Chile e o México, sobre as diferenças de conceito e de proporcionalidade,
pautadas em cada caso, e as relações externas desses países. Refiro-me às
estratégias de inserção comercial internacional baseadas na firme aposta nas
negociações de acordos de livre-comércio com importantes parceiros sub-
regionais como a Comunidade Andina, a União Européia e a Área de Livre Comércio
da América (Alca), neste caso com menos intensidade e mais cautela negocial.
Vale, nesse caso, a lembrança de Costa Vaz:
Para muitos países, a exemplo daqueles que integram o Mercosul, essa
condição observada nos últimos anos lhe permitira perseguir
estratégia de explorar condições de barganha, baseando-se em uma
visão integrada dos diferentes tabuleiros em que estejam atuando,
como exemplificado no caso das perspectivas do Mercosul diante da
possibilidade da Alca e do atrativo da negociação com a União
Européia.20
As dificuldades encontradas nas últimas rodadas de negociações do Comitê de
Negociações Biregionais do Mercosul com a União Européia, ocorridas a partir da
Reunião de Brasília, em meados de agosto de 2004, até as do ocaso da Comissão
Européia que deixou o mando em fins de 2004, demonstra perfeitamente a
pertinência da assertiva anterior. Não apenas razões de ordem estratégica
geral, ou de afinidades culturais, ou as "brechas" táticas em relação às
negociações da Alca podem ser utilizadas na evolução do processo negociador com
os europeus. A defesa de interesses nacionais ou sub-regionais, como o fizeram
os negociadores em Brasília, denotam mais maturidade, realismo e percepção de
que o ativismo comercial tem que ser alicerçado em ganhos equilibrados e não em
imposições neocoloniais. O Brasil e seu parceiro estratégico no Mercosul ' a
Argentina (apesar da crise nas exportações das geladeiras, fogões e carros) '
parecem ter avançado essa percepção, que também se espraia para parte relevante
da América do Sul.
A força dos agentes subnacionais no comércio exterior do Brasil: aproximações
comparadas e o caso do Estado do Ceará
Apesar dos constrangimentos referidos na segunda parte desse estudo, há
criatividade e movimento no plano subnacional. Em especial, os dirigentes dos
governos dos estados da federação têm demonstrado alguma capacidade de agir via
ações concertadas perante ao poder central. A pressão política direta dos
governadores na direção do Poder Executivo federal ou do Congresso Nacional vem
sendo a forma mais explícita de agir das unidades subnacionais. A depender do
quadro de coalizões internas dos partidos na base de sustentação do governo
nacional, vários governadores vêm aproveitando esse relacionamento para
explorar brechas de "autonomia relativa" em relação à burocracia do governo
federal.
Exemplos dessa forma de lobby dos governos não-centrais se multiplicam e se
fazem presentes desde a década passada. O governador Tasso Jereissati, do
Estado do Ceará, no nordeste brasileiro, do mesmo partido político do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso, soube aproveitar em grande medida sua
posição de homem forte do PSDB e potencial candidato à sucessão de Cardoso,
como um trunfo nas negociações voltadas para uma melhor inserção do estado nos
financiamentos e comerciais do Brasil em fins da década passada e início da
atual.
Em segundo lugar, vários governadores de estado têm utilizado suas viagens ou
seus escritórios internacionais na forma de intervenção direta nas fontes
financiadoras do comércio internacional. Nesse caso, via contato direto,
constroem-se pontes "transsoberanas", formais ou informais, com outras fontes
de poder de outros estados nacionais.
Destaca-se, nesse caso, a criação do escritório do Estado de Minas Gerais na
Europa, com sede na França, pelo governador Itamar Franco, ex-presidente da
República, no final da década passada, transformado em "balcão de negócios"
dessa unidade subnacional em um país soberano. No caso de Itamar Franco, a
iniciativa estava diretamente voltada para a competição e o conflito direto com
os objetivos gerais e os métodos do poder central do governo nacional.21
Uma terceira dimensão a ser considerada é a geografia múltipla que impulsiona
diferentes regiões do país para certos enfoques na agenda comercial do Brasil.
Se a logística dos estados do nordeste do Brasil se dirige prioritariamente
para o contexto caribenho-europeu-africano, é natural que os estados do sul do
Brasil estejam mais voltados para o contexto platino da América do Sul. Estudos
recentes, como o de Wilson Almeida, demonstraram o quanto a geografia pesa no
destino das exportações brasileiras.22 Estados da federação brasileira que
possuíam uma geografia privilegiada em relação ao Cone Sul, antes do Mercosul
ser criado, conseguiram ampliar em termos reais o comércio exterior com os
países do bloco sub-regional, mas não alteraram sua relação privilegiada de
parceiros preferenciais dos países vizinhos. Ao mesmo tempo, "regiões
periféricas" do Mercosul, no interior de países como o Brasil, permaneceram com
um comércio relativamente periférico em relação aos mesmos.23
A tabela_II é bastante clara. Tanto no início, quanto no avanço tardio do
Mercosul, as relações entre as percentagens de participação por unidade
subnacional (estados da federação) e por regiões brasileiras permanecem quase
as mesmas, entre o início e meados da década de 1990. Essa tendência se mantém
ainda no início desta década.
Em quarto lugar, e agora de forma mais consistente, os governos subnacionais
que compõem os estados da federação brasileira têm se esmerado no mecanismo de
criação de agências, assessorias e secretarias de governo com atribuições no
campo da internacionalização de suas estratégias de desenvolvimento. Alguns
governos locais ' particularmente capitais e grandes cidades de estados da
federação mais proeminentes no comércio externo ' também criaram tais aparatos,
como é nítido no caso paulistano.
Registre-se o grau de competência técnica média que se observa nessas
operativas, pequenas máquinas articuladoras dos interesses federativos no
comércio exterior. Ações e textos lidos evidenciam a preparação desses quadros
formados, em alguns casos, com o adensamento de novas carreiras de cursos como
bacharelados e cursos de pós-graduação em relações internacionais e comércio
exterior.24 Desnecessário mencionar, tendo em vista a densidade da participação
dessa unidade da federação no comércio exterior do Brasil, o Estado de São
Paulo.Também se pode dizer do aprimoramento dessas máquinas flexíveis e
laboriosas no Nordeste, em estados como o Ceará e a Bahia, ou mesmo no Centro-
Oeste, como Goiás e Mato Grosso.
Dossiês bem elaborados são organizados por tais assessorias e secretarias
internacionais dos estados da federação, consubstanciando opções táticas e
estratégicas dessas unidades subnacionais em suas próprias missões
internacionais. Governadores viajam, muitas vezes, com mais objetividade e mais
bem preparados para a negociação de interesses comerciais, que membros do
governo central em suas diligências internacionais.
A transformação operada por essas modificações ainda não foi suficientemente
atualizada. Dissertações, teses acadêmicas e diplomáticas vêm tratando de
recolher a dinâmica de tais agências, tanto na esfera dos estados da federação
quanto das municipalidades.25 Dessa experiência recente, no campo do comércio
exterior, sobressaem-se alguns relevantes registros.
O primeiro e mais claro registro que se pode fazer da atuação dos agentes
externos dos governos subnacionais brasileiros é que eles estão, de facto,
ainda que não de jure, atuando de forma crescente em busca de "autonomia
relativa". A despeito de limites jurídicos internacionais e internos que
constrangem sua ação legal, em particular, os estados da federação têm se
mostrado criativos e ativos.
O segundo registro é que nem sempre esse movimento dos entes federativos na
direção do exterior tem sido feito em consonância com os ditames do poder
central. Acompanhando posições que fazem lembrar os governos provinciais
canadenses dos anos 80, quando favoreceram produtores locais na venda externa
de vinhos, contra compromissos assumidos pelo governo central canadense no
então Gatt, ou de governadores norte-americanos que proibiram investimentos
estrangeiros em alguns setores da produção, o Brasil, da década de 1990,
assistiu a guerra fiscal, na qual os governadores de estado protagonizaram
verdadeira "quebra de braço" com o governo central no sentido do acesso a novos
investimentos internacionais para empreendimentos internos.
Dessa forma, no caso brasileiro, nem sempre as relações entre o poder central e
os governos subnacionais têm se pautado pela cooperação. Há uma crítica
crescente dos governadores de estado no sentido de que a receita estadual
efetiva vem se reduzindo nos últimos anos, inclusive diante do aumento das
pressões fiscais geradas pela própria União. Ações de inconstitucionalidade
foram impetradas por alguns governadores na própria corte suprema, o Supremo
Tribunal Federal.
O terceiro registro é a emergência gradual do nordeste brasileiro na agenda do
comércio exterior do Brasil. Região historicamente periférica na pauta
exportadora, a região nordestina vem demonstrando capacidade de mobilização de
recursos na direção da interação do meio nacional ao internacional nos últimos
anos. O Estado da Bahia inovou ampliando a cooperação internacional com países
como o Chile, os Estados Unidos, a Itália, a Argentina, a Coréia do Sul e
Portugal, além de ter incluído países da Ásia, como a Malásia e a Indonésia na
cooperação agroflorestal. O Centro Internacional de Negócios da Bahia (Promo) '
vem sendo um agente fundamental nessa mobilização de esforços. O Estado de
Pernambuco abriga em seu território a representação nordestina do Escritório de
Representação do Itamaraty no Recife. A ampliação de ações dessa unidade
subnacional vem ocorrendo especialmente com a Holanda, França e Alemanha.
A mais dinâmica unidade federativa no nordeste brasileiro, no entanto, vem
sendo o Estado do Ceará. Chama a atenção, o movimento liderado pela Assessoria
de Assuntos Internacionais daquela unidade subnacional nos últimos dez anos,
durante os oito anos do governo de Tasso Jereissati e os quase dois anos do
governador Lúcio Alcântara, no sentido de adensar as relações externas daquela
unidade da federação. A diversificação de parceiros na Europa (a envolver
países como Portugal, Itália, Espanha, França, Alemanha e Rússia), na América
Latina (em especial com a Argentina, Cuba, México e Chile), e mesmo na Ásia
(como a China), além dos Estados Unidos, vem sendo a marca desses governos.
Recentemente, sob a coordenação de Nelson Bessa, chefe da Assessoria
Internacional daquela unidade federativa, a missão se dirigiu à China, à Coréia
do Sul e à África, com ênfase ao Cabo Verde e Angola. Essas pontes asiáticas e
africanas, mas particularmente atlânticas, especialmente ante a ligação aérea
de Fortaleza com Praia (Cabo Verde), têm propiciado a ampliação de exportação
para parceiros, até então, pouco imaginados como mercados potenciais do Brasil.
A tradução desse esforço, mesmo nos limites da legalidade jurídica, já é notada
pelos os dados e análises que são agora apresentados. O Ceará passou a ter uma
inserção comercial internacional inimaginável sem essa inédita articulação,
quase sempre realizada sem grande apoio da burocracia do governo central, muito
embora de forma cooperativa a ela. Em muitos casos, essa cooperação é apenas
formal ou política para evitar eventuais retaliações ou "invejas"
institucionais.
Nesse sentido, seguindo a tendência de internacionalização gradual, que vem
desde meados da década passada, e mesmo a despeito da deficiente promoção
comercial do estado nacional, as exportações cearenses reagiram mais fortemente
do que as exportações do país em seu conjunto. O Ceará registrou um expressivo
aumento nas suas exportações (em dólares correntes) entre 1991 e 2002, a uma
taxa anual de 6,6%, superando a média de crescimento das exportações
brasileiras (6% a.a), tudo isso com expansão da base exportadora (de apenas
cinqüenta empresas, em 1991, para 260 em 2002) e uma sensível diversificação na
pauta de produtos manufaturados, de maior valor agregado e/ou conteúdo
tecnológico. Com efeito, em 1991, os produtos manufaturados responderam por
apenas 28,2% da pauta estadual, passando a 46%, em 2002, e chegando a 51,6% em
2003, próximo, portanto, da média brasileira.
Em 2003, a tendência de expansão exportadora no Ceará parece ter atingido novo
patamar, acusando um incremento de 39,8% no acumulado do ano (cerca de US$ 761
milhões), sobre idêntico período do ano anterior, bem acima da média de
crescimento brasileira, que foi de 21,1%. Esse movimento de expansão
exportadora superior a média nacional ocorreu em 17 estados da Federação,
cabendo ao Ceará a quinta maior taxa de crescimento, atrás somente de Tocantins
(181,2%), Goiás (69,8), Paraíba (43,2%) e Acre (39,9%), deslocando o estado
para a 12ª posição no ranking dos maiores estados exportadores e respondendo
por pouco mais de 1% das vendas externas totais do Brasil.
Cabe salientar que o desempenho cearense no ano de 2003, com aumento de
praticamente 40% nas exportações estaduais, se compara favoravelmente aos
campeões do crescimento exportador no país, uma vez que superou o crescimento
da Bahia (35,2%) e somente ficando atrás da Paraíba (43,2%) e de Goiás (69,8%),
este último beneficiado pelas condições excepcionalmente favoráveis de seu
agronegócio. Estados menores (como Acre e Tocantins, na Amazônia brasileira)
lograram aumentar ainda mais suas exportações, mas sua base estatística é
incipiente para merecer análise comparativa. No mesmo intervalo, o desempenho
exportador do Nordeste como um todo foi de 31,2%, ao passo que no Sudeste foi
de apenas 16,2%.
Do lado das importações, a desaceleração econômica durante o ano fez as compras
no exterior recuaram 15% em 2003, atingindo o patamar de US$ 540,7 milhões. Em
contraste, as importações brasileiras cresceram 2,16% no ano.
Em relação à captação de recursos externos oficiais, a carteira de projetos
internacional do Ceará é uma das maiores entre os estados brasileiros. A
continuidade da gestão fiscal austera tem-lhe proporcionado a credibilidade
necessária para contratar empréstimos externos com as agências multilaterais e
bilaterais. No ano de 2003, em que pesem as dificuldades da conjuntura
macroeconômica sobre as finanças dos estados, o Ceará logrou captar US$ 265,9
milhões em novas operações de crédito, sendo uma com o KfW ($ 8,7 milhões), uma
com o Bird (US$ 64,1 milhões), duas com o BID (no total de US$ 178 milhões), e
outra com o MLW Intermed, entidade privada alemã (US$ 17 milhões). Cabe
ressaltar que os recursos captados, ora referidos, encontram-se em estágio
avançado de negociação, devendo ser contratados e desembolsadas no decurso de
2004 e nos anos seguintes.
Desse modo, a economia cearense manteve, em 2003, o ritmo de inserção dos anos
anteriores nos fluxos mundiais de comércio, investimento e financiamento,
deixando para trás o tradicional isolamento do estado, exibindo promissores
sinais de competitividade de seu aparelho produtivo e aparentes vantagens
comparativas na atração de investimentos. Ante eventual retomada consistente do
crescimento nacional, o Ceará parece ter razões para crer que a continuidade de
incremento das exportações, do turismo estrangeiro e dos investimentos
externos, contribuirão para a geração de renda e emprego e para acelerar a
transformação esperada no perfil socioeconômico do estado "alencarino". Seria
um caso interessante de versão brasileira do proposto conceito de federalismo
social.
Conclusões
Se no mundo existem cerca de quase três dezenas de países com características
abrangentes do sistema federativo, é verdade que o Brasil tem uma das mais
centralizadas formas de ação externa do Estado. Ao contrário da Alemanha,
Estados Unidos, Austrália e Suíça, a formação histórica do federalismo
esgarçado no Brasil construiu uma metodologia centralista e restritiva de
federalismo no que se refere à política externa e a de comércio exterior. Se na
maioria dos casos, essas políticas oscilam entre certa "autonomia relativa" e a
mais "absoluta subordinação à União", o caso brasileiro está certamente para a
segunda inclinação do pêndulo.
As mudanças econômicas, políticas, sociais e tecnológicas das últimas décadas
fizeram emergir novas realidades que demandam atitudes e recursos gerenciais
nem sempre presentes nas estruturas tradicionais das instituições
governamentais. O Brasil, nesse assunto, tem se mostrado mais conservador que a
grande gama de Estados federativos no que se refere à capacidade de ação dos
governos subnacionais na gestão do comércio exterior. A centralidade da
burocracia itamaratiana, associada a outros setores governamentais como o
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, ademais da Camex,
controlam e dirigem os fluxos dominantes e a política de apoio às exportações,
mesmo envolvendo áreas de ação gerencial dos estados da federação.
Essa relação não é estática. Ela opera de forma dinâmica no tempo, na geografia
múltipla bem como na diversidade de interesses em jogo e nas possibilidades que
se criam ante o poder relativo de cada unidade subnacional. Se São Paulo
participa com quase um terço das exportações do país, e se a concentração
industrial mais expressiva no país também coincide com essa unidade da
federação, é natural e racional o desenvolvimento de expertise e a abertura de
brechas de "autonomia relativa" no estado mais desenvolvido economicamente na
federação. É igualmente compreensível a inserção comercial internacional de
governos subnacionais como o caso do Estado do Rio Grande do Sul, incrustado na
fronteira brasileira mais sensível do Mercosul.
Para comentar o tema da assimetria interna na distribuição dos dividendos do
acesso ao mercado externo, vale lembrar o seminal estudo de Cassiolato e
Lastres:
Contrariamente à visão mais ou menos difundida sobre a hipotética
internacionalizção dos esforços e resultados do desenvolvimento
científico e tecnológico, os dados e análises atualmente disponíveis
indicam: (i) uma marcante concentração do espaço econômico onde as
informações e conhecimentos são produzidos e circulam, além de (ii)
uma_concentração_nitidamente_nacional_dessas_e_outras_atividades
consideradas_estratégicas.26
Ex positis, o problema se põe, no Brasil, para os estados menos expressivos do
ponto de vista do PIB nacional e que estão construindo estruturas negociais
externas com vistas a melhor participação do ativismo comercial do Brasil nos
últimos anos. O caso avaliado neste estudo, do governo do Estado do Ceará,
demonstra o quanto novas oportunidades, mesmo sob o constrangimento da
concorrência interna dos estados mais ricos, estão sendo exploradas.
Vale lembrar que, de forma crescente, no âmbito dos estados nacionais, torna-se
cada vez mais tênue a separação entre política externa, de segurança e de
prestígio, e aquelas outras matérias de caráter econômico, cultural ou social.
O emaranhado dessas questões deslocou as relações internacionais para a
inclusão de atores que oferecem mais confiança para o poder central do Estado
que parte das chamadas organizações não-governamentais. As conseqüências da
interdependência global vêm possibilitando a ampliação da confiança da ação
cooperativa entre o poder central e os governos subnacionais. O caso brasileiro
exemplifica, a seu modo próprio, essa evolução tímida. Mas que necessita
avançar, de forma célere, na fundação do conceito mesmo de federalismo social,
aqui proposto. E nada disso será possível sem a introdução da dimensão
logística do Estado nacional, conforme também discutimos neste estudo.
Medidas urgentes, a evidenciar a vontade de construção de um novo paradigma que
melhor articule o federalismo brasileiro com a modernização empreendida pela
própria política e comércio exterior do país, são necessárias. Três ações podem
ser prontamente encaminhadas pelo governo central, em franca articulação com os
interesses das unidades subnacionais.
A primeira refere-se ao reforço que se faz necessário no acompanhamento de
experiências subnacionais que demonstram êxito na operação externa. As
articulações internacionais dos entes subnacionais adensaram-se no curto prazo
recente, sem uma visão de conjunto dos grandes interesses nacionais. Ainda
falta, no Brasil, um repertório crítico dessas experiências, seja relativo às
ações dos grandes, médios e pequenos estados da federação, seja em relação aos
grandes municípios, especialmente das capitais economicamente mais integradas
ao capitalismo global.
Os dados apresentados neste estudo relativos ao Estado do Ceará demonstram que
há novidades que não são conhecidas ou tratadas no âmbito da high politics
internacional do Brasil. O entrelaçamento dessas duas dimensões ' a da política
exterior e do comércio exterior ' no envolvimento das unidades subnacionais e
interesses socialmente constituídos em torno da idéia de federalismo social,
ainda é uma matéria de grande invisibilidade nos estudos e na formação do
processo decisório da política externa encetada pelo governo federal. Outros
estados federativos avançaram mais nessa matéria. O Brasil pode estar ficando
démodé no tratamento de relevante dimensão estratégica para um país continental
com interesses múltiplos e geografia complexa na cena internacional.
Em segundo lugar, a diplomacia dos governadores de Estado necessita operar em
maior consonância com a diplomacia do Estado federal e vice-versa. Área
sensível, animadora de crises permanentes do federalismo inconcluso no Brasil,
este é um campo que será necessária maior coordenação política. Uma medida
imediata nesta direção seria a incorporação, no processo negociador externo do
Estado nacional, de representantes dos entes federativos. Por múltiplas razões,
geográficas inclusive, alguns estados da federação estão mais envolvidos em
temas que lhes são mais atinentes, mas não são sempre convidados a opinar na
construção de políticas públicas ou externa com impacto na sua territorialidade
menor.
Esta é uma deficiência que necessita ser suprida imediatamente. Há, é certo,
alguns avanços nas relações externas dos estados do Sul do Brasil com seu
entorno "mercosulino" mas o mesmo não se pode dizer dos estados amazônicos em
relação ao seu meio sul-americano. Ou mesmo de estados do Nordeste do Brasil em
relação ao meio afro-caribenho, sem falar da logística que os impulsiona a
Europa e aos Estados Unidos. Permanece a carência, nas caravanas presidenciais
de visitas a países estratégicos para o comércio externo do Brasil, da presença
de governadores de estados relevantes para as negociações em curso. Neste caso
o Brasil está desperdiçando capital político que poderia ser aproveitado de
maneira mais salutar.
Em terceiro e último lugar, será necessário aparelhar melhor o Itaramaty e os
entes subnacionais com operadores para estes novos marcos das relações externas
federativas. O conservadorismo corporativo do Itamaraty, embora muito positivo
no que se refere aos grandes temas de interesse externo do Brasil, não tem
demonstrado capacidades operativa e cooperativa para as novas possibilidades
que se ensaiam. Burocracia excessiva e centralismo, nesta matéria, são
nefastos. O comércio opera em um espaço de tempo mais breve que o tempo
dilatado da política internacional. Uma nova formação de quadros, mais
ambientados com esses novos desafios, necessita ser pensada. Há também, neste
caso, experiências internacionais que merecem ser avaliadas, não para copiá-
las, mas para verificar sua pertinência e comparar com a nossa situação.