O papel da integração regional para o Brasil: universalismo, soberania e
percepção das elites
Introdução
A posição do Brasil no processo de integração regional, ao longo do tempo e
atualmente, deve ser compreendida à luz de fatores estruturais e históricos da
política exterior. Isso nem sempre implica rigidez e impossibilidade de
mudança, mas são aspectos que devem ser considerados para a exata compreensão
das dificuldades havidas. Essas não podem ser vistas, como às vezes se
argumenta, como originadas apenas em questões econômicas ou em visões não
convergentes em assuntos internacionais. Parece haver tensão entre necessidades
estruturais da integração e atitudes e posições de importantes atores sociais e
governamentais, não apenas da diplomacia. A origem está nas atitudes de parte
das elites e de grupos de interesse que contribuem para formar a vontade do
Estado.
Podemos considerar que dois conceitos muito importantes na formulação da
política externa, autonomia e universalismo, enraizados na sociedade e no
Estado, confluem para a construção de uma visão de inserção regional que
dificulta o aprofundamento do Mercosul.
Há razões objetivas para explicar as dificuldades havidas ao longo de vinte
anos. Uma refere-se ao desafio de integrar países em desenvolvimento, com
significativas assimetrias, com baixo grau de interdependência e com tradição
de instabilidade macroeconômica. O argumento diplomático e dos governos, nas
administrações Alfonsín, Sarney, Collor de Mello, Menem, Itamar Franco e
Cardoso, foi que a baixa institucionalização e o caráter intergovernamental do
processo seriam fatores que garantiriam avanços rápidos, prescindindo de
burocracias pesadas. A referência negativa à euro-burocracia de Bruxelas esteve
presente. A defesa do princípio da intergovernamentalidade por parte do Brasil,
não muito diferente da posição argentina, está ligada à concepção do lugar do
Mercosul no conjunto das relações internacionais do país.
Na percepção de alguns dos formuladores de política exterior, a idéia de
universalismo está associada às próprias características geográficas, étnicas e
culturais do país. Representaria, segundo Lafer (2004), a pluralidade dos
interesses do Estado e da sociedade, as afinidades históricas e políticas,
simbolizaria a preocupação em diversificar ao máximo as relações externas do
país, pluralizar, ampliar, dilatar os canais de diálogo com o mundo.
Consideramos hipótese deste trabalho que a estrutura do Mercosul, tal como
construída em seus primeiros 15 anos, de 1991 até 2007, é adequada às
percepções de parte das elites brasileiras, que teriam seus interesses
atendidos nessa estrutura existente. Esse modelo seria suficiente para dar a
sustentação considerada possível, ou a liberdade desejada, às ações
internacionais do país na Organização Mundial do Comércio (OMC), nas relações
com a União Européia (EU) e com os Estados Unidos, tornando o país independente
dos constrangimentos de uma União Alfandegária e de um Mercado Comum apoiados
sobre maiores níveis de institucionalização. Esses maiores níveis, nessa
perspectiva, condicionariam os Estados-parte, mesmo considerando o diferencial
de poder. Complementando, argumentaremos que esse modelo de integração seria
compatível com o alargamento do bloco, viabilizaria a inclusão de novos
membros, o que acaba por realimentar a forma intergovernamental e a baixa
interação entre as políticas nacionais nos diferentes aspectos.
Em meados dos anos 80, quando a política brasileira empreendeu o caminho do
estreitamento das relações com a Argentina, a idéia do universalismo não foi
abandonada, mas ganhou novo significado. Houve a tentativa de entrelaçar
interesse nacional com interesse regional do Cone Sul. No caso brasileiro,
prevaleceu a idéia que o interesse nacional seria mais bem atendido num
processo de integração abrangente. Para isso, confluíram diferentes
perspectivas, inclusive empresariais. Em seguida, setores sindicais e outros
grupos, inclusive intelectuais, somaram-se. Discutiremos como esse
entrelaçamento parece correr o risco de dilapidação, tanto na Argentina quanto
no Brasil, limitando decisivamente as possibilidades do Mercosul.
Ao mesmo tempo em que houve junção da idéia de interesse nacional com o
regional do Mercosul, o conceito de autonomia conservou caráter primordial
(GUIMARÃES, 12.05.2006a). Discutiremos que, numa perspectiva histórica, sendo a
autonomia objetivo de qualquer Estado-nação, ela tem características que se
adaptam ao longo do tempo. "As expressões do que é autonomia variam histórica e
espacialmente, variam segundo interesses e posições de poder" (FONSECA Jr.,
1998: 361). O conceito admite diferentes abordagens em função da configuração
de um determinado período histórico, bem como das visões de mundo da população
e das elites. A idéia de autonomia na segunda metade dos anos 80, e ainda para
uma parte do Estado e da sociedade nos anos 90 e até hoje, significou autonomia
frente ao mundo exterior, capacidade de decisão frente aos centros de poder
internacional, viabilizando ao Brasil determinar suas escolhas. O Mercosul não
seria visto como limitador de autonomia, ao contrário, o compartilhamento de
interesses aumentaria as capacidades externas. Nosso objetivo será discutir
como os dois conceitos, autonomia e universalismo, foram processados. Na nossa
perspectiva, há um movimento no sentido de estabelecer ou de restabelecer seus
significados. Isso teria a conseqüência de desenhar uma política exterior pela
qual se reduz o significado do Mercosul, sobretudo das relações com a
Argentina. Isso contribui para explicar a crise do bloco regional e a
dificuldade para sua afirmação.
Revisão do paradigma da inserção internacional: o significado do Mercosul
Na década de 1980, ganhou força a idéia de repensar o modelo de desenvolvimento
econômico do país, inclusive o seu relacionamento com o exterior. Contribuíam
para isso o esgotamento do modelo de substituição de importações, a crise da
dívida externa, a alta inflação e a estagnação econômica. A soma desses fatores
abalou o padrão de desenvolvimento vigente, ao cortar o investimento externo,
levando ao desinvestimento (SALLUM JR, 1999) e diminuindo a taxa de poupança
interna, para a qual o Estado tinha tido papel importante.
Enquanto o mundo assistia à ascensão dos valores neoliberais, nos dois últimos
anos do governo Sarney, foram realizados estudos sobre as relações econômicas
internacionais, particularmente na Carteira de Comércio Exterior (Cacex) do
Banco do Brasil, coincidindo com o desenrolar das negociações da Rodada Uruguai
do Gatt, sobretudo a partir da Conferência Ministerial de Montreal, de dezembro
de 1988 (PEREIRA, 1992; MELLO, 2000). Neles prevalecem visões críticas do
anterior nacional-desenvolvimentismo e o direcionamento para uma perspectiva de
maior abertura externa. Perspectiva essa que posteriormente orientou a abertura
econômica intensificada no governo Collor de Mello.
Observe-se que o início da integração com a Argentina (Declaração de Iguaçu,
novembro 1985; Programa de Integração e Cooperação Econômica ' Pice, julho
1986; os 24 Protocolos decorrentes; Tratado de Integração, Cooperação e
Desenvolvimento, (novembro 1988) correspondeu a uma lógica desenvolvimentista,
visava estimular a emulação empresarial, para a modernização e a inserção
competitiva no sistema econômico internacional (PEÑA, 1991). O mercado interno
ampliado era considerado um pressuposto. Essa fase fortaleceu em parte das
elites brasileiras, incluindo grupos empresariais e funcionários do Estado, a
percepção de que o compartilhamento de interesses melhoraria a inserção
internacional, viabilizando maior auto-estima. Mesmo no momento do Tratado de
Integração, Cooperação e Desenvolvimento, que desenhou o Mercosul e deu caráter
estável e forte à aliança Argentina ' Brasil, prevaleceu a perspectiva
intergovernamentalista. Utilizando as palavras de Moravcsik (2005: 376), ao
falar hoje da União Européia (EU), nas relações Argentina ' Brasil sempre houve
a idéia de que "there is, moreover, an undeniable normative attraction to a
system that preserves national democratic politics for those issues most
salient in the minds of citizens". Alguns autores consideram que a preocupação
pela estabilidade democrática jogou papel fundamental para a integração no Cone
Sul. Provavelmente se trate de uma forte atração pela vida política
nacionalmente estabelecida, como indica Moravcsik (2005). O desenho que foi
adquirindo o Mercosul corresponderia às preferências que se manifestam nas
sociedades política e civil nacionais.
No processo de revisão que se processava em órgãos com o ministério da Fazenda,
os Bancos do Brasil e Central, paulatinamente absorvida pela diplomacia
brasileira, a aproximação Brasil ' Argentina era vista como fundamental em
termos de política internacional, conquistava adeptos em parte na diplomacia e
ao mesmo tempo apresentava-se ligada à estratégia do paradigma universalista
(FLECHA DE LIMA, 1989: 30-31). Ela parecia fortalecer a idéia de uma melhor
presença no mundo, política e econômica, assim como parecia viabilizar maior
peso na formulação de regimes e nas instituições internacionais. A aliança
estaria relacionada com a capacidade em reformar diretrizes econômicas. Para
alguns, avançar no processo de integração regional aumentaria a capacidade nas
relações com os maiores centros de poder, particularmente com os Estados Unidos
(AMORIM e PIMENTEL, 1996). Essas diferentes perspectivas viabilizaram que a
aliança fosse partilhada tanto por setores ligados à tradição nacionalista,
quanto por setores que consideravam a inserção do Brasil na ordem internacional
liberal inevitável.
Estabelece-se, dessa forma, o nexo entre a integração regional, o Mercosul e a
aliança com a Argentina, com a preservação dos valores universalismo e
autonomia. O regionalismo não diminuiria, mas reforçaria o paradigma
universalista de inserção internacional brasileiro. A idéia da "modernização
via internacionalização" (PRZEWORSKI, 1993), que traria reflexos diretos ao
paradigma de inserção internacional, nessa fase, ao longo dos anos 90, não se
chocou com o regionalismo. O conceito de regionalismo aberto foi utilizado na
perspectiva da plena inserção internacional, aproveitando as vantagens de uma
área de livre comércio, sem criar os instrumentos necessários para políticas
regionais de desenvolvimento e de complementaridade, portanto, sem políticas
públicas voltadas ao objetivo da sustentabilidade da integração. O valor
autonomia permaneceu enraizado nas esferas da administração e dos empresários,
agora sob a égide de um conceito importante, elaborado, a autonomia pela
integração (FONSECA Jr., 1998).
O valor autonomia, portanto, com o Mercosul, não foi anulado. Ele se
reapresenta sob outras formas. Há preocupação pela reafirmação de papel
próprio, soberano, no mundo. Manifesta-se, da mesma forma, em relação aos
países ricos, com os quais se procura maior integração, sem abdicar dos
interesses nacionais considerados fundamentais (CARDOSO, 2001). Paradoxalmente,
nas relações do Brasil com o seu entorno mais próximo, o Mercosul e a América
do Sul, a idéia de autonomia se manifesta sob a forma de insistente
revalorização da potencialidade de ação nacional especifica, não sujeita às
amarras que uma integração institucionalizada poderia acarretar.
A tradicional posição brasileira buscando ter um papel relevante no mundo, não
essencialmente diferente da posição argentina e do governo Menem, reflete-se no
objetivo permanente de buscar um papel destacado para o Brasil. Lafer (1993a)
fala da necessidade do Brasil ter uma participação mais ativa na cena
internacional. Queremos sublinhar que após uma fase, de 1985 em diante, em que
as relações com a Argentina ganharam proeminência efetiva para a estratégia
internacional do Brasil, mantendo seu grande significado na década de 90,
parecem agora serem temperadas pela forte preocupação universalista de novo
tipo. Uma manifestação significativa dessa evolução surge no governo Itamar
Franco: a iniciativa de articular um novo projeto de integração sul-americana.
Apresentada como não antagônica ao Cone Sul, ao contrário, como complementar, a
proposta de criação da Área de Livre-Comércio da América do Sul (ALCSA) indica
haver espaço para o surgimento de iniciativas que terão curso nos anos
sucessivos, até os dias de hoje. Sinalizam relativa atenuação do forte desejo
inicial de estruturar sinergias focalizadas no Mercosul, criando
complementaridade e um sistema produtivo integrado visando o mercado comum.
Parece ter-se diluído o impulso inicial pelo desenvolvimento em comum, mas
subsiste a busca de possíveis vantagens econômicas proporcionadas pelo
adensamento do intercâmbio e outras.
Na perspectiva brasileira, visto retrospectivamente, o Mercosul surge de forma
claramente ambígua, o que não é essencialmente diferente na parte argentina.
Colocado no topo das prioridades internacionais, no caso brasileiro, onde a
força do universalismo permanece, ele é apresentado como instrumento muito
importante, mas sempre instrumento. Não haveria uma clara especificidade da
integração, não seria um fim em si mesmo. No momento da constituição do
Mercosul os governos explicitam isso:
ao firmar o Tratado de Assunção, os quatro presidentes partem da
percepção comum de que o aprofundamento do processo de integração
pode ser a chave para uma inserção mais competitiva de seus países
num mundo em que se consolidam grandes espaços econômicos e onde o
avanço tecnológico-industrial se torna cada vez mais crucial para as
economias nacionais (Ministério das Relações Exteriores, 1991: 279).
A lógica instrumental vai-se afirmando e prevalece.
O Mercosul é um processo essencialmente aberto ao exterior. No caso do Brasil,
o desenvolvimento do Mercosul é parte de um amplo esforço de abertura
econômica, liberalização comercial e melhor inserção na economia mundial. O
processo de integração não é concebido como um fim em si mesmo, mas como
instrumento para uma participação mais ampla no mercado global" (LAMPREIA,
1995: 135).
A crítica ao liberal-intergovernamentalismo produziu idéias importantes no
tocante à interpretação da lógica instrumental da integração. Sandholtz e Sweet
(1998: 26) afirmam que a análise da integração européia exige considerar
variáveis que não subestimem relações que produzem resultados aceleradores do
processo de integração. Para eles, a integração interfere em variáveis
políticas. Quando isso não acontece, é preciso buscar explicações. Em outras
palavras, a integração não é um fenômeno estático, tem aspectos auto-
propulsores, alguns os chamam de fenômeno da bicicleta.
Nardin (1987) desenvolve conceitos úteis para o nosso objetivo. Ao discutir as
formas de associação internacional, sintetiza as possibilidades em duas:
associação prática e associação de objetivos. A associação prática seria aquela
em que as relações entre Estados não estão necessariamente engajadas em
qualquer busca comum, mas que, apesar disto, têm de conviver um com o outro.
Portanto, a associação é instrumental. Ao contrário, a associação de objetivos
é aquela em que os Estados cooperam para o fim de assegurar certas crenças,
valores e interesses partilhados, que têm objetivos comuns. O próprio Nardin
mostra-se cético quanto à possibilidade de no sistema internacional
encontrarmos associação de objetivos.
O desenvolvimento do Mercosul não se apresenta uniforme. Podem-se apontar três
fases distintas. A primeira, que antecede o primeiro mandato de Cardoso, vai de
1991 a 1994: do Tratado de Assunção ao Protocolo de Ouro Preto, é durante esse
período que se consolida o desenho institucional. Em seguida, de 1995 a 1998,
observa-se a continuidade da expansão comercial intra-bloco, que alcança o seu
ponto máximo. A partir de 1999, com a crise do real e sua desvalorização e a
posterior recessão Argentina, de 2001, o Mercosul evidencia crise, cujos
desdobramentos não eram e ainda não são claros. Como iremos argumentar, além
dos elementos conjunturais, que se expressam por seguidos contenciosos
comerciais e políticos, questões estruturais, relativas às economias dos países
envolvidos, e valores enraizados nos Estados e nas sociedades, devem ser
considerados na busca de explicações consistentes.
As crises econômicas, de diferentes matizes, vividas pelos países do Mercosul
expressam esta lógica. As crises nacionais não foram momentos de ajustes no
processo de integração, ocasiões de busca oportunidades. De fato, elas
redundaram em debilitamento da integração e redução do esforço de
complementaridade.
As dificuldades nas economias nacionais podem explicar determinadas posições e
contribuíram para a atitude de grupos empresariais e de setores das elites.
Nosso ponto de vista é que os elementos materiais não são por si só
explicativos. O fato de Brasil e Argentina, alternadamente, terem entre si
déficits comerciais, contribuiu para a percepção de que a integração regional
poderia ser nociva para as economias locais. Cada vez que isso se dá em
determinada direção, as posições protecionistas voltaram a brotar. No caso
brasileiro, a crise argentina de 2001 reacendeu a sempre latente e enraizada
concepção de que o Mercosul representa uma perspectiva estreita para a
potencialidade econômica e política brasileira. Inversamente, o superávitdo
Brasil, após a desvalorização do real de janeiro de 1999, é apontado na
Argentina como uma das causas principais de sua própria crise do final de 2001.
A partir daí, a desvalorização do peso, após ter estado de 1991 a 2001 ancorado
ao dólar, gerou uma queda no PIB argentino de 10,9% (KUME e PIANI, 2005),
fortalecendo, do lado brasileiro, a crença de que a instabilidade
macroeconômica não oferece bases duradouras para a integração.
A experiência do Mercosul sugere que os benefícios econômicos da integração são
elementos necessários, mas não suficientes para garantir continuidade e
aprofundamento. Da mesma forma, essa experiência demonstra os limites de uma
integração fundamentada apenas em aspectos utilitários, esses são insuficientes
para garantir a dinâmica, ainda que sejam condição sine qua non. A integração
não pode ser pensada apenas enquanto projeto de política externa, exige forte
intersecção com um projeto de política interna (BUENO DE MESQUITA, 2005). A
percepção de que o partner estaria em situação de vantagem no que diz respeito
aos benefícios obtidos com o processo de integração foi sempre prejudicial à
continuidade dos esforços de consolidação do Mercosul. Se isso valeu para
Argentina e Brasil, o mesmo pode ser dito para Paraguai e Uruguai. Desse modo,
pode-se afirmar que elementos da perspectiva realista de relações
internacionais, que prevaleceu secularmente nas relações do Cone Sul, não
desapareceram totalmente. Isto é, manteve-se no seio dos aparelhos do Estado e
em setores da sociedade a preocupação pela necessidade de incrementos nos
benefícios que não alterassem as relações pré-existentes.
Expectativas teóricas da integração regional e o caso do Mercosul
Entre as contribuições teóricas para compreender a integração regional,
destacam-se a neofuncionalista e a intergovernamentalista. Buscaremos dialogar
criticamente com essas teorias e, ao mesmo tempo, demonstrar as
particularidades do processo de integração do Cone Sul que estabelece tensão
entre as variáveis centrais dessas teorias, formuladas no bojo do processo de
integração europeu, ainda que lhe reconheçamos, obviamente, validade geral.
Haas (1964), que teve papel central na consolidação dos estudos e da agenda de
pesquisa sobre integração regional, particularmente do europeu, reconsiderou
alguns pressupostos funcionalistas, condicionando-os aos impulsos políticos dos
centros decisórios. Ele apontou que a integração regional é essencialmente um
processo de transferência de funções e lealdades dos Estados para instituições
supranacionais. Na sua percepção, a partir de determinado impulso inicial
burocrático-estatal, que teve muita importância para o inicio do Mercado Comum
Europeu, antes e após o Tratado de Roma de 1957, o processo de integração
transbordaria para a sociedade como um todo, que, por sua vez, buscaria formas
de melhor intervir e participar do processo. Num determinado momento, a
integração ganharia uma dinâmica própria, menos dependente da vontade política
dos governos, e mais relacionada com as expectativas de ganhos e perdas dos
principais grupos internos dos países envolvidos.
Ao mesmo tempo, Haas (1964) incorpora o pressuposto funcionalista que as
lealdades políticas estariam relacionadas com a eficiência de determinada
agência, seja ela nacional ou regional. No caso do Mercosul, apesar de uma
razoável eficiência do bloco, com adensamento das relações a partir de 1991,
não se desenvolveram agências ao redor das quais desenvolver lealdades. Ao
mesmo tempo, a dinâmica manteve-se fortemente ligada às iniciativas dos
governos e dos presidentes, o que atenuou aos poucos a expectativa dos agentes
quanto à possibilidade de ganhos. O forte papel do executivo como principal
agente do processo, se confirma pelo fato da reunião semestral dos presidentes,
o Conselho do Mercosul, ser o órgão centralizador das decisões, em relação ao
qual convergem todas as expectativas. Essa situação, apesar de reconhecidamente
positiva para a integração (MALAMUD, 2000), no final dos anos 90 e no início do
século XXI torna-se um problema, sobretudo se pensarmos, como fazem os
funcionalistas, que o parâmetro de sucesso é sua capacidade de modificar a
realidade anterior à constituição de um bloco regional, produzindo novos
comportamentos.
Os autores que desenvolveram essa matriz teórica destacam que, para o objetivo
da integração, os atores sociais e econômicos devem participar ativamente do
processo, nele interferindo a partir de determinado ponto após o take
offinicial, buscando pressionar e convencer as elites nacionais a transferirem
ou não parcelas de soberania para a esfera regional. Um aspecto importante é a
participação, o efeito mobilizador da integração, que, por sua vez, está ligado
à satisfação de interesses. Essa situação possibilitaria o aprofundamento do
processo e facilitaria sua propagação e manutenção. O incremento da ação dos
atores sociais e econômicos e das elites faria com que aumentassem as demandas
visando o gerenciamento comum de interesses, exatamente o spillover. A espiral
crescente de intervenção e integração para regulamentação destes interesses
constituiria o motor que garantiria a continuidade da integração. Para esta
abordagem, que implica expansão, se o impulso parar, ou seja, se a
retroalimentação baseada no movimento cessar, todo o processo poderá ser
colocado em risco. Essa visão da integração não significa necessariamente
ausência de conflitos e de dificuldades, mas transmite bem a idéia da
continuidade, que alguns, como dissemos, chamam de teoria da bicicleta. Ou
seja, essa perspectiva de análise é fundamentalmente dinâmica. Os níveis de
integração regional são muito diferentes, de área de livre comércio a união
política, formas federativas ou confederativas. Nos níveis inferiores de
integração, a idéia de espiral crescente é também importante, como pode ser
visto pelas dificuldades existentes no caso da Área de Livre Comércio da
América do Norte (Nafta).
A partir de determinado momento, mesmo antes de 1998, houve uma diminuição do
interesse da sociedade e das empresas pela integração. Isso foi particularmente
visível no setor automotivo. As multinacionais, General Motors, Volkswagen,
Fiat, Ford, desde 1986 e mais acentuadamente no inicio da década de 90,
planejaram produção e investimentos integrados, inclusive visando a utilização
do Mercosul como possível plataforma global de exportação de uma parte de seus
produtos, sobretudo caminhões e carros médios e pequenos. A partir de metade da
década de 1990, mais acentuadamente a partir de 1997, com as dificuldades
comerciais e políticas, a perspectiva de atuar regionalmente foi se atenuando.
O que contribuiu para aumentar a crise no bloco, pois, frente a riscos
protecionistas, parte das empresas privilegiou o mercado maior, o Brasil. No
que se refere ao interesse da opinião pública e dos políticos, também foi
atenuando-se.
Se, como afirma Kratochwil (2006), a forma como as idéias são construídas
internamente se relaciona com o quadro normativo que estabelece as diretrizes
de ação externa, então, para o entendimento das ações externas de um país, faz-
se necessário analisar as normas e as regras que orientam suas escolhas. As
percepções e valores justificam e tornam aceitáveis ou não determinadas ações
externas. Em outras palavras, uma forma de medir a dinâmica da integração
regional reside em verificar se as questões relativas ao partner se tornam
problemas da própria política interna.
De acordo com os autores neofuncionalistas, desde Haas (1964; 1975) até
Schmitter (2003), a integração regional só ocorre efetivamente quando os
interesses das principais elites são atendidos. Se as expectativas desses
setores convergirem com a da integração, surgiria então uma mobilização que
daria sustentação ao processo. Por outro lado, caso isso não ocorra, a
tendência é o retrocesso. Portanto, aprofundamento e expansão da integração
estariam relacionados com a capacidade dos governos em garantir a continuidade
dos ganhos materiais e simbólicos para as elites, visto seu papel de fiador da
integração. Da mesma forma, a implementação de políticas que visem conter as
pressões dos grupos prejudicados pelo processo de integração são muito
importantes, visto que os grupos e as elites prejudicadas têm grande capacidade
de pressão, proporcionalmente maior que o das beneficiadas. Estes últimos, os
beneficiados, em geral se apresentam sob forma de interesses difusos (PASTOR e
WISE, 1994). Essa perspectiva é fundamental para a nossa análise, pois nossa
hipótese, como vimos, refere-se exatamente ao fato de que a percepção de mundo
das elites brasileiras, políticas, econômicas, sociais, tem papel de grande
significado para explicar as dificuldades estruturais do Mercosul no século
XXI.
A utilização desse quadro analítico para interpretar a integração do Cone Sul
exige reflexão. Moravcsik (2005) considera que essa abordagem pouco nos diz
sobre as origens das preferências dos Estados e sobre os resultados das
barganhas inter-estatais. O Mercosul obteve relativo sucesso em termos de
crescimento do seu intercâmbio extra-bloco. Isso se expressa nos números da
balança comercial, quando a evolução do comércio exterior total do bloco foi
razoavelmente positiva, passando de US$ 73,8 bilhões em 1990, para US$ 148,2
bilhões, em 2002, chegando a mais de US$ 300 bilhões em 2006. O incremento
percentual nas relações comerciais intraregionais manteve-se acima daquele
total, apesar da crise de 2001 ' 2002. Portanto, o comércio intraregional
cresceu proporcionalmente mais (KUME e PIANI, 2005). O Mercosul teve
significações além do comércio, gerando interesse além desta esfera. Ainda que
de forma limitada, o processo de integração atingiu grupos de diferentes
esferas: centrais sindicais, universidades, cultura, políticos, funcionários,
etc..
A evolução do Mercosul permaneceu indefinida ao longo da década de 1990: mesmo
os acontecimentos de 1999 e 2001 não trouxeram como conseqüência um
aprofundamento insuportável da crise. No entanto, o interesse pela integração
não cresceu a ponto de criar uma dinâmica própria, como sugere a análise
neofuncionalista. Não foi gerado impacto significativo na sociedade. A dinâmica
do bloco não levou ao início de um efetivo processo de institucionalização,
ainda que haja iniciativas embrionárias e parciais, como o Tribunal Permanente
de Revisão, com sede em Assunção, instalado em agosto de 2004. A lógica
intergovernamental, associada a um papel importante dos governos e das
presidências, viabilizou que fosse mantido um determinado equilíbrio, que acaba
por garantir níveis de integração de baixa intensidade. Figurativamente, a
bicicleta parece estar em equilíbrio, mas parada. Para a diplomacia brasileira,
idéia consolidada nas análises dos funcionários, seja na perspectiva liberal
seja na nacionalista, prevaleceu a confiança de que os contatos entre os
Estados-parte poderiam ocorrer com um mínimo de burocratização, priorizando a
forma não institucionalizada, ao invés de procedimentos e regras de qualquer
natureza.
A lógica da baixa intensidade vale para as relações entre os governos e entre
as esferas da sociedade civil. Aplicou-se aos órgãos do Mercosul, o Conselho, o
Grupo Mercosul, os Fóruns, as Comissões, os sub-grupos de trabalho. As
mediações e as resoluções dos problemas seguiram este percurso. Foram-se
criando as condições para que questões ordinárias em processos de integração,
conflitos entre setores, entre cadeias produtivas ou mesmo entre empresas,
fossem levados à arbitragem daqueles que eram tidos como as instâncias mais
capazes e confiáveis para resolver ou arbitrar problemas, ou seja, os
presidentes (MALAMUD, 2000). A crise das papeleras, a partir de 2005, mostra a
debilidade dos mecanismos regionais, onde se recorre a arbitragens extra-
regionais. A montagem de um tecido de relações que operacionalizasse a
integração não avançou. Isso viabilizou que interesses setoriais, corporativos,
regionais pudessem ter grande visibilidade. Permitindo uma nova espiral que
viria a fortalecer as perspectivas nacionais, como se mostrou ao final dos
governos Menem e Cardoso, nos governos De La Rua, também depois, nas
presidências Kirchner e Lula da Silva. Vaz (2002) considera que desde o
Cronograma de Las Leñas, de 1992, criaram-se pressupostos, que se demonstraram
definitivos, para a natureza intergovernamental das negociações e do próprio
Mercosul.
Nas teorias de integração regional, o papel dos Estados e das elites está
entrelaçado com a disponibilidade da sociedade em geral. O Mercosul, num certo
sentido, tem características específicas. Não invalida a afirmação a respeito
do entrelaçamento, mas acentua um fato que é difícil encontrar em outros
processos de integração. O Mercosul foi impulsionado pelos chefes de Estado, no
caso do Brasil, amparado pela diplomacia, em alguns casos com apoio de grupos
do ministério da Fazenda, com a ausência de pressões ou de demandas por
cooperação por parte das elites e dos grupos de interesse. Alguns setores
empresariais no despontar da cooperação Argentina ' Brasil, a partir de 1986,
aderiram com interesse, mas não mantiveram a força de sustentação ao longo do
tempo.
No núcleo do Estado brasileiro não se desconhecem as implicações do formato
intergovernamental da integração. Surgem sinais de haver ao menos preocupação
pelos limites colocados, já que o baixo nível de institucionalização parece ter
sido o resíduo natural dessa estratégia adotada. Cardoso escreveu: "Creio que
estamos chegando ao limite do que é possível fazer antes de dar um passo maior
no sentido da institucionalização" (CARDOSO e SOARES, 1998: 266). A verificação
dos limites e as importantes implicações para a estratégia internacional do
Brasil não são desconhecidas. Lima (2007) mostra que há uma real erosão da
coalizão doméstica em relação ao que classifica como patrimônio da política
exterior do Brasil, a aliança estratégica com a Argentina e o Mercosul. Ao
mesmo tempo, mostra como essa política havia sido o resultado da convergência
de setores favoráveis à abertura econômica e setores desenvolvimentistas. Após
uma trajetória de vinte anos, pode-se afirmar que os setores que compuseram a
coalizão não souberam produzir políticas suficientes de integração. Ao
contrário, em razão de interesses econômicos e políticos, não quiseram dar-lhe
o suporte necessário. A escassez de recursos simbólicos e financeiros
investidos confirma a conclusão: em 2006, 15 anos depois do Tratado de
Assunção, implementa-se o Fundo de Convergência Estrutural, com recursos de US$
100 milhões, visando atenuar as conseqüências desfavoráveis da integração nos
Estados menores, Paraguai e Uruguai.
Frente a isso, os sinais de preocupação pelos limites colocados pelo formato da
integração, se sucedem, mas não parecem suficientes para superar as debilidades
estruturais. O presidente Lula da Silva parece aproximar-se da questão: "O
Mercosul tem diante de si o desafio de reinventar-se e atender às expectativas
de todos os seus membros. Temos de desenhar mecanismos que equacionem em
definitivo as assimetrias, inclusive com o aporte de novos recursos." (SILVA,
2006). Sabemos que na sociedade brasileira essa perspectiva não apenas não é
consensual, enfrenta resistências reais. Em 2005, a Assembléia Legislativa do
Rio Grande do Sul, em evidente ato inconstitucional, votou o bloqueio da
importação de arroz do Uruguai em razão dos prejuízos advindos aos produtores
riograndenses.
Segundo Moravcsik (1994), a coordenação política negociada, ou seja, a
estrutura organizacional baseada em baixo enraizamento institucional e em
negociações diretas entre os governos envolvidos, num processo de integração
regional poderia servir como uma forma de controle do processo por parte dos
participantes. Isso serviria como um incentivo aos países menores para
aceitarem participar de um bloco assimétrico e, ao mesmo tempo, para os países
maiores aceitarem a idéia de cooperação, na medida em que os riscos da
integração seriam menores com a perda mínima de soberania. No caso do Mercosul,
vistas as assimetrias de poder, inclusive sob o ponto de vista econômico, o
liberal intergovernamentalismo poderia parecer instrumento explicativo dos
limites que estamos discutindo. Essa explicação é importante, diríamos
decisiva, como vimos para a parte brasileira, para explicar a integração de
Argentina e Brasil, mas também para explicar a adesão do Uruguai logo depois do
Tratado de novembro de 1988, e do Paraguai em 1990.
Um paradoxo que surge da aplicação do liberal intergovernamentalismo ao
Mercosul, resulta da tendência histórica dos processos de integração. Esses
processos, mesmo quando são áreas de livre comércio ou outras formas de baixa
intensidade, tendencialmente criam alguma forma de institucionalização para
coordenar seu funcionamento ou para outros fins, como acontece em qualquer
organização internacional. Um processo de integração regional tende a
ultrapassar o objetivo inicial ao desencadear alterações nos Estados
participantes em razão do movimento inicial (MATLARY, 1994). No caso do Brasil,
o enraizamento dos conceitos de autonomia e universalismo consegue
contrarrestar essa tendência. Com isso, explicar-se-ia a irregularidade
teórica, a dificuldade de analisar o Mercosul de acordo com as teorias
consolidadas.
O liberal intergovernamentalismo considera a interdependência como uma condição
necessária e motivadora da integração. Mesmo com o desenvolvimento da
integração, os constrangimentos resultantes da cada vez maior interdependência
não afetariam a condição dos Estados de controlar as principais decisões
referentes à integração e a outras ações internacionais. No caso do Mercosul, a
relação entre interdependência e integração não ocorreu da forma como defendida
por esses autores.
A inicial motivação política, com o desdobramento econômico adquirido, não teve
o fôlego que tanto o intergovernamentalismo quanto o funcionalismo apresentam
como conseqüência inevitável da integração. Também a idéia de coleção de
contratos, contribuindo para ampliar o grau de interdependência entre os
membros e reforçando a legitimidade do processo, não se confirma totalmente.
Assim, as duas correntes teóricas não são aplicáveis plenamente, nem podem ser
totalmente refutadas com base nos dados concretos do processo de integração no
Cone Sul.
No caso do Brasil, parece ter havido uma deliberada vontade, como veremos
adiante, no sentido de evitar ultrapassar os compromissos iniciais ou mesmo os
seguintes, que se mantiveram na trilha da prudência. Ao mesmo tempo, a
integração regional foi considerada como necessária para alcançar
credibilidade. Talvez, a integração tenha sido utilizada de forma seletiva.
Útil em parte na resistência às negociações para a Alca e com a União Européia,
não necessária para as negociações na OMC ou mesmo na ONU.
Autonomia, Universalismo e a posição brasileira no Mercosul
A diplomacia brasileira teve papel significativo no modelo de integração
construído ao longo dos anos, caracterizado pela baixa institucionalização e
por sua essência basicamente intergovernamental. Papel central, mas não único.
No Brasil, essa posição foi, ainda que passivamente, compartilhada pelo
conjunto do governo nacional em diferentes administrações, em sua esfera
política e burocrática, pelos empresários, pelo Congresso, pelos governadores
do estados, etc.. Como afirma Vaz (2002: 223),
se essa posição era a do Brasil, não essencialmente diferente era a
Argentina. Para o Brasil, dado seu peso majoritário no bloco, não
interessava a cessão de soberania a uma instância supranacional, em
que teria diluída a capacidade de forjar decisões e de preservar seus
interesses em relação ao bloco, cuja importância para o país
extrapolava o domínio comercial. Para a Argentina, a cessão de
soberania, em matéria de política econômica e comercial implicava
perder, definitivamente, a capacidade de exercer algum grau de
liberdade na condução da política comercial, que era precisamente o
que o governo argentino buscava resguardar naquele momento.
Para Mariano (2007: 194), no caso do Brasil, trata-se de um efetivo padrão de
comportamento "baseado na busca de autonomia enquanto princípio fundamental e
do desenvolvimento enquanto objetivo central".
Em pesquisas desenvolvidas (CEDEC e PUC/SP, 2002; CEDEC, UNESP, PUC/SP E FGV/
SP, 2004), pudemos medir o baixo índice de adaptação e de sensibilidade dos
governos estaduais e municipais no Brasil às questões internacionais e da
integração. Comprovamos que as elites políticas e administrativas regionais não
consideram essas questões como atinentes à própria ação de governo. Isso tem
forte implicação para a política nacional, refletindo-se na representação
parlamentar, levando ao não entrelaçamento de temas com clara repercussão para
a integração regional, com temas nacionais, como, por exemplo, a reforma
fiscal. Isso fortalece uma tendência pela qual o Brasil buscaria sempre as
formas intergovernamentais, com isso buscando manter bom grau de autonomia.
Pinheiro (2000: 326-327) considera que o grau de comprometimento que o Estado
brasileiro assume nas questões internacionais varia conforme seus recursos de
poder. A postura do Brasil no entorno geográfico seria pautada por uma lógica
de ganhos, de usufruto das vantagens oriundas de relativa assimetria. Ao passo
que a atuação multilateral seria lastreada numa lógica de ganhos absolutos na
busca de manutenção da autonomia e da possibilidade de exercício do
universalismo. Assim,
o institucionalismo pragmático supõe que ' e trabalha no sentido de '
quanto maior a presença brasileira no sistema internacional através
de instituições, maior o acesso ao desenvolvimento e à autonomia de
ação. Ocorre que, tendo a busca de autonomia maior peso na diplomacia
brasileira que a busca de justiça, se admite que aquela possa ser
buscada tanto mediante arranjos de cooperação com alto grau de
institucionalização, quanto por outros, cujo grau de
institucionalização é mantido propositalmente baixo a fim de garantir
a posição de liderança do país.
Para a autora, isso permite conciliar as naturezas hobbesiana e grociana,
reforçando o institucionalismo, viabilizando a adesão a normas e a regras. O
tratamento graduado e variável tem finalidades instrumentais. Desse modo, é
possível no quadro de um subsistema de poder alcançar maior autonomia e, ao
mesmo tempo, reforçar com a ação multilateral a própria voz no sistema
universal.
Nas atas das reuniões do Grupo Mercado Comum, nos anos iniciais, surgem sinais
que, embora não tenham tido conseqüências efetivas, devem ser interpretados
como dirigidos a favorecer formas de integração onde há superposição entre
interesse nacional, Projeto Nacional e integração, permitindo a autonomia, mas
sem statusprivilegiado. Por exemplo, em 1992, o Grupo aprovava agenda de
ministros da Economia e presidentes de Bancos Centrais em que deveria ser
tratada "a situação econômica e a análise da convergência das políticas
econômicas nacionais" (GRUPO MERCADO COMUM, 1992: 18). No entanto, a partir de
1996 e 1997, período em que se combinaram problemas comerciais específicos com
significativos desencontros relativos à inserção internacional, ganham peso no
Brasil os setores que na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(FIESP), na Confederação Nacional da Indústria (CNI), nas entidades
representativas do agribusiness, entre altos funcionários, na imprensa, têm a
percepção de que o Mercosul estreitaria a capacidade universalista do país.
Contribuem para esta inflexão razões objetivas, que não são objetivo de nossa
análise: o avanço das negociações para a criação da Alca, as negociações para o
início de uma nova Rodada na OMC, o começo da discussão sobre o papel dos BRICs
(Brasil, Rússia, Índia, China). Estas negociações ou orientações não
necessariamente deveriam enfraquecer o Mercosul. Mas isso acabou acontecendo
pois, como vimos, a idéia da integração nunca chegou a ser assimilada com a
devida profundidade no conjunto das elites brasileiras.
A potencial perspectiva de ganhos de escala em termos econômicos e comerciais,
estimulou a concentração de esforços na busca de acesso aos maiores mercados,
levou à retomada dos temas da autonomia e do universalismo, que nunca foram
abandonados, agora com um sentido restritivo em relação ao Mercosul. O
argumento maior utilizado foi a necessidade de garantir liberdade para agir no
sistema internacional. Apenas a relação com a União Européia parece evoluir em
sentido diferente, vista a decisão da União de negociar com o Mercosul, não
separadamente com cada país.
Neste início de século XXI, os governos Kirchner e Lula da Silva não apresentam
sinais ideológicos muito diferentes, no entanto, isso não viabilizou o
aprofundamento do Mercosul, ainda que tenha viabilizado políticas comuns em
casos específicos. A concordância entre os dois governos em alguns temas,
demonstra certas identidades, mas não suficientes para sustentar formas de
integração com ações de cooperação que aprofundem de modo irreversível o
processo. No quadro de referência conceitual do Estado brasileiro existe essa
preocupação, mas não consegue tornar-se realidade.
A pedra angular [da integração regional] é a relação bilateral com a Argentina.
A grande convergência entre os pontos de vista dos presidentes Lula e Kirchner,
nas questões mais urgentes que enfrentamos, foi expressa no 'Consenso de Buenos
Aires', adotado em outubro de 2003. Esse documento reflete nossa aspiração em
comum pelo crescimento econômico unido à justiça social, e manifesta nossa
determinação de transformar o bloco comercial Mercosul (...) em um catalisador
para a construção de um futuro compartilhado (AMORIM, 2004: 158).
Em situações específicas as referências conceituais produzem resultados comuns.
Na Cúpula de Chefes de Estado das Américas, em Mar del Plata, em 2005, houve
coincidência na ação visando o adiamento sine diedas negociações da Alca,
contrariando o que parecia ser o interesse, ao menos de uma parte, da
administração norte-americana.
No caso brasileiro, as dificuldades da integração não podem ser atribuídas
apenas ao governo. Há na sociedade interesse reduzido, em alguns casos
abertamente contrário, pelo Mercosul e por seu possível aprofundamento. Por
exemplo, encontro realizado em novembro de 2004, que reuniu empresários de
diversos segmentos e entidades como FIESP, Abicalçados (Associação Brasileira
dos Fabricantes de Calçados), Eletros (Associação Nacional dos Fabricantes de
Produtos Eletroeletrônicos) e AEB (Associação Brasileira de Comércio Exterior)
demonstrou ser razoável a adversidade ao bloco regional. As discussões giraram
em torno da idéia da defesa de um passo atrás em relação ao Mercosul: há entre
empresários uma intensa discussão sobre a necessidade de retroceder de uma
união alfandegária, imperfeita e perfurada, para uma área de livre comércio.
Segundo os representantes daquelas entidades, o Mercosul seria uma âncora que
seguraria o Brasil nas negociações internacionais, dificultando acordos
bilaterais com Estados Unidos e União Européia (Valor Econômico, 16.11.2004).
As análises que resultam das preocupações empresariais confirmam essa tendência
à redução do significado da integração para o Brasil. Nota-se nelas interesse
em reduzir o papel que o Mercosul tem para a política exterior e como
referência para parte da estratégia econômica e comercial internacional. Os
valores da autonomia e do universalismo sobressaem.
Estudar a política de integração regional do ponto de vista brasileiro, implica
compreender o papel do ministério das Relações Exteriores e as formulações dos
funcionários. Isso explica porque a continuidade da postura do país em relação
ao Mercosul, uma razoável estabilidade na condução do processo, juntamente com
a incorporação dos bloqueios que surgem paralelamente de um padrão de política
externa e do interesse/desinteresse da sociedade civil e das forças políticas.
A soma desses fatores tem conseqüências aparentemente paradoxais: por um lado,
viabiliza certa estabilidade, por outro, juntamente com as conseqüências da
prevalência presidencial, dificulta exatamente o desencadeamento do fenômeno do
spillover, para os funcionalistas considerado determinante da afirmação da
integração. Ao mesmo tempo, tampouco se fortalecem na medida necessária os
laços intergovernamentais. No caso brasileiro, a baixa intervenção do
Congresso, em geral a aprovação sem maiores discussões dos projetos do governo,
acaba dificultando a porosidade das idéias. Quando na sociedade desenvolvem-se
outros interesses e posições, apresentam-se não sob a forma de propostas, mas
emergem como resistências. No caso do Mercosul, a posição do governo, visando
uma continuidade de baixa intensidade, parece atender a média das expectativas
e das necessidades das elites brasileiras, dentro e fora do Estado.
Motivações da política brasileira em relação à supranacionalidade
Devemos considerar que os conceitos de autonomia e de universalismo presentes
em parte das elites e na memória institucional do ministério das Relações
Exteriores, colocam questionamentos ao Mercosul. Wendt (1994: 386), recolhendo
idéias de Ruggie (1993), afirma que "identidade coletiva não é essencial nem
equivalente a uma instituição multilateral mas fornece um fundamento importante
para ela por fortalecer a expectativa de ação com base em princípios de conduta
compartilhados e em reciprocidade difusa". Cabe, portanto, afirmar que a
debilidade dos grupos epistêmicos pró-integração, viabilizou o fortalecimento
de outros que, mesmo não contrários a ela, passaram a valorizar idéias,
projetos, interesses que nela não confluíam e não a fortaleciam. A percepção,
que é verdadeira, de que, na medida em que se projeta maior aprofundamento do
bloco, há perda de soberania e de autonomia na relação do Brasil com o mundo,
nunca desapareceu e acabou sendo um componente importante da ação do Estado e
da sociedade. Conseqüentemente, rejeita-se uma opção que parece limitar a
movimentação internacional do Brasil e ser contrária ao universalismo: resulta
uma posição que estabelece limites ao Mercosul. Lima (1994; 2003) afirma que o
padrão brasileiro em relação ao Mercosul tem sido semelhante ao tido em outros
aspectos de política externa, contrário ao aprofundamento da
institucionalização, prevalecendo a aspiração em converter o país em ator
internacional relevante e a crença, especularmente presente na Argentina, em
especificidade frente aos demais países latino-americanos. As elites
brasileiras têm sido educadas nessa cultura política.
Para o objetivo que nos propomos, de discutir as razões estruturais da política
brasileira de integração, é interessante mostrar a racionalidade, segundo um
ponto de vista, da posição de defesa dos princípios de autonomia e de
soberania. Pierson (1998) considera que os governos nacionais, quando delegam
determinadas funções às instituições ou a órgãos comunitários regionais, com o
tempo tendem a perder o controle do processo de integração para essas
instituições. As instituições ou órgãos regionais abririam espaço para novos
atores domésticos participarem do processo decisório, sem a intermediação dos
governos, fato que tenderia a fortalecê-las e a fornecer-lhes novas fontes de
legitimidade. Uma vez alcançada, por essa instituição ou órgão, certa
autoridade no processo de integração, torna-se difícil para os governos fazê-lo
recuar, viabilizando a recuperação do poder original dos Estados-parte. O custo
dessa ação de recuperação, de certa forma, inviabilizaria a sua concretização.
Gradualmente, a dinâmica decisória da integração tende a adquirir mais
autonomia em relação aos Estados nacionais. Assim, pode-se entender a baixa
disposição brasileira quanto ao fortalecimento institucional do bloco, que se
traduz na defesa constante do intergovernamentalismo, já que o Estado, pelas
razões discutidas, parece não conceber a possibilidade de perder o controle do
processo. Como analisa Schmitter (2003) para a União Européia, o nível de
convencimento e de consenso para trilhar caminhos que mudam convicções
enraizadas é complexo, não apenas demorado.
A estrutura do bloco, definida pelo Tratado de Assunção de 1991, concentra o
poder decisório e a governabilidade no Conselho do Mercado Comum (CMC), que
conta com os presidentes e os ministros das relações exteriores e da economia,
atribuindo ao Grupo Mercado Comum (GMC), composto pelos vices ministros das
relações exteriores ou sub-secretários, a direção executiva da integração. Essa
engenharia institucional mostrou-se, por um lado, eficaz, mas, por outro,
inadequada para permitir o desenvolvimento de um corpo que pudesse acumular
afinidades.
Um Mercosul mais institucionalizado parece não atender os interesses de parte
considerável das elites, de grupos sociais, econômicos e regionais, de setores
políticos, que consideram ter suas necessidades atendidas na atual estrutura.
Redimensionados os objetivos, permanece o interesse em aumentar o comércio e,
em alguns casos, aumentar o investimento transfronteiriço, como é o caso da
Petrobras, do Banco Itaú, Bunge, Gerdau, AmBev e de outras empresas. Ao mesmo
tempo, o bloco permanece tendo significado em algumas circunstâncias. É útil
para uma parte das relações com os Estados Unidos, tem importância nas relações
com a União Européia, parcialmente no caso da OMC e em algumas negociações com
países emergentes, particularmente nos casos de dialogo bloco a bloco. No
entanto, evita-se a tomada de posições que para alguns limitariam as
possibilidades abertas pela maior autonomia e pelo maior universalismo.
Conseqüentemente, "O grande obstáculo, no Brasil e na Argentina, para um
efetivo 'investimento' no projeto Mercosul é a ambigüidade com que, para além
da retórica do discurso pró-integração, diversos setores das duas sociedades e
dos dois governos avaliam o bloco" (GONÇALVES e LYRA, 2003: 14).
Considerações finais
Na tentativa de extrair conclusões da análise que fizemos das razões da posição
brasileira frente ao Mercosul, devemos ter em conta que as naturais aspirações
protagônicas e universalistas das elites do país implicam a necessidade de
estar livre para agir com desenvoltura no cenário internacional, sem acordos
restritivos no âmbito regional e sem os condicionamentos que derivariam das
necessárias concessões aos sócios de menor poder. A integração regional não é
rejeitada, ao contrário, é considerada benéfica, mas sem os custos do que
Burges (2005) chama "cooperative economic growth". Nossa análise sugere de
forma clara não existir adequada densidade na sociedade brasileira que estimule
o aprofundamento da integração. Consideramos que, por mais que o Mercosul
figure no alto das prioridades do Estado, do governo, do ministério das
Relações Exteriores, de fato, há hesitação em arcar com os custos e enfrentar
as assimetrias existentes. O sistema político brasileiro, a representação
parlamentar, a pobreza em muitas regiões e localidades, contribui para isso.
A expansão combinada com o baixo comprometimento governamental, no sentido de
trabalhar as assimetrias existentes, levou a uma integração que não pode ser
muito ambiciosa quanto ao seu grau de aprofundamento. Ao mesmo, o limite dado
por uma união alfandegária que não se consolida e as dificuldades inerentes na
gestão das novas demandas oriundas desta situação, podem tornar a integração
pouco atraente para os governos e importantes setores domésticos envolvidos,
criando uma situação de impasse que levaria ao fortalecimento de forças
desintegradoras, que por sinal parece ser o estágio atual do bloco (MARIANO,
2007: 194).
No Brasil há baixa sensibilidade para o tema regional, o que se explica pela
atratividade que num país continental têm as questões internas. "Na Argentina,
para o bem ou para o mal, o Brasil é um tema: é assunto cotidiano, matéria
permanente de imprensa. No Brasil, em contrapartida, a Argentina desperta muito
menor interesse, salvo em momentos de crise aguda" (GONÇALVES e LYRA, 2003:
21).
Para a sociedade brasileira, para suas elites, entender as perspectivas do
Mercosul tem a ver com o debate sobre o futuro da posição do Brasil no mundo.
Como discutimos, coloca-se a necessidade de definir melhor se a integração deve
ser considerada útil e importante. Se a resposta é positiva, trata-se de
verificar a disponibilidade de assumir os custos dela. Supondo-se a necessidade
de paymaster(MATTLI, 1999) na integração, nesse caso o papel caberia ao Brasil.
Isso obrigaria a um novo desenvolvimento analítico: a capacidade ou não de
desempenhar esse papel. Para países pobres, há limites objetivos, pagar os
custos pode estar acima da capacidade de fazê-lo. Mattli (1999) afirma que o
papel de paymaster não se relaciona apenas com a economia, mas também tem a ver
com outros parâmetros, como a delegação de algumas funções para instituições
comunitárias, o que significa aceitar e confiar na integração regional,
considerando-a parte da própria política interna. Algumas medidas, como a
criação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), com
aproximadamente US$ 100 milhões, estariam na perspectiva de fortalecer a
integração, do mesmo modo que a criação do Parlamento do Mercosul, em
substituição à Comissão Parlamentar Conjunta. Mas a pequena dimensão das ações,
econômicas e políticas, parece confirmar a análise que desenvolvemos no sentido
que no bloco do Cone Sul não surgem os pressupostos da integração que tanto
funcionalistas quanto intergovernamentalistas identificaram, com interpretações
conflitantes, na União Européia. Diferentemente da análise de Burges (2005),
provavelmente não se trate do interesse, até certo ponto, egoísta do Brasil,
que visaria uma liderança sem contrapartida para os países envolvidos, mas de
dificuldades estruturais, de fundo, econômicas e políticas.
Um eventual retrocesso do Mercosul na direção de uma área de livre-comércio,
que vimos ser posição defendida por setores sociais significativos no Brasil,
na nossa perspectiva significaria, ao contrario do que uma determinada leitura
do universalismo supõe, enfraquecimento do poder de barganha do país e do
Mercosul no sistema internacional. Maior institucionalização do bloco, como
discutimos, traria custos para o Brasil, mas é fundamental também considerar os
custos da não institucionalização, além dos ônus decorrentes da situação de
indefinição, existente ao menos desde 1997, talvez inata ao processo.
Da análise que desenvolvemos, decorre a necessidade de acordos que viabilizem
medidas comprometidas com algum grau de supranacionalidade, ou seja, ações,
regras, normas que garantam aprofundamento do bloco. Isso implica o
reprocessamento de conceitos fundadores da política brasileira, autonomia e
universalismo, de modo a que possam absorver os princípios da integração,
inclusive a idéia de associação de objetivos (NARDIN, 1987). Isso implica a
criação e o estímulo de uma cultura de valorização de ganhos de longo prazo e
alguma aceitação de custos no curto prazo. Se o Mercosul, como os documentos
afirmam, é base da estratégia de inserção internacional do Brasil, é necessário
que essa base alcance níveis razoáveis de afirmação. Do mesmo modo, as relações
com a Argentina, as únicas afirmadas como estratégicas nos documentos da
República.
Políticas industriais setoriais de integração, ações de apoio a cadeias
produtivas regionais, o aperfeiçoamento de instrumentos institucionais,
pensados ainda nos anos 80, quando assinados os 24 protocolos setoriais no
âmbito do Programa de Integração e Cooperação Econômica (Pice) de 1986,
permitiriam atenuar as assimetrias e uma lógica que tende a favorecer a
alocação de recursos onde há maiores potencialidades de mercado. Isso exige
mudar o sistema decisório, em outros termos, fortalecer a normatividade e a
regulação por meio de órgãos aptos e legítimos. Discutimos neste texto que
essas perspectivas encontram dificuldades de enraizamento na sociedade
brasileira em razão de interesses e de concepções de mundo das elites, da
sociedade e do Estado.