A África na ordem internacional do século XXI: mudanças epidérmicas ou ensaios
de autonomia decisória?
Introdução
O objetivo do presente artigo é o de suscitar novos conceitos acerca do lugar
da África na ordem internacional que se desenha no início do século XXI.1
Merecerão destaque as atuais formas de inserção internacional dos seus Estados
nacionais, criadas de dentro para fora das soberanias africanas, bem como o
envolvimento crescente de antigos e novos atores globais que participam, de
forma interessada e crescente, na gestação do futuro daquele continente.2
A hipótese aqui examinada é a de que o continente africano assiste transição
positiva para um novo patamar de inserção internacional no início do novo
século. Três conceitos centrais alimentam o exame dessa hipótese: a) o avanço
gradual dos processos de democratização dos regimes políticos e a contenção dos
conflitos armados; b) o crescimento econômico associado à performances
macroeconômicas satisfatórias e alicerçadas na responsabilidade fiscal e
preocupação social; e c) a elevação da autoconfiança das elites por meio de
novas formas de renascimentos culturais e políticos.
Os argumentos centrais estão organizados em torno de quatro unidades. Na
primeira apresentam-se argumentos que comprovam a elevação do status na África
no mundo e o paradoxo da baixa apreciação, no Brasil, do novo lugar da África
na sociedade internacional. Em segundo lugar, abordam-se alguns dos desafios
das cinco décadas da formação dos Estados independentes da África. Em terceiro
lugar, tratam-se algumas visões depreciativas e positivas disponíveis na
literatura universal acerca do papel da África no sistema internacional
contemporâneo bem como os movimentos estratégicos de grandes Estados globais no
coração do continente nos dias atuais. Em quarto avalia-se, no contexto dos
países de língua portuguesa na África, a elevação gradual de status de
Moçambique, caso emblemático da elevação da autonomia decisória na ordem
internacional em construção no início do século XXI. À guisa de conclusão,
avaliam-se iniciativas de soberania política na África que não são tributárias
de criações políticas e econômicas de fora para dentro.
A África na ordem internacional do início do século XXI: conceitos enviesados e
necessidade de construção de novos parâmetros de análise
A ordem internacional que se desenha no século XXI faz do mosaico africano uma
necessidade umbilical da sua configuração. Há uma fronteira mundial cuja linha
demarcatória está no triângulo africano de mais de trinta milhões de
quilômetros quadrados.
A África subsaariana, ou África negra, considerada a região mais pobre do
mundo, cresce entre 5% e 6% ao ano desde 2003.3 Adaptações macroeconômicas à
globalização moveram as economias de todo o continente para equilíbrios na área
da gestão dos negócios dos Estados. Alvissareiras são a inflações médias,
contidas na faixa de 6% desde 2003, e as exportações que avançam, em 2006 e
2007, na proporção de 43% a 45% do PIB. Reformas econômicas liberalizantes e
redução de vulnerabilidades externas geradas por saldos exportadores e
crescente atração de investimentos externos diretos são fatos, entre outros,
celebrados como de sinalização de sustentabilidade econômica pelos africanos e
que ainda surpreendem aos elaboradores dos relatórios das agências
internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Há razões para otimismo em todas as regiões da África. O ambiente anima a
confiança dos mercados. Na média da África negra, os investimentos internos
equivalem a 19,4% do PIB, percentual muito próximo do Brasil, embora
considerado baixo para a sustentabilidade do crescimento econômico. O vetor da
elevação do crescimento interno é visível desde 2002 e tende a crescer nos
próximos anos, mesmo ante a crise financeira que se desenha no contexto do
capitalismo norte-americano. A África vem sendo escolhida como parte das
prioridades para novas áreas e carteiras de empréstimos do Banco Mundial.4
Há preocupações, no entanto, no campo social, que variam de país a país, por
meio de políticas de construção de metas de redução da pobreza. Há também a
atenção dos setores financeiros em alguns países africanos com a eventualidade
de um novo ciclo de endividamento interno advindo principalmente das políticas
financeiras engendradas pela política chinesa na África, que tem interesse
estratégico no continente para compra de petróleo, commodities agrícolas e
exploração de recursos minerais.
Mas há, sobretudo, o sentimento de que nos últimos sete anos, justamente os
primeiros do novo século, a África vem superando o drama histórico das guerras
intestinas e internacionais.5 O número de países africanos com conflitos
armados internos caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos, apesar da
dramaticidade do caso do Darfur.6 Os conflitos foram a mais importante causa
imediata da pobreza no continente. A redução dramática dos mesmos faz pensar
que os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões queimados nos conflitos
entre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redução da pobreza
e da miséria.7
Há, ao mesmo tempo, uma onda democratizante dos regimes políticos em várias
partes da África. Mesmo os critérios duvidosos da construção de variáveis para
a taxonomia de democracia no mundo, propostos pela Freedom House, demonstram
esse avanço inconteste. Um processo tardio, mas relevante, de consolidação de
instituições e governos na África com bases menos autocráticas e com algum
apelo às noções da democracia é fato relevante para a elevação da confiança
internacional.8
No Brasil, a reflexão acerca dos desafios africanos é modesta e tardia. A
interpretação dominante acerca do futuro do continente é plasmada por olhares
enviesados que se repetem com regularidade gritante. Meios de comunicação
insistem em apresentar uma África indolente e ditatorial, onde o Brasil quase
nada tem a fazer.9 Empresários e empresas nacionais, mesmo acumulando ganhos
comerciais no momento, ainda duvidam das possibilidades do agir em terreno
africano de forma mais duradoura, a impulsionar a logística que a África requer
e que o Brasil pode bem aproveitar.10 As escolas continuam afônicas de
histórias da África.11 As tragédias e genocídios ganham a cor espetacular das
telas televisivas enquanto as experiências de estabilização e crescimento
econômico assim como as iniciativas políticas de redução da pobreza e das
doenças endêmicas na África são silenciadas.
Quando aparece a África no Brasil, chega enviesada e embalada por caleidoscópio
de discursos intermediários que apenas envergam a vara para a percepção da
África envolta nas questões de discriminação racial e dos preconceitos
domésticos brasileiros. O prisma que vincula a redução da reflexão da África
contemporânea à dimensão da afro-brasilidade é interessante pois permite
comunicar as Áfricas que existem dentro do Brasil com a diáspora e os africanos
do outro lado do Atlântico Sul, porém é ângulo incompleto ao esforço de
entendimento dos grandes desafios da inserção africana na ordem internacional
do século XXI.
O insuficiente acompanhamento dos debates africanos contemporâneos no Brasil
conjuga-se à ausência de significativos centros estratégicos voltados para o
acompanhamento da nova corrida para a África. Daí a preocupação legítima de
setores responsáveis no governo e na sociedade: há ainda um reumatismo crônico
como força impeditiva do avançar o país na velocidade dos demais corredores na
direção do continente africano. Sem conhecimento estratégico não há tática que
permita avançar de forma duradoura e consistente um programa de ação do Brasil
na África nas próximas décadas.
Em síntese, a percepção da inteligência africana acerca do seu próprio futuro é
matéria oculta, água turva, no seio do conhecimento brasileiro hegemônico
disseminado nas universidades, empresas, agências de governo e meios de
comunicação, senão mesmo nas veias da ação pragmática do Brasil para a África.
A baixa apreciação da África por parte da mídia e de agentes sociais e
econômicos brasileiros, no entanto, não corresponde à ação e à apreciação do
Executivo, mais elevada. Essa é uma área correta do governo Lula, que evoluiu
nessa matéria em relação às dificuldades do governo Cardoso.12
Cinco décadas de independência africana e desafios dos Estados novos:
renascença e nova partilha internacional
A África caminha mais célere e autoconfiante nos dias que nos cercam que o que
se colhe nas manchetes dos jornais. Caminhará o continente, ao longo dos
próximos anos, nas trilhas do cinqüentenário da sua liberdade política. São
Estados novos, ainda infantes, quando comparados com as velhas democracias
européias ou os Estados latino-americanos de 200 anos. Em todo caso, o ano de
2007 trouxer valor simbólico: é o meio século da independência da Costa do Ouro
(Gana de hoje), a primeira da África Negra, liderada por N'Krumah em 1957. O
ano de 2008 inaugura uma seqüência de atos e reflexões acerca do lugar da
África no mundo, fora e dentro do continente. As mensagens não de algum
otimismo cauteloso.
Iniciativas políticas e culturais convocam a comunidade internacional para o
compartilhar do renascimento africano, embora não mais aquele das nascentes
independências em fins dos anos 1950 e início da década de 1960, povoada por
rancores anti-coloniais, romantismos revolucionários e jargões de libertadores
ingênuos. Nem é o renascimento pós-apartheid apenas, alardeado pelo governo de
Pretória, embora seu próprio renascimento nacional esteja na moldura mais ampla
do que aqui chamo de renascimento africano. Também não se está falando do
renascimento político dos anos 1960 e 1970, que já ficou para trás, nos debates
recorrentes das elites africanas entre as idéias de Senghor e Cabral.13
A África não quer remoer o passado à cata de culpados. Quer caminhar para
frente. O renascimento do início do século XXI é mais altruísta, evidencia uma
outra forma de renascer, mais eficaz que a anterior, mais pragmática, a fazer
referência a outras formas obliteradas de africanidade pelos discursos
políticos engendrados pelas ideologias da Guerra Fria e do nacionalismo teórico
e político da primeira geração das independências. Há um outro renascimento,
novos consensos, com outras referências culturais, políticas e sociais, com
resultantes a serem alcançadas no mundo que vem aí.
Ícones da profundidade de campo histórico da África (para utilizar as imagens
de Abdel Malek14 e C. A. Diop) vêm sendo trazidos para a discussão do futuro do
continente. É este, a título de exemplo, o caso de Tombuctu, cidade
antiqüíssima nas margens do Níger, que se revitaliza nos dias de hoje não como
memória do classicismo africano, mas como lugar do presente da cultura africana
e imaginação de um devir político soberano e altruísta do continente.15 A outra
é o renascimento que bebe da historiografia de Heinrich Barth, revista na obra
recente de Mamadou Diawarq, Paulo Fernando de Moraes Farias e Gerd Spittler.16
Ou mesmo da recuperação das obras de Ibn Haldun ou, alguns séculos depois, de
Edward Blyden.
Animados por um conjunto de atividades acadêmicas, políticas e culturais, os
africanos relembram, em várias partes do continente, o soleil des
indépendances, mas em especial passam em revista os descaminhos de várias
experiências de importação de modelos, como as reformas estruturais conduzidas
pela "genialidade liberal", os planos de reestruturação conduzidos pelos
economistas do Ocidente ou mesmo a cópia em papel carbono do socialismo real e
do modelo do partido único de matriz stalinista. Passarão em revista os 53
Estados nacionais da África, de forma crítica, nos próximos anos, a evolução
mais recente das cinco décadas de autonomia jurídica, ainda que na política
apenas de forma relativa, pois necessitam preparar suas casas para uma inserção
mais altaneira na ordem internacional do século XXI.17
O renascimento africano coloca aquele continente na berlinda da cena
internacional contemporânea. Afinal, está-se a falar de quase um quarto da
superfície do planeta (22,5% das terras do globo), com 30 milhões de
quilômetros quadrados, com 10% da população do mundo, mas que deverá dobrar até
2050.18
Senhora de recursos minerais globais, a África é fonte de cobiça por cerca de
66% do diamante do mundo, 58% do ouro, 45% do cobalto, 17% do manganês, 15% da
bauxita, 15% do zinco e 10% a 15% do petróleo. São aproximadamente 30 os
recursos minerais do mundo que a África guarda em seu subsolo. Mas só participa
de 2% do comércio mundial e possui apenas 1% da produção industrial global. Há,
portanto, um enorme desafio de elevação desses itens.
Em outras palavras: cultura, poder e economia começam a caminhar juntas e de
forma mais organizada para os africanos que estão na África do século XXI, mais
do que para aqueles outros que, em nome de uma África onde jamais pisaram ou
estudaram, querem guardar, fora da África, nos seus países, uma África
imaginária ou politizada por razões de demandas internas e sociais de ascenso
social. A África não se interessa tanto por isso. Os africanos não querem que
seu continente do século XXI seja lido como fonte da imaginação política dos
outros, mesmo de seus descendentes nas Américas, apenas como um lugar sagrado
do passado, de dívidas históricas espalhadas por todo o mundo e do diálogo
global dos afro-descendentes informado da noção da diáspora. Embora tais temas
sejam relevantes, não são as prioridades do momento vivido pelas sociedades
africanas no novo século.
Em meados da primeira década do novo século, as amarras da velha colonização
cedem lugar às iniciativas das lideranças africanas. Há uma percepção que se
generaliza de crescente responsabilidade das elites domésticas com o encaminhar
do futuro. O discurso da vitimização da história continental é substituído por
raciocínios mais pragmáticos. A idéia do aproveitamento de oportunidades
inéditas abertas pela quadra histórica da primeira década do século XXI permeia
o novo discurso interno da inteligência africana.
Por outro lado, seria inocência intelectual e irresponsabilidade política
imaginar que o destino africano pertence, de forma exclusiva, à esfera da
autonomia decisória de seus líderes nacionais. Há um novo mapa africano, não
aquele desenhado pelos colonizadores de antes, mas não menos inquietante ante a
força incontestável de seus desenhistas. Desfilam em Abuja, Adis Abeba. Lagos,
Luanda, Cartum, Pretória, Cairo ou Maputo autoridades chinesas, norte-
americanas, brasileiras, agentes de empresas multinacionais e organizações não-
governamentais.
Atores internacionais de toda ordem, cada vez menos as organizações não-
governamentais humanitárias dos países ricos e cada vez mais atores econômicos
e estratégicos globais, querem dividir, com os africanos, balanços e projeções
que já se preparam, no seio dos institutos africanos e mundiais, acerca da
última fronteira territorial da internacionalização econômica do capitalismo.19
Há, portanto, uma relação biunívoca, mas também dialética, entre o interno e o
externo. Se por um lado é desejável que a África supere o drama histórico do
colonialismo e do atraso (lugar do discurso do renascimento africano das
primeiras décadas das independências), há, por outro, a preocupação de que
novos arranjos entre as elites locais e internacionais não tragam a autonomia
decisória nem o desenvolvimento sustentável ao continente (lócus do discurso do
novo renascimento africano).20 É do nigeriano Claude Ake, em seu ensaio
Democracy and Development in África a seguinte preocupação:
The problem in not so much that development has failed, as that it
was never really on the agenda in the first place.21
Há o temor, por trás da internacionalização crescente do continente africano,
de que o "caráter exógeno" do Estado africano pós-colonial, como gosta de
definir Carlos Lopes,22 o sociólogo onusiano nascido na África de língua
portuguesa ' se perpetue com novas máscaras. A preocupação legítima do ilustre
africano vai ao ponto focal: como diminuir a distância mental e real, produzida
pelos próprios governantes de grande parte dos Estados africanos modernos,
entre os abismos sociais e políticos que separam ricos de pobres, elite de
povo, na África das próximas décadas do século XXI?
Nota-se desde já até mesmo reações de agentes econômicos, políticos e
intelectuais africanos contra a lógica de sua reinternacionalização, sob o
manto de uma nova partilha africana, um novo Congresso de Berlim em curso,
mantendo as formas de dominação e estratificação social e concentração de poder
dos Estados pós-coloniais na África. Esse sobressalto veio à tona recentemente
por meio de várias vozes importantes da inteligência africana como o filósofo
senegalês Yoro Fall. Também chamou a atenção Ali Mazrui, um dos mais
prestigiados politólogos africanos contemporâneos, que a África está à busca de
sua própria Doutrina Monroe, da África para os africanos.23
Para Mazrui, até a redução de conflitos armados internos ou que envolvem
relações internacionais na África não podem ser resolvidos por soluções
puramente exógenas, necessitam soluções domésticas e dirigidas por novo
consenso entre povo e elites locais. Provoca-nos abertamente o velho mestre da
arte política africana:
The pursuit of Africa's peace by African themselves, however, is not
just an extension of international peecekeeping, but rather is a
process of Pax Africana.24
A África entre teleologia, deontologia e escatologia. A saída para um lugar
alvissareiro no seio da ordem internacional do século XXI
Á África é uma das regiões do mundo que, historicamente, mais esteve próxima às
tentações de interpretações apaixonadas acerca das relações entre passado e
futuro. Escrutinada sob as óticas da teleologia, da deontologia e da
escatologia, às vezes simultaneamente, a África segue sendo um lugar para o
teste da razão crítica contra o monumento de preconceitos que foram erigidos
pela fraca ciência e pela opinião desinformada.
O nível teleológico de análise, ao animar a avaliação das ações por meio de
suas conseqüências, condenou o agir da África a um eterno desterro e o passado
africano à mera preparação da obra civilizatória inconclusa do Ocidente. A
conseqüência dessa lógica no seio da historiografia e da sociologia
nacionalista africana foi óbvia: todos os males de hoje adviriam, então, de um
pecado original, o do colonialismo e suas conseqüências. É esse o raciocínio
que amarra a reconstrução do passado a um presente infértil, plasmado por
"afro-pessimismo" que vigorou até pouco e que ainda persegue mentes cultas e
especializadas nos assuntos africanos em vários centros de estudos estratégicos
no mundo, mesmo no Brasil de poucos estudos.
O nível deontológico, ao julgar ações conforme regras formais em função da
distinção entre o bem e o mal, encapsulou a África no plano do mal, reduzindo-
a à incapacidade histórica das elites e do povo de constituir lá sociedades
burguesas civilizadas e integradas aos fluxos da economia política global. Há
uma velha marcha hegeliana, amplamente cantada pela literatura especializada,
que empurrou a África para o campo dos povos sem história, de um "passado
inenarrável", o qual Farias recentemente reviu.25 A maldição da África, para os
céticos, seria a impossibilidade de narrar o passado e, portanto, construir o
futuro, reduzindo-a à eterna infância. Até o Dr. Watson, prêmio Nobel de
medicina do início dos anos 60 com o tema do DNA, em pleno início século XXI,
na terceira semana do mês de outubro de 2007, acaba de pronunciar, para depois
desdizer, que "Africans are not so intelligent such as Westerns".26
A sucessão de ilogicidades, de ausência de razão crítica, herdeiras elas do
discurso hegeliano, empurrou bastante a ciência e a opinião pública, nas
últimas décadas, ao discurso da inviabilidade da África. É o plano
escatológico, plasmado por imagens, autores e meios da corrente afro-pessimista
dos anos 1990.
Teses vêm sendo utilizadas, nessas bases esquemáticas, e em várias partes do
mundo, na lógica da "marginalidade" africana e de sua desimportância para o
quadro geral da ação externa dos Estados e das relações internacionais do
século XXI.
Ledo engano. A África jamais foi marginal, no passado nem no presente. O
conceito da marginalidade africana é insustentável, teórica e empiricamente.
Não são apenas os africanos que se insurgem contra essa escatologia, mas a
massa de literatura atualizada acerca dos desafios africanos no xadrez da
política internacional. É Jean-François Bayart, como também depois Ian Taylor e
Paul Williams, no importantíssimo livro intitulado Africa in Iternational
Politics: Extermal Involvment on the Continent,27 quem abre a crítica à
escatologia anti-africana nos temas da política internacional para o início do
século XXI:
More than ever, the discourse of on Africa's marginality is a non
sense discourse.28
O mundo está atento à África como sempre estiveram as grandes potências e as
ex-metrópoles. O peso da África na Guerra Fria não se circunscreveu a ser
margem do sistema internacional. São os dois autores anteriores que nos
lembram:
Africa has never existed apart from world politics but has been
unavoidably entangled in the ebb and flow of events and changing
configurations of power. ( ) In practice, Africa cannot enjoy 'a
relationship" with world politics because Africa is in no sense
extraneous to the world. The continent has in fact been dialectically
linked, both shaping and being shaped by international processes and
structures.29
O mundo está, portanto, acompanhando com a máxima atenção a reinserção africana
na política internacional. Records e outlooks vêm sendo lançados com profecias
otimistas acerca das escolhas políticas e do novo perfil de desenvolvimento
social que a África requer. Vê-se essa tendência desde as avaliações produzidos
pelos Royal African Society do Reino Unido.30
O mais recente desses documentos é o interessantíssimo trabalho, com fins
estratégicos, organizado pelos colegas professores Samantha Power (da
Universidade de Harvard) e Anthony Lake (da Georgetown University), em fins de
2006, ladeando o ex-secretário de Estado assistente para África dos Estados
Unidos, Chester Crocker. Lançado em 2007 pelo afamado Council of Foreign
Relations, dos Estados Unidos, nota-se perfeitamente a retomada da prioridade
africana na política externa norte-americana.31
More than Humanitarianism, o título da estratégia norte-americana fala por si,
ao lançar as bases conceituais para a ação dos norte-americanos para a África
nas próximas décadas. Pragmatismo mais do que humanitarismo, disputa por
recursos minerais, ampliação da diversificação no campo da energia, cooperação
com os governos democráticos e ocupação de espaços na luta contra o terrorismo
são as linhas gerais de trabalho para os próximos 20 anos dos Estadus Unidos na
África. Querem disputar a partilha com as ex-metrópoles, particularmente
Inglaterra e França, mas sobretudo querem enfrentar a potência do dragão
oriental.
Nenhuma polaridade estatal foi tão hábil na elaboração estratégica para a
África quanto a China do primeiro ministro Li Peng, já nos fins da década de
1980 e início dos anos 90. O marco é o dia 4 de junho de 1989, o drama da Praça
da Paz Celestial e o isolamento imposto pelo Ocidente ao regime político de
Pequim. Começava a conexão África-China, que tem todas as condições de ser a
mais duradoura sobre todos os demais intentos de qualquer unidade estatal,
mesmo dos Estados Unidos, de estabelecer bases de cooperação ativa como o
renascimento africano.
A estratégia chinesa é explícita: a) exportação para a África do modelo chinês
de tratamento dos temas da agenda internacional, apresentando-se como uma
representante natural dos países em desenvolvimento; b) exportação de bens
industriais e armas e importação de produtos primários; c) exploração de todas
as fontes possíveis e necessárias de recursos minerais, estratégicos e de
energia que garanta a sustentabilidade do crescimento econômico chinês. O
método tático para a consecução dos objetivos é múltiplo: varia dos
investimentos, empréstimos e doações à cooperação técnica e tecnológica, além
de exercício de cooptação política das elites africanas. O ambiente político da
cooperação abraça o econômico como parte da grande engenharia estratégica que
foi elaborada, empiricamente, na base do isolamento político do regime chinês
depois do evento de 4 de junho de 1989 e a solidariedade conferida por grande
maioria dos governos na África, depois de serem cortejados com recursos
chineses.
Foi o primeiro-ministro Li Peng quem coordenou toda a operação de aproximação
com uma das poucas regiões do mundo que não se movera contra o massacre de
jovens na China: os governos africanos. Para exemplificar, a China oferecia, em
1988, apenas US$ 60 milhões de ajuda direta a 30 países da África, mas em 1990,
depois do apoio dos governos africanos ao regime de Pequim, receberam tais
países a soma de US$ 374, para chegar aos volumes bilionários dos chineses hoje
na África. Embora predominantemente econômica, a presença chinesa na África
origina-se da política e seguirá tendo uma forte conotação política e
estratégica. Vejam as palavras de Li Peng, em 12 de março de 1990, na chegada a
Pequim de imensa delegação de chefes de Estados africanos:
A nova ordem política internacional significa que todos os países são
iguais, e devem respeitar os outros com relação a suas diferenças no
sistema político e na ideologia. Eles (os países capitalistas do
centro e as democracias ocidentais) não podem interferir os assuntos
domésticos dos países em desenvolvimento, especialmente avançar poder
político em nome de "direitos humanos, liberdade e democracia".32
Livros lançados recentemente dão conta da preocupação da grande parceira
comercial e política da África na Europa, que é a França, além de ser a maior
investidora individual no conjunto da economia africana.33 Tanto há
preocupações na área comercial quanto na área da cooperação direta da China com
regimes políticos na África que desrespeitam o capítulo dos direitos humanos.
Daniela Kroslak estudou essa matéria de forma mais detalhada, com ênfase ao
tema do envolvimento militar da França naquele continente.34
O fato objetivo é que, desde 1990, renovando-se em 2000 com a criação do Fórum
de Cooperação África-China, no qual 80 ministros de Estado africanos foram
levados de Pequim à área industrial de Guandong em avião para verem o colosso
do crescimento industrial chinês, passando pela segunda edição, em novembro de
2006, do Fórum de Cooperação, além da terceira visita do presidente Hu Jintao à
África em fevereiro de 2007, a China desembarcou na África de forma estrutural.
É difícil andar em qualquer rua comercial de qualquer país africano que não
esteja inundada por produtos chineses. Não há capital na África sem uma obra
pública imponente feita com recursos chineses. Não há infra-estrutura
importante de aeroportos e estradas que não tenha uma mão chinesa.
Como à época do desenvolvimentismo, fase na qual o Brasil praticava uma
diplomacia cooperativa e não-confrontacionista, a China dos últimos anos buscou
a África sem truculência, violência ou presunção de superioridade, traços da
diplomacia européia e norte-americana. O Brasil mesmo está tentando voltar, na
nova quadra histórica do início do século XXI, como demonstram as prioridades
da diplomacia de Amorim.35
Em síntese, há uma África em crescente internacionalização e nada marginal. Ela
está no centro de uma concorrência fortíssima de interesses e interessados de
todas partes do globo. Se os investimentos externos diretos crescem de forma
consistente, oriundos tanto das grandes empresas financeiras e produtivas, é
também verdade que esses investimentos estão dirigidos por certa lógica de
ocupação territorial e estratégica da África por grandes potências,
instituições multilaterais e influentes grupos econômicos globais ancorados em
bases estatais. Nesse aspecto, o futuro estratégico do continente africano está
sendo traçado de fora para dentro.
O experimento de modernização, democratização e inserção internacional na
África de língua oficial portuguesa: o caso de Moçambique
Os países de língua portuguesa na África são casos interessantes para se notar
o quanto o argumento central deste artigo se comprova no campo experimental.
Angola cresce seu PIB anual em torno de quase 20%, um dos maiores do mundo.
Cabo Verde assiste a sua internacionalização crescente, mesmo nas condições
difíceis do arquipélago. São Tomé e Príncipe normalizam sua vida política e
abre as portas para os investimentos na sua plataforma petrolífera. A Guiné
Bissau, apesar dos problemas que passou na última década da história, assiste
sopro de esperança de normalização política.
Moçambique, mais até que os acima citados, é caso modelar de inserção
internacional altaneira na ordem internacional do início do século XXI. O país
foi vistoriado de forma alvissareira nos relatórios de agências internacionais,
como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial em fins de 2006.36
Apontam tais documentos potencialidades econômicas únicas na quadra histórica
atual do continente africano. Rejubilam-se investidores externos e nacionais
pelo bom desempenho político e pelo equilíbrio macroeconômico daquela nação
africana. As razões para o otimismo derivam de fatos como a democratização em
ritmo mais forte que muitos dos Estados africanos, reformas econômicas
liberalizantes que criaram confiança nos mercados, crescimento do PIB na ordem
de 7% nos últimos anos, inflação domada, diminuição da vulnerabilidade externa,
reservas internacionais consideradas satisfatórias para uma economia modesta e
acesso a financiamentos internacionais.
Mesmo quando não há comércio bilateral expressivo, Moçambique inclui-se
crescentemente em périplos recentes de vários chefes de Estado, interessados em
projeção internacional na África. A visita a Maputo, entre os dias 7 e 8 de
fevereiro de 2007, por cerca de 24 horas, do presidente chinês Hu Jintao, é
fato político com impacto na corrida já não mais tão secreta em favor de uma
nova partilha africana.37
Mas o que há com Moçambique, pobre economia africana, tão desigual na
distribuição da renda e tão modesta estrategicamente, que a faz atrair tanta
atenção? Que buscam os grandes naquele Estado de língua portuguesa, incrustado
na porção índica da África, de costas para o Atlântico, diferentemente de todos
os demais países que compõem, naquele continente e nas Américas, o legado
complexo da expansão ultramar portuguesa?
Moçambique não é apenas um lugar da lusofonia do outro lado da África ou um dos
Estados de recente independência formal, em processo tardio de consolidação de
instituições e da democracia. Moçambique tampouco é apenas um país dependente
economicamente e desdenhado pelas elites de Pretória, embora saibamos que
muitos sul-africanos ainda consideram o vizinho apenas sua décima província.38
Os vetores de poder agora são outros, bastante mais poderosos e pragmáticos.
Envolta na sedução crescente da China, e também da Índia, ávidas por recursos
minerais, estratégicos, energéticos, mas também de portos, de produtos
agrícolas e mesmo de ocupação territorial via deslocamento de populações e até
mesmo pelo turismo, Moçambique está na berlinda.
Maputo é uma das portas, com entrada facilitada na geografia moçambicana, ao
"corredor turístico", como falou o presidente da China em sua recente visita ao
país. Moçambique se insere, portanto, na ocupação de uma das últimas fronteiras
do capitalismo mundial: o continente africano. Essa partilha não requererá um
novo Congresso de Berlim. O mundo pós-Guerra Fria é mais sutil, mas não menos
pragmático. Os chineses não vieram apenas para o controle de recursos
energéticos, minerais e estratégicos na África. Vieram ampliar poder de
barganha no cenário internacional.39
Elites econômicas e políticas moçambicanas não iriam assistir, de binóculos, a
novos arranjos da entente Angola-África do Sul sem ajustar os graus dos seus
interesses na região. Foram à busca do seu lugar e da afirmação de seus
interesses. Estão gradualmente pavimentando seu próprio caminho. E a Copa do
Mundo de Futebol de 2010 na África do Sul provê à imaginação lacaniana das
elites de Maputo a idéia de um renascimento moçambicano nos novos tempos da
África.
O balanço da evolução democrática em Moçambique é satisfatório. Não variou em
relação à grande maioria dos países africanos na sua dimensão pluriétnica, na
preservação do Estado territorial herdado da colonização bem como na baixa
densidade de participação da sociedade civil nas decisões e no acompanhamento
das políticas encaminhadas pelo aparelho de Estado. De fracas a inconclusas ou
deformadas, de todas as formas já foram metaforizadas as débeis democracias
africanas. Mas o joio pode ser separado do trigo, como hoje reconhecem as
próprias agências internacionais.
A tênue democracia moçambicana é diferente no que se refere à capacidade de
chegar a uma estabilidade relativamente engenhosa. Soube adaptar a vida
política nacional aos processos de internacionalização econômica que passaram a
operar no continente na última década e no início do novo século sem perda de
tempo. Moçambique buscou demonstrar ao mundo externo que é uma democracia
moderna em formação e que combate os excessos gerados pela corrupção e pelo
patrimonialismo.40
A favor das elites moçambicanas ' mas naturalmente estimuladas pela indução do
governo de Pretoria ' está o fato de que lograram reconstruir o Estado, sem
fragmentações fratricidas, sem pressão das diferenças étnicas, sem separatismos
regionais e banindo sublevações. O espraiar de uma certa idéia de Estado vem
facilitando contatos internacionais e inibindo desestabilizações internas, o
que já é muito para o histórico da formação do Estado no continente africano. É
esse Estado moçambicano que vem permitindo o crescimento econômico continuado,
o incremento dos investimentos estrangeiros e das exportações, além de certa
constância nos níveis de ajuda internacional.41 Ganhou o status de "democracia
eleitoral" e de país "parcialmente livre" nas classificações da Freedom House
de 2005.42
Essas avaliações, contudo, não inibem a articulação do Estado moçambicano com
os novos agentes econômicos internacionais e com os investimentos diversos, de
fontes múltiplas. O raciocínio que alimentou o processo decisório é claro: se a
pobreza e a Aids demandam programas específicos de financiamento, eles foram
criados de alguma maneira, com ou sem a cooperação internacional. Mas se os
investimentos produtivos na economia em expansão podem ser feitos, devem ser
feitos com os capitais de onde puderem vir. Visões pragmáticas dominaram essa
dimensão do processo decisório do país.
Moçambique passou a ser apresentado, em alguns fóruns econômicos, como espécie
de "tigre" africano, por lembrar o caso da Ásia nas décadas de 1980 e 1990. Em
1998 foi considerada a economia que mais crescia na África. O país ultrapassou,
nos últimos anos, todas as metas estabelecidas pelas instituições financeiras
internacionais. Chama a atenção, todavia, o padrão das relações econômicas
externas moçambicanas. Segue o modelo da relação colonial, de exportador de
produtos primários e importador de bens com alto valor agregado. Esse é um
ponto de preocupação para setores sociais e políticos do país, embora nem
sempre de sua elite governante.
Sem margem de dúvida, a situação moçambicana segue a das economias mais
dinâmicas da África. A diversificação de parceiros internacionais, na raiz da
modernização econômica, faz de Moçambique caso no qual investidores do Sul e do
Norte praticamente dividem, meio a meio, o espaço africano. Ap se avaliarem os
mais importantes investidores externos em Moçambique, é também elucidativo o
movimento global empreendido pelo país e pelos capitais produtivos e
financeiros internacionais. Há uma preferência, a manter certa capacidade
operativa do Estado, de joint-ventures de empresas moçambicanas públicas com
sul-africanas e européias, além das chinesas que estão aportando a Maputo e que
ainda não puderam ser mensuradas inteiramente pelos dados relativos aos tempos
mais recentes.
Registre-se o fato de que Moçambique está também submetido ao fenômeno da
"reverse dependence", no qual as instituições internacionais necessitam mostrar
resultados em um país africano para mostrar ao mundo. Com pouco para barganhar,
Moçambique tem o trunfo de que tais agências, investidores e doadores
necessitam de certa eficiência e eficácia nas políticas por eles sugeridas.
Resultado diverso tornaria difícil a sobrevivência desses doadores e
investidores em seus próprios países.
À guisa de conclusão: a África para os africanos
Mas não se traça o futuro da África apenas de fora para dentro. Os africanos
estão reivindicando e construindo autonomia decisória. Buscam soluções
nacionais para seus desafios na área social e da cidadania. O controle do
Estado e sua orientação para o crescimento econômico e o desenvolvimento
sustentável são a boa novidade no continente.
Tornaram-se os líderes africanos refratários à noção de "fim do Estado" e de
"governança global" vendidas para a África como solução mágica nos tempos de
encantamento liberal generalizado, embora em menor grau do que se passou na
América Latina nos anos 1990.43 Querem falar de transição de modelo para uma
forma mais logística de construção do desenvolvimento, com democracia e mais
inclusão social. Passaram a operar em novas bases conceituais no pós-Guerra
Fria e ante a crise geral do internacionalismo liberal.
O encerramento do grande ciclo dos conflitos abertos e militarizados internos é
exemplo dessa vontade política nova de renascer e orientar as energias para
projetos mais produtivos. Engajaram-se nos programas voltados para as metas do
milênio e querem modificar os indicadores sociais previstos para serem
alcançados em 2015. Mas o querem fazer a partir de suas realidades e
possibilidades, em parceria horizontal e não mais vertical, com os velhos e
novos parceiros da África.
Administrar, de dentro para fora, as ambições internacionais geradas pela "nova
partilha africana" posta em marcha pelos planos estratégicos chineses e norte-
americanos, mas também em alguma medida do Brasil também, exigirá dos africanos
uma noção de domesticação, pela via do fortalecimento do Estado democrático e
da responsabilidade fiscal e macroeconômica mais ampla, das tendência malévolas
que caminham juntas com a ambição política dos Estados fortes que se
organizaram para a nova corrida para a África.
Há, nesse sentido, um ambiente mais positivo. A mais importante iniciativa
nesse sentido, emblemática da autoconfiança que se espraia no seio da
inteligência política do continente, foi o lançamento da Nova Parceria para o
Desenvolvimento Africano (Nepad), em 2001. Ao reivindicarem a capacidade de
construção do seu futuro, as lideranças africanas estão atraindo para si a
responsabilidade de superação do grau marginal de inserção ao qual o continente
foi submetido na década de 1990. Buscar um lugar mais altivo, menos subsidiário
na globalização assimétrica atual, é o argumento central do contorno do desenho
estratégico que a Nepad significa.
A Nepad não foi feita de fora para dentro da África. Nem é onírico como o Plano
de Lagos de 1980 ou limitado como o Programa Africano de Recuperação Econômica
de 1986. A Nepad tem caráter inédito, abrangente, social e cidadão, como o
Plano Marshall foi para a reedificação da Europa depois da guerra. A metáfora é
útil pois Nepad significa "African leadership and African ownership".
O texto de lançamento fala por si, ao situar a plataforma conceitual no qual a
Nepad poderá florescer:
A África pós-colonial herdou Estados fracos e economia disfuncionais
que foram agravados ainda por uma liderança fraca, pela corrupção e
má-governança em muitos países. Esses dois fatores, conjugados às
divisões causadas pela Guerra Fria, minaram o desenvolvimento de
governos responsáveis em todo o continente.44
O reconhecimento de que o Estado tem um papel central no desempenho do
crescimento, no desenvolvimento sustentável e na implantação de programas de
redução de pobreza, anotados pelos chefes de Estado na África de 2001 é ainda
um sonho. Mas a dimensão utópica das novas vontades expressadas pelos africanos
move a vida deles para uma nova agenda política da qual a África não poderá
mais se afastar.
O Brasil, que se lança novamente para a África, por meio dos movimentos
dinâmicos de sua política exterior e de uma pauta comercial de produtos
diversificados e que evolui percentualmente para já representar cerca de 6% das
trocas internacionais do Brasil, tem possibilidades importantes de ocupar a
brecha africana. Aproveitar a dinâmica do renascimento africano e da
autoconfiança que emerge lá para propor diálogo de interesses mútuos e valores
abrangentes para a nova geografia política internacional é agenda convidativa
para a fronteira atlântica do Brasil. Otimismo cauteloso deve guiar o Brasil
pois há sempre chance, aqui como na África, de reverter o ciclo de retração e
desespero em favor do avanço cidadão e da esperança de uma África muito melhor
ao final do século XXI.
1 Há nesse tópico duas linhas de interpretação que disputam hegemonia acadêmica
acerca do novo papel da África no sistema internacional pós-Guerra Fria. Os que
advogam em favor da adaptação sem mudanças insistem na idéia de certa reforma
epidérmica, quase apenas cosmética do continente ante os novos desafios
internacionais. Há a linha, na qual se inscreve este autor, que procura avaliar
a hipótese de que há uma oportunidade de inserção mais altaneira, menos
deprimida, da África no sistema internacional.
2 Pululam, na imprensa brasileira, interpretações catastróficas das crises
políticas africanas, como aquelas advindas do Darfur, os problemas políticos
advindos das eleições presidências em tradicional democracia africana como a do
Quênia, ou dos problemas do Zimbábue. Ver, por exemplo, as avaliações
alarmistas produzidas nas primeiros meses de 2008 em grandes jornais nacionais:
Mariana Della Barba, "Cinco anos de inferno em Darfour", O Estado de São Paulo,
6 de abril de 2008, p. A24; Elias Thomé Saliba, "Se os crocodilos falassem... O
jornalista Peter Godwin vale-se de poderosa lenda africana para analisar a
tragédia do Zimbábue", O Estado de São Paulo, 6 de abril de 2008, p. D5. Quando
não se reproduzem, na imprensa nacional, interpretações de autores das ex-
metrópoles, algumas saudosas do passado colonial, criam-se imagens de eterno e
cíclico desterro das sociedades e Estados africanos contemporâneos.
3 Segundo dados de hoje do Fundo Monetário Internacional, o PIB da região
cresceu de 4% em 2003, para 5,7% em 2004, 5,6% em 2005, 4,8% em 2006, com
previsão de crescimento em torno de 6% para 2007. O crescimento da África foi
no período mencionado, portanto, na média da América Latina e superior à média
brasileira.
4 IMF & BIRD, Africa Foreign Investment Survey 2006. Washington: IMF, 2007.
5 Um bom estudo acerca das origins e dos desdobramentos desses conflitos está
na obra de Taisier M. Ali & Robert O. Mathews, Civil Wars in África. Roots
and Resolutions. London: Ithaca, 1999.
6 Os conflitos na África foram chaga da história recente com impacto econômico
incontestável, como demonstra o Relatório da ONG Oxfam, Iansã e Saferwood, que
acaba de ser publicado: US$ 284 bilhões foi o custo para o desenvolvimento do
continente causado pelos conflitos armados entre 1990 e 2005. O curioso é que
essa soma corresponde aproximadamente ao valor de toda a ajuda financeira
internacional recebida pela África no mesmo período.
7 PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano, 2005 e 2006.
8 É evidente que, como um processo histórico recente, há idas e vindas na
construção democrática dos Estados africanos contemporâneos. O caso recente do
Quênia, considerada até pouco tempo um exemplo satisfatório de democratização
gradual, demonstra que há reveses, mas há também negociação e sistema de pesos
e contrapesos que tornam os encaminhamentos políticos não tão trágicos quanto
aqueles pintados pelas visões da catástrofe africana.
9 A sétima visita do presidente da República da Brasil, Inácio Lula da Silva,
ao continente africano nos dias 15 e 19 de outubro de 2007, é momento recente e
especial para ver o quanto, na grande imprensa, seguem os olhares enviesados e
as atitudes de desconfiança acerca do que o Brasil pode realizar com a África.
O desconhecimento médio de entrevistador e entrevistado é marca do que se viu
nos jornais. Expressam a carência de reflexão sofisticada no Brasil acerca do
que está ocorrendo naquele continente. Ver, por exemplo, o editorial
"Diplomacia e Ditatura", Folha de São Paulo, 17 de outubro de 2007, bem como a
entrevista, ao Correio Braziliense, do "Brazilianist" Thomas Skidmore: "Lula é
um pernambucano que goza das viagens pelo mundo, e seu tour internacional o faz
ter mais visibilidade que seus antecessores... A viagem à Africa é muito mais
um show... O cara quer ir a todos os lugares. Algumas vezes parece que ele
(Lula) deseja fugir de Brasília e dos problemas políticos.,Correio Braziliense,
Skidmore critica tour presidencial, 17 de outubro de 2007, p. 24.
10 Isso ocorre mesmo no contexto de forte expansão da presença comercial do
Brasil na África e da África no Brasil, como demonstram os dados do Ministério
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Apesar do crescimento, de
2002 para 2006, do fluxo comercial entre o Brasil e a África de US$ 5 para US$
15,5 bilhões, não se percebe uma estratégia empresarial de longo prazo a cuidar
para que a presença do comercial migre para os investimentos em logísitica e
sustentabilidade dessa área relevante para a diversificação de parcerias
comerciais e políticas do Brasil. Tal crescimento se dá mais, para alguns
analistas com meu colega Wolfgang Döpcke, pelo crescimento inercial da economia
global e seus impactos no Brasil e na África. Mas há que registrar-se, por
exemplo, a nova linha de crédito anunciado pelo BNDES para Angola, em torno de
US$ 1 bilhão, na visita do presidente Lula àquele país em 18 de outubro último,
como um movimento altamente favorável a uma presença mais induzida pelo Brasil,
pelo próprio Estado nacional.
11 A produção nacional de livros a respeito da África é escassa, em geral sem
pesquisa in loco, além de reproduzirem, em grande medida, visões românticas ou
voltadas para o estudo do outro lado do Atlântico Sul apenas pela via
politizada do discurso da afro-brasilidade.
12 Ver alguns livros meus e de colegas brasileiros a respeito da política
africana do Brasil, no passado e no presente: José Flávio Sombra Saraiva, O
lugar da África: a dimensão atlântica da política exterior do Brasil. Brasília:
Editora da UnB, 1996; José Flávio Sombra Saraiva & Amado Luiz Cervo
(orgs.), O crescimento das relações internacionais do Brasil. Brasília:
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2005; José Flávio Sombra
Saraiva, África e o Brasil: o Fórum de Fortaleza e o relançamento da política
africana do Brasil no governo Lula. In: Pedro Mota Coelho & José Flávio
Sombra Saraiva (orgs.), Fórum Brasil-Africa: Política, Cooperação e Comércio.
Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), 2004, p. 295-
307; José Flávio Sombra Saraiva, A política exterior do governo Lula: o desafio
africano, Revista Brasileira de Política Internacional, 45 (2), 2002, p. 5-25.
13 Há 20 anos estudei aquele outro intento de renascimento africano, naquela
época marcado pelo grande debate ideológico entre uma África que renascia entre
acomodações aos padrões neocoloniais, sob o manto do conceito de negritude de
Leopold Senghor, e o grito revolucionário, da luta armada como teoria de
libertaçãode Amílcar Cabral. Ver José Flávio Sombra Saraiva, Formação da África
Contemporânea, São Paulo: Editora da Unicamp/Atual, 1987, capítulo
"Renascimento cultural na África contemporânea", p. 6-16. Ver também os debates
clássicos propostos por Paulin J. Hountondji, Sur la "philosophie africaine".
Paris: Maspero, 1980; Ola Balogun, Honorat Aguessy, Pathé Diagne, Alpha Sow,
Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977.
14 Anouar Abel-Malek, Sociologia del imperialismo. Ciudad de México:
Universidad Nacional Autônoma de México, 1977;
15 Ver o texto de Paulo Fernando de Morais Farias (Centre of West African
Studies, University of Birmingham, Inglaterra) preparado para o seminário
preparatório dos temas africanos para a II CNPEPI, em 2 e 3 de março de 2007,
intitulado "Tombuctu, a África do Sul e o idiona de renascença africana". É
Paulo Farias que lembra que "por definição, o atual idioma da Renascença
Africana se refere tanto ao presente quanto ao passado, dentro e fora das
fronteiras da África do Sul, o país onde tem sido proclamado". É também de
Paulo Farias outras duas idéias lapidares para o debate em curso: primeiro, "o
papel dos cronistas de Tombuctu na invenção do esquema não tem sido
reconhecido, porque a função que lhes é imposta pelos discursos posteriores é
outra. As crônicas passaram a ser vistas sobretudo como testemunhas de uma
grandeza saheliana perdida, que simboliza o futuro a ganhar. As tensões sociais
e audácias intelectuais da Tombuctu do século XVII são substituídas pela imagem
de um classicismo africano estereotipado"; segundo, "todo discurso de
renascença corre o risco de mitificar o passado. Mas esse risco não inevitável,
e subtrair-se a ele é também uma maneira de preservar a capacidade crítica em
relação ao presente e aos caminhos para o futuro."
16 Mamadou Diawara, Paulo Fernando de Moraes Farias et Gerd Spittler, Heinrich
Barth et l'Afrique. Köln: Rüdiger Köppe Verlag, 2006.
17 Modelar o balance dos 30 anos da independência da África realizado por
Douglas Rimmer, em 1991, com prefácio da Princesa Diana, em nome da Royal
African Society britânico. Ver Douglas Rimmer (ed.), África 30 Years 0n.
London: James Currey, 1991. Indicava já aquele documento do início dos anos
1990 que a África necessitaria voltar-se para si mesmo, para dentro, para sair
de suas crises.
18 Vale aqui lembrar que os mais de cerca de 600 milhões de africanos serão, na
segunda metade do século XXI, em torno de um bilhão de 200 milhões de pessoas.
Tomando-se em conta a grande população de velhos na China e o modesto
crescimento vegetativo da Índia, a África, ao lado dos outros dois países,
serão as áreas mais populosas do mundo no final do século XXI.
19 Ver os relatórios de 2006 e 2007 do BIRD e do FMI, nos capítulos referentes
às oportunidades de crescimento mais sustentável das economias africanas para
os próximos anos.
20 Esse tema foi particularmente tratado recentemente, pela obra mais difundida
acerca dos 50 anos da independência africana pelo britânico Martin Meredith,
The State of África: a History of Fifty Years of Independence. London: Free
Press, 2006. É dele a frase:
21 Apud Martin Meredith, op. cit., p. 688.
22 Conversas com o colega quando esteve no Brasil como representante do PNUD e
do sistema onusiano em Brasília.
23 Ali Mazrui alertou para esse problema na abertura da Conferência
Internacional "Democracy and Peace: Dialogue between Africa and Latin América",
Jos Univerity, Ibadan University, em Abuja, 2000, conferência a qual tive a
honra de participar como membro da delegação latino-americana.
24 Ali Mazrui, "Foreword". Em: Ricardo R. Lauremont (ed), The causes of war and
the consequences of peacekeeping in África. Portsmounth: Heinemann, 2002, p.
xi.
25 Paulo F. de M. Farias, " Tombuctu..., op. cit.
26 Conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação nos dias 18 e 19 de
outubro do corrente ano pelas televisões e jornais, depois de sua desastrosa
entrevista para a BBC.
27 Ian Taylor & Paul Wiilliams (eds), África in International Politics:
External Involvment on the Continent. London: Routledge, 2004.
28 Idem, página 1.
29 Ian Tayor & Paul Williams, op. cit., p. 1.
30 Seguindo a tradição dos ingleses de revisão, a cada duas ou três décadas, de
avaliação das grande tendências em curso na África. Destaca-se, por exemplo, o
balanço de 1991, já um pouco ultrapassado, mas bastante interessante pelas
visões mescladas, entre otimismo e pessimismo, acerca do futuro da África
quanto aquele organizado pelo Royal African Society sob os auspícios do meu
mestre em Birmingham, Inglaterra, Douglas Rimmer, op. cit. É de Douglas Rimmer
a seguinte assertiva, produzida em 1991, e de grande atualidade para o
renascimento africano: "Responsible governments, competent governments, and
governments limited in their agenda to what they can usefully achieve are the
second requiremente of a better future in África", p. 13.
31 CFR, More than Humanitarianism: A Strategic US Approach towards África.
Washington: Council on Foreign Relaitons, 2007.
32 Apud Ian Taylor, "The all-weather friend? Sino-African interaction in the
twenty-first century" in Ian Taylor & Paul Williams, op. cit., p. 87.
33 Adama Gaye, Chine-Afrique: le dragon et l1autruche. Paris: L'Harmattan,
2006; Jean-François Susbielle, Chine-USA: la guerre programe. Paris: Ed.
Générale First, 2006, capítulso "La conqête pacifique de l'Afrique", pp. 231-
232; Armand Tenesso, La nouvelle destine de l'Afrique. Paris: L'Harmattan,
2006.
34 Daniela Kroslak, France's policy towards África In: Ian Taylor and Paul
Williams, op. cit., p. 61-82.
35 Ver o início de avaliação desse movimento do Brasil em artigo relativo à
conferência que preparei para evento anterior organizado pelo Ministério das
Relações Exteriores: José Flávio Sombra Saraiva, Moçambique em retrato 3x4: Uma
pequena brecha para a política africana do Brasil. Em: Seminário Preparatório
"África", para a II Conferência Nacional de Política Externa e Política
Internacional, 2 de março de 2007.
36 IMF & BIRD, Africa Foreign Investment Survey 2005. 2006.
37 Os jornais e revistas moçambicanas e internacionais desses dias festejam ou
vêem com desconfiança a estratégica visita realizada, no contexto do tour do
presidente chinês por vários países da região. Ver: Beijing Time5/2/07;
Beijing/AFP/Turkishpress.com30/1/07; Le Monde ' Economie15/12/06; Le Monde/AFP/
Reuters30/1/07; Notícias 8/2/07; Notícias Lusófonas5/2/07; The Guardian31/1/07;
Xinhua News Agency9/2/07.
38 Ver, nesse caso, o impressionante relatório preparado pelo South African
Institute or International Affairs (SAIIA), publicado em 2002, intitulado Cada
continente precisa de seu Estados Unidos da América, voltado ao balanço e
endosso da presença semi-hegemônica que a África do Sul procura impor a
Moçambique. Um trecho do documento fala por si: "Over the last 10 years,
Mozambique, sometimes touted as South Africa's tenth province, has emerged as
one of the most significant South Africa investment destinations on the African
continent. South Africa is a leading investor in that country representing 49%
of total foreign direct investment (FDI) from 1997-2002. South African
companies have capitalized on Mozambique's geographical proximity to expand
their reach into the continent" (p. 1) Ver GROBBELAAR, N. Every Continent Needs
an America. Pretoria: SAIIA, 2002.
39 Ver, por exemplo, os trabalhos de Scarlett Cornelissen, a respeito do avanço
japonês na África, e a impressionante radiografia de Ian Taylor concernente ao
desembarque do governo de Hu Jintao na África: Cornelissen, S. Japan-Africa
relations: patterns and prospects. In: Taylor, Ian & Williams, P. Africa in
International Politics: External Involvment on the Continent. London:
Routledge, 2004, pp. 116-135; Taylor, I. The 'all-weather friend'? Sino-African
interaction in the twenty-first century. In Taylor, Ian & Williams, Paul,
op. cit. p. 83-101.
40 Esclarece-se, no entanto, que não há unanimidade entre os estudiosos da
África contemporânea acerca dessa matéria. Para alguns deles, como Döcpke, o
que diferencia a corrupção moçambicana da angolana é a proporção da economia.
Haveria menos a distribuir em Moçambique que em Angola. (Entrevista com o
especialista)
41 Olsen, C. A luta continua: a formação do Estado em Moçambique. Brasília:
MRE, Instituto Rio Branco, 2006, p. 48. (Orientador: José Flávio Sombra
Saraiva)
42 Ver www.freedomhouse.org.
43 Ver, nesse aspecto, a proposição conceitual de Amado Luiz Cervo relativa à
noção de Estado logístico, recentemente apresentado no seu novo livro: Amado L.
Cervo, Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros. São Paulo:
Editora Saraiva, 2008, parte I: "Conceitos, transição e paradigmas", p. 7-91
44 NEPAD, documento oficial de lançamento, 2001, parágrafo 22.