Pode Deus determinar o valor de pi? (Ou, pensar na objetividade depois de Hegel
e Wittgenstein)
(...) podemos conceber também um entendimento intuitivo
(negativamente, quer dizer, simplesmente enquanto não-discursivo),
que não passe do geral ao particular e assim ao singular (por
conceitos) e para o qual não existiria a contingência do acordo da
natureza com o entendimento (...), temos uma tarefa que não podemos
cumprir senão por meio de um acordo das qualidades naturais com nossa
faculdade de conceitos, acordo sempre contingente, mas de que o
entendimento intuitivo não necessita (Kant, KU 77).
Suponha que as pessoas continuassem a calcular a expansão de p. Então
Deus, que sabe tudo, sabe se eles chegarão a '777' antes do fim do
mundo. Mas pode esta onisciência decidir se eles chegariam a esta
seqüência depois do fim do mundo? Não pode. Quero dizer: Mesmo Deus
só pode determinar alguma coisa matemática fazendo matemática. Mesmo
para ele a mera regra de expansão não pode decidir o que ela não
decide para nós (Wittgenstein, RFM, VII-41).
1. Freqüentemente, queremos dizer que nossos pensamentos são de alguma forma
influenciados pelo mundo e não são, portanto, puras construções que resultam de
nossos consensos ou de nossas práticas meramente convencionadas. Queremos dizer
que de alguma forma alguns de nossos pensamentos fazem contato com o mundo e
por isso mesmo são, sob certo aspecto, melhores que outros. Queremos dizer que
alguns pensamentos, e não todos, têm a propriedade de serem objetivos, ou seja,
de responderem ao mundo. Esse anseio de poder dizer algo assim moveu grande
parte do esforço filosófico de tornar inteligível nosso contato com o mundo. A
tarefa de tornar inteligível a objetividade de alguns pensamentos não é
exatamente a tarefa de determinar o que há ' estabelecer acerca de que coisas
devemos ser realistas ', ainda que esbarre com ela. Nós podemos, pelo menos,
imaginar argumentos que procurem convencer de que alguma coisa existe ainda que
nós não possamos estar sob a influência dela, e a história da filosofia está
cheia de posições em que o ceticismo é exorcizado com ungüentos anti-
realistas.2 Contudo, o problema da objetividade esbarra na questão acerca do
que existe: restrições do mundo sobre nossos pensamentos só podem ser
entendidas a partir de uma concepção acerca do que há no mundo ' aparece assim
o tema dos realismos.
Nesse quadro, a objetividade do pensamento é entendida como uma influência do
mundo sobre alguns de nossos pensamentos que constituem uma espécie de
receptáculo da influência normativa do mundo sobre nós. Este trabalho pretende
explorar as conseqüências de um conjunto de críticas em que algum item pensado
possa ser imediato, desenvolvidas primariamente por Hegel na Fenomenologia do
espírito e por Wittgenstein nas Investigações filosóficas, para a nossa
concepção de objetividade dentro desse quadro. Um conjunto de argumentos desses
filósofos parece colocar em xeque as bases da maneira como muitas vezes
pensamos a objetividade. Sirvo-me, então, do trabalho de McDowell para explorar
algumas alternativas diante dessas críticas. Essa exploração me leva a uma
discussão sobre a transcendência da verdade.
Hegel e Wittgenstein são dois filósofos muito diferentes, mas que algumas vezes
argumentam na mesma direção. Gostaria de contribuir um pouco para colocá-los,
de alguma maneira, no mesmo barco. Tentar trazê-los a uma mesma discussão é o
começo de um esforço em pensar como diferentes tradições em filosofia podem
contribuir para iluminar um tema central como o tema da objetividade. Creio que
as diferenças ' considere a diferença entre diagnosticar uma dialética do
pensamento e propor que a filosofia esteja desprovida de esforços teóricos '
são, pelo menos vistas sob certos ângulos, imensas. E, no entanto, um diálogo e
uma convergência são ainda possíveis. Nos últimos anos, alguns filósofos têm se
dedicado a mostrar como argumentos de Hegel podem tornar-se mais persuasivos (e
relevantes) à luz de certas observações de Wittgenstein (cf. Lamb, 1980;
Brandom, 1999). Lamb fez um trabalho pioneiro de encontrar doutrinas comuns
entre as maneiras como Hegel e Wittgenstein entendiam as conexões entre
percepção e linguagem. Em uma certa medida, McDowell mesmo, em trechos de seu
Mind and world (1994), insinua alguns pontos em comum entre a forma com que
Hegel concebe os conceitos e o modo como Wittgenstein tende a desconfiar de uma
suposta incapacidade de nossos significados de alcançarem o mundo. Este
trabalho, em certa medida, procura ser parte desse esforço de aproximação.
2. Uma maneira tradicional de pensar na objetividade envolve a idéia do que
Kant chamaria de receptividade pura. A receptividade é não mais que uma
capacidade de contato com o mundo, e a tese de sua pureza requer que ela possa
ser exercida em completo isolamento das nossas faculdades de pensamento ' a
espontaneidade. Quando a espontaneidade não contribui, nós apenas recebemos
aquilo que o mundo nos oferece. A idéia de uma receptividade pura está no
centro de muitos modos tradicionais de pensar acerca do mundo e como entramos
em contato com ele. Ela está tradicionalmente associada à tese de que intuições
prescindem de conceitos para terem conteúdo ' graças à crítica de Kant de que
intuições sem conceito seriam cegas. Hegel entendeu que Kant não parece poder
ver todas as conseqüências de sua denúncia. Ele ainda pareceria ser refém da
idéia de uma receptividade pura quando admite que podemos conceber um
entendimento intuitivo que não dependeria de um acordo sempre contingente entre
as qualidades naturais e os nossos conceitos (cf. epígrafe anterior). Ainda que
Kant considere que, em nós, a receptividade sempre aparece embrenhada de nossas
formas de percepção, nossas categorias e nossos conceitos, nós podemos imaginar
um entendimento para o qual intuições podem aparecer sem conceitos. Intuições
sem conceito ' Hegel pensa que devemos concluir com Kant ' são apenas cegas
para nós, não para qualquer intelecto. Hegel entende que a idéia de um
entendimento ou de um intelecto intuitivo revela que a receptividade está
apenas contingentemente associada aos elementos do nosso pensamento e que nosso
intelecto, onde a receptividade está contaminada, não pode senão frustrar as
expectativas de que nossa receptividade traria alguma esperança de objetividade
aos nossos pensamentos. A mensagem de Kant, é claro, pode ser ouvida como uma
mensagem de humildade: nosso intelecto, e todo intelecto que possa vir a ser o
objeto do nosso conhecimento, é um intelecto de segunda classe, incapaz de ter
uma receptividade suficientemente purificada. Mas essa mensagem de humildade
depende da receptividade pura ser possível ' e note-se que, sem receptividade
pura, as coisas-em-si, o locus da objetividade, parecem não poder ser mais do
que nomes de uma completa impossibilidade.
Este diagnóstico de que nós somos incapazes de qualquer exercício puro de
receptividade ' de receber o que está lá para ser recebido ' parece fazer com
que nossas capacidades cognitivas sejam incorrigivelmente subjetivas. Este foi
o diagnóstico de Hegel: Kant confina as categorias das quais nossa
receptividade faz uso à mente subjetiva. Hegel pensa que o problema com Kant
foi não ter entendido que a conexão entre intuições e conceitos era uma conexão
intrínseca e, portanto, necessária ' Kant via a junção entre intuições e
conceitos, em nós, como sendo "apenas externa, superficial, tal como um pedaço
de madeira e uma perna podem estar conectadas por uma corda" (LHP, p. 441).
Hegel tenta pensar a receptividade como sendo intrínseca e necessariamente
conectada com conceitos; ao tirarmos os conceitos daquilo que recebemos,
perdemos conceitos e objeto. Kant teria hesitado diante de uma conexão mais
íntima entre receptividade e espontaneidade por não ter podido se livrar do
modo tradicional de pensar a objetividade: a espontaneidade, mesmo que seja o
que permita que a receptividade opere, é um ruído na comunicação com aquilo
que, sem ela, está lá. A espontaneidade é como um telescópio que precisamos
para ver o que se passa, mas que distorce o que queremos ver. Hegel entende que
romper com esse modo de ver a objetividade implica em recusar a idéia de que as
categorias do nosso pensamento funcionam como um instrumento que pode ser
estudado, pelo menos pode ser estudado por alguém com alguma coisa como um
intelecto intuitivo, como estudamos o telescópio e estimamos a distorção que
ele produz. Hegel pensa que a idéia de conhecimento como um instrumento dá
origem à concepção de que, de algum modo, nossos conceitos distorcem as coisas
mesmas. Nosso meio distorce o que queremos apreender e depois só nos resta
tentar compensar a distorção tão bem quanto seja possível pois
parece possível remediar esse inconveniente pelo conhecimento do modo
de atuação do instrumento, o que permitiria descontar no resultado a
contribuição do instrumento para a representação do absoluto que por
meio dele fazemos; obtendo assim o verdadeiro em sua pureza. Só que
esta correção nos levaria, de fato, onde antes estávamos. Ao retirar
novamente, de uma coisa elaborada, o que o instrumento operou nela,
então essa coisa (...) fica para nós exatamente como era antes desse
esforço; que, portanto, foi inútil (PhG, p. 73).
O conhecimento não é alguma coisa que necessita de um instrumento; Hegel tenta
alcançar uma imagem do conhecimento em que os conceitos aparecem não como
elementos que distorcem o objeto, mas como fatores que o constituem. Se sem
conceitos, nada pode ser pensado, os objetos antes da intervenção dos conceitos
não apenas não fazem diferença no nosso pensamento como não podem ser
constituídos de forma alguma. A rejeição da idéia do conhecimento como um
instrumento nos faz desembocar na rejeição de qualquer possibilidade de
receptividade pura.
3. A idéia de Hegel é a de rejeitar a imagem mesma que baliza o modo
tradicional de pensar a objetividade. A imagem é que a objetividade só pode
encontrar um locus para além de nossos conceitos; o que torna um pensamento
objetivo é alguma coisa que está para além do escopo de todo pensamento. A
imagem tradicional, denunciada por Hegel, é uma imagem na qual o pensamento só
pode especificar seus conteúdos por meio de conceitos mas o conteúdo só pode
ter contato com o mundo se, de alguma forma, pudermos corrigir a distorção que
os conceitos promovem.3 Precisamos do tal acordo contingente entre nossas
faculdades conceituais e as qualidades naturais, elas mesmas alheias aos
conceitos. Na imagem tradicional há algo lá, capaz de tornar nossas frases e
crenças verdadeiras mas independentes de nossas práticas conceituais, e nós
aqui, querendo descobrir o que há. Wittgenstein parece denunciar essa mesma
imagem quando escreve assim:
Acontece que nossa mente parece nos pregar uma peça estranha. (...)
"Na expansão decimal de p, ou aparece '7777' ou não ' não há outra
possibilidade". Seria dizer: "Deus sabe ' mas não nós". Mas o que
isto significa? Usamos uma imagem; a imagem de uma série completa que
é vista por alguém mas não por outra pessoa. A lei do terceiro
excluído diz: "deve ser assim ou não". Então ' e isto é um truísmo '
ela não diz nada mas nos dá uma imagem. E o problema não deve ser: a
realidade está de acordo com a imagem ou não. A imagem parece
determinar o que devemos fazer mas ela não faz isto pois nós temos
que saber como ela é aplicada. Aqui, dizer "Não há uma terceira
possibilidade" ou "Mas não há uma terceira possibilidade" expressa
nossa incapacidade de tirar os olhos da imagem: uma imagem que parece
conter o problema e a solução ainda que todo o tempo nós sintamos que
não é assim (PU, p. 352).
A imagem é de alguma coisa que espera nossa investigação para ser revelada; em
seguida pensamos que precisamos encontrar um modo de ser fiel à série que
existe e evitar qualquer interferência de nossas práticas de cálculo, de nossas
categorias, enfim, do nosso processo de pensamento. Libertados dessa imagem,
nós temos apenas que nos agarrar ao modo como nós entendemos, em nossa prática
matemática4 ordinária, o que significa perguntar se '7777' aparece em
p.Wittgenstein diagnostica:
Parece claro que nós entendemos o significado da questão "Aparece
7777 no desenvolvimento de p?". É uma sentença da linguagem
coloquial; pode-se mostrar o que significa dizer que 415 ocorre no
desenvolvimento de p; e coisas similares. Bem, nossa compreensão da
questão alcança apenas até onde, alguém pode dizer, alcançam estas
explicações (PU, p. 516).
Quando abandonamos o modo tradicional de pensar na objetividade e insistimos,
como McDowell freqüentemente faz,5 que a contribuição da receptividade não pode
ser sequer nocionalmente separada na cooperação com a espontaneidade, tendemos
a achar que nossos pensamentos estão alheios a qualquer influência vinda do
mundo. McDowell aponta para uma disposição de oscilarmos entre tentar limitar o
escopo da crítica a qualquer forma de receptividade pura de um lado ' defender
alguma forma de certeza intuitiva, por exemplo, defendendo espécies de conteúdo
não conceitual ', e perder a esperança de que nossos julgamentos sofram alguma
restrição por parte do mundo ' como uma postura anti-realista ou aquilo que
Hegel chamou de estoicismo.6 De um lado da oscilação somos atraídos para a
imagem de que há em algum lugar para além de nossas práticas de cálculo o valor
de p, a série completa que qualquer intelecto capaz de receber com pureza
séries infinitas pode contemplar. De outro lado, há o temor de que p não seja
mais que um figmento da nossa construção social, produto das muitas regras
implementadas por meio de sanções e prêmios. Se nos convencemos que há algo
profundamente ilusório com a idéia de receptividade pura e com as imagens que a
acompanham, nos desesperamos com nossos pensamentos parecerem produtos de uma
espontaneidade irrestrita. Se julgarmos que uma tal falta de restrição é
intolerável, somos postos a tentar encontrar algum modo de nos sentir
confortáveis com a receptividade pura.
Wittgenstein apresentou um conjunto de argumentos que apontam na direção de que
regras não determinam nenhuma ação ou nenhum episódio de pensamento ' qualquer
ação, qualquer episódio de pensamento pode ser posto de acordo com qualquer
regra. Ao contrário do que parece, quando aprendemos uma regra ', por exemplo,
a regra de somar 2 a um número natural ou a regra para calcular o algarismo
seguinte de uma série como p ' não adquirimos uma interpretação que nos dirá
como proceder em cada caso; muitos diferentes procedimentos podem ser
apresentados de modo a estarem de acordo com a regra, não importa quão bem
especificada ela esteja. Segue-se que não há um elemento do mundo que seja
precisamente especificado por uma regra sozinha ' isto é, sem a nossa
compreensão dela. É certo que interpretamos regras, mas essas interpretações
são como os protótipos mentais que fazemos dos termos que usamos '
irrelevantes. Não há um fato separável de nossa compreensão que seja
especificado pela regra ' não há nada ali em um mundo exterior às nossas
regras, aos nossos conceitos e à nossa capacidade de compreensão que balize o
modo como nós seguimos regras. O cerne da questão pode ser entendido como sendo
sobre a existência de fatos semânticos que sejam responsáveis pelo modo como
usamos nossos termos e aplicamos nossas regras. Se há tais fatos, nós podemos
dizer que o que chamamos de "verde" é verde e é por isso que é chamado de
"verde" ' podemos conceber, então, um modo de especificar o que é verde sem
nossos termos, sem nossos conceitos; um intelecto intuitivo poderia
simplesmente captar a interpretação da regra. Haveria, em outras palavras,
alguma coisa não mediada pelos nossos conceitos e que poderia eventualmente ser
objeto de uma receptividade pura. Wittgenstein parece mostrar que não há.
Uma certa interpretação estimulada por Kripke (1982) e abraçada por algumas
formas de anti-realismo está disposta a concluir que temos que nos conformar
que não há fatos semânticos, simplesmente não há coisas assim; eles não podem
ser formulados de um modo que prescinda de nossas regras, conceitos, práticas e
compreensão. Segue-se que todos os nossos padrões dependem de nossa ratificação
e então devemos recomendar que esqueçamos qualquer esperança de objetividade.
Kripke descreve o nosso processo de seguir regras em termos de nossa capacidade
de induzir, o que provocará reprimendas ', e assim, apenas com reprimendas, e
prêmios, podemos seguir regras, jamais em uma linguagem privada: em uma
linguagem assim, o que me parece correto é correto.7 Uma interpretação assim
dos argumentos de Wittgenstein conecta a existência de fatos ' ou a
objetividade ' à disponibilidade de itens para uma receptividade pura. Nossas
reprimendas ' e nossa capacidade de individuar o que está sendo sancionado
nessas reprimendas ' são inteiramente nossas, não sofrem influência alguma do
mundo. Estamos em um terreno onde o locus da objetividade deve estar para além
de nossos conceitos e regras; estamos diante de uma posição segundo a qual,
como diria Hegel, nossas regras são confinadas à mente subjetiva (e à interação
social): uma posição kantiana. Se quisermos resistir a uma posição assim, temos
que rejeitar uma interpretação como essa que Wittgenstein comenta acerca de
seguir regras. Algumas vezes, Wittgenstein parece claramente querer evitar uma
interpretação assim; por exemplo, quando ele apela para formas de vida e para
costumes que nos fazem seguir sinais (PU, p. 198), ou quando diz que "há um
modo de captar uma regra que não é uma interpretação, mas que é exibida no que
chamamos de obedecer uma regra e ir contra ela nos casos reais" (PU, p. 201).
Parece, nesses trechos, que quando compreendemos uma regra fazemos mais do que
um conjunto de induções para evitar reprimendas; podemos capturar o conteúdo de
uma regra desde que estejamos inseridos em um conjunto de práticas que nos
torna competentes na linguagem.
Uma interpretação alternativa das observações de Wittgenstein enfatiza que
talvez não precisemos abandonar a idéia de fatos semânticos completamente
apenas porque eles dependem de nossa compreensão.8 Se rejeitarmos o elo
tradicional entre o que é passível de surgir em um episódio de receptividade
pura e o locus da objetividade, podemos entender fatos semânticos como sendo
especificáveis apenas por meio de nosso esforço de compreensão dentro de uma
prática na linguagem ' "nós, e os nossos significados, não alcançamos nada
menos do que os fatos" (PU, p. 95). McDowell (1984, 1994) insiste que podemos
continuar a falar que nossos conceitos têm um conteúdo conquanto não possamos
esperar que esse conteúdo esteja disponível em algum imaginável episódio de
receptividade pura. O nosso mundo, ordinário e não redutível a uma estrutura
que possa ser objeto de receptividade pura, pode ser concebido como tendo
aquilo que nós comumente pensamos que ele tem: árvores, virtudes, galáxias,
regras e números irracionais. Como diz a seção PU 516, citada anteriormente,
nossa compreensão alcança apenas onde alcança a nossa linguagem e não temos
razões para imaginar que há algo mais para ser alcançado a não ser que
estejamos presos à imagem que sustenta o modo tradicional de pensar na
objetividade. Não há nada semântico que possa ser determinado sem que tenhamos
que fazer semântica ' compreender como faremos para seguir regras ', mas isso
não quer dizer que não haja fatos semânticos. Mais do que isso, mesmo Deus, e
mesmo um intelecto intuitivo, não pode determinar nada matemático (ou
semântico) sem fazer matemática ' sem compreender as regras ', diz a epígrafe
RFM VII-41. Na verdade, não há nada a ser dito para um intelecto intuitivo '
intuições sem conceitos, diz McDowell (2000), são mudas. Uma interpretação
assim das observações de Wittgenstein nos leva a abandonar a imagem de que há
algo determinado ' visível para Deus ou para um intelecto intuitivo ' pronto
para ser descoberto. Abandonar essa imagem, familiar e persuasiva como ela
muitas vezes parece, nos faz pensar que o locus da objetividade pode estar
entre os nossos conceitos e nossas práticas e não alhures. Quando conseguimos
pensar na objetividade dessa maneira, muitas alternativas se abrem: Qual
poderia nos trazer maior conforto?
4. Uma alternativa que parece estar ao alcance da mão é entender que o conteúdo
de nossos pensamentos é feito daquilo mesmo que é feito o mundo ' nossos
conceitos podem envolver o mundo todo. Em outras palavras, no mundo há
pensáveis, e os pensáveis, por meio de conceitos, constituem o mundo. Em um
movimento aparentemente próximo dos de Hegel, McDowell recomenda uma posição
segundo a qual não há nenhuma distância ontológica entre os fatos e os
conteúdos dos nossos pensamentos. Nossos pensamentos são objetivos se eles têm
um conteúdo ' que só pode ser especificado por aqueles que têm competência nas
nossas práticas lingüísticas ' que, de alguma forma, pertence ao mundo, a esse
mundo que é feito de pensáveis. Quando temos razões para pensar que isto ou
aquilo é o caso, estamos considerando os materiais que constituem o mundo ' os
conceitos. Afirmar que há um mundo entre nossos conceitos pode começar a tornar
inteligível a idéia de objetividade sem que precisemos apelar para qualquer
forma de receptividade pura. É o que nos afasta da posição que Hegel denominou
estoicismo: nosso pensamento é entendido como tendo conteúdo e esse conteúdo
pode ser o mundo ele mesmo. Uma maneira de tentar nos acostumar com esse modo
de pensar na objetividade é considerar o predicado de verdade. O modo
tradicional de pensar na objetividade apresenta um grande conforto, entendendo
a verdade como uma forma de correspondência entre fatos e crenças. Os fatos
estão de alguma forma disponíveis para serem objeto de uma receptividade pura
e, como Davidson (1983) lembra sempre, a motivação principal para uma concepção
da verdade como correspondência é que ela pode fazer sentido em uma
confrontação entre o que pensamos e os fatos.9 Jennifer Hornsby (2001) sugere
que posições como a de McDowell ' de que os fatos são feitos de pensáveis '
encorajam uma teoria da verdade como identidade.
No entanto, se Hornsby está certa ' e uma concepção assim é encorajada por
McDowell ' então devemos admitir que alguma coisa deve ter saído errada. De
acordo com uma teoria da verdade como identidade, um pensamento é verdadeiro se
ele é idêntico a um fato. A verdade como identidade, que parece ter sido
aventada e recomendada por Frege (1918), concebe que a identidade é o elo entre
crenças e fatos e, portanto, não apresenta os problemas das concepções
correspondentistas.10 Fatos, podemos dizer, são pensáveis; com respeito à
distribuição de partículas que fariam com que o pensamento "O outono começou"
seja verdadeiro, Hornsby diz que "itens como a distribuição cósmica de
partículas estão no mesmo barco [que itens como o outono]: não podem ser usados
na reconstrução dos pensáveis a partir de alguma outra coisa" (2001, p. 671,
tradução minha). A teoria da identidade é uma teoria que diz respeito a um
sucesso ' quando atingimos os fatos com nossos pensamentos, então pensamos com
verdade. Portanto, e isso me parece importante, ela também é uma teoria da
verdade como adequação; ou seja, um pensamento precisa estar adequado
(idêntico) a um fato para ser verdadeiro. O problema com teorias da adequação é
que elas sempre sugerem que há fatos em alguma parte que vão determinar a
verdade de nossos pensamentos. É claro que, se nosso objetivo é nos assegurar
de que os nossos pensamentos não são indiferentes ao mundo, uma concepção assim
parece bastante bem-vinda. E, contudo, podemos desconfiar que uma concepção
assim necessita que haja conteúdos que ainda não foram pensados ' fatos, feitos
de pensáveis ' e que, ainda assim, estão em alguma parte prontos para serem
pensados. Podemos desconfiar que poderíamos imaginar um intelecto especial '
podemos conceber Deus como quisermos ' que possa receber aquilo que nós estamos
recebendo apenas graças ao concurso de nossos conceitos. Não seria, é certo, o
mesmo tipo de intelecto intuitivo que Kant imaginou, pois esses fatos são
feitos de pensáveis, não são receptíveis sem conceitos, mas ainda assim podemos
experimentar uma frustração muito parecida com aquela que muitos experimentam
quando Berkeley diz que Deus percebe o que nós (ainda) não percebemos. Fica
parecendo que deve ter havido alguém a promover o trabalho dos conceitos de
modo a que o pensável tenha se tornado pensável antes de nós começarmos a poder
pensar com verdade ' a adequar nosso pensamento aos pensáveis que constituem o
mundo. Em termos hegelianos, fica parecendo ou que os fatos são pensáveis, mas
imediatos ou que alguém de alguma forma os mediou. Hegel teria uma concepção da
verdade diferente de qualquer concepção de adequação ' a verdade surge sempre
de um trabalho conceitual que recebe restrições da parte do ainda não pensado.
Neste "ainda não pensado" não reside de forma alguma a fonte da verdade, uma
vez que ali não pode estar o locus da objetividade. Na teoria da verdade como
identidade, por outro lado, parece que o que pode fazer nossos pensamentos
verdadeiros são fatos conceituais mas que podem não ter sido pensados.
Estaríamos assim retornando a uma maneira de pensar que nos deixa confortáveis
porque apela para as imagens familiares de algo que fica à espreita para fazer
nossos pensamentos objetivos? Fica parecendo que é preciso que Deus tenha
calculado p antes de todos nós para que nossas afirmações sobre p possam ser
verdadeiras; mesmo que Deus tenha que ter feito matemática para isso. O
problema é que se Deus fez matemática antes de nós, então há uma maneira
correta ' a de Deus ' de interpretar as regras que seguimos quando calculamos
os algarismos que compõem a expansão de p. Wittgenstein diria que a verdade não
pode ser alguma coisa como adequação se realmente rejeitamos a imagem que
sustenta a possibilidade de uma receptividade pura. Nesse ponto, podemos nos
desesperar e desistir da objetividade: apenas nossos conceitos determinam o que
pensamos; puro estoicismo. Parece que se rejeitamos a imagem de uma seqüência
que compõe, por exemplo p, e que seja determinada apenas por uma regra que
possa ser formulada como uma regra de expansão ' isto é, se acreditamos que
nenhuma regra de expansão será suficiente para determinar sozinha os algarismos
que compõem p ', então temos que rejeitar que haja algo para além de nossas
práticas (matemáticas, investigativas ou semânticas) que nossas práticas tentam
alcançar. Parece que qualquer concepção de verdade como sendo uma forma de
sucesso em atingir uma adequação de nosso pensamento à algo fora dele tem que
ser abandonada e isso nos leva a indagar como e por que ainda insistiríamos em
querer falar de objetividade.
5. Parece que a noção de verdade terá que ser entendida de alguma forma
diferente daquela que sugere a adequação; de modo que o nosso esforço de
produzir juízos seja parte daquilo que torna um pensamento verdadeiro. De
alguma forma, temos que substituir a imagem de que estamos diante de alguma
coisa que se desvela por um processo de investigação, por uma imagem
suficientemente diferente, para que não estejamos mais sob a tentação de
almejarmos algum modo de adequação. Se pensarmos na objetividade em termos de
conteúdos pensáveis a serem alcançados ou abraçados por nós, estamos próximos
de pensar que a objetividade tem seu locus em alguma parte alcançável, se bem
que talvez não alcançada por nós. Um modo de pensar assim ainda está balizado
na imagem da objetividade residindo para além da cortina costurada pelo que nós
acessamos. Hegel diz, ao concluir que a verdade requer mediação de conceitos:
"Fica patente que por trás da assim chamada cortina, que deve cobrir o
interior, nada há para ver, a não ser que nós entremos lá dentro ' tanto para
ver como para que haja algo ali atrás que possa ser visto" (PhG, p. 165, grifo
meu).
Podemos tomar esse diagnóstico sobre o que há atrás da cortina, em particular o
trecho que grifei, como sendo o núcleo das críticas11 que Hegel e Wittgenstein
apresentam ao modo tradicional de conceber a objetividade. Se for assim,
podemos nos propor a procurar uma imagem que não apele para alguma cortina que
nos impede de ver coisas que estão atrás da mesma ' e que mediria nosso sucesso
pela nossa capacidade de levantar essa cortina.
Antes de tentar construir uma imagem alternativa da nossa busca pela
objetividade, vale a pena perguntar se McDowell mesmo não nos poderia
tranqüilizar completamente. Isso equivaleria a perguntar se a posição de
McDowell seria ela também refém dessa imagem da cortina e portanto das críticas
de Hegel e Wittgenstein à concepção tradicional de objetividade. Hornsby diz
que a posição de McDowell, segundo a qual pensamentos e fatos são constituídos
por pensáveis, apenas encoraja uma teoria da verdade como identidade. Mas
McDowell, por sua vez, diz:
Se nós dizemos que deve haver uma restrição ao pensamento vinda de
fora dele, de modo a assegurar o reconhecimento da independência da
realidade, nós ficamos reféns de um tipo comum de ambigüidade.
"Pensar" pode significar o ato de pensar; mas também pode significar
o conteúdo de um item de pensamento: o que alguém pensa. Se nós
precisamos reconhecer a independência da realidade, o que nós
precisamos é de uma restrição vinda de fora do que pensamos e
julgamos, nossos exercícios de espontaneidade. A restrição não
precisa vir de fora de conteúdos pensáveis. Seria na verdade afetar a
independência da realidade se nós igualássemos fatos com exercícios
de capacidades conceituais ' atos de pensamento ' ou representássemos
fatos como reflexos de tais coisas (...). Mas não seria idealista
(...) dizer que fatos em geral são essencialmente capazes de serem
envolvidos por pensamento nos exercícios de espontaneidade (...). A
restrição vem de fora do ato de pensar, mas não de fora do que é
pensável (1994, p. 28).
McDowell parece confiar que podemos ter restrições feitas de pensáveis aos
nossos atos de pensamento ' conteúdos pensáveis, mas não pensados, restringem
nossos pensamentos. Ainda que ele não se comprometa com uma teoria da verdade
como identidade, ele admite que há fatos feitos de pensáveis que devem estar
atrás da cortina para que nossos pensamentos possam ser objetivos12 ' não é que
precisamos entrar para que eles existam, eles devem existir com independência
de onde estamos. Pensáveis ou não, parece que temos, então, que conceber os
algarismos de p como estando já atrás da cortina, restringindo nossa
espontaneidade ' quem tudo vê, veria atrás da cortina, e, uma vez visto, há uma
regra para se expandir p que determina uma única interpretação: aquela que
produz aquilo que está atrás da cortina. Fica parecendo que McDowell, admitindo
que na experiência nossas capacidades conceituais são exercidas de forma
passiva, deve admitir que há alguma coisa que é pensável e que poderia em
princípio ser recebida por algum intelecto que enxergasse por trás da cortina.
É certo que esse intelecto teria que ser capaz de receber pensáveis ' não
seria, portanto, um entendimento intuitivo como o que Kant concebeu ', mas
seria um intelecto que, independente de nossas práticas conceituais,
determinaria o que há por trás da cortina e, portanto, nosso sucesso em ver a
coisa certa.
McDowell, portanto, tentou fazer com que pelo menos um eco da idéia de
objetividade como resposta a um conjunto de restrições à nossa espontaneidade
vindo de fora fosse preservado.13 Se uma posição assim não é sustentável,
ficamos às voltas com uma noção de objetividade balizada em uma imagem
diferente daquela da cortina. Uma sugestão possível pode surgir se
substituirmos a imagem espacial de uma cortina que esconde alguma coisa pela
imagem temporal de uma investigação que sempre tem um passo seguinte à espera.
Pode ser que a passagem do tempo ' do tempo entendido primeiramente como uma
seqüência de argumentos e contra-argumentos, e não de uma seqüência de eventos
quaisquer ' é, ela mesma, um modo de investigar as coisas; esse modo de
investigação seria um componente do processo em que algo que aparece como
outro, como alheio aos nossos conceitos, torna-se acessível às razões. Nossa
investigação apresenta a constituição conceitual de todo objeto de nossa
investigação. A constituição conceitual, é claro, não é o mesmo que o produto
da nossa inteira autonomia porque os conceitos, imersos nas nossas práticas,
restringem-se a si mesmos.
A lição de Hegel talvez seja não a de que devemos contrapor ao estoicismo
alguma concepção que apelasse para alguma restrição externa aos nossos
julgamentos, mas antes a de que devemos entender melhor o que significa dizer
que temos restrições internas ao nosso pensamento ' o pensamento é restrição
suficiente e a única necessária aos nossos julgamentos. Ou seja, Hegel parece
estar sugerindo que as nossas práticas conceituais podem ser o locus da
objetividade sem que para isso tenhamos que hipostasiar práticas conceituais
fora de nosso alcance presente. Dizer que nossas práticas conceituais
restringem a si mesmas, é claro, não é dizer que pensamos o que bem entendemos,
mas, antes, que as restrições devem ser pensadas dentro de nossas práticas, e
isso não as torna, em nenhum sentido, inconvenientes, arbitrárias.
Hegel parece pensar que alcançar a objetividade requer supra-assumir um outro,
abarcá-lo em nossas práticas conceituais. Não é que esse outro exista antes de
nós; devemos insistir que ele aparece para nós como outro e rejeitar a imagem
de um tempo anterior à investigação. Um outro ' aquilo que nós não conhecemos '
não é nada mais do que um outro; não é, de forma alguma, o locus da
objetividade: não há nada que possa ser objetivo antes da investigação. Essa
maneira de pensar na objetividade, e de entender a posição que Hegel queria
recomendar, está em uma linha frágil. Facilmente podemos pensar que, por
exemplo, quando Hegel diz "chamemos conceito o objeto-em-si, e objeto o que é
como objeto ou objeto para um outro; então fica patente que o ser-em-si e o
ser-para-um-outro são o mesmo" (PhG, p. 166) ele quer dizer que o outro que é o
objeto para nós não pode ser mais do que um conceito que aguarda para ser
descoberto ' parece que ao investigar descobrimos conceitos. Se for assim,
estamos de volta a uma concepção que sustenta uma teoria da verdade como
identidade e, portanto, como adequação. Penso que é melhor entendermos que o
outro só se torna objeto (só se torna conceito) depois de investigado. O tempo
futuro é apenas aquilo que comumente entendemos: aquilo que desconhecemos. O
tempo futuro não guarda coisa alguma que possa balizar a objetividade; dizer
que o mundo é conceitualizável não quer dizer que ele está ali pronto em
conceitos para que o pensemos, mas antes que a investigação pode conceitualizar
o que aparece ' em um dado tempo da investigação ' como sendo apenas um outro.
O locus da objetividade parece ter de estar entre nossas práticas conceituais,
uma vez que são elas que balizam os critérios de aplicação de conceitos.
Consideremos o que acontece com as dores, os instintos e as tendências de um
ponto de vista que critica a idéia de uma linguagem privada. Logo à primeira
vista, Wittgenstein parece sugerir14 que dores ou, por exemplo, as batidas do
coração, não podem produzir por si mesmas quaisquer conteúdos de pensamento,
uma vez que não trazem em si mesmas critérios que possibilitem qualquer
conclusão. Quando o coração bate mais forte, nos sentimos agitados, ansiosos,
inquietos; não é, no entanto, que nos sentimos agitados, ansiosos e inquietos
porque o coração bate mais forte. Não é nem mesmo que o coração acompanha
nossos sentimentos ' se assim fosse, o coração teria que saber quando ficar
agitado, ou ansioso, ou inquieto ' nós, de alguma maneira, o ensinamos. O
coração só põe idéias e sentimentos na nossa cabeça quando aprendemos a falar
dele, e aprender a falar do coração é aprender a usar critérios para fazer
distinções entre, por exemplo, o coração e os rins. Nós aprendemos a fazer
distinções quando aprendemos a falar ' vem tudo junto. Não é, portanto, a dor
para além do nosso conceito que nos ensina e que estabelece os critérios de
identidade do que seja dor ' se fosse assim, Deus, ou um intelecto que não
compartilhasse de nossas práticas de investigação, poderia já saber quando a
dor é dor. Wittgenstein parece portanto sugerir que nossas práticas são
soberanas em determinar a aplicabilidade dos nossos conceitos.
6. Essas considerações parecem nos levar firmemente em direção a uma maneira de
pensar próxima à que encoraja concepções epistêmicas da verdade e do
significado. Uma dificuldade comumente associada a maneiras de pensar desta
natureza é que elas não teriam espaço para o erro sistemático e assim não
poderiam explicar que aquilo que é objetivo pode transcender nossas atitudes
legítimas e nossas crenças justificadas. Trata-se da dificuldade que Hegel via
no estoicismo; parece que ficamos confinados em nossos conceitos ou, se
quisermos, nos exercícios de pura espontaneidade. Uma maneira comum de lidar
com essa dificuldade é apelar para alguma idéia de sabor peirceano de
convergência. Uma idéia assim freqüentemente aparece acompanhada da convicção '
poucas vezes explicitamente examinada ' de que uma progressiva sucessão de
produtos de nossa investigação, de alguma maneira, limpa de espontaneidade a
nossa aplicação de conceitos e assim, de algum modo, convergimos em direção ao
que poderíamos seguramente tomar como uma "contribuição pura do mundo em nossa
visão do mundo".15
Essa convicção depende da inteligibilidade de um mundo que possa ser capturado
por uma receptividade pura. Se expurgarmos a idéia de convergência da convicção
de que progredimos em direção à uma receptividade purificada, ficamos apenas
com a idéia de que os exercícios de nossas capacidades conceituais atendem
melhor a razões na medida em que são aprimoradas por toda sorte de argumentos.
Nesse caso, podemos falar de convergência em direção a um pensamento mais
balizado em argumentos. O perigo do estoicismo continua a nos rondar.
Parece que a maneira para que possamos entender a alternativa ao estoicismo ' à
idéia de que a espontaneidade pode estar agindo sem restrições ' envolve uma
insistência na conexão intrínseca entre receptividade e espontaneidade.
Queremos dizer tanto que a receptividade opera sempre por meio de exercícios de
capacidades conceituais quanto que no exercício de qualquer capacidade
conceitual há receptividade em operação.16 Ou seja, nesse momento, estamos
prontos para rejeitar uma concepção da relação entre pensamento e mundo que
favoreça noções de verdade como adequação e aceitar que os exercícios de nossas
capacidades conceituais não são apenas exercícios de racionalidade voltados
para ela mesma uma vez que elas trazem em si conteúdos do mundo. Esses
conteúdos, contudo, não podem ser especificados sem conceitos. Aquilo,
portanto, que caracteriza a receptividade em operação em nossos conceitos pode
apenas ser caracterizado por outros conceitos; pode ser caracterizado em um
tempo futuro, e não em um espaço diferente ' para além do escopo de conceitos.
Conceitos, se for assim, terão sempre um conteúdo de mundo determinável apenas
por meio de conceitos. Pode haver a impressão, contudo, de que conteúdos são
determinados (eventualmente) apenas por práticas conceituais e, por
conseguinte, de que não são mais do que um exercício ' que acontece ao longo do
tempo ' de espontaneidade.
Essa impressão, me parece, ainda é prisioneira da imagem de mundo que sustenta
a possibilidade de uma receptividade pura. Abandonar essa imagem implica em
assumir que nossos conceitos são soberanos, mas não determinam seus conteúdos
isoladamente ' ainda que não possamos isolar o que seja pura receptividade
neles. Se abandonarmos a imagem, podemos dizer simplesmente que o conteúdo de
nossos conceitos vêm sempre, em parte, do mundo. O conteúdo de nossos conceitos
é sempre determinado por práticas conceituais, algumas das quais não estão
explícitas em nossos exercícios de conceitos. O estoicismo só aparece como uma
alternativa se imaginarmos o mundo independente de nossos conceitos e de nossa
prática de investigação, com o qual não fazemos contato algum.
Uma posição como esta que venho esboçando poderia insistir em que o exercício
de capacidades conceituais envolve sempre uma forma de receptividade sem
postular um mundo feito de conteúdos pensáveis com respeito aos quais nos
esforçamos para que nossos pensamentos sejam adequados. A verdade ' e o
conteúdo de nossos pensamentos ' transcende a simples verificação, porque
nossas práticas conceituais nos dirigem de uma forma que torna possível sempre
que cometamos erros.17 Uma vez que a imagem de um mundo à espera de nossa
investigação para se mostrar é abandonada em todas as suas variações, ainda
temos o direito de conceber o mundo ' aquele no qual pensamos por meio de
nossas práticas conceituais e que compartilhamos ' e conceber que ele
influencia nossos pensamentos. Apenas temos que desistir de toda artimanha para
separá-lo de nossas práticas conceituais.