Conceitos em Relações Internacionais
Introdução
O propósito desse texto é de analisar o nexo entre teorias de relações
internacionais e conceitos aplicados às relações internacionais1. Dois
problemas são investigados a esse respeito: por um lado, o alcance explicativo
de teorias e conceitos, por outro, seu enfoque nacional ou regional. Pretende-
se confrontar o papel dos conceitos ao das teorias mediante hipótese segundo a
qual conceitos e teorias exercem papéis diferenciados no campo de estudo das
relações internacionais. O passo seguinte consiste em afirmar que o alcance
explicativo universal das teorias é forjado, visto que se vinculam a
interesses, valores e padrões de conduta de países ou conjuntos de países onde
são elaboradas e para os quais são úteis, contrariamente aos conceitos, que
expõem as raízes nacionais ou regionais sobre as quais se assentam e se recusam
estar investidos de alcance explicativo global.
Essa linha de argumentação sugere reduzir a função das teorias e elevar o papel
dos conceitos, seja no sentido de produzir compreensão, seja no sentido de
subsidiar processos decisórios nas relações internacionais. Ademais, essa
argumentação coloca em cheque o prestígio das teorias de relações
internacionais nos programas de ensino e advoga a pesquisa dos conceitos
produzidos em determinado país ou num conjunto de países.
O texto levanta, pois, as questões do ensino nas universidades e do processo
decisório. As teorias não são isentas nem imparciais, apenas são adequadas como
fundamentação teórica para estudos acadêmicos e como subsídios à tomada de
decisões quando tomadas com senso crítico ou até mesmo a reverso do conteúdo
que veiculam. Elas podem conduzir intelectuais a caminhos incongruentes e
lançar governantes contra interesses de seu povo.
O trabalho focaliza três aspectos do tema. Em primeiro lugar, expõe-se o
aspecto epistemológico: quais os substratos empíricos e os suportes mentais
utilizados na elaboração de teorias e conceitos e como esses fatores
condicionam seu alcance explicativo? Em segundo lugar, identificam-se quais são
os criadores de conceitos e expõe-se o método que utilizam. Em terceiro,
responde-se à questão da funcionalidade: para que servem os conceitos?
O campo de observação empírica e o suporte mental utilizados nesse texto com o
fim de fundamentar a argumentação acerca do papel dos conceitos e ilustrá-la
com exemplos envolvem as experiências brasileira e sul-americana. Delas
extraímos fatos, pensamentos e contribuições. Pouco avançamos para além dessas
fronteiras de observação, mas o caráter abstrato do texto insere-o na área dos
estudos de relações internacionais em condições genéricas, com o fim de abrir
um debate intelectual a respeito de conceitos e teorias.
1. Teorias e conceitos: raízes e alcances diferenciados
O estado atual das teorias das relações internacionais apresenta um quadro
caótico do ângulo de sua formulação intelectual2. Esse fato, per se, aconselha
o estudioso a tomá-las com cautela. Elas conservam, como afirma Marie-Claude
Smouts, a função original de elaborar a compreensão do objeto de estudo, as
relações internacionais, e de iluminá-lo com o conhecimento organizado3.
Constituem, destarte, um corpusde conhecimento de grande utilidade, como se
observa com teorias desenvolvidas por outras ciências humanas e sociais.
As teorias integram, no Brasil, os currículos dos cursos de relações
internacionais, aproximadamente setenta cursos de graduação e cerca de uma
dezena de cursos de pós-graduação de mestrado e doutorado. Isto é, exercem uma
contribuição de ponta para a formação do pensamento e da inteligência nacional.
Por outro lado, informam o processo decisório, como afirma em seminários o
atual ministro brasileiro de relações exteriores, Celso Amorim, por algum tempo
professor de teoria das relações internacionais na Universidade de Brasília:
quem não conhece a teoria não exercita a intuição conselheira da decisão4.
O caos a que nos referimos diz respeito a contradições entre teorias e
correntes teóricas que os manuais evidenciam. O caos também se observa em
publicações, até mesmo de grandes mestres, que exibem interpretações das
relações internacionais sem se apresentarem como formuladores de teorias
stricto sensu. Em nosso entender, o estado caótico das teorias explica-se pelo
fato de não serem imparciais, já que se inspiram em campos de observação
limitada, e pelo fato de não serem objetivas, já que outros campos de
observação suscitariam o contraditório, enfim por não convencerem como
explicação universal, como presumem.
A desconfiança intelectual invade com força ética o domínio das teorias das
relações internacionais. As raízes em que se apóiam as vinculam a interesses
específicos de determinadas sociedades que constituem seu campo de observação,
bem como a valores que estas sociedades cultivam e, ainda, a padrões de conduta
que sugerem e enaltecem como sendo ideais. Enquanto promovem tais fatores
específicos, descartam interesses, valores e padrões de conduta de outras
sociedades. O construtivismo, mélangedas contradições da teoria, surge como
reação de superação do impasse a que se chegou.
Desvendar as ciladas da teoria é tarefa tão relevante quanto apropriar-se de
seu conhecimento. O realismo, por exemplo, trilhou o caminho do sucesso nas
universidades e meios intelectuais de todo o mundo, de modo incomparável. A
desqualificação dessa corrente teórica inicia com as evidências de sua origem
nos Estados Unidos, no início da Guerra Fria, por tal razão estabelecendo o
Estado como agente principal das relações internacionais e a segurança como
motivação primeira da ação externa. O realismo propõe ao mundo interesses,
valores e padrões de conduta do Ocidente.
O realismo não é isento nem explica as relações internacionais como pretende.
Às vezes pode convir a certas nações navegar contra o realismo, ensina Parola5.
E acrescenta: a moral dele foi excluída desde a origem. Por que não se moveriam
as relações internacionais contra o realismo, capaz de produzir a ordem
injusta?
A crise das teorias elaboradas nos meios acadêmicos do centro do capitalismo e
difundidas para o mundo tira explicação de suas carências de objetividade,
isenção e alcance, por um lado, da irrupção dos países emergentes, detentores
de metade da riqueza global, por outro. As teorias que servem ao Primeiro Mundo
não são convenientes, necessariamente, aos emergentes. Tomemos, como exemplo, a
teoria da estabilidade hegemônica.
Para Bertrand Badie, a teoria da estabilidade hegemônica, no mundo atual, exibe
tanta capacidade explicativa para as relações internacionais quanto uma
eventual teoria da instabilidade hegemônica6. Esta última, com efeito, fundar-
se-ia no suporte empírico de uma base de observação tão global quanto a
primeira: o antiamericanismo ou a aversão natural à hegemonia; o terrorismo ou
a reação de quem não tem meios de potência; a autonomia dos Estados ou a
imitação da potência hegemônica pela conduta unilateral; a necessidade de
entendimento multilateral para alcançar resultados em questões vitais como
clima, fome, formas de energia, comércio internacional, respeito aos direitos
humanos, gerenciamento de conflitos locais, bilaterais ou regionais. Em suma, a
ordem internacional não se ampara na potência hegemônica do momento se esta não
for capaz de conectar-se com as forças globais de modo a agregar o peso destas
últimas na criação da ordem. E nesse caso a teoria da estabilidade hegemônica
esvazia-se.
Um contrapoder, com efeito, ergue-se daquele sul que os geopolíticos já
denominaram periferia, depois terceiro mundo, hoje emergentes. Esse
contrapoder, no entender de Dupas7, esparrama-se sobre todos os domínios das
relações internacionais e desafia o poder institucionalizado no seio do
capitalismo tradicional. Requisita novas formas de compreensão e explicação
para as relações internacionais.
Examinemos apenas o efeito do contrapoder sobre o âmbito da negociação
comercial. Desde a Segunda Guerra Mundial, a velha periferia assistia a
decisões elaboradas pelos países centrais do capitalismo no seio do Gatt-OMC e
propostas como regras para todas as nações. A periferia não participava da
formulação, tampouco usufruía de benefícios estruturais, por certohaveria de
cumpri-las. Durante a Conferência de Cancun, em 2003, inserida na rodada Doha
da OMC, os países emergentes não se alçaram contra a liberalização do comércio
internacional, objetivo da rodada, porém contra o modo de produzir o acordo. Em
Cancun, tudo ocorreria como no passado: um consenso entre os países ricos,
proposto como ordenamento nos limites das possibilidades aceitáveis por eles
mesmos. A continuidade do poder. Os emergentes organizaram-se então no G20 com
o fim de participar, pela primeira vez, da formulação das regras de
liberalização de modo a estabelecer a reciprocidade de benefícios. Caso não
fosse possível atingir a reciprocidade, bloquear-se-ia a produção de regras
multilaterais para o comércio internacional. A OMC paralisou-se por anos em
razão da emergência do contrapoder.
O contrapoder dos emergentes desequilibra o exercício do poder internacional da
antiga Trilateral, Estados Unidos-Europa-Japão, da potência hegemônia, Estados
Unidos, bem como da atual coalizão estratégica entre Europa e Estados Unidos.
Faz do G8, ademais, um espetáculo de impotência, mesmo que os líderes do velho
capitalismo escolham um G5 de emergentes representativos para assistir a suas
reuniões. O contrapoder enfraquece, enfim, todas as teorias atreladas à ordem
internacional construída desde o centro e para o centro.
Não se trata apenas de observar o choque de interesses no domínio do comércio,
da segurança, do meio ambiente e dos direitos humanos, como o dos migrantes,
que a ordem do passado revela e as teorias animam.
Um exemplo de teorização das relações internacionais pertinente ao domínio dos
valores, que correu o mundo e ainda fundamenta estudos, interpretações e
processos decisórios, nos é fornecido por Samuel Huntington8. Como toda teoria
serve a uma cultura, o choque de civilizações serve à cultura ocidental de
matriz anglo-americana. Brasil, Índia e China, entre outros países pacifistas,
concebem e praticam políticas exteriores não confrontacionistas e pautam sua
conduta pela convivência das diferenças culturais. Em particular, segundo
Renato Ortiz, o Brasil é formado por cultura plural, oriunda de grupos sociais
distintos, culturas que se transformam com o tempo9. E projeta espontaneamente
sua identidade multicultural sobre a visão de mundo, como nos ensina Celso
Lafer10. A teoria do choque de civilizações, ao sugerir o conflito ao invés da
cooperação entre os povos, é avaliada pela inteligência desses emergentes como
uma aberração intelectual.
Em seu livro The Central Liberal Truth: How Politics Can Change a Culture and
Save it from Itself, Lawrence E. Harrison utiliza a lógica de Huntington ao
perguntar-se sobre quais elementos de cultura promovem democracia, justiça
social e desenvolvimento. Nesse e em outros estudos, examinou experiências de
países em desenvolvimento, que elegeu como objeto de observação, e identificou
mais de duas dezenas de fatores de propulsão e obstrução. Contudo, sua base de
referência epistemológica prossegue sendo a cultura do Ocidente, que sobrepõe
como filtro solar para captar as manifestações da cultura em países do sul e
verificar sua adequação ou não a uma teoria da superioridade da cultura
ocidental11.
Quando se unem, Harrison e Huntington descartam o valor explicativo das
interpretações que fizeram sucesso no sul, como as teorias do imperialismo, do
colonialismo e da dependência, entre outras. Limpam, como se diz na gíria
brasileira, a barra moral do capitalismo e embutem valores culturais do
Ocidente na teoria que divulgam, como propagandistas12.
Revelando atitude intelectual mais aberta e mais simpática, Alexander Wendt
escala uma nova fase dessa evolução recente das teorias. Construtivista,
construtivista racionalista como se apresenta a si mesmo, surpreendeu o meio
acadêmico em 1999 com seu livro Social Theory of International Politics. Wendt
inicia a demolição do imperialismo das teorias das relações internacionais.
Essas teorias, segundo o autor, nunca foram capazes de prever algo que já não
fosse uma tendência em curso. Ávido por idéias novas, não hesita em colocar em
cheque por meio de seu ecletismo metodológico o conhecimento disponível para
explicar as relações internacionais. O realismo, por exemplo. Existem três
paradigmas de Estado, afirma: o hobbesiano, que vê os outros como inimigos, o
lockeano, que os vê como rivais, e o kantiano, que os vê como amigos. Embora
pretenda golpear o realismo, que opera em seu entender por meio do primeiro
modelo, o argumento de Wendt permanece em certa medida tributário dessa
corrente13.
Para os fins desse texto, recolhemos do acima exposto uma conclusão que nos
permite passar à segunda parte de nosso argumento.
No estado em que se encontram, as teorias das relações internacionais são
limitadas em sua capacidade explicativa, normativa e decisória, visto que
pesquisadores recentes avançam na identificação de interesses, valores e
padrões de conduta de múltipla procedência que inserem em sua interpretação de
modo implícito ou explícito. Entre as nações, a diversidade desses três fatores
prepondera. Tal constatação objetiva torna como que impossível qualquer teoria
de alcance universal. Muito ilustrativa dessa crise do conhecimento é a reação
da terceira geração de teóricos da escola inglesa (Alexander Wendt, Andrew
Linklater, Tim Dune e Nicholas Omuf), os quais desvendam as armadilhas
escondidas por trás do tradicional conceito de sociedade internacional e de seu
papel na produção de regras componentes da ordem internacional14.
Do ângulo epistemológico, o construtivismo encaminhou a avaliação crítica das
teorias, sem conduzir sua lógica ao termo do raciocínio. Deixou em aberto a
confusão mental, por não haver estabelecido nexo de inspiração entre fatores
nacionais ou regionais e elaboração teórica. A ousadia consiste em descartar de
vez a pretensão universalista das teorias e limitar-se a erguer conceitos
aplicados às relações internacionais. Estes não renegam suas raízes nacionais
ou regionais - interesses, valores e padrões de conduta - por tal razão não se
apresentam com a ambição explicativa universal das teorias.
2. Os construtores de conceitos
Nas duas partes seguintes desse texto, a experiência brasileira fornece a base
de observação para coleta dos dados do estudo. A sistematização dos conceitos
brasileiros aplicados à inserção internacional do país é vista, desde agora,
como contribuição do intelectual ao estudo das relações internacionais. O
conjunto de conceitos articulados entre si e com o campo do conhecimento das
relações internacionais foi exposto em nosso livro Inserção Internacional15. O
conjunto aproxima-se da teoria, na medida em que exerce as duas funções que a
disciplina se atribui historicamente, a explicativa e a valorativa. Diferencia-
se da teoria, na medida em que restringe o alcance às relações internacionais
de um determinado país.
A crítica à construção de teorias exposta na primeira parte desse texto
reivindica, em nosso entender, a multiplicação de formulações com o fim de
abarcar conjuntos explicativos e conjuntos valorativos diversos, de tal sorte
que não permaneçam alguns povos ou nações à mercê de outros no terreno da
formação acadêmica e das decisões políticas. Foi com esse intento que nos
ocupamos durante três anos com o projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq, de que
resultou nosso livro.
Agregamos ao estudo das relações internacionais a contribuição brasileira,
substantiva pelo lado cognitivo e legítima pelo lado ético. Sem estarmos
preocupados em elaborar mais uma teoria e sem recusarmos a idéia de que um
conjunto de conceitos possa ser comparado a uma teoria pelo fato de exercer
idênticas funções.
Centramos, a seguir, o foco em duas questões relativas à formação dos conceitos
brasileiros de inserção internacional: em primeiro lugar, são indicados os
criadores de conceitos e a abrangência de suas formulações; em segundo, para
fins pedagógicos, são examinadas e demonstradas as funções específicas desses
conceitos aplicados às relações internacionais.
O estudo de conceitos elaborados no interior de uma nação, ou numa determinada
região de similaridade cultural e de desígnios externos, é conduzido em nossa
pesquisa por método predeterminado, não eclético, como procedem
construtivistas, a exemplo de Wendt. Os procedimentos de nosso método são
sumariamente expostos a seguir.
Por mais pretensioso que se apresente, o intelectual que lida com as relações
internacionais não arranca de sua mente o conceito acabado. A contribuição
pessoal é relevante, na medida em que a destilação de conceitos, o arranjo, a
tipificação e a conexão evolutiva, uma soma de tarefas da qual resulta a
síntese superior, pertence ao autor, que por vezes acrescenta de próprio. Algo
semelhando ocorre no campo das teorias, como bem sabem os estudantes de
relações internacionais: num extremo, manuais que expõem as teorias alheias; em
outro, criações originais e pessoais; no meio situa-se nosso procedimento, uma
sistematização de conceitos extraídos, seja de determinada praxis, em viagem do
empírico ao abstrato, seja de determinada inteligência elaborada coletivamente.
Com efeito, o conceito aplicado às relações internacionais com o qual estamos
lidando resulta de uma construção social. Os conceitos brasileiros, objeto
desse estudo, lançam raízes em três segmentos da sociedade: os pensadores da
nação, de seu destino e de seu lugar no mundo; os pensadores da vida política e
da ação diplomática; enfim, o meio acadêmico e os centros de produção
científica que analisam metodicamente a conexão entre o interno e o externo.
Nosso método de análise aproxima-se dos procedimentos de outras correntes e
grupos, mas sequer deve ser qualificado de construtivista. O método tradicional
de elaboração das teorias está mais para a dedução, daí sua fragilidade
intrínseca, o construtivista explora uma base de observação dispersiva e exibe
certo ecletismo, ao passo que nossos procedimentos para produção dos conceitos
apóiam-se na segurança do método histórico, em sua essência, percorrendo o
caminho da indução que vai do concreto ao abstrato.
Pensadores de expressão nacional
Em que mundo vivemos? Tem o Brasil um lugar especial no mundo? Que mundo se
deseja para a humanidade? Qual o papel a desempenhar sobre o cenário
internacional. Sem serem políticos, diplomatas ou cientistas, alguns
brasileiros se inclinaram sobre tais questões e formularam pensamento a tal
respeito, de modo a impregnar o substrato cultural da mente coletiva. Esses
pensadores devem ser procurados na literatura propriamente dita, nos
personagens que ela cria e que refletem o meio diverso em que vivem e as visões
que nutrem de si, dos outros, de brasileiros e de estrangeiros, da nação e do
mundo. São encontrados também na plêiade de pensadores que não figuram em
manuais de história da literatura, porém deixaram suas idéias em obras que
compõem o acervo cultural da nação. Pela força da leitura, da citação, da
aprendizagem ou mesmo do subconsciente, a mensagem desse segmento do pensamento
nacional revive e se perpetua.
Observamos no procedimento inglês e de intelectuais de outros países europeus o
modo como a inspiração do estudo das relações internacionais retira do acervo
de pensadores clássicos idéias e interpretações de inestimável valor. Brunello
Vigezzi descreve em valiosos estudos a conexão entre a escola inglesa e os
mestres do passado16. Conexão similar convém estabelecer, por exemplo, entre
fundadores da antropologia brasileira que escreviam na virada do século XIX
para o XX, pensadores da semana de arte moderna de 1922 e do grupo do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) dos anos 1950 com a interpretação das
relações internacionais do Brasil.
Para Manuel Bonfim, os males da civilização dos trópicos não advêm da raça ou
do clima, porém do modelo de inserção internacional. Por que não libertar a
América Latina do jugo externo e estimular seu dinamismo, tomando como fatores
de propulsão energias próprias? O otimismo de Bonfim inspira os intelectuais
dos anos 1920, como Oswald de Andrade, o modernista, e, na década seguinte,
Gilberto Freire, o sociólogo, quando o Brasil dava seu salto de modernização.
Democracia racial associada à ideologia do trabalho, eis a solução para o
dilema não resolvido da mestiçagem, ensina Freire. O nacionalismo de isebianos
e dos fundadores da Revista Brasileira de Política Internacional(1958) nada
tinha de hobbesiano. Hélio Jaguaribe, Cleantho de Paiva Leite, Afonso Arinos e
outros pensadores tomavam consciência do atraso econômico e requeriam a
autonomia da política exterior como instrumento necessário de promoção da
prosperidade.
Os pensadores que forjam a cultura da nação lançam as sementes de paradigmas de
Estado, tão caros à teoria das relações internacionais. Morgenthau expressa a
súmula do pensamento social norte-americano do início da Guerra Fria, ao
elaborar sua teoria "realista" do Estado hobbesiano. Wendt expressa a súmula do
pensamento clássico europeu, ao elaborar sua teoria "construtivista" dos três
Estados, hobbesiano, lockeano e kantiano. Mas no Brasil, nenhuma dessas
formulações teóricas tem assento na cultura nacional. Com efeito, esta inspira
quatro conceitos de Estado, longamente expostos em Inserção Internacional:
liberal-conservador, desenvolvimentista, neoliberal e logístico.
O paradigma liberal-conservador estende-se da Independência a 1930, baseado na
apropriação do liberalismo clássico europeu e responsável por manter o atraso
histórico da nação segundo análise estruturalista dos pensadores da Comissão
Econômica para a América Latina (Cepal). O desenvolvimentista é destilado do
pensamento modernizador de que demos algumas referências e induziu as
conquistas do progresso durante sessenta anos. O neoliberal dos anos 1990
representa uma volta ao passado pela subserviência que pratica e, ao mesmo
tempo, um salto para o futuro, quando abre economia e sociedade aos fluxos da
globalização. O logístico, enfim, no século XXI, que transfere à sociedade e a
seus agentes as responsabilidades do desenvolvimento, sem deixá-los a mercê do
mercado porque lhes dá suporte em sua ação externa.
A cultura brasileira é componente congênito desses e dos demais conceitos
aplicados às relações internacionais do país.
O pensamento político e diplomático
Em todo país do mundo, homens de Estado desenvolvem idéias acerca do modo de
conceber o sistema internacional, sua estrutura e funcionamento, a economia
internacional, bem como as relações do país com estruturas e conjunturas e com
as outras nações. Estamos nos referindo a dirigentes, em especial os
diplomatas, que desempenham funções relevantes para a formação nacional.
As correntes brasileiras do pensamento político e do pensamento diplomático
carregam como legado histórico a identidade pluralista em que nasceu, cresceu e
amadureceu a nação, cujo curso profundo repousa sobre substrato étnico-cultural
múltiplo. Na esfera das idéias políticas e diplomáticas aplicadas às relações
internacionais do país, esse substrato oferece base real, porém os pensadores
se alçam com desenvoltura. Examinemos, por exemplo, duas tendências relevantes:
o pensamento liberal e o pensamento industrialista.
Um país liberal, aberto aos fluxos de idéias, conhecimentos, pessoas, capitais,
produtos; conectado com o mundo não só por meio desses fluxos, mas por
ordenamentos que os convertem em organização institucional, regras de direito,
garantia de estabilidade e previsibilidade, regras, portanto, inspiradoras da
conduta da sociedade e do Estado sobre o cenário internacional: essa linha de
pensamento não emerge no Brasil à era de Fernando Henrique Cardoso e dos
neoliberais do fim do século XX. A abertura ao mundo penetra a cultura e a vida
política brasileira como fator imanente de sua história. Assim pensava D. João
VI quando concebia, em 1808, a liberdade para o comércio e as manufaturas no
Brasil: construir o império americano ancorado no aumento da riqueza, cuja
possibilidade seu conselheiro, José da Silva Lisboa, o primeiro economista
liberal brasileiro, condicionava à contribuição interna e ao livre comércio.
Nessa visão de conveniente abertura ao mundo, José Bonifácio de Andrada e
Silva, o pai da pátria, concebia à época da Independência a nação a construir.
Jamais desconectou-se a vida política dessa corrente liberal ao longo de toda a
história nacional.
Um país industrial não foi pela primeira vez conceituado por Getúlio Vargas ou
Juscelino Kubitschek, dois estadistas modernizadores do século XX. A linha de
pensamento teve precursores distantes. A gênese do pensamento industrialista
brasileiro vem embutida em medidas como Carta Régia, decreto e alvará tomadas
em 1808 e 1809 por D. João, sob inspiração de seu conselheiro. A corrente se
reforça, ao adquirir consistência racionalizada nos textos de Nicolau Pereira
de Campos Vergueiro e Raimundo José da Cunha Matos nos anos 1820, Bernardo
Pereira de Vasconcelos e Sales Torres Homem, entre outros, no decorrer do no
século XIX. O liberalismo radical da segunda metade do século XIX, tão bem
expresso por Tavares Bastos, colocava-se a serviço da sociedade primário-
exportadora, uma organização voltada à manutenção do atraso histórico por
elites sociais que se haviam apropriado do Estado e dele se serviam com
exclusividade. Da mesma forma, no século XX e XXI, porém sob novas e adaptadas
formulações, como democracia de mercado, globalização benéfica, governança
global, liberais radicais se colocam a serviço de interesses da elite das
nações, que estabelece em proveito próprio o ordenamento global. Os pensadores
que conceberam através do tempo o paradigma liberal-conservador de relações
internacionais dominaram o exercício do poder dos dirigentes por mais de um
século, desde a Independência até a revolução de 1930, precisamente. A
tendência liberal imprimiu traços indeléveis na formação nacional. Já os
pensadores que inspiraram o paradigma desenvolvimentista pela via da
modernização industrial, depois de observarem sua voz ressoar no deserto
durante tão longo tempo, a profetizar o futuro, acabariam substituindo os
primeiros de 1930 em diante.
Os conceitos brasileiros aplicados à inserção internacional do país são
múltiplos e por vezes complementares, como estas duas correntes acima
referidas, capazes de produzir o equilíbrio do modelo de inserção ou modelos
contraditórios. No fundo, a sociedade brasileira sempre foi liberal, até mesmo
porque esse lastro ideológico serviu de ambiente e fermento para a germinação
de conceitos contraditórios.
Liberal era a sociedade, e aberta ao mundo, pensava D. Pedro II, ao visitar os
Estados Unidos, a Europa, a Rússia, o Próximo Oriente e o Egito, durante a
segunda metade do século XIX. Ao despachar para a China, em 1879, uma grandiosa
missão com o fim de estabelecer com o Celeste Império o comércio, as relações
diplomáticas e o fluxo migratório. Para industrial evoluía a sociedade, por tal
razão Ernesto Geisel concebia um país no topo da escala do desenvolvimento, com
tecnologias de ponta, empreendimentos de vulto e parcerias estratégicas
diversificadas, no momento em que os Estados Unidos perdiam peso sobre a cena
internacional e criavam dificuldades à conquista do último estágio do
desenvolvimento. Exigências do segundo paradigma histórico sugeriam outras
conexões externas, com Alemanha, Itália e Japão, por exemplo, os quais se
dispunham a oferecer fatores de prosperidade sonegados pela potência hegemônica
da área.
Nessa práxis e nesse substrato étnico-cultural pluralista inspiraram-se Oswaldo
Aranha, Araújo Castro, Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Ramiro Saraiva
Guerreiro para conceituar o universalismo da diplomacia brasileira, ao qual
alguns dirigentes seus contemporâneos, a exemplo de João Neves da Fontoura e
Vasco Leitão da Cunha, impunham limites por meio do conceito de ocidentalismo,
uma estratégia de ação externa excludente.
De modo similar, globalistas epistêmicos, como o grupo assessor de Carlos Saúl
Menem na Argentina (entre os quais Carlos Escudé, Andrés Cisneros e Felipe de
la Balze) e o grupo assessor de Fernando Henrique Cardoso no Brasil (entre os
quais Pedro Malan e Celso Lafer), extraíram do liberalismo genético de suas
nações, bem como de consensos e conselhos externos, inspiração para elaborar e
programar a vigência do paradigma neoliberal de inserção internacional, uma
criação da inteligência política latino-americana dos anos 1990, que não foi
concebida de modo uniforme por todos os dirigentes regionais, porém apresentava
componentes comuns. O pensamento neoliberal não foi adotado no Brasil sem
reação social, visto que outra tendência imanente à história impregnava a
cultura política. Aliás, deu origem, dentro do próprio grupo dirigente
neoliberal, ao pensamento cético quanto a possíveis efeitos econômicos e
sociais e teve de ser temperado com outros conceitos, como o de globalização
assimétrica e de Estado logístico, que fariam sucesso logo mais, quando os
dirigentes neoliberais foram substituídos no início do século XXI.
O meio acadêmico e os centros de pesquisa
Além de grandes intelectuais, pensadores da nação, e dirigentes, como homens de
Estado, políticos e diplomatas, o meio acadêmico e os centros de pesquisa
contribuem para a formação de conceitos aplicados às relações internacionais do
país. Por vezes as mesmas pessoas integram dois e até mesmo os três grupos
acima referidos. Para efeito didático, contudo, convém separar os formadores de
opinião que se localizam nos centros de pesquisa e ensino. Isso porque influem
sobre a mídia, os movimentos de opinião, os resultados eleitorais e as
políticas públicas. Sobretudo influem sobre a formação mental e profissional
dos dirigentes. Uma influência, aliás, profunda e duradoura, aquela que se
exerce sobre o modo de pensar e agir. A esse terceiro segmento social
construtor de conceitos cabe a responsabilidade de avaliar a todos os
conceitos, tendo por referência sua capacidade de propulsão ou obstrução do
desenvolvimento e do bem-estar da nação, quando postos em prática. Cabe, em
especial, desvendar as ciladas das teorias que servem ao desenvolvimento e ao
bem-estar alheio e prejudicam o nacional.
Em cada linha de pensamento que dá origem a determinados conceitos aplicados à
inserção internacional, localizam-se estudiosos com suas aulas, conferências e
publicações. Uma obra que expõe os conceitos brasileiros de relações
internacionais, como fazemos com nossa Inserção Internacional, convém que
apresente no caputde cada capítulo um elenco de autores, cujas leituras são
recomendadas para que o leitor possa aprofundar aquela linha de pensamento e os
conceitos que escondem seu itinerário.
Tomemos o exemplo das relações com a vizinhança. O peso das relações entre
Brasil e Argentina influiu durante dois séculos sobre a formação de conceitos
destinados a explicar e comandar decisões acerca das relações do Brasil com
seus vizinhos da América do Sul.
Quem não lembra, ao revolver o século XIX, os longos debates acerca da
intervenção, da não-intervenção, da neutralidade, como se dizia então, da
legitimidade e ilegitimidade da guerra de conquista, das fronteiras naturais,
da herança portuguesa ou espanhola? Do seio desse fermento intelectual e da
práxis brota um conceito como prevalência de determinada corrente de
pensamento, conceito esse denominado pela historiografia de cordialidade
oficial da diplomacia brasileira. A defesa desse padrão de conduta, revelam
estudos recentes, vem exposta em argumentos históricos de longa data, desde a
época do Visconde do Rio Branco e de seu filho, o Barão. Assenta sobre dados de
raciocínio que estudiosos tornaram explícitos: a grandeza do país, a
convivência necessária, a prosperidade que a todos interessa, a boa imagem a
cultivar em razão dos efeitos que exerce sobre a opinião e os dirigentes, a paz
a manter, a tranqüilidade das fronteiras. Esses e outros fatores encontram-se
na origem do conceito da cordialidade oficial. Ela induz uma conduta em que
sobressai a ação cooperativa em vez do confronto, a humildade em vez da empáfia
política, a negociação em vez da ostentação de força, o silêncio por vezes no
lugar do rompante próprio dos caudilhos. A cordialidade oficial não prejudica,
ao contrário favorece a qualidade das relações com a vizinhança e promove os
interesses de todos. Pode ser sacrificada em situação de impasse, não a
qualquer pretexto - visto que a degradação do ambiente regional produz os
piores efeitos -, se porventura o superior interesse nacional o requer.
Nesse exemplo, observamos a gênese de um conceito e seu caminho para a
maturidade, por meio do cruzamento de influências de três origens: pensadores
da nação, diplomatas e pesquisadores.
Contudo, o conceito de cordialidade oficial não basta para compreender e
orientar a política brasileira para a vizinhança. O acervo de conceitos
disponíveis a respeito desse ramo da ação externa revela a existência de outros
conceitos, também forjados ao longo do tempo, que se aplicam à visão do outro e
ao comando da política regional brasileira: rivalidade, cooperação e conflito,
relações cíclicas e relações em eixo. Eles dão inteligibilidade ao real, porque
abrigam cada qual parcela da verdade, e induzem a conduta do governo e dos
agentes sociais, sugerindo previamente a melhor decisão no sentido de controlar
as relações com a vizinhança pela distribuição de efeitos em benefício de uns,
de outros, ou de todos. Desse modo, exercem, em conjunto, as duas funções de
uma teoria das relações do Brasil com a vizinhança: a explicativa e a
valorativa.
Pesquisadores brasileiros e de países vizinhos estenderam-se, em seus
trabalhos, sobre os componentes de cada um desses conceitos. Quanto à
rivalidade, os fatores de determinação que agem ao longo do tempo e as
manifestações concretas. Quanto ao paradigma da cooperação e conflito, um
estereótipo da literatura, o modo como a primeira agrega ao segundo elementos
de equilíbrio e outras manifestações se sucedem. Quanto às relações cíclicas, a
descoberta de estudiosos de que nem cooperação nem conflito imprimem curso
contínuo, que oscila, pois, em razão de variáveis intervenientes capazes de
produzir a reversão de uma tendência. Quanto às relações em eixo, o nível mais
avançado das análises disponíveis sobre as relações com a vizinhança, os
estudiosos colocam em evidência em sua origem a dimensão do que seja a relação
especial, a união co-responsável com o parceiro, a esfera de elaboração
política comum e o cálculo da reação de terceiros na região. Relações em eixo
entre duas potências maiores em determinada região explicam a gênese dos
processos de integração, como entre França e Alemanha na Europa e entre Brasil
e Argentina na América do Sul.
Além de nossas publicações a respeito dos conceitos que informam as relações do
Brasil com a vizinhança, leiam-se os estudos de argentinos, entre os quais
Mario Rapoport, Eduardo Madrid, Raúl Bernal-Meza, Aldo Ferrer e Miguel Angel
Scenna; e de brasileiros como, Moniz Bandeira, Francisco Doratioto, Raquel
Miranda, Heloisa Vilhena de Araújo e Celso Lafer.
Conceitos destinam-se a integrar conhecimento, servindo como amálgama da
reflexão que organiza a matéria empírica, base de observação científica da vida
política e da realidade econômica, social e histórica. Caso não sejam
produzidos sob tais critérios, dificilmente vão além do divertimento
intelectual fruto do imaginário ou da fé e, nessas condições, não exercem as
funções explicativa e valorativa de que estamos tratando ao discorrer sobre
conceitos que fundamentam o modelo brasileiro de inserção internacional.
Conceitos presidem os diversos campos de estudo das relações internacionais em
geral e das relações internacionais do país. Orientam, ademais, as diversas
áreas da ação externa, seja do Estado, como agente de primeira linha, seja de
outros agentes sociais, internos, externos ou conjuntos. Em nosso estudo sobre
a formação desses conceitos, o objetivo foi de expressar sua riqueza e
diversidade, um rol eloqüente pela quantidade, cujos exemplos acima expostos a
título de amostragem permitem ao leitor avaliar o conjunto.
Por que não mencionar outros, ao menos de passagem, em razão do grande alcance
epistemológico e da grande operacionalidade que ostentam? Pensamos no conceito
de transição na História do país, seja de paradigma seja de regime político, e
seu impacto sobre a política exterior e o modelo de desenvolvimento; pensamos
no acumulado histórico da diplomacia brasileira, um conjunto de valores,
princípios e padrões de conduta que lhe dão previsibilidade e credibilidade; na
parceria estratégica, seja com substrato real seja como mera retórica política;
no desenvolvimento associado contraposto ao desenvolvimento autônomo, o racha
entre correntes de direita e de esquerda, nacionalistas e independentistas;
pensamos no multilateralismo kantiano e no multilateralismo da reciprocidade, o
racha entre utópicos e realistas quanto à visão de mundo; nas relações inter-
societárias, conceito que aplicamos às esferas do turismo, das migrações e da
cooperação acadêmica e técnica; na vocação industrial a preservar, aplicável às
relações com as grandes potências e às negociações multilaterais e bilaterais;
na internacionalização econômica, conceito imanente ao paradigma logístico de
inserção internacional à era da globalização; nas relações triangulares, que
evidenciam interveniência de terceiros em esquemas bilaterais ou interblocos;
pensamos, enfim, em hegemonia e estruturas hegemônicas, aplicáveis à produção
do ordenamento global em que se movem países em desenvolvimento ou
emergentes17.
3. Para que servem os conceitos?
Duas são, em nosso entender, as utilidades de um conjunto de conceitos de
matriz nacional ou regional: reavaliar o papel das teorias de relações
internacionais e desvendar suas ciladas, por um lado; por outro, estabelecer a
capacidade explicativa e valorativa de que são dotados e expor sua
operacionalidade.
Banir o imperialismo epistemológico das teorias de relações internacionais
É chegado o momento de repensar a função da disciplina de teoria das relações
internacionais que ocupa lugar de destaque nos currículos dos cursos de
graduação e pós-graduação. Nunca é suficiente insistir sobre as armadilhas da
teoria: embutir interesses e valores de meios intelectuais em que são
elaboradas, com fins conscientes ou inconscientes de promover a desigualdade
entre as nações, em âmbito global. Tanto teorias quanto conceitos evidenciam o
fato de que as nações cultivam valores próprios e desejam vê-los disseminados,
precisamente porque os prezam; tanto teorias quanto conceitos orientam as
nações em sua ação externa com o fim de realizar interesses de seus povos. A
legitimidade de teorias e conceitos, vistos do ângulo dos valores e interesses
que veiculam, é inegável.
Inegável também é o caráter nocivo à formação nacional ou regional, à definição
da ordem internacional e às relações entre os povos assimilar pensamento,
cultura, valores e interesses alheios como sendo próprios. Por isso, as teorias
exercem forte propulsão à ordem injusta, depois de se posicionarem em sua
gênese. Por isso servem a uns em detrimento de outros, sendo responsáveis pelo
sistema internacional de prevalências unilaterais de benefícios. Estimulam,
ademais, a tendência de padronização do mundo em detrimento da diversidade que
tanto encanta a convivência dos povos. Tudo isso em razão do caráter
universalista com que se vestem.
Conceitos - e não as teorias - descobrem no coração dos povos o que lhes convém
em termos de cultura e interesses. Se ocuparem o lugar das teorias, propõem
ação externa de respeito ao alheio e de equalização de benefícios da ordem
internacional. Orientam os dirigentes para o caminho da reciprocidade. No
âmbito das relações internacionais, exibem a legitimidade que as teorias
ignoram. Como desempenham tais funções? Propomo-nos responder a seguir.
As funções dos conceitos derivadas de sua natureza cognitiva
O estudo acerca da formação dos conceitos aplicáveis ao modelo brasileiro de
inserção internacional identifica quatro características que são observadas em
sua gênese, significado e alcance operacional: a) uma construção social; b)
expressão da historicidade; c) inclusão de mensagem positiva; d) enfim,
produção como exigência da ordem metodológica em respeito à verdade e ao rigor.
Esses traços, de caráter metodológico e epistemológico, garantem a qualidade de
conceitos que se propõem exercer as funções explicativa, valorativa e
operacional das teorias.
Na literatura especializada encontram-se reflexões acerca da construção de
conceitos, de sua natureza e de seu papel. Entre outros intelectuais que se
inclinaram sobre tais preocupações, os estudos de Carlo Ginzburg, Thomas Kuhn e
Walter Benjamin nos auxiliam em razão da metodologia que aplicam para orientar
a tarefa do pesquisador. Os quatro pressupostos acima referidos levam em conta
procedimentos destes e de outros autores, especialmente a relação entre
conceito e cultura, porém nossa pesquisa vai além, ao transladar conceitos para
o campo das relações internacionais e examinar sua relação também com o
interesse nacional e com o modelo de inserção internacional. Em outros termos,
acrescentamos de próprio nesse intento de fazer da construção de conceitos um
exercício útil, tanto sob o aspecto cognitivo quanto prático, e direcionado,
especificamente, para o campo de estudo das relações internacionais.
Em primeiro lugar, o conceito como construção social e expressão, a esse
título, de determinada cultura e de determinado ambiente acadêmico. Como vimos,
nossos conceitos são extraídos de grandes pensadores brasileiros, cujo
pensamento se volatiliza para aflorar, seja na esfera da formulação política e
diplomática, seja na esfera da pesquisa de intelectuais e acadêmicos. Aflora,
desabrocha, amadurece e frutifica como expressão social, estoque cultural,
acervo mental. O caráter nacional incrustado na formação de conceitos
brasileiros incorpora por certo a influência estrangeira. Não se trata,
portanto, de animar nacionalismos ou chauvinismos de qualquer intensidade.
Entre ilhas, territórios e continentes mentais não existem fronteiras
geopolíticas, esse pressuposto conduz o procedimento que adotamos e sugerimos
para o estudo de outras experiências.
Em segundo lugar, os conceitos expressam historicidade. Penetram a estrutura
profunda das coisas concretas, como ensina Benjamim. Por serem abstrações,
exercem mediação entre sujeito cognoscente e objeto que apreendem. Exibem,
portanto, entidade ontológica autônoma que se posta entre ambos. Depois de
construídos, os conceitos têm existência própria e se agregam ao corpusde
conhecimento voltado para as relações internacionais. Nascem e morrem, como os
fenômenos históricos. Convém observar que o alcance de determinado conceito não
esgota, necessariamente, o significado do fenômeno a que se refere, para
alegria de outros artífices, que mais cedo ou mais tarde desmontarão velhos e
construirão novos conceitos. Por outro lado, os conceitos são consistentes
quando exibem a continuidade e a ordem por sobre a volatilidade e a
complexidade, sem se apresentarem como dogmas de fé com que se presuma conhecer
e ou se possa domar o real.
Em terceiro lugar, os conceitos embutem mensagem positiva. Em todos os tempos e
em todas as culturas, como também em todas as disciplinas acadêmicas,
identificamos pensadores da desgraça e catadores de lixo da humanidade. Seja-
lhes preservado o direito de investigar, mesmo porque a desgraça persegue a
vida e o lixo pertence à realidade concreta. Os conceitos de que tratamos,
contudo, embutem mensagem positiva, porque se destinam a expressar valores,
aqueles que compõem determinado lastro cultural, e inspirar decisões, aquelas
que elevam o bem-estar do povo. Se não incluir mensagem positiva dessa
natureza, o conceito para nada serve, quando não prejudica. Por que devotar-se,
então, à tarefa de erguê-lo?
Em quarto lugar, o conceito desvenda o novo e constitui, destarte, um ponto de
ruptura com relação a fenômenos preexistentes ou coexistentes entre os quais se
estabelece. Resulta, portanto, da exigência da ordem metodológica, como
explanação de outro arranjo entre componentes ou variáveis que entrelaçam o
fenômeno. O conceito espelha nova verdade. Mesmo quando relativo a idêntica
historicidade, esse caráter de nova verdade desliza do novo arranjo por meio do
rigor de observação, análise e reflexão. Se o construtor do conceito dotá-lo de
tais atributos, deve exibi-lo, não permitir que se acanhe, ao contrário,
ostentá-lo como nova afirmação hegemônica. O conceito é produto de pensamento
alimentado, no caso das relações internacionais, pela base cultural da nação,
pela leitura que dirigentes fazem do interesse nacional e pela avaliação
crítica das pesquisas, tudo isto concebido como o sistema de referência que o
inspira.
Conclusão
Erguer conceitos aplicados à inserção internacional do Brasil equivale a
metódico exercício mental feito com os fins de produzir conhecimento e levar
compreensão à vida internacional, além de espelhar a práxis e sugerir caminhos
de ação. Quatro procedimentos metodológicos orientam nossa produção de
conceitos: construção social, historicidade, mensagem positiva e exigência da
ordem metodológica. Tais procedimentos diferenciam nosso estudo daqueles
conduzidos por Alexander Wendt sobre o papel das idéias nas relações
internacionais: idéias como objeto acabado em contraposição a idéias como
matéria-prima da pesquisa. E nos aproximam dos estudos de Celso Lafer em âmbito
nacional e de Raúl Bernal-Meza em âmbito regional latino-americano18. Além de
Parola, também um construtor de conceitos, a quem já nos referimos, Carlos
Escudé adapta em dois livros a teoria realista à interpretação das relações
internacionais da Argentina para convencer o leitor da improbidade do translado
dessa teoria de uma experiência para outra19.
A metodologia que utilizamos ganharia com a multiplicação de estudos referentes
a outras experiências nacionais ou regionais. Elaborar um conjunto de conceitos
e colocá-lo ao lado de outros e mais outros decorrentes da multiplicidade de
experiências nacionais ou regionais inventa novo modo de estudar a vida
internacional, capaz de libertá-la dos males que o conjunto atual das teorias
impõe às mentes através do ensino e aos quais sugere às sociedades e aos
governos que se submetam por meio da ação externa.
Contribuir para o fim das teorias de relações internacionais e para sua
substituição por conceitos aplicados às relações internacionais propõe-se como
caminho para transição do sistema internacional posto a serviço de interesses,
valores e padrões de conduta das velhas estruturas do capitalismo para outro
que acolha interesses, valores e padrões de conduta dos países emergentes.
Propõe-se evolução mental correspondente à evolução material em curso.
1 Publicamos uma informação sobre essa pesquisa em: CERVO, Amado Luiz. Formação
de conceitos brasileiros de relações internacionais. Carta Internacional,
Universidade de São Paulo (Nupri), v. 3, n. 1, fev. 2008, p. 1-7.
2 Ver, entre inúmeros compêndios, NOGUEIRA, João Pontes & Messari, Nizar.
Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005.
3 SMOUTS, Marie-Claude(org.). Lesnouvelles relations internationales: pratiques
et théories. Paris: Sciences Po, 1998.
4 Ver textos de seminários publicados pela Fundação Alexandre de Gusmão
(Funag). CERVO, Amado Luiz & Bueno, Clodoaldo. História da política
exterior do Brasil. Brasília: EdUnB, 2008.
5 PAROLA, Alexandre Guido Lopes. A ordem injusta. Brasília, Funag, 2007.
6 BADIE, Bertrand. L'impuissance de la puissance: essai sur les nouvelles
relations internationales. Paris: Fayard, 2004.
7 DUPAS, Gilberto. Atores e poderes na nova ordem global. São Paulo: Unesp,
2005.
8 HUNTINGTON, Samuel P. O choque das civilizações. São Paulo: Objetiva, 2001. Ver MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. Cultura e poder. São
Paulo: Saraiva, 2007.
9 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo:
Brasiliense, 1994. Ver CERVO, Amado Luiz. Multicultiralismo e
política exterior: o caso do Brasil, Revista Brasileira de Política
Internacional, n. 38 (2), p. 133-146, 1995.
10 LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil: passado, presente e
futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
11 HARRISON, Lawrence E. The Central Liberal Truth: How Politics Can Change a
Culture and Save it from Itself. Oxford: USA Trade, 2006.
12 HUNTINGTON, Samuel P. & Harrison, Lawrence E. A cultura importa. São
Paulo: Record, 2002.
13 WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics.Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.
14 SOUZA, Emerson Maione. A escola inglesa no pós-guerra fria: fechamento,
tradicionalismo ou inovação? Cena Internacional, v. 8 (2), 2006, p. 29-62.
15 CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos
brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008.
16 VIGEZZI, Brunello. The British Committee on the Theory of International
Politics(1954-1985): the Rediscovery of History. Milano: Unicopli, 2005. Ver sua longa introdução em BULL, Hedley & Watson, Adam.
L'espansione della società Internazionale. Milano: Jaca Book, 1993.
17 Remetemos o leitor para às leituras recomendadas no início de cada capitulo
de Inserção internacional, op. cit.
18 BERNAL-MEZA, Raúl. América Latina em el mundo: el pensamiento
latinoamericano y la teoría de relaciones internacionales. Buenos Aires:
Nuevohacer, 2005.
19 ESCUDÉ, Carlos. Realismo periférico: fundamentos para la nueva política
exterior argentina. Buenos Aires: Planeta, 1992. Idem. El
realismo de los Estados débiles: la política exterior del primer Gobierno Menem
frente a la teoría de las relaciones internacionales. Buenos Aires: Grupo
Editor Latinoamericano, 1995.