Negociações comerciais em uma economia fechada: o Brasil e o comércio de
serviços na Rodada Uruguai
A diplomacia brasileira tem tradicionalmente adotado postura defensiva nas
negociações multilaterais sobre o comércio de serviços. O tema foi introduzido
na agenda das negociações comerciais amparadas pelo Acordo Geral de Tarifas e
Comércio (GATT) em 1986, com o lançamento da Rodada Uruguai. Desde o princípio,
o Brasil se opôs à iniciativa norte-americana e angariou o apoio de outros
países em desenvolvimento em torno de sua posição. A literatura é inequívoca ao
caracterizar a posição brasileira como defensiva e obstrucionista nas
discussões relativas ao tema (Abreu_1997,_329;_Abreu_2001,_92;_Abreu_2007, 3-4,
148; Caldas_1998, 4-5; Mattoo_2004, 256; Mello_1992, 55-56; Preeg_1995, 194).
Entre 1982 e 1986, durante o período de definição da agenda da rodada que
estava por vir, o Brasil buscou obstruir a inclusão do tema de serviços na
agenda negociadora. Ao perceber que não seria capaz de impedir sua inclusão,
procurou convencer as demais partes contratantes do GATT a dissociar
formalmente as negociações de bens e serviços, de modo que não fosse possível
haver concessões cruzadas entre os temas. Dessa forma, supunha-se que
conseguiria resistir às pressões dos países demandantes e contrair menos
compromissos de liberalização do setor de serviços ao fim da rodada.
Após a inclusão do tema na agenda e a separação formal das negociações de bens
e serviços, os negociadores brasileiros se esforçaram para limitar ao mínimo
possível suas ofertas em serviços. Ao fim das negociações, o governo brasileiro
logrou adotar um número restrito de compromissos e considerou-se satisfeito não
apenas com o acordo-quadro resultante - o Acordo Geral sobre Comércio de
Serviços (GATS) -, como também com o formato adotado para a inscrição de
compromissos - as listas positivas de compromissos específicos. Para o Brasil,
esses resultados permitiam a manutenção de uma série de medidas restritivas ao
comércio de serviços e davam ampla margem de manobra em rodadas futuras de
liberalização.
Por que a diplomacia brasileira adotou posição tão defensiva? São três as
principais categorias explicativas comumente usadas para entender os
determinantes domésticos da diplomacia econômica e da política comercial:
interesses (Bouzas_2006; Marzagão_2008;Pinheiro_e_Almeida_1994; Carvalho_2001,
2003; Mancuso_e_Oliveira_2006; Oliveira_e_Pfeifer_2006; Veiga_2006; Farias
s.d.), instituições (Almeida_2005, 452-464; Cheibub_1985,_1989; Farias_2008,
2009,_2010) e ideias (Arbilla_1997; Castelan_2010; Faria_2003; Farias_2008;_Pio
2001;_Spektor_2010). Neste estudo, avalio o papel dessas variáveis na
determinação da posição brasileira nas negociações de serviços da Rodada
Uruguai.
O estudo de caso aqui apresentado descreve em detalhes a posição negociadora do
país ao longo da rodada, identifica os interesses e preferências dos atores
governamentais e não governamentais relevantes e reconstitui os mecanismos e
instâncias de interação entre governo e setor privado. O estudo trata do setor
de serviços em geral e de dois subsetores em particular: engenharia e
construção e serviços financeiros. O trabalho empírico se baseia em
documentação primária e em entrevistas com diplomatas brasileiros e com
representantes do setor empresarial.
O Brasil nas negociações de serviços da Rodada Uruguai: da obstrução aos
compromissos mínimos
Desde o começo da década de 1980, quando os Estados Unidos tomaram a iniciativa
de propor uma nova rodada multilateral de negociações comerciais no GATT que
incluísse em sua agenda o tema do comércio de serviços, os negociadores
brasileiros em Genebra consideravam que essa iniciativa continha "uma forte
ameaça aos interesses comerciais e desenvolvimentistas dos países em
desenvolvimento".1 Predominava entre os formuladores da estratégia brasileira a
noção de que negociações nas bases pretendidas pelos Estados Unidos seriam "ab
initio, desfavoráveis ao Brasil".2 Também orientava a atuação dos diplomatas
brasileiros a ideia de que o GATT era um "foro sabidamente desfavorável aos
países em desenvolvimento e orientado por princípios do liberalismo
comercial".3 Enfim, afirmava a Divisão de Política Comercial (DPC) do Itamaraty
que "não interessaria ao Brasil a participação em qualquer tipo de rodada de
negociações comerciais", sobretudo uma que incluísse os chamados "novos
temas".4
Frente à tentativa formal norte-americana de incluir o tema de serviços na
pauta de uma rodada multilateral, as instruções recebidas de Brasília pelo
negociador na ocasião ordenavam "declarar, como princípio, que o GATT não
contempla especificamente esta matéria, cuja amplitude é de tal ordem que
poderá levar a interferências indébitas em questões de competência exclusiva de
cada Parte Contratante".5
A Declaração Ministerial adotada em 1982 refletiu a conciliação de posições
entre os defensores e os opositores do tratamento do tema de serviços no âmbito
do GATT (Croome_1998, 7-9). A declaração recomendou que os países realizassem
estudos nacionais sobre o setor de serviços e trocassem informações sobre o
tema. Não havia reconhecimento de que o tema deveria ser tratado
definitivamente no GATT. Ficaria adiada para 1984 a decisão sobre a inclusão do
tema em eventual rodada.6
A noção de que não era do interesse brasileiro submeter-se a regras
internacionais sobre o tema perpassa toda a correspondência trocada entre
Brasília e a Missão Permanente do Brasil em Genebra. O negociador brasileiro em
Genebra entendia como sendo de "grande interesse" para o país "preservar essa
autonomia de decisão, que lhe [permitia] resolver unilateralmente, por
legislação interna, o grau de abertura mais conveniente em cada setor de
serviços ao comércio internacional ou a investimentos estrangeiros".7 A
resistência ao tratamento do tema no âmbito do GATT atendia à "preocupação de
evitar a extensão a serviços de regras aplicáveis ao comércio de mercadorias,
tais como a da não discriminação entre produtos importados e produtos nacionais
e a de recurso ao GATT como instância supra-nacional para solução de
controvérsias".8
A partir dessa percepção de que negociações sobre serviços representariam
ameaça aos interesses do país, a diplomacia brasileira entendia que deveria
adotar uma "linha de ação que [visasse] [...] a neutralizar, esvaziar ou
reorientar as iniciativas arroladas"9 pelos países desenvolvidos. A estratégia
advogada pela Divisão de Política Comercial do MRE era assumidamente
obstrucionista.10 As instruções recebidas pela Missão brasileira em Genebra
orientavam a "explorar ao máximo quaisquer possibilidades dilatórias que
porventura [existissem]"11 e chegavam a indicar que o Brasil deveria explorar
"todas as possibilidades de retardamento do início das negociações até o limite
em que, ou se ameace uma ruptura do processo, ou o Brasil seja dele
marginalizado ou, ainda, nossa atividade multilateral ameace causar sério
conflito no plano bilateral com os EUA.12
A partir de certo momento, o negociador brasileiro passou a perceber que a
manutenção de uma posição defensiva e obstrucionista não seria sustentável. Em
seu entendimento, tornava-se "muito difícil prosseguirem os LDCs numa linha de
simples procrastinação do cumprimento da etapa de troca de informações".13 Isso
porque parecia provável que cedo ou tarde "[aumentaria] o consenso entre os EUA
e a CEE" e que "vários países em desenvolvimento poderiam vir romper a
solidariedade até agora obtida com certo esforço".14 De fato, o trabalho de
realização de estudos nacionais sobre serviços e troca de informações entre os
membros serviu para convencer alguns países de que seria interessante negociar
o tema no GATT, aumentando progressivamente o apoio à iniciativa americana
(Croome_1998, 11; Abreu_1997, 346).
A partir de 1984, portanto, começa-se a pensar em "moderar a linha
obstrucionista ou dilatória".15 Em vez da não-participação na negociação,
passou-se a crer ser necessário "tentar influir ao máximo sobre a condução
desse processo".16 Por outro lado, também se pensava que era do interesse
brasileiro o fortalecimento do regime multilateral de comércio, pois o
"bilateralismo [...] seria seguramente ainda mais contrário aos interesses
nacionais", por "reduzir nossa capacidade de manobra e resistência".17 A
maneira encontrada para tentar resguardar a autonomia regulatória do Estado
brasileiro foi aceitar negociações sobre serviços, desde que conduzidas fora do
quadro do GATT.18 O Itamaraty passou a defender, então, a separação formal do
processo negociador do comércio de serviços daquele do comércio de bens.
A proposta de separação entre bens e serviços
Veio do Brasil a proposta de separar formalmente as negociações multilaterais
de bens e serviços numa eventual nova rodada do GATT. A ideia seria elaborar um
marco institucional para as negociações que permitisse a maior margem de
manobra possível e que, assim, resultasse em limitados compromissos de
liberalização dos setores de serviços da economia nacional. A intenção era
dissociar jurídica e politicamente as negociações de serviços das de bens, de
modo que elas transcorressem de forma independente, sem que houvesse a
possibilidade de estabelecimento de concessões cruzadas.19Ou seja, os países
desenvolvidos não poderiam estabelecer umtrade-off entre os interesses
ofensivos brasileiro em bens e os interesses defensivos em serviços.
Acreditava-se que, dessa forma, os países desenvolvidos teriam menos elementos
de barganha para extrair concessões do Brasil em serviços (Abreu_1997, 332).
A proposta brasileira de separação formal das negociações nas duas áreas foi
anunciada aos demais membros pela primeira vez em reunião informal realizada em
Estocolmo em junho de 1985 (Croome_1998, 17). Em 18 de junho de 1985, a
delegação norte-americana declarou que aceitava a proposta de negociações
separadas para bens e serviços.20 Em julho de 1985, o Brasil formalizou às
demais partes contratantes as condições para a aceitação do lançamento de
negociações em serviços.21 Em agosto de 1985, já estava claro que o país não
mais se oporia à inclusão do tema.
As tentativas de bloqueio das negociações cessaram de vez em 1986, quando as
partes contratantes do GATT chegaram a termo quanto ao lançamento de uma nova
rodada multilateral de negociações comerciais - a Rodada Uruguai. O Brasil e
seus apoiadores haviam ficado cada vez mais isolados na tentativa de bloquear o
lançamento de uma nova rodada com novos temas e já não tinham como impedir uma
decisão sobre o lançamento da nova rodada (Croome_1998, 22).
Consultas internas às agências governamentais
O Ministério das Relações Exteriores realizou ampla consulta às demais agências
do governo brasileiro com o objetivo de aprender sobre o setor de serviço
nacional e sua regulamentação e de discutir internamente a posição a ser
adotada pelo país nas negociações multilaterais. Da documentação disponível,
depreende-se que havia consenso no governo brasileiro como um todo quanto à
falta de interesse na elaboração de disciplinas internacionais para o setor.
Nas palavras do Itamaraty, "a posição brasileira [refletia] um amplo consenso
interno contrário à inclusão de serviços numa nova rodada".22
Entre 1983 e 1984, o Itamaraty consultou vinte e um órgãos e empresas dos
setores de bancos, seguros, transportes aéreo e marítimo, telecomunicações,
informática, engenharia e consultoria. Foram consultadas também algumas
entidades de representação do empresariado e a Petrobrás. Em janeiro de 1984,
poucos órgãos haviam respondido à consulta.23
Segundo relato do Itamaraty, era possível detectar "unanimidade" entre os
respondentes sobre algumas posições. Primeiro, a aplicação das regras do GATT
ao setor de serviços contrariaria a legislação nacional e, até mesmo,
princípios constitucionais. Não havia interesse na alteração da regulamentação
vigente nos diversos setores.24 Em termos de interesse exportador e acesso ao
mercado de outros países, desconfiava-se da "efetiva abertura dos mercados dos
países desenvolvidos aos serviços estrangeiros" e, no tocante ao mercado dos
países em desenvolvimento, acreditava-se que "tal abertura favoreceria nossos
concorrentes desenvolvidos".25 A conclusão da consulta foi que "nenhum dos
órgãos que responderam ao questionário demonstraram qualquer interesse em uma
negociação internacional em matéria de serviços".26
Para a formulação de uma posição do governo brasileiro, o Itamaraty
institucionalizou a discussão interna sobre as negociações de serviços por meio
da criação do Grupo Interministerial de Serviços (GIS), sob sua própria
coordenação.27 Em 1986, o GIS aprovou por unanimidade documento de posição que
considerava "contrária aos interesses nacionais uma negociação no GATT sobre
serviços"28. Das discussões no GIS, o Itamaraty concluiu que "em todos aqueles
setores em que há um relacionamento mais intenso com o exterior e que,
portanto, constituiriam o cerne da discussão no GATT, há unanimidade de pontos
de vista contrários a uma negociação".29As manifestações dos diversos órgãos
participantes do GIS indicavam que "uma negociação sobre serviços no GATT
tendente à liberalização do setor não atende aos interesses brasileiros e pode
apresentar sérios riscos para a economia nacional".30 A justificativa para tal
posição era que "o interesse central dos referidos setores é a defesa do
mercado brasileiro para as empresas nacionais"31 e que a legislação nacional
sobre o tema deveria ser preservada, pois tinha "como um de seus objetivos
centrais favorecer o fornecedor nacional".32
Não há registro de divergências interburocráticas relevantes sobre o tema. Há
menção de que as autoridades brasileiras da área econômico-financeira eram,
inicialmente, mais sensíveis à iniciativa norte-americana de inclusão do tema
do comércio de serviços na agenda. A razão dessa sensibilidade encontrava-se na
primeira renegociação da dívida externa brasileira. O Ministro do Planejamento,
Delfim Netto, e o da Fazenda, Ernane Galvêas, argumentavam em 1985 ser
"indispensável apoiar em Genebra as posições norte-americanas no GATT para
garantir a obtenção pelo Brasil de bridge-loans do Tesouro dos EUA".33 De fato,
os Estados Unidos haviam tentado utilizar a seu favor a vulnerabilidade
brasileira decorrente da crise financeira internacional deflagrada em 1982,
exercendo pressão com vistas à diminuição da resistência aos novos temas (Abreu
1996, 208). A posição defensiva, porém, prevaleceu; em 1986 o Ministério da
Fazenda referendaria a posição conjunta do GIS contrária à negociação de
serviços.
As negociações da Rodada Uruguai
As negociações durante a Rodada Uruguai se dividiram em duas tarefas: a
elaboração de um acordo geral com princípios e regras para disciplinar o
comércio de serviços e o estabelecimento de compromissos de liberalização
específicos para os diversos subsetores de serviços. Inicialmente, o Brasil
definiu sua estratégia negociadora como sendo de "prolongar a discussão prévia
à negociação" e "manter a negociação ao nível de um quadro jurídico geral sobre
comércio de serviços evitando que ela [passasse] à fase de acordos sobre
setores específicos".34 Ademais, as instruções para o posicionamento brasileiro
durante a rodada indicavam que o Brasil deveria buscar "reduzir ao mínimo o
escopo das negociações".35 Brasília também orientava seu delegado a evitar
"ofertas naqueles setores onde se [configurasse] uma incompatibilidade entre as
regras multilaterais e a legislação interna ou onde [pudessem] ser afetadas
nossas possibilidades de desenvolvimento".36
Nessa mesma linha, o país defendia, no Grupo Negociador de Serviços (GNS), a
visão de que o "objetivo da negociação não [era] a liberalização, mas sim o
crescimento e o desenvolvimento".37Brasil, Egito e Índia chegaram a argumentar
que o mandato do GNS não ia além da negociação de um acordo geral com regras e
princípios; a negociação de compromissos específicos deveria ser levada a cabo
após a conclusão da rodada (Croome_1998, 210).
Abreu_(2007,_167) mostra que, entre 1986 e 1988, em decorrência da reavaliação
do modelo de economia fechada iniciada no governo Sarney, procede-se a uma
"substituição gradual do comprometimento anterior quanto ao bloqueio de
negociações sobre novos temas por um papel mais ativo em relação à
agricultura". A "consolidação da transição brasileira rumo a uma pauta ativa"
nas negociações ocorreu em fins de 1990, sob o movimento de abertura comercial
do governo Collor (Abreu_1996, 215). Não obstante tal reorientação, o
comportamento brasileiro nas negociações de serviços, em particular, não parece
ter sofrido impacto relevante das redefinições sofridas pela política comercial
do país. No governo Collor, houve um ensaio de mudança de posição nas
negociações de serviços. O Itamaraty chegou a receber pressões de alguns órgãos
do governo para adotar uma postura menos defensiva; mas, na prática, a posição
brasileira não foi afetada.38 De fato, o Brasil seguiu buscando regras e
compromissos que contemplassem a maior margem de manobra interna para políticas
governamentais.
As discussões sobre um marco normativo com regras e princípios teve momentos
contenciosos. Nas últimas semanas antes da reunião ministerial de Bruxelas em
1990, os Estados Unidos endureceram sua posição. Não queriam uma cláusula de
nação-mais-favorecida (NMF) geral e incondicional, mas uma condicionada à
barganha de compromissos específicos (Croome 1988, 214). Os EUA mantinham
tratados bilaterais que estabeleciam relações preferenciais com determinados
países em alguns setores de serviços e não queriam estender essas preferências
aos demais países, sem receber em troca ganhos importantes de acesso a mercado.
Havia oposição quase consensual entre os demais membros à ideia americana de
uma cláusula NMF condicionada a barganhas bilaterais específicas (Croome_1998,
215). O negociador brasileiro tinha instruções para defender uma cláusula de
não discriminação "automática e incondicional"39, com o menor número possível
de derrogações.40 Havia a percepção de que "para um país com pequena parcela do
comércio internacional, o fator singular mais importante das regras
multilaterais [era] uma cláusula NMF forte e incondicional".41 A opção tática
brasileira, nesse caso, seria limitar sua lista de derrogações ao mínimo, de
modo que o país pudesse concentrar toda sua argumentação na defesa de
disciplinas rígidas para as derrogações.
A solução encontrada pelo presidente do GNS foi permitir que os países
explicitassem, em uma lista de derrogações à cláusula NMF, as medidas
discriminatórias que mantinham em tratados bilaterais. Estas medidas teriam
isenção de tratamento NMF por um período de 10 anos, depois do qual qualquer
extensão deveria ser negociada e compensada (Croome_1998, 275).
Quanto ao modelo de adoção de compromissos específicos, havia duas
possibilidades na mesa. Uma era o modelo de listas positivas: os países se
compro meteriam com a liberalização daqueles setores que fossem explicitamente
incluídos em sua lista. A outra era o modelo de listas negativas: os países se
comprometeriam com a liberalização de todos os setores que não fossem incluídos
expressamente em sua lista. Estados Unidos e Comunidades Europeias defendiam
uma abordagem de listas negativas, porque ela ampliaria o escopo de aplicação
do acordo. Países em desenvolvimento preferiam uma abordagem de listas
positivas, que facilitava um menor número de compromissos (Croome_1998, 210). O
delegado brasileiro possuía instruções para "defender a elaboração de listas
positivas de serviços a serem abrangidos pelo eventual Acordo, em contraposição
às propostas alternativas de outros países". O modelo de listas positivas era
mais desejável por proporcionar maior margem de manobra ao país na elaboração
de sua oferta.42
Em relação à oferta inicial brasileira de compromissos específicos, preocupava
o Itamaraty a pouca flexibilidade de que dispunha para elaborar sua lista de
oferta. De acordo com as instruções de Brasília, a existência de alguma margem
de manobra para a expansão da lista de oferta brasileira tornava-se "tanto mais
necessária quanto não [poderia] vir a contemplar alguns dos setores essenciais
nas negociações"43 - setores esses visados pelos demandeurs, como
telecomunicações e serviços bancários. Não obstante, o delegado brasileiro em
Genebra avaliou positivamente os resultados parciais da negociação, afirmando
que "nos temas de maior impacto potencial sobre o Brasil, [podia-se] dizer que
[haveria] suficiente espaço de manobra para a preservação de nossos
interesses".44
Quanto ao setor bancário, restringia a margem de atuação do negociador
brasileiro o fato de o Congresso Nacional estar examinando projeto de lei
complementar que regulamentava o dispositivo constitucional sobre o sistema
financeiro nacional. O artigo 192 da Constituição de 1988 estipulava que o
sistema financeiro nacional seria regulado por meio de lei complementar; ao
mesmo tempo, o artigo 52 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
vedava a instalação de instituições estrangeiras no país até que o artigo 192
fosse regulamentado. Um representante do Banco Central informou ao MRE que isso
impedia qualquer movimento em termos de negociação internacional que
"prejulgasse os resultados da decisão legislativa".45 A perspectiva do BACEN
era a de que não restava alternativa, senão "esperar a reforma constitucional
de 1993 (ou 1992), tentar eliminar aquele dispositivo e só depois preocupar-se
com a regulamentação da matéria".46 Como resultado, a oferta brasileira em
serviços não incluía o setor de serviços financeiros.
De fato, serviços financeiros foi o setor que encontrou as maiores resistências
por parte de múltiplos países. Por essa razão, Canadá, Japão, Suécia e Suíça
introduziram uma proposta de negociação em dois trilhos para serviços
financeiros segundo a qual os países que estivessem mais dispostos a aprofundar
seus compromissos poderiam fazê-lo separadamente, sem a obrigatoriedade de
participação de todos os membros nos resultados. O objetivo era atingir um
maior grau de liberalização para o setor entre esses países do que se
conseguiria nas negociações gerais (Croome_1998, 243, 273). No fim, a proposta
dos dois trilhos prevaleceu. Enquanto a maioria dos países optou por adotar
compromissos em serviços financeiros de acordo com as regras previstas no
acordo geral, os países da OCDE aderiram ao "Entendimento Relativo aos
Compromissos em Matéria de Serviços Financeiros" - instrumento plurilateral de
adesão facultativa que estabelecia uma fórmula de liberalização mais profunda
(Marconini_2003, 87-88).
As instruções de Brasília relativas às negociações de serviços para o esforço
negociador final da Rodada Uruguai indicavam que, em termos da oferta de
compromissos específicos, deveria ser "esclarecido aos demais países que o
espírito da oferta brasileira, [naquele momento, era] de manutenção do 'status
quo', não havendo possibilidade imediata de se negociar a revogação de leis,
decretos e regulamentos".47
Segundo o negociador brasileiro em Genebra, "a delegação norte-americana
[havia-se mostrado] satisfeita com a oferta inicial brasileira".48 Em reunião
com o Tesouro norte-americano para discutir a oferta brasileira, o negociador
brasileiro indicou "não ser nossa intenção ampliar a oferta e reiterou nossas
dificuldades constitucionais em relação ao setor financeiro". O representante
norte-americano chegou a comentar, segundo relato da Delegação do Brasil em
Genebra, que "a oferta brasileira foi considerada uma das mais interessantes
quando tabulada".49
Além do esforço de elaboração da oferta, a diplomacia brasileira ainda cogitou
identificar interesses exportadores, com o intuito de elaborar pedidos de
abertura de determinados setores para os demais países da negociação. De
Genebra, recomendava-se a "condução de ampla consulta aos setores interessados
com o objetivo de recensear interesse exportador brasileiro em serviços e
possíveis barreiras encontradas à expansão das exportações brasileiras nos
diversos setores".50 Acreditava-se que, entre os setores interessados, poderiam
estar os de serviços audiovisuais, serviços profissionais, turismo e,
sobretudo, engenharia e construção.51 Porém, acabou-se por decidir que o país
não apresentaria lista de demandas de liberalização às suas contrapartes
negociadoras.52
A despeito das menções quanto à boa aceitação da oferta brasileira por parte
dos Estados Unidos, há registros de que os demandeurs não estavam tão
satisfeitos com o que estava sendo ofertado pelo Brasil. O país passou a estar
em evidência a partir do momento em que a maioria dos países em desenvolvimento
parecia "ampliar muito suas ofertas em serviços, o que caracterizaria [aos
olhos dos nossos interlocutores] um certo imobilismo da parte do Brasil".53 As
contrapartes na negociação manifestavam interesse sobretudo nos setores
ausentes da oferta brasileira - serviços financeiros, telecomunicações e
informática.54 O negociador brasileiro em Genebra à época, Celso Amorim,
informou que esses setores "em princípio não estariam à venda".55 Os setores
não eram inegociáveis, porém. Se fosse proposto um "preço suficientemente
atraente"56 - significando interesses específicos brasileiros na área de bens
-, o país poderia considerar a realização de compromissos nos setores
mencionados.
A posição brasileira nos momentos finais da negociação enfraqueceu-se porque os
delegados dos países demandantes estavam "muito bem informados sobre
iniciativas recentes da parte do governo brasileiro no sentido da liberalização
ou desregulamentação de algumas importantes atividades de serviços".57 Na visão
deles, "havia cada vez menos razões para o Brasil não ampliar sua oferta em
setores importantes", como telecomunicações e informática.58Contribuiu,
ademais, para o enfraquecimento da posição brasileira a percepção norte-
americana de que "o Brasil parecia 'isolado' no contexto do Mercosul, pois as
ofertas da Argentina, Uruguai e Paraguai estavam mais condizentes com os
pedidos norte-americanos".59 Isso porque setores importantes eram incluídos com
restrições na oferta brasileira, como engenharia e seguros, e outros estavam
ausentes, como bancos, valores mobiliários e informática. O setor de serviços
financeiros em particular era alvo de demandas dos principais parceiros na
rodada.60
Os compromissos assumidos
Diversos indicadores quantitativos que buscam mensurar o nível de liberalização
dos compromissos assumidos pelos países em negociações multilaterais de
serviços foram elaborados (e.g., Barth_et_al._2006; Hoekman_1995; Marconini
2003; Mattoo_1999; Oliveira_Júnior_2000). Alguns procuram medir o nível geral
de abertura dos compromissos assumidos, enquanto outros são setoriais. Dos onze
grandes setores de serviços negociáveis ao fim da Rodada Uruguai, o Brasil
incluiu apenas sete em sua Lista de Compromissos Específicos. Para nenhum
desses setores, no entanto, o Brasil incluiu todos os subsetores passíveis de
serem negociados. Do total de 54 subsetores de serviços, o Brasil incluiu
compromissos em apenas 17 (Marconini_2003, 237-238). Ademais, em relação a
todos os compromissos possíveis de se assumir, o Brasil fez compromissos sem
restrições em apenas 3% do total (Marconini_2003, 313).
Quando comparado a países desenvolvidos e em desenvolvimento de porte
semelhante, o Brasil adotou poucos compromissos ao fim da Rodada Uruguai. Em
número absoluto de compromissos assumidos, o país não se diferenciou muito de
outros países em desenvolvimento, à exceção de Argentina e África do Sul, que
assumiram quantidade atipicamente alta de compromissos (Bouzas_e_Soltz_2005).
No entanto, em termos do número de compromissos assumidos sem restrições e da
proporção destes em relação ao número total de compromissos assumidos, o Brasil
apresentou índices mais baixos de abertura, tanto para acesso a mercados quanto
para tratamento nacional (Hoekman_1995).
Na comparação com países do Mercosul e da OCDE, a baixa disposição brasileira
de assumir compromissos se mantém. O país se comprometeu menos que Argentina,
Uruguai, Paraguai e os países da OCDE em termos de compromissos sem restrições
proporcionalmente ao total de compromissos assumidos. Quanto ao número absoluto
de compromissos assumidos sem restrições, a lista brasileira só foi menos
restritiva que a paraguaia (Marconini_2003).
Por fim, em termos setoriais, focando engenharia e construção e serviços
financeiros, os compromissos brasileiros também aparecem no rol dos mais
restritivos. Com a exceção da ausência de compromissos chilenos para o setor de
construção, o Brasil apresentou abertura setorial abaixo da média dos países
latino-americanos e dos membros da OCDE, bem como de Argentina e Chile (Bouzas
e_Soltz_2005).
As percepções da diplomacia sobre o setor nacional de serviços
Para o negociador brasileiro em Genebra, a preservação da autonomia nacional de
decisão no que respeita às barreiras nacionais ao comércio de serviços era
importante em dois casos: "em áreas de serviços onde a capacitação nacional
[era] ainda incipiente" ou em áreas que "são de grande valor estratégico para a
economia nacional como um todo".61 Encaixavam-se nesses casos notadamente os
setores de "bancos, seguros, engenharia e informática".62 No caso dos dois
setores aqui tratados (engenharia e construção e serviços financeiros), a
vontade de manter a "autonomia de decisão nacional" era embasada numa
combinação dos dois argumentos. Por um lado, acreditava-se que, embora os dois
setores já fossem bem desenvolvidos no país, "a indústria nacional de serviços
nessas áreas não [teria] condições de enfrentar a concorrência estrangeira, em
regime de livre competição, nem sequer no mercado interno".63 Por outro lado,
reiterava-se a noção de que ambos os setores eram estratégicos por suas
implicações sistêmicas para a economia nacional.
Em relação ao setor de engenharia, havia certa percepção de interesses
ofensivos no governo brasileiro. Reconhecia-se uma "maior agressividade das
empresas dos países em desenvolvimento".64 Além disso, entendia-se que as
empresas brasileiras de construção e engenharia possuíam alguma vantagem
competitiva em determinados mercados, de modo que estariam elas adaptadas às
condições socioeconômicas do país importador. Em suma, pensava-se que "o país
já [havia desenvolvido] uma razoável competência, sobretudo nas áreas de
execução de obras civis e de montagens industriais".65
Porém, insistia-se na ideia de que a "preservação do mercado interno para a
engenharia nacional [era] condição essencial para que [ela pudesse] se
consolidar e partir para o mercado externo".66 As posições da diplomacia
brasileira em relação ao setor de construção e engenharia eram também embasadas
pela percepção de que o setor possuía "caráter estratégico", pois constituía
"atividade-meio para o exercício de grande número de atividades finais em quase
todos os campos de ação econômica".67
Acreditava-se, ademais, que, no setor de serviços financeiros, especialmente no
setor bancário, já existia "forte capacitação brasileira, em perfeitas
condições de atendimento do mercado".68 A expressão "forte capacitação", no
entanto, é ambígua, pois entendia-se que, ao mesmo tempo em que o setor era
capaz de atender "em perfeitas condições" o mercado interno, o negociador
brasileiro não estava convencido de que os bancos brasileiros estavam em
condições de concorrer com as instituições financeiras estrangeiras. A alegação
era que a "abertura ao capital estrangeiro não representaria necessariamente
uma contribuição significativa em termos de aporte de capital ou de
tecnologia". Porém, os motivos mais importantes para a resistência à negociação
do setor eram que a entrada de bancos estrangeiros no mercado nacional "poderia
criar problemas ao manejo da política monetária e até ensejar condições
competitivas desfavoráveis para o sistema bancário brasileiro".69
A diplomacia brasileira, como se pode notar a partir da documentação,
acreditava que não apenas no mercado interno teriam as empresas brasileiras
dificuldades para competir com as estrangeiras. Em carta ao Secretário de
Estado dos Estados Unidos, George Shultz, o então Ministro das Relações
Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, alertava que a aplicação dos "princípios
livre-cambistas ortodoxos do GATT" ao comércio internacional de serviços
afetaria seriamente "nossos incipientes índices de exportação de certos tipos
de serviços - que se dirigem predominantemente para outros países em
desenvolvimento".70
Ideias e conceitos dos negociadores brasileiros
Além das percepções dos atores governamentais sobre o setor nacional de
serviços, é interessante também identificar as ideias e conceitos sobre o
comércio internacional e sua relação com o desenvolvimento que orientavam a
atuação dos negociadores e decisores brasileiros à época. Algumas dessas ideias
podem ser extraídas da documentação diplomática disponível. No que tange às
relações comerciais internacionais, acreditava-se que "a 'liberação do
comércio' como doutrina de comércio internacional [era] um argumento
implicitamente falacioso, visto que os próprios países industrializados [eram à
época] os mais protecionistas".71 As discrepâncias na distribuição de
capacidades econômicas entre os países também causavam descrença no negociador
brasileiro quanto às vantagens oriundas do livre intercâmbio. Nessa linha de
pensamento, não se poderia falar em livre comércio, "sem incentivos e proteções
específicas, quando os concorrentes são desiguais em tecnologia, capital e
lobby".72
Ademais, quanto ao papel do livre comércio no desenvolvimento econômico de uma
nação, considerava-se que "nenhum país cria e desenvolve tecnologia sem haver
uma fase inicial de incentivos e proteção". Na ausência desses incentivos e
proteção, o Brasil não teria "criado e desenvolvido grandes empresas, a nível
internacional, gerando riqueza para a economia".73 O delegado brasileiro, em
reunião de trabalho sobre serviços no GATT, manifestou que o país precisava
desenvolver "indigenous creativity and apply suitable technology to attain its
development objectives". O entendimento do delegado brasileiro era que "Brazil
had learned from history: developed countries had, in the past, taken similar
views".74 Em suma, as ideias dos formuladores da posição negociadora brasileira
associavam desenvolvimento e crescimento econômico a um mercado doméstico
protegido da concorrência estrangeira.
A documentação disponível, portanto, sugere que as ideias compartilhadas pelos
diplomatas brasileiros atuantes nas negociações sobre serviços constituem uma
das principais variáveis explicativas da posição adotada pelo país em relação
ao tema.
As preferências do setor privado
Os setores mais visados pelos Estados Unidos nas negociações da Rodada Uruguai
eram os de informática, bancos, engenharia e construção. O entendimento do
Itamaraty era que os representantes dos setores envolvidos rejeitavam qualquer
negociação que envolvesse liberalização do mercado brasileiro.75
De modo geral, o setor privado brasileiro, na época das negociações da Rodada
Uruguai, temia que os compromissos assumidos multilateralmente pelo país
resultassem em maior concorrência no mercado interno. Mesmo para o setor de
engenharia e construção, a proteção do mercado interno era prioritária em
relação aos interesses exportadores.76
Em termos de interesses ofensivos nas negociações, os setores politicamente
mais ativos eram os relacionados a serviços profissionais (como serviços
jurídicos e outros serviços caracterizados por mão-de-obra especializada).
Esses setores encontravam barreiras significativas de acesso nos mercados dos
países desenvolvidos.77
Havia pouco interesse do empresariado pelas negociações. De modo geral, o setor
privado não vislumbrava impactos imediatos relevantes advindos das negociações.
Entre os atores privados, houve maior atuação por parte da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) e da Odebrecht - empresa de construção e engenharia -, que
chegaram a enviar representantes para reuniões em Genebra. Porém, os contatos
eram, em geral, escassos.78
Não há referências específicas, na documentação e nas entrevistas realizadas,
de atuação significativa de representantes do setor financeiro nacional junto
ao governo brasileiro, de modo que não foi possível obter informações precisas
sobre suas preferências a respeito das negociações. O setor de engenharia e
construção é tratado a seguir.
Preferências do setor de engenharia e construção
Em 1983 e 1984, o Itamaraty consultou, entre outros, a Associação Brasileira de
Consultores de Engenharia (ABCE). Da comunicação diplomática, subentende-se que
a ABCE também fazia parte do conjunto de opiniões unânimes em torno da não
aplicação das regras do GATT ao setor de serviços. Parece particularmente
aplicável ao setor de engenharia brasileiro a referência ao "desinteresse por
uma abertura dos mercados dos países em desenvolvimento importadores de
serviços do Brasil, pois se [considerava] que tal abertura favoreceria nossos
concorrentes desenvolvidos".79
A agenda principal do setor privado brasileiro de construção e engenharia,
contudo, passava ao largo das negociações comerciais multilaterais do GATT.
Seus principais interesses diziam respeito a instrumentos de promoção comercial
e redução de custos e barreiras domésticas à sua competitividade externa; ou
seja, sua agenda era de política doméstica e não de política externa.
No que tange às preferências relacionadas às negociações em curso, em
entrevista anônima ao autor, um representante do setor privado de engenharia e
construção que, à época da Rodada Uruguai, representava uma entidade do setor
junto ao governo, confirmou a informação contida na documentação diplomática de
que, naquele momento, o setor não tinha interesse na abertura do mercado
brasileiro às empresas estrangeiras, sobretudo porque não se tinha ideia clara
sobre o impacto de uma eventual abertura. Segundo esse representante, houve
manifestação das preferências do empresariado ao governo em algumas ocasiões;
porém, em decorrência da falta de percepção sobre as implicações imediatas da
negociação, sua atuação ainda era muito incipiente.
A interação entre Estado e atores não governamentais
Quais foram os canais de comunicação estabelecidos entre governo e setor
privado e como eles foram utilizados? Na documentação disponível, é possível
observar alguns dos episódios em que o governo brasileiro recebeu manifestações
do empresariado. Já em 1982, o Ministro das Relações Exteriores escrevia ao
Secretário de Estado norte-americano que "o governo brasileiro [estava
recebendo] de empresas brasileiras numerosas expressões de preocupação quanto
aos riscos de uma extrapolação do GATT à área de serviços, expressões a que,
naturalmente, não [podia] ficar indiferente".80
Representantes do setor privado estavam presentes na Reunião Ministerial do
GATT de 1982. Entre as entidades credenciadas junto à delegação brasileira,
estavam a Confederação Nacional do Comércio, a Associação dos Exportadores
Brasileiros e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.81
Entre 1983 e 1984, o Itamaraty realizou consulta a uma série de órgãos
governamentais setoriais e também incluiu algumas poucas entidades
representativas do setor privado. Consta que apenas a Associação Brasileira de
Consultores de Engenharia (ABCE) respondeu à consulta em um primeiro momento.82
Segundo relato do MRE, as respostas recebidas - entre elas, supostamente, a da
ABCE - eram unânimes em condenar a negociação do tema de serviços no âmbito do
GATT. Esse levantamento preliminar sobre o setor de serviços brasileiros
confirmou "a rejeição por parte dos setores envolvidos de qualquer negociação
que envolvesse liberalização do mercado brasileiro".83 Portanto, informava o
Itamaraty ao Presidente da República que "a posição governamental [estava
sendo] fortemente respaldada por todos os setores produtivos nacionais, em
especial os mais diretamente envolvidos na área de serviços, os quais, através
de suas federações e associações de classe, têm se manifestado, sem
discrepâncias, contra negociações sobre serviços".84
Um documento datado de dezembro de 1986 relata um seminário informal sobre "o
setor de serviços e o GATT".85 Entre os expositores do seminário, estavam
representantes dos ministérios de Relações Exteriores, Fazenda, Comunicações,
da Secretaria Especial de Informática (SEI) e do Instituto Nacional de
Propriedade Industrial (INPI), além do presidente da Associação Brasileira de
Consultores de Engenharia. As conclusões gerais do seminário eram contrárias às
negociações de serviços no GATT. Segundo o relato obtido, "todos os
representantes de setores presentes coincidiram em considerar contrária a seus
interesses uma negociação internacional sobre serviços". Destacou-se também a
"necessidade de proteção às empresas brasileiras no setor de serviços". Há
menção de que o setor privado presente ao seminário "manifestou apreço pela
atual postura do Governo brasileiro nos entendimentos que estão sob
consideração no GATT". No que tange ao setor de engenharia, concordou-se que a
"política de defesa e de atribuição de preferência à consultoria e engenharia
nacionais deveria ser preservada".86
Já em 1992, participaram da delegação brasileira em reuniões de consulta
bilateral sobre serviços no âmbito da Rodada Uruguai do GATT representantes da
Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB/SP) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(SEBRAE).87
Como se observa, houve alguns contatos entre o governo e o setor privado para
tratar das negociações sobre serviços no âmbito do GATT. Porém, esses contatos
foram esporádicos. Ademais, da documentação disponível, depreende-se que os
contatos ocorridos foram de iniciativa do Itamaraty, pois não há registros de
manifestações autônomas do setor privado. Mário Marconini confirmou, em
entrevista ao autor, que, na época da Rodada Uruguai, o setor privado
desconhecia as negociações multilaterais em curso e, por isso, não houve
mobilização e organização. Na mesma linha, Marcílio Marques Moreira, ex-
embaixador do Brasil em Washington e ex-Ministro da Fazenda, conclui que "os
grupos de interesse no Brasil, em geral, não têm uma dimensão de pressão
internacional". Ele afirma que, na Rodada Uruguai, "a presença de empresários
era escassa" (Moreira 2001, 156). Com efeito, as informações acima corroboram,
em grande medida, as interpretações que atribuem ao MRE um elevado grau de
autonomia decisória face às preferências dos atores domésticos não
governamentais.
Conclusão
Durante a Rodada Uruguai, a diplomacia brasileira manteve posição defensiva em
relação ao tema do comércio de serviços. Da evidência disponível, conclui-se
que não houve qualquer disputa interburocrática relevante no que toca às
negociações de serviços. Também conclui-se que os atores governamentais
brasileiros possuíam visão contrária à inclusão do tema na agenda do regime
multilateral de comércio, por acreditarem que a liberalização do setor ia de
encontro ao interesse nacional. Essas preferências dos atores governamentais
tinham origem, principalmente, em um conjunto de ideias que associava proteção
do mercado interno a desenvolvimento econômico.
Quanto ao setor privado, dado o reduzido grau de abertura do setor de serviços
ao comércio e investimento estrangeiro, poder-se-ia inferir que as preferências
do setor eram contrárias a compromissos de abertura. De fato, a documentação
disponível e as entrevistas realizadas confirmam essa interpretação. O mesmo
poderia ser inferido quanto ao setor bancário; no entanto, não há registro de
que tenha manifestado qualquer posição ao governo brasileiro.
Como se vê, as preferências dos atores governamentais e dos atores privados
coincidiram no que concerne à posição que o país deveria adotar nas negociações
de serviços do GATT. Entretanto, não parece plausível a conclusão de que as
preferências do setor privado constituem importante variável explicativa da
posição negociadora brasileira. Os registros das preferências dos atores
governamentais brasileiros pela oposição à negociação do tema são anteriores
aos registros de qualquer contato relevante entre o governo e o setor privado,
o que indica que essas preferências já eram previamente mantidas pela elite
burocrática responsável pela condução da política externa econômica. As
evidências documentais sobre as ideias dos atores governamentais sobre as
relações comerciais internacionais, somadas à reconhecida autonomia decisória
gozada pelo Itamaraty, indicam que, independentemente da manifestação de
preferências por parte do setor privado, a diplomacia brasileira teria
defendido a mesma posição que de fato defendeu.
Não se pretende aqui concluir que as preferências do setor privado tenham sido
irrelevantes na definição da posição brasileira. No entanto, a evidência
disponível indica que seu valor explicativo é baixo. As preferências do setor
privado parecem ter tido mais bem uma função de respaldo da posição adotada
pela diplomacia brasileira.