O nomos e a lei: considerações sobre o realismo político em Carl Schmitt
"The political philosophy of the modern age (...) founders on the perplexity
that the modern rationalism is unreal and modern realism is irrational"
Hannah Arendt
A associação entre as idéias de Carl Schmitt e a tradição do realismo político
constitui uma espécie de lugar-comum mais ou menos estabelecido na
interpretação do seu pensamento. As razões dessa identificação saltam à vista.
A sua ênfase nas situações de exceção, a sua repetida afirmação da
insuficiência de um ponto de vista puramente normativo, a sua insistência na
luta e no conflito como dados incontornáveis de uma abordagem concreta da
política e do direito estão em plena sintonia com alguns dos principais eixos
da ótica realista2. Assim, na alternativa entre ser e dever-ser, entre real e
ideal, Carl Schmitt privilegiaria a particularidade dos antagonismos políticos
e das relações de poder e de força em oposição à crença na possibilidade de
conter a vida pública dentro de princípios racionais e universais.
Uma perspectiva similar pode ser encontrada nos textos em que ele se volta para
a análise do direito e da política internacionais. Já nos anos da República de
Weimar - ou seja, em um período anterior à sua maior dedicação às temáticas
internacionais3 -, Schmitt recusava a possibilidade de pensar as relações
políticas externas a partir de uma ótica universalista e humanitária. A
compreensão do político baseada na distinção entre amigo e inimigo que ele
propõe no livro Der Begriff des Politischen (O conceito do político) tem como
desdobramento uma imagem do mundo como um pluriversum de unidades políticas que
se definem de forma recíproca umas em relação às outras4. Nesse contexto, a
guerra seria "o pressuposto sempre presente como possibilidade real" (BP, 34-
35) da existência política e só seria viável pensar as relações internacionais
em termos de categorias universais num mundo inteiramente despolitizado, no
qual a própria noção de relações internacionais talvez já não fizesse mais
qualquer sentido. Por isso, Schmitt se volta contra o fundo humanitário sobre o
qual se constituiria a idéia de uma "sociedade das nações" e afirma que "a
humanidade não é um conceito político" (BP, 55), já que, em um sentido preciso,
a noção exclui a idéia de inimizade e a possibilidade da guerra.
Com algumas diferenças de foco e alguns importantes deslocamentos teóricos, a
mesma ênfase na guerra como possibilidade real das relações entre unidades
políticas se mantém nos textos de Schmitt especificamente voltados para a
análise histórica e conceitual do direito e da política internacionais. Como
ele observa no seu livro mais importante sobre o assunto, Der Nomos der Erde im
Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum (O Nomos da Terra no direito
internacional do Jus Publicum Europaeum), de 1950,
é inadmissível designar de maneira indiferenciada todo recurso à
violência na forma da guerra como anarquia e considerar esta
designação como a última palavra sobre a questão internacional da
guerra. Uma circunscrição [Einhegung] da guerra e não a sua abolição
foi até hoje o autêntico êxito do direito, foi até hoje a única
realização do direito internacional. (NE, 159)5
Dessa forma, toda a análise de Carl Schmitt sobre as relações internacionais
irá se pautar pela desconfiança em face de uma compreensão do direito que
acredite ser possível a convivência entre os povos baseada em um consenso de
natureza universal. Para ele, qualquer tentativa de pensar a paz tem que levar
em conta a possibilidade da guerra. Esta última não seria uma perturbação
ilegítima da ordem moral que deveria reger as relações internacionais, mas um
traço da vida política cuja permanência tornaria patente a irredutibilidade do
político a todo tipo de delimitação normativa. Sendo assim, um dos traços
distintivos da abordagem de Carl Schmitt das relações internacionais residiria
na sua insistência em considerar o direito a partir da possibilidade da guerra
e a recusa do ponto de vista inverso, a análise da guerra a partir da
possibilidade do direito.
Considerada à luz de algumas das polaridades que marcam a tradição do realismo
político, a reflexão de Carl Schmitt parece se posicionar decididamente do lado
de uma imagem do real concebida em termos da irredutibilidade das situações de
exceção, da concretude das relações de força, da inevitabilidade do conflito,
da possibilidade da guerra, da contingência do acontecer histórico e, ao mesmo
tempo, em oposição à crença na universalidade da norma, na racionalidade
abstrata do direito, na viabilidade de um consenso inclusivo, na superioridade
moral da paz, na natureza incondicional dos princípios éticos. Não pretendo
negar o papel que essas oposições desempenham no pensamento de Carl Schmitt.
Qualquer leitor atento dos seus textos não terá dificuldade em reconhecer a sua
importância na elaboração do quadro que ele nos propõe da vida política, quer
no âmbito interno, quer no externo. Mesmo assim, creio que, formulado nesses
termos, o problema se mantém em um plano demasiadamente genérico e merece ser
melhor qualificado. Para tanto, vou explorar alguns temas da narrativa que
Schmitt constrói sobre a história do direito internacional na época moderna e,
em particular, sobre a formação jus publicum Europaeum no livro O Nomos da
Terra. O breve panorama que irei apresentar do livro é, por definição,
esquemático. Ele tem por objetivo explorar um pouco mais de perto alguns dos
elementos que permitiriam sustentar a filiação do relato de Carl Schmitt à
tradição do realismo político. Em seguida, a partir da sua discussão sobre as
origens da época moderna e da sua análise sobre o conceito de nomos,
retornarei, em outras bases, ao problema do realismo político no seu
pensamento.
Ordem estatal e relativização da inimizade
O eixo do livro O Nomos da Terra está na análise do processo de formação e de
declínio, entre os séculos XVI e XIX, do que Carl Schmitt denomina da "época
interestatal do direito internacional" (NE, 112). Nesse período, a consolidação
do Estado como forma por excelência de unidade política teria sido responsável
pelo estabelecimento de um novo jus gentium. Assim, o direito internacional que
se inaugura com a expansão do ocidente pelo mundo seria inseparável da "época
da estatalidade [Staatlichkeit] européia" (BP, 17), na qual, segundo Schmitt,
"os conceitos jurídicos foram inteiramente cunhados a partir do Estado e
pressupuseram o Estado como modelo de unidade política" (BP, 10)6. A narrativa
de O Nomos da Terra, como já no prefácio ao livro o próprio autor faz questão
de sublinhar (cf. NE, 6), parte da convicção de que esta época teria chegado a
um fim: o mundo do jus publicum Europaeum, a sua ordem internacional e, em
última análise, o próprio Estado, a despeito da permanência das categorias por
eles geradas, pertenceriam a um tempo passado. Em face disso, Schmitt acredita
que a única atitude possível seria um esforço de reconstrução intelectual das
condições que teriam possibilitado um evento histórico único: o ordenamento
planetário surgido a partir do sistema europeu de Estados. Afinal, em que
consiste esse ordenamento? Qual é a sua singularidade histórica?
Para Schmitt, a principal realização do jus publicum Europaeum ao longo dos
seus quatro séculos de existência teria sido a contenção da guerra, ou seja, a
limitação da destrutividade dos confrontos bélicos e a "relativização da
inimizade" (BP, 11), com a conseqüente exclusão, no âmbito europeu, de
conflitos voltados para a aniquilação do opositor. Esta "relativização da
inimizade", nos diz ele, tornou-se possível graças à eliminação do problema
jurídico da justa causa belli e do seu corolário, a guerra justa, do horizonte
das relações internacionais. A noção de guerra justa constituía, segundo
Schmitt, um traço essencial do ordenamento jurídico do ocidente medieval e
tinha como pressuposto não só a crença em uma noção de justiça objetiva e
evidente em si mesma, mas também o reconhecimento e a aceitação da autoridade
de uma potestas spiritualis, ou seja, o enraizamento dos princípios de justiça
no interior de uma ordem institucional concreta e estável7. Com a crise da
autoridade da Igreja decorrente do movimento da Reforma, a questão da justa
causa se transforma em um fator de exacerbação da inimizade confessional e de
desencadeamento de uma violência crescente. A ordem do Estado moderno teria
sido uma resposta às conseqüências anárquicas e desagregadoras dos conflitos
religiosos dos séculos XVI e XVII. A afirmação do monopólio do direito de
guerra por parte do Estado implicou despojar os grupos em conflito dos
princípios de legitimidade mutuamente excludentes que cada um deles
reivindicava na luta contra o seu adversário. Com a soberania estatal, se
constitui uma instância de decisão e ordenação da vida coletiva, que pretende
ter um caráter último nos limites de um espaço circunscrito e, com isso,
exclui, no interior desse âmbito, todas as decisões e ordens públicas
alternativas. Dessa forma, a inimizade no sentido bélico é banida da esfera
interna e relegada ao plano das relações internacionais, aonde ela se
transforma em uma prerrogativa exclusiva do novo detentor do jus belli. Nesse
plano, os conflitos não podem obedecer a outra referência que não seja a
condição soberana de cada um dos Estados. Como observa Schmitt em seu livro
sobre Thomas Hobbes,
a guerra de um sistema interestatal não pode, à diferença das guerras
religiosas, civis e partidárias, ser medida com os parâmetros da
verdade e da justiça. A guerra estatal não é justa ou injusta, mas um
assunto de Estado. Como tal ela não precisa ser justa. Ordo hoc non
includit. O Estado tem a sua ordem em si mesmo, e não fora de si. Uma
guerra não discriminatória, que não distingue entre o justo e o
injusto em termos das relações jurídicas internacionais é, portanto,
essencial ao direito internacional interestatal. (LSTH, 73-74).
A neutralização política das lutas religiosas no interior das fronteiras
estatais seria solidária, portanto, de um processo de secularização, através do
qual as bases teológicas e eclesiásticas sobre que se sustentava a idéia de
justa causa vieram a ser esvaziadas da sua pretensão de legitimidade e do seu
impacto público, cedendo lugar, aos poucos, a uma concepção laica da vida
política. Assim, a formação do direito moderno, observa Schmitt, seria
inseparável de um movimento de "desteologização da vida pública" (NE, 112); ou,
para dizê-lo em outros termos, de uma "dupla separação" (NE, 91):
a definitiva desvinculação entre a argumentação eclesiástica e
teológico-moral e a argumentação jurídico-estatal e a igualmente
importante desvinculação entre o problema de fundo jusnaturalista e
moral da justa causa e o problema tipicamente jurídico-formal do
justus hostis, o qual é diferenciado do criminoso, isto é, do objeto
de uma ação punitiva. (NE, 91)8
A constituição no solo europeu de uma multiplicidade de unidades políticas
equivalentemente soberanas nos limites do seu espaço territorial estaria na
base dessa separação entre justa causa e justus hostis. O fato de que cada um
dos Estados possa se apresentar como portador da ordem pública dentro das suas
fronteiras os coloca em uma situação de igualdade como sujeitos de direito.
Dessa forma, a guerra entre Estados pode se tornar "um conflito armado entre
hostes aequaliter justi" (NE, 114). A rigor, a justiça não está do lado de
nenhuma das partes do conflito, já que ambas se apresentam como iguais em
direito9. Não é necessário, para que a guerra venha a ser pensada em termos
jurídicos, discriminar o opositor como culpável pela infração de princípios
éticos e, tampouco, os conflitos precisam conduzir a um esforço de aniquilação
mútua. Nesse contexto, nos diz Schmitt, "o conceito de inimigo se torna
passível de uma conformação [Formung] jurídica" (NE, 114). A autonomia do
jurídico-estatal em face do teológico-eclesiástico conduz, portanto, a uma
concepção do direito que, em última análise, se desvincula de todo princípio de
justiça material (cf. NE, 129). Afirmar que o conceito de inimigo assume uma
forma jurídica significa dizer que ele vem a ser concebido em termos
fundamentalmente formais, ou, caso se prefira, em termos da sua "forma
institucional" (NE, 161). Nada mais característico desse ponto do que a
afirmação de Schmitt de que, no quadro do jus publicum Europaeum, "a justiça da
guerra reside (...) na qualidade institucional e estrutural das formações
políticas que travam a guerra em um mesmo plano" (NE, 115). A guerra, com isso,
pode se converter em uma "guerre en forme" (NE, 113). Nesta última, à
semelhança de um duelo, a justiça se desloca dos aspectos substantivos que opõe
os adversários para a moldura formal dentro da qual o embate é travado. O
conflito se apresenta como um "medir regrado de forças" (NE, 139), no qual as
regras são previamente reconhecidas por ambas as partes em igualdade de
condições e o resultado final não precisa ser interpretado como a vitória
inevitável daquele que estava do lado certo (cf. NE, 115).
O mundo europeu como lugar do direito
O quadro que o livro O Nomos da Terra apresenta sobre a singularidade e o
significado históricos do jus publicum Europaeum permanecerá incompleto se não
for incorporado um aspecto que até agora mantive em segundo plano. O Estado
como fator de neutralização da guerra civil religiosa, como responsável pelo
estabelecimento de uma ordem interna nos limites do seu espaço territorial,
como detentor do monopólio do jus belli na esfera externa, todas essas imagens
já haviam sido elaboradas anteriormente por Carl Schmitt nos seus textos dos
anos da República de Weimar10. Com a diferença de que ênfase maior, agora,
desloca-se para os efeitos em âmbito internacional resultantes do surgimento da
Staatlichkeit moderna. No entanto, como dizia há pouco, o quadro se mantém
incompleto, porque não levou em conta uma categoria que desempenha um papel
decisivo na sua reflexão posterior a 1938 sobre direito e a política
internacional: o espaço. Como o próprio Schmitt observa, "o Estado soberano não
é apenas o novo conceito de ordem [Ordnungsbegriff] em geral (...), ele é acima
de tudo o novo conceito de ordem espacial [Raumordnungsbegriff]" (SM, 405).
Segundo ele, as características do direito internacional europeu moderno e a
sua circunscrição da guerra são inseparáveis de uma "nova consciência
planetária do espaço" (NE, 54), surgida com a abertura dos oceanos e a
descoberta do Novo Mundo. A época moderna é, a seu ver, igualmente o produto de
uma "revolução espacial":
toda vez que, por um novo avanço das forças históricas, por um
desatar de novas energias, novas terras e mares ingressam no
horizonte da consciência geral da humanidade, mudam também os espaços
da existência histórica. Surgem, então, novas medidas e dimensões da
atividade histórico-política, novas ciências, novas ordenações, novas
vidas de povos novos ou renascidos. O alargamento pode ser tão
profundo e surpreendente que transforme não apenas as medidas e os
parâmetros de mensuração, não apenas o horizonte exterior dos homens,
mas também a estrutura do conceito de espaço. Pode-se, então, falar
de uma revolução espacial. (LM, 56-57)
A descoberta do Novo Mundo significou, afirma Schmitt, uma mudança radical da
consciência que os homens tinham do espaço e, simplesmente, eliminou todas as
referências anteriores, antigas e medievais, a partir das quais o planeta era
representado. Essa radical subversão das concepções tradicionais não
encontraria nenhum precedente histórico e, com as descobertas do século XV e
XVI, teria ocorrido "a primeira autêntica revolução espacial, que, no sentido
pleno da palavra, abraça a Terra e mundo" (LM, 64). Por esse motivo, a época
moderna teria testemunhado uma "revolução espacial planetária" (LM, 54), graças
à qual a Terra pode ser apreendida, pela primeira vez, em sua totalidade. Nas
palavras de Schmitt: "pela primeira vez na sua história, o homem recebeu em sua
mão toda a real esfera terrestre como um globo" (LM, 65). A nova imagem do
planeta teria colocado em questão não só as representações tradicionais a
respeito do espaço terrestre e do espaço em geral11, mas também, o que é mais
importante para ele, as formas de ordenação do espaço que organizavam a
cristandade no ocidente medieval, a Respublica Christiana. A crise desencadeada
pelas descobertas dos séculos XVI e XVII, ao abalar aquelas representações
tradicionais, teria desestabilizado os fundamentos da estruturação espacial do
que até então se compreendia como o mundo. Nesse sentido, a redefinição e
extensão da imagem geográfica da Terra traz consigo uma exigência da
reorganização política e jurídica do espaço mundial. Mais precisamente: "a nova
imagem global do mundo exigiu uma nova ordenação global do espaço" (NE, 54)12.
A Schmitt interessa, sobretudo, considerar as conseqüências políticas dessas
transformações espaciais.
No quadro dessa análise sobre a redefinição do espaço mundial, a consolidação
do Estado desempenha um papel fundamental. O Estado é, afirma Schmitt, "a única
formação geradora de ordem desse período" (NE, 120). Mais ainda: em uma
conjuntura de colapso das referências que até então haviam organizado
espacialmente o mundo, como Raumordnungsbegriff ele "determina as novas
representações da ordenação do espaço" (SM, 405). No entanto, a superfície do
planeta que se organiza em termos propriamente estatais compõe, em O Nomos da
Terra, apenas parcela da nova ordenação mundial. O solo estatal e as
representações a ele associadas, se inscrevem em uma "ordenação compreensiva do
espaço" (NE, 120), no interior da qual eles, simultaneamente, constituem uma
parte e estabelecem os conceitos fundamentais. A "ordenação global do espaço"
inaugurada com a época moderna se forma, portanto, a partir do mundo europeu e
das suas estruturas estatais. Trata-se, como Schmitt não se cansa de repetir,
de uma ordem eurocêntrica e interestatal. No entanto ela não se esgota, do
ponto de vista da sua disposição espacial, na repartição do solo do Velho Mundo
entre unidades políticas organizadas sobre uma base territorial. Seria preciso
levar em conta, para além desse âmbito específico, os limites e demarcações
através dos quais a superfície terrestre, com a abertura dos mares e a
descoberta do Novo Mundo, foi apropriada, dividida, explorada. Dito de outra
forma: seria preciso levar em conta os pilares sobre que se estabeleceu o nomos
da Terra que marcou a época moderna13.
Deixo em aberto, momentaneamente, o sentido que Carl Schmitt atribui ao
conceito de nomos. Mais adiante voltarei a esse ponto. Por ora, basta-me
indicar que, segundo ele, a tentativa de estabelecer novas medidas e traçar
novas fronteiras adequadas à nova imagem do globo foi inseparável de uma
disputa em torno da apropriação das terras e mares recém descobertos. Por meio
de um duplo movimento de Landnahme (apropriação da terra) e Seenahme
(apropriação do mar), a superfície planetária que havia se aberto aos olhos do
homem europeu começou a ser ordenada e a ordem, por sua vez, foi inscrita no
espaço. Dessa forma, na organização do jus publicum Europaeum, o status
jurídico da estruturação estatal do solo europeu se definiu em contraposição a
dois outros ordenamentos espaciais.
Por um lado, observa Schmitt, foi fundamental que, desde o primeiro momento, o
solo não europeu tenha sido encarado "como um espaço livre, como um campo livre
para a ocupação e expansão européia" (NE, 55). Assim, a disputa pela
apropriação de terras no Novo Mundo teria como pano de fundo uma concordância
em torno do pressuposto de que apenas os povos europeus tinham direito àqueles
espaços considerados por todos eles como livres. Para Carl Schmitt, tal
concordância em torno da liberdade das terras recém descobertas e da
prerrogativa exclusiva das nações do Velho Mundo em face delas foi um fator de
redefinição da unidade européia em uma conjuntura de progressiva desagregação
da sua anterior unidade cristã. Que o direito internacional da época moderna
ainda possa ser designado como um "direito internacional cristão-europeu" (LM,
72) resulta do fato de que ele diz respeito a "uma comunidade dos povos
cristãos da Europa em contraposição a todo o resto do mundo" (LM, 72-73). A
referência aos povos cristãos - e, em seguida, às nações civilizadas - não pode
nos fazer esquecer que, na análise de Schmitt, a competição pelo solo do Novo
Mundo se dá, prioritariamente, em uma conjuntura histórica na qual já não faz
mais sentido falar da "autoridade de um ordo comum" (NE, 59); uma conjuntura,
pois, em que a "comunhão dos príncipes e nações cristãs não contém (...) uma
instância arbitral comum, concretamente legitimante" (NE, 62). Dessa forma, o
essencial na constituição daquela comunidade reside no fato de que, a despeito
dos violentos conflitos em torno da apropriação das novas terras, "os povos
europeus, sem maior reflexão e planejamento, concordavam entre si em
considerarem o solo não europeu da Terra como solo colonial, ou seja, como
objeto da sua conquista e exploração" (LM, 74-75). Esse movimento conjunto de
apropriação, segundo Schmitt, permite estabelecer uma fronteira, originalmente
baseada na idéia de liberdade, que delimita a diferença entre status jurídico
do solo estatal do Velho Mundo e o do solo colonial ou livre do resto do
planeta. A qualidade jurídica específica das terras européias está no fato de
que nelas se reconhece um "direito localizado"(NE, 63), ao passo que no Novo
Mundo, dada a ausência de uma instância arbitral comum, prevalece o direito do
mais forte. Em outros termos, a separação entre solo europeu e não europeu traz
consigo uma clara distinção entre um espaço em que as relações são reguladas
pelo direito e um outro no qual este direito simplesmente não tem vigência, ou
seja, um "espaço de ação liberado de restrições jurídicas" (NE, 66).
Nesse contexto, pode-se compreender a diferença que Schmitt estabelece entre
dois tipos de linhas de demarcação do espaço global surgidas com os tratados em
torno da apropriação das terras do Novo Mundo: as rayas e as amity lines. As
primeiras, que têm o seu exemplo mais acabado no Tratado de Tordesilhas, ainda
se encontram no horizonte da antiga ordenação cristã e medieval do mundo e
pressupõem o reconhecimento de uma autoridade espiritual, o papado, que serve
de árbitro nos conflitos entre os Estados europeus pela partilha das terras
recém descobertas. Já as amity lines "pertencem essencialmente à época das
guerras de religião entre as potências marítimas católicas e protestantes que
se apropriam de terras" (NE, 60). Nesse caso, a referência a uma instância de
autoridade comum não faz mais sentido e a disputa pelas terras passa a ser
regida por uma demarcação entre um âmbito aquém da linha - no qual vigem normas
que regulam e contêm a guerra entre os Estados - e um âmbito além da linha - no
qual se abre "uma esfera de emprego da violência subtraída ao direito" (NE,
66).
Para Schmitt, a delimitação de linhas de amizade dos séculos XVI e XVII teve o
significado de um "imenso desafogo da problemática intra-européia" (NE, 62) e
"serviu à circunscrição da guerra" (NE, 66) no Velho Mundo. Até certo ponto,
essa afirmação se baseia em um argumento de natureza funcional. A transformação
do além-mar em um "livre campo de luta" (NE, 66), juridicamente destacado do
mundo europeu, teria o efeito de evitar que este último sofresse um impacto
direto e imediato dos conflitos em torno das terras coloniais. Há, porém, um
outro aspecto do argumento, um aspecto de natureza estrutural, que me parece
ainda mais significativo. Nesse caso, os conflitos no solo europeu são
"desafogados" porque, a partir da delimitação desse "livre campo de luta",
abre-se a possibilidade de conceber "o âmbito do direito público europeu" como
estruturalmente oposto ao espaço colonial, ou seja, "como uma esfera da paz e
da ordem" (NE, 66). No quadro que Schmitt traça do jus publicum Europaeum, a
circunscrição da guerra dentro de certos limites é inseparável da circunscrição
de um espaço no seio do qual assume vigência e sentido um conjunto de regras de
beligerância. Assim, a apropriação de terra no Novo Mundo implicou, para ele,
um movimento concomitante de diferenciação e separação do solo europeu em
relação ao solo "livre" do mundo colonial. Graças a este movimento a ordem do
direito europeu teria ganho a validade efetiva de um direito localizado e
enraizado no interior de um grupo humano específico, a comunidade de Estados do
Velho Mundo. Com as linhas de amizade, se constitui "um espaço destacado,
livre, ou seja, vazio de direito [rechtsleeren], como a clara contraposição a
um direito antigo [alten], ou seja, colocado em um velho [alten] mundo" (NE,
67). A ordem interestatal do continente europeu se constitui contra o pano de
fundo de um "âmbito liberado de restrições jurídicas" no além-mar. Nesse
sentido, o "medir regrado de forças", a conflitividade contida dentro das
formas estatais têm como contraponto o "emprego da violência subtraído ao
direito", a luta, por assim dizer, informe da guerra colonial. Como Schmitt
observa, "a circunscrição da guerra alcançada em relação à guerra terrestre
européia refere-se apenas à guerra terrestre interestatal, que é travada em
solo europeu ou equivalente" (NE, 155).
Dessa forma, a contraposição ao solo ultramarino como um lugar "vazio de
direito" torna-se a condição para que o direito tenha lugar no solo europeu.
Com isso, teria sido possível preservar a imagem da Europa como lugar regido
pelo direito, em uma circunstância em que se desagregavam os fundamentos
tradicionais do jus gentium europeu e da potestas spiritualis que lhe era
correspondente e se formava uma nova ordem internacional, desprovida de um
centro de autoridade e "liberada dos vínculos supraterritoriais até então
existentes" (NE, 100). Não por acaso, ao contrastar a estruturação espacial
moderna com a da respublica christiana medieval, Schmitt afirma que "a nova
ordenação do espaço não reside mais em uma localização [Ortung] segura, mas em
um balanceamento, em um 'equilíbrio'" (NE, 36). Sob certos aspectos, este
equilíbrio encontra a sua expressão mais clara nas relações surgidas entre
Estados portadores de equivalente soberania territorial e na correspondente
substituição, no campo das relações internacionais, da justa causa pela noção
de justus hostis. Ao mesmo tempo, como venho procurando assinalar, essa
situação de equilíbrio é, aos olhos de Schmitt, inseparável de uma ordenação
global do espaço. "Espaços livres imensos, aparentemente infinitos", afirma
ele, "possibilitaram e sustentaram o direito interno de uma ordenação
interestatal européia" (NE, 154). Nesse sentido, é preciso considerar o outro
espaço livre que, segundo o nosso autor, teria desempenhado um papel decisivo
na estruturação do jus publicum Europaeum: o mar livre.
Terra e mar
A partir do início dos anos 1940 - sobretudo a partir de 1942, com a publicação
do livro Land und Meer (Terra e Mar), cujo subtítulo, significativamente, é
Eine weltgeschichtliche Betrachtung (Uma consideração sobre a história mundial)
-, a oposição entre terra e mar passa a ter um papel central na análise de
Schmitt sobre as transformações espaciais que marcam a história da política e
do direito internacional na época moderna. Para o jurista, a importância que a
superfície marítima assumiu na ordem internacional moderna está diretamente
associada à transformação da imagem do planeta que resulta da revolução
espacial dos séculos XVI e XVII. Segundo ele, todas as ordenações espaciais
anteriores a esse período, mesmo quando tiveram potências marítimas e
talassocracias como suas protagonistas, foram definidas em termos terrestres
(cf. NE, 19). Somente quando a Terra veio a ser concebida a partir de uma
perspectiva planetária e os oceanos mundiais se abriram à exploração do homem
europeu, ter-se-ia colocado a possibilidade e a necessidade de uma estruturação
do espaço que abarcasse o conjunto da superfície planetária, englobando terra e
mar. Com a nova imagem do mundo, consolida-se aos poucos uma ordenação do
espaço voltada para o mar; uma ordenação que existirá ao lado daquela outra
dirigida à parcela terrestre do planeta. Nesse contexto, a oposição entre terra
e mar - cuja história poderia ser remontada a um longo passado de conflitos
entre potências terrestres e marítimas e às disputas em torno de um mar
interior - teria assumido, pela primeira vez, um alcance verdadeiramente
global, determinando de forma decisiva as bases da ordenação jurídica e
política do espaço mundial. Com isso, nos diz Schmitt, "a grande decisão
histórica dessa época culminou na alternativa entre o mundo do mar e o mundo da
terra, com um contraste [Gegensåtzlichkeit] e uma profundidade que jamais podia
ter exibido anteriormente" (SM, 408)14. Afinal, em que consiste a alternativa
entre terra e mar que a época moderna teria inaugurado?
Antes de mais nada, no fato de que o mar, à diferença da terra, será
considerado um espaço livre. Livre, porque superfície não estatal, ou seja, não
sujeita às fronteiras e às demarcações territoriais que fazem parte do conceito
de soberania. Em suma, "mar livre de uma ordenação estatal do espaço" (SM,
406). Assim, à terra firme - território de um Estado ou solo livre para a
apropriação por um Estado - contrapõe-se o mar livre - superfície que "não é
âmbito estatal, nem espaço colonial, nem é ocupável" (NE, 143). Terra e mar se
apresentam no pensamento de Schmitt como portadores de duas ordenações
espaciais igualmente referidas à totalidade do planeta, porém claramente
diferenciadas entre si. Nas palavras do próprio autor, trata-se de "mundos
distintos e de convicções jurídicas contrapostas" (LM, 87). Desse modo, seria
possível falar de uma face terrestre e uma face marítima do jus publicum
Europaeum, ou, mais precisamente, um direito internacional da terra e um
direito internacional do mar. O caráter planetário da partilha entre as duas
superfícies e a natureza contraposta da diferenciação entre elas conferem uma
posição central à distinção entre terra e mar no quadro que Schmitt nos
apresenta sobre a ordem internacional moderna. Esse contraponto entre o mundo
da terra e o mundo do mar encontraria sua tradução mais acabada nas diferenças
entre guerra terrestre e guerra marítima. Aqui, mais uma vez, a diferenciação
entre espaços e a demarcação de limites trazem consigo a possibilidade de uma
localização espacial das regras de beligerância que, aos olhos de Schmitt, será
fundamental para a contenção da guerra alcançada pelo sistema europeu de
Estados. A guerra terrestre, como já vimos, constitui um conflito que coloca
face a face Estados em igualdade de condições jurídicas. Por essa razão, deve
envolver apenas os combatentes regulares, os exércitos estatais; a população
civil e a propriedade privada permanecem, em princípio, excluídas da luta e de
seus efeitos. A guerra marítima, por transcorrer em um espaço livre das marcas
e das fronteiras da ordem estatal, obedecerá a critérios distintos. Esta será
uma guerra que busca atingir o inimigo ferindo a sua economia, daí a
importância de práticas como o bombardeamento e o bloqueio naval. Desse modo, a
guerra marítima não preserva a população civil, nem a propriedade privada, nem
os agentes neutros que mantém relações comerciais com o inimigo15.
Na análise de Carl Schmitt, já deve estar claro, os conceitos de terra e mar
são concebidos em termos simétricos. O espaço terrestre está referido ao Estado
como Raumordnungsbegriff (conceito de ordenação espacial); a superfície
marítima, por sua vez, constitui um âmbito de "não-estatalidade [Nicht-
Staatlichkeit]" (NE, 146), no qual se atualizam liberdades, por definição, não
estatais: a liberdade espacial dos mares e a liberdade de comércio marítimo.
Dessa forma, cada um dos espaços se revela portador de tendências
características do mundo moderno e, por essa razão, o seu significado histórico
é mais do que descritivo, não se restringindo ao delineamento das formas pelas
quais a superfície do planeta foi ordenada a partir da descoberta do Novo
Mundo. Em Carl Schmitt, terra e mar assumem, até certo ponto, o papel de
categorias histórico-filosóficas, pois através delas se procura dar conta de
algumas das principais linhas de força da dinâmica histórica da modernidade16.
A simetria entre os dois termos, por outro lado, tem uma feição claramente
polêmica. Basta considerar que ao mar, como esfera da não-estatalidade, Schmitt
freqüentemente associa a técnica, o individualismo, o liberalismo, o
universalismo, o predomínio do econômico, o protestantismo. No pensamento do
jurista alemão, desde as obras produzidas durante a República de Weimar, todas
essas categorias estão em franca oposição à idéia de uma ordem política
concreta.
Nem sempre, porém, Carl Schmitt, consegue manter a ponderação entre a intenção
analítica e a carga polêmica dos conceitos de terra e mar. Em textos anteriores
a O Nomos da Terra - como é o caso, sobretudo, de "Staatliche Souverånitåt und
freies Meer" ("Soberania estatal e mar livre", de 1941) e, em alguma medida, em
Land und Meer (Terra e mar, de 1942) -, ele tende a enrijecer o contraste entre
os dois ordenamentos espaciais, a ponto de torná-los inconciliáveis e
mutuamente excludentes. Em "Staatliche Souverånitåt und freies Meer", por
exemplo, a diferença entre terra e mar se apresenta como uma "oposição total de
dois mundos sem relação entre si" (SM, 408). Assim, à ordem terrestre e
interestatal corresponderia o seu "contra-mundo polar [polare Gegenwelt]" (SM,
422), a ordem marítima, ignorante de limites e fronteiras e, por esse motivo,
desligada de um marco espacial concreto. Nesse contexto, a polarização entre
terra e mar encontra sua outra face em uma dramatização da alternativa política
entre uma estruturação pluralista das relações internacionais - enraizada em um
espaço planetário concretamente delimitado e dividido - e uma ótica
universalista de fundo privado e econômico - derivada do domínio britânico
sobre os mares e das pretensões de hegemonia mundial de seu principal herdeiro,
os Estados Unidos17.
Em O Nomos da Terra, parece-me, há uma mudança de tom. A polarização de fundo
polêmico entre terra e mar se distende e a ênfase na dinâmica antitética dos
dois espaços, ainda que não seja abandonada, cede espaço à imagem de um
balanceamento. A foco agora está colocado na idéia de que, após a Paz de
Utrecht (1713), a ordem internacional moderna "culminou em um equilíbrio entre
terra e mar, no frente a frente [in dem Gegenüber] de duas ordenações
distintas" (NE, 144; grifo do autor). Nessa conjuntura, o fato de que
Inglaterra tenha se tornado a potência marítima mundial por excelência - ou,
para empregar os termos de Schmitt, a passagem da ilha a uma existência
marítima, "desenraizada e desligada da terra [entlandet]" (LM, 94) - passa ser
visto como um componente fundamental desse equilíbrio. Nas palavras do autor:
"somente a Inglaterra conseguiu dar o passo de uma existência medieval de
feição feudal e terrena a uma existência-mar, puramente marítima, que fazia um
contrapeso a todo mundo terreno [rein maritime, die ganze terrane Welt
balancierende Meeres-Existenz]" (NE, 144). Essa decisão inglesa pelo mar - a
Seenahme que a distanciará dos rumos do continente europeu - teria sido fruto
de iniciativas privadas e estaria diretamente associada ao desenvolvimento
técnico e industrial18. Dessa forma, na análise de Schmitt, a transformação da
Inglaterra em senhora da liberdade dos mares e do comércio global traz consigo
a potencialidade de uma "total deslocalização [totale Entortung]" (NE, 149),
que viria a se concretizar com a técnica industrial moderna e a expansão de uma
economia mundial cada vez mais dissociada de um espaço politicamente
estruturado. No entanto, ao enfatizar a idéia de um equilíbrio entre espaços
dotados de estrutura jurídica contraposta, Schmitt busca apresentar a
Inglaterra como "o elo entre as distintas ordenações da terra e do mar" (NE,
144) e parece conceber o potencial de deslocalização da opção britânica
emoldurado e contido dentro dos limites da organização eurocêntrica do espaço
global. Esse ponto, a meu ver, torna-se claro quando se considera o papel que,
segundo o jurista alemão, o constitucionalismo liberal e a livre economia
teriam desempenhado no período de maturidade do jus publicum Europaeum, entre
1815 e 1914. Vejamos rapidamente esse ponto.
Um dos principais aspectos da análise de Carl Schmitt sobre a crise do jus
publicum Europaeum no século XX reside na idéia de que foi na "economia [que] a
antiga ordenação espacial da Terra perdeu evidentemente a sua estrutura" (NE,
210). Essa interpretação, na verdade, retoma uma antítese entre o político e o
econômico que já marcara seu pensamento nos anos da República de Weimar. Não
cabe no âmbito desse artigo retomar os termos em que essa oposição é
construída19, basta-me assinalar que, no pensamento de Carl Schmitt, ela
continuamente remete à convicção de que não é possível constituir a partir da
esfera econômica uma ordem concreta e efetiva. Como venho procurando assinalar,
no contexto da discussão dos anos 1940 sobre o direito e a política
internacionais, a natureza concreta da ordem está, grosso modo, vinculada a seu
enquadramento no interior de um marco espacial particular. Não chega a
surpreender, portanto, que Schmitt afirme que a "lógica de um pensamento de uma
economia de mercado e de comércio mundiais" desemboca em "uma plena supressão
de toda diferenciação territorial específica" (NE, 192). Nessa perspectiva, o
século XX, ao trazer consigo a progressiva emancipação do econômico em relação
ao político, acaba por ser palco de uma transformação da "soberania territorial
(...) em um espaço vazio para processos sócio-econômicos" (NE, 226), a qual,
sintomaticamente, terá como um dos seus principais protagonistas os Estados
Unidos, autêntico herdeiro, na visão do autor, das concepções marítimas da
Inglaterra. Todavia, note-se bem que, em O Nomos da Terra, essas tendências
somente ganham pleno curso no século XX. No século XIX, diferentemente do que o
leitor em princípio poderia esperar, a ampla aceitação das premissas da
economia liberal teria criado "um espaço específico em termos de direito
internacional, um livre mercado comum, que ultrapassava as fronteiras políticas
dos Estados soberanos" (NE, 169) e teria sua mais clara expressão do ponto de
vista jurídico-político na adesão generalizada ao "padrão do constitucionalismo
como componente da ordenação do espaço" (NE, 170). Dessa forma, Schmitt chega a
admitir a existência de "um direito internacional do livre comércio e da livre
economia associado (...) à liberdade dos mares interpretada pelo império
mundial inglês" (NE, 185), direito esse que seria um componente inseparável da
ordem internacional do século XIX. Embora em clara tensão, as premissas
estatais do jus publicum Europaeum e seus aspectos não estatais permanecem
emoldurados no interior de um marco espacial concreto, o da ordenação
eurocêntrica da superfície planetária e de seu equilíbrio entre terra e mar.
Como Schmitt observa em um texto posterior, enquanto essa ordenação e esse
equilíbrio se mantiveram, "o mar não podia forçar por si só uma decisão" (GS,
530). A tendência do econômico a suprimir as diferenciações espaciais em um
"universalismo global, sem dimensão espacial [raumlos]" (NE, 208) parece, nesse
contexto, estar contida dentro de um espaço politicamente estruturado. O
declínio da ordem internacional centrada no mundo Europeu implicará uma
inversão desse quadro, ou seja, levará a um estado de coisas em que "o espaço
do poder econômico determina o âmbito direito internacional" (NE, 226)20. Nessa
nova conjuntura, aquele antigo marco espacial se revelará incapaz de conter e
enquadrar "uma economia mundial livre pensada em termos eurocêntricos, mas que
ultrapassa todas as fronteiras" (NE, 200)21.
Assim, a tese reafirmada por Schmitt em diferentes oportunidades de que "a
separação entre terra firme e mar livre foi o princípio fundamental e
específico do jus publicum Europaeum" (NE, 155) deve ser interpretada à luz da
importância que a noção de equilíbrio entre os dois espaços assume em O Nomos
da Terra22. Como venho procurando discutir, a intensificação do contraste entre
as duas superfícies inaugurada na época moderna não implica, nesse livro,
apenas a diferenciação e a polarização entre dois mundos regidos por lógicas
contrapostas e mutuamente excludentes. Para empregar uma expressão cara ao
nosso autor, essa diferenciação acaba por desembocar em uma espécie Gestaltung,
em uma configuração geral do espaço terrestre, que resulta de "uma conexão e
cruzamento de vários ordenamentos distintos" (NE, 208). A ordem internacional
moderna - com sua associação entre terra e mar, entre ordem estatal e
liberdades não estatais, entre direito internacional interestatal e direito
privado internacional, entre o particularismo das unidades políticas soberanas
e o universalismo do parâmetro constitucionalista e do livre mercado - contém
em si algo daquilo que, nos anos 1920, Schmitt denominou de complexio
oppositorum, ou seja, uma configuração dos elementos díspares e contraditórios
da "matéria da vida humana" (RK, 14), que, sem eliminar suas diferenças, os
assimila em unidade compreensiva. Assim, no interior dessa Gestaltung da
superfície planetária, a oposição entre terra e mar acaba por encontrar um
balanceamento e o caráter múltiplo e informe da realidade histórica adquire,
por assim dizer, uma forma própria23. Portanto, o jus publicum Europaeum, nos
diz Schmitt,
baseou-se em um duplo equilíbrio. Em primeiro lugar, o equilíbrio de
terra e mar. A Inglaterra dominava sozinha o mar e não admitia nenhum
equilíbrio de potências marítimas. Na terra firme européia, por outro
lado, dominava um equilíbrio que não tolerava a hegemonia de uma
potência terrestre. Seu fiador era a potência marítima Inglaterra. O
equilíbrio de terra e mar constituiu o fundamento sobre o qual, em
contrapartida, a terra, por meio de um equilíbrio ulterior e
específico, foi em si balanceada.24
Procurei traçar, em linhas gerais, nas páginas precedentes o quadro que o livro
O Nomos da Terra nos apresenta sobre a ordem internacional do jus publicum
Europaeum. Já estamos, acredito, em condições de retornar ao ponto que me
interessa: o problema do realismo no pensamento de Carl Schmitt. Como observei
anteriormente, para ele, a principal realização do sistema europeu de Estados e
da sua ordem internacional teria sido a contenção da guerra dentro de uma forma
jurídica e, com isso, a relativização da inimizade nos conflitos externos. A
Hegung da guerra, sua circunscrição dentro de uma determinada ordem jurídica, a
separação entre o justus hostis e o criminoso, a limitação dos conflitos de
fundo discriminatório e de aniquilação são designados, em diferentes
oportunidades, por Schmitt, como um "grande progresso no sentido de humanidade"
(BP, 11)25, como uma "racionalização e humanização de poderosíssimo efeito"
(NE, 114). Essas afirmações têm, eu diria, um caráter claramente provocativo,
pois não é possível reconhecer na narrativa de O Nomos da Terra qualquer
desenvolvimento progressivo da racionalidade ou do "sentido de humanidade".
Pelo contrário, os principais protagonistas dessa história, os Estados
soberanos, permanecem portadores de vontades autônomas, alheias a todo tipo de
sujeição a uma ordem normativa que lhes seja exterior. Se é certo que a
convivência entre esses Estados não é "um caos sem regras de vontades
egoísticas de poder" (NE, 139), por outro lado, sua ordem tampouco nos é
apresentada como o produto de pactos e compromissos a que cada uma das partes
aceitaria se submeter. Imaginar que entidades soberanas em igualdade de
condições admitam se sujeitar a obrigações desse gênero seria o mesmo, nos diz
Schmitt, que acreditar nas "auto-sujeições de um artista especializado em se
libertar de correntes [Selbstbindungen eines Entfessenlungskünstler]" (NE,
120). Assim, afirma ele em outra oportunidade, a guerra ganha forma no interior
do sistema de Estados europeu, mas "não por meio de normas" (NE, 129). Em suma,
o progresso que o jus publicum Europaeum teria sido capaz de promover no âmbito
da guerra e da política internacional não seria o resultado da força normativa
incondicionada da racionalidade ou do humanitarismo, mas sim da efetividade das
relações que se estabeleceram entre "ordenações específicas, organizadas de
forma espacialmente concreta" (NE, 129). Mais precisamente: para Schmitt, o
"efeito racionalizante" (NE, 112) dessa ordem internacional só pode ser
compreendido à luz da ordenação global do espaço associada à emergência dos
Estados modernos. Nas suas próprias palavras:
a força vinculatória de uma obrigação de Estados soberanos em termos
do direito internacional, não pode residir na problemática
autovinculação dos soberanos que se mantém livres, mas no
pertencimento comum a um espaço circunscrito [umhegten], isto é,
baseia-se no efeito abrangente de uma ordenação concreta do espaço.
(NE, 198)
Não é difícil reconhecer as bases sobre as quais, nesse caso específico, pode
ser construída a associação entre o realismo político e o pensamento de
Schmitt. A natureza obrigatória das regras do jus publicum Europaeum não nasce
da força intrínseca de sua racionalidade normativa, ou, caso se prefira, de seu
dever-ser, mas sim de uma configuração histórica concreta, de uma organização
política particular do espaço, no interior da qual veio a se desenhar uma certa
correlação de forças. A racionalização das relações internacionais
possibilitada pela contenção da guerra interestatal européia seria nada mais do
que o resultado da "força vinculatória de uma ordenação espacial eurocêntrica"
(NE, 120) e do seu "sistema de equilíbrio" (NE, 137).
Não tenho intenção, como afirmei anteriormente, de me contrapor a esse juízo.
Pelo contrário, ele me parece, em linhas gerais, bem assentado. Digo "em linhas
gerais", porque, ao se conservar nesse nível de generalidade, tal avaliação
tende a ignorar algumas das premissas do argumento de Carl Schmitt. Gostaria,
portanto, de voltar agora a minha atenção para essas premissas, em particular
para os pressupostos de seu retrato histórico sobre o mundo moderno, ou, para
ser um pouco mais exato, para as bases histórico-filosóficas a partir das quais
a noção de modernidade se define como um conceito de época em seu pensamento.
Para tanto, retornarei brevemente à sua análise sobre as condições do
surgimento do Estado moderno e da emergência da ordem espacial planetária
posterior à descoberta do Novo Mundo.
Direito e modernidade
Desde os anos da República de Weimar, Carl Schmitt concebe a consolidação da
ordem estatal européia como uma resposta aos problemas políticos suscitados
pelas guerras de religião dos séculos XVI e XVII. O Estado moderno se afirma
como um elemento central do processo de neutralização do impacto político das
divergências religiosas, promovendo, como foi anteriormente observado, uma
"desteologização da vida pública". Nesse sentido, a sentença do jurista
italiano Alberico Gentili, pronunciada no contexto do debate sobre a guerra
justa, "silete theologi in munere alieno!" ("silêncio, teólogos, em matéria que
lhes é estranha!")26, surge, aos olhos de Schmitt, como uma espécie de divisa
não só da nascente ordem internacional, mas também da própria época moderna. O
silêncio dos teólogos nas questões políticas teria sua outra face no papel
histórico do Estado como "o veículo da secularização" (NE, 97). Não é possível
nos limites desse artigo aprofundar a análise sobre o conceito de secularização
em Carl Schmitt, a começar pelo fato de que a noção não possui em seu
pensamento um significado unívoco. Vou ater-me aos aspectos mais imediatos da
sua abordagem sobre o tema no livro O Nomos da Terra - mais exatamente à
relação que se pode estabelecer, a partir do problema da guerra justa, entre
secularização, racionalização e desteologização -, pois creio que, com isso, já
teremos elementos suficientes para pensar o ponto que me interessa. Com efeito,
a neutralização do problema da guerra justa tem, na análise do autor, duas
faces complementares: por um lado, como assinalei anteriormente, ela implica
uma "formalização jurídica" (NE, 91), por meio da qual a noção substantiva e
teológica da justa causa belli é substituída pela conceito formal de justus
hostis; por outro lado, ela torna problemática a própria noção de justiça sobre
que se fundava a Respublica Christiana. As guerras de religião teriam
inviabilizado a possibilidade de estabelecer a ordem sobre uma concepção
incontroversa de justiça, já que a própria definição sobre o que e quem é justo
se torna fonte de conflito. A formalização jurídica da ordem é solidária,
portanto, do esvaziamento de seus fundamentos religiosos substantivos. A
guerra, já mencionei esse ponto, ao se transformar em assunto estatal, se
desvincula dos parâmetros da verdade e da justiça. O Estado, nesse contexto, se
apresenta como "o portador histórico da desteologização e da racionalização"
(NE, 131). Como observa Schmitt em sua análise sobre o Leviatã de Thomas
Hobbes, "o soberano não é um Defensor Pacis de uma paz que remonta a Deus; ele
é o criador de uma paz nada mais do que terrena, um Creator Pacis" (LSTH, 50).
A racionalização de que o Estado seria portador significa uma tentativa de
estabelecer a ordem política sobre bases puramente mundanas e humanas,
suprimindo toda referência à estabilidade de um fundamento transcendente. Dessa
forma, a ciência jurídica européia, corolário inseparável da ordem estatal
moderna, estaria "profundamente envolvida na aventura do racionalismo
ocidental" (ECS, 69). Já em 1929, no texto "Das Zeitalter der Neutralisierungen
und Entpolitisierungen" ("A época das neutralizações e despolitizações"), essa
tentativa de secularização das bases da ordem assume a feição de um sucessivo
deslizamento histórico do "centro da vida espiritual"27 - passando da teologia
para a metafísica, em seguida para a moral, para a economia e, finalmente, para
a técnica -, em busca de uma esfera neutra sobre a qual a razão ocidental
procuraria constituir uma base segura e incontroversa para a existência
coletiva. A cada novo esforço de neutralização e de fundamentação racional da
vida comum, o que permanentemente retorna - sob a forma de um conflito político
que desconhece a possibilidade de uma solução consensual e pacífica - é a
inescapável contingência da ordem das coisas humanas. Assim, o direito só se
revela à altura do seu próprio empreendimento de ordenação racional da vida
coletiva, quando reconhece os limites da própria razão; ou ainda, quando não se
torna presa da pretensão de resolver dentro das formas da razão os impasses da
contingência.
Para além da crise das bases religiosas e transcendentes da ordem, uma outra
crise, ao mesmo tempo solidária e independente da anterior, desempenha na
narrativa de Schmitt um papel inaugural: o abalo das representações
tradicionais do espaço, resultante da descoberta do Novo Mundo. Segundo ele, a
"revolução espacial planetária" do início da época moderna não possuiria termos
de comparação com qualquer mudança precedente. Em suas palavras,
ela não foi apenas um alargamento espacial do horizonte geográfico,
particularmente vasto em termos da dimensão quantitativa do espaço,
algo que sobreveio por si, como resultado da descoberta de novas
partes de terra e novos mares. Pelo contrário, alterou-se, para a
inteira consciência do homem, sob o impacto da total eliminação das
representações tradicionais da antiguidade e do medievo, a inteira
imagem do nosso planeta e, para além disso, a inteira representação
astronômica da totalidade do universo. (LM, 64-65)
Abre-se com a revolução espacial, por assim dizer, um outro vazio, resultante
do colapso das representações tradicionais do espaço e da necessidade, desde
então colocada, de estabelecer uma ordenação do novo espaço planetário28. A
nova ordem internacional que surge como resposta a esse desafio trará consigo,
no entanto, a marca da crise que está em sua origem. Lembremo-nos que, ao
contrário da Respublica Christiana que a precedera, essa nova ordem, segundo o
próprio Schmitt, carece de uma "instância arbitral legitimante" e não se baseia
em uma "localização segura". Dessa forma, é preciso mais uma vez sublinhar que
a regulação das relações internacionais e a circunscrição da guerra alcançada
pelo Estado moderno é inseparável do surgimento no século XVI de "dois espaços
'novos', ou seja, não abrangidos pela ordenação até então existente da terra
firme européia e, nesse sentido, 'livres'" (NE, 63): o solo não europeu do
ultramar e a superfície dos oceanos mundiais. Por um lado, o mar se constitui
como uma superfície no interior da qual ganha vigência um direito internacional
específico, referido a liberdades que ignoram um marco espacial fixo e
desconhecem o traçado de limites e fronteiras. Para Schmitt, isso se deve, em
parte, ao fato de que a vigência e a localização do direito adquirem um
significado distinto na terra e no mar. Na terra, a constituição de uma ordem
jurídica estaria associada ao estabelecimento de limites, ao traçado de linhas
de demarcação, à fixação de fronteiras. O mesmo não se verificaria no mar, pois
na superfície marítima não seria possível instituir marcos espaciais estáveis.
"No mar", observa Schmitt, "os campos não se deixam semear e as linhas firmes
não se deixam gravar" (NE, 13). Por isso, já no início de Der Nomos der Erde, o
mar nos é apresentado tendo em vista a relação problemática que ali se
estabelece entre o direito e o espaço. "O mar", afirma o jurista, "não conhece
a unidade patente entre o espaço e o direito" (NE, 13). Não por acaso, Schmitt
considera que, com a abertura dos oceanos mundiais, a liberdade que
inicialmente se impôs na superfície marítima teria sido uma "liberdade
elementar", ou seja, decorrente da "idéia antiqüíssima, originária e elementar
segundo a qual o mar é inacessível ao direito humano e à ordenação humana e é
um espaço para a livre medição de forças" (NE, 153). A expressão mais acabada
dessa liberdade estaria na atividade militar e econômica de piratas e corsários
dos séculos XVI e XVII, atividade marcada por uma iniciativa privada carente de
maior controle e regulação. Com o domínio britânico sobre os oceanos globais e
o balanceamento entre terra e mar daí decorrente, as liberdades marítimas
acabam por ser integradas à moldura da ordenação eurocêntrica do espaço global.
Ainda que o alto mar continue a se estruturar como um âmbito de não-
estatalidade, estranho às linhas de demarcação da terra firme, nesse novo
contexto teria ocorrido, nos diz Schmitt, uma "Hegung" (NE, 153). Após a Paz de
Utrecht de 1713, a pirataria e o corso são criminalizados e, sob a tutela
inglesa, a liberdade elementar dos mares cede terreno a uma "liberdade
ordenada" (NE, 153).
O mesmo não se verifica no outro espaço livre em relação ao qual a terra firme
européia teria definido o seu estatuto jurídico, o solo colonial do ultramar.
Ali, a liberdade não teria conhecido qualquer Hegung. O Novo Mundo, já sabemos,
foi concebido como um lugar em que as terras eram livres para a conquista e
exploração européias, como "uma esfera de emprego da violência subtraída ao
direito". Nesse sentido, o ultramar se incorpora à ordem do direito
internacional europeu como o seu negativo, ou seja, como um espaço "vazio de
direito". Como observa Carlo Galli, se é verdade que o balanceamento entre
continente e Inglaterra, entre Estado territorial e império marítimo representa
o eixo fundamental em função de que se constitui a ordem internacional
européia, por outro lado, é necessário igualmente reconhecer que "aquele
equilíbrio originário é, ao mesmo tempo, desequilíbrio"29. Vale a pena repetir
o que disse anteriormente: para que o direito viesse a ter lugar no mundo
europeu foi preciso "traçar" uma fronteira que demarcava a diferença entre dois
espaços dotados de estatutos jurídicos distintos: o solo da Europa, no qual a
convivência entre os Estados é regulada e as guerras circunscritas, e o solo
ultramarino ou colonial não europeu, no qual essa regulação e essa
circunscrição não tem validade. Na narrativa de Carl Schmitt, a racionalização
jurídica das relações internacionais na época moderna só se tornou possível
devido a sua natureza localizada e, por esse motivo, ela só podia ambicionar um
alcance local30.
Sendo assim, quer do ponto de vista da construção da ordem interna, quer na
ótica da ordem internacional, a modernidade seria testemunha de um hiato entre
direito e realidade, entre a ordem do dever-ser e a do ser. Para Schmitt, a
época moderna dissolveu as bases histórico-espirituais sobre as quais havia
sido possível conceber algum tipo de mediação racional entre a pretensão
normativa do direito e a experiência social. Como resultado, a ambição de
racionalidade da ordem jurídica é obrigada a se confrontar com o seu próprio
limite e com o caráter circunstancial da sua validade. Nesse contexto, a defesa
e a invocação dos princípios universais e incondicionais de uma justiça natural
ou divina tornam-se "slogans de guerra civil" (LeR, 418). Isso não significa
que, para Carl Schmitt, o direito se veja reduzido à ordem legal positivada.
Como vimos, segundo ele, a ciência jurídica se constituiu no interior do
processo histórico de desteologização e racionalização, que teve no Estado
moderno um dos seus principais protagonistas. Nesse sentido, ela foi solidária
do movimento de "formalização jurídica" que resultou do progressivo
esvaziamento do significado público de uma concepção transcendente e objetiva
da justiça - seja esta de caráter teológico ou de natureza metafísica. No
entanto, esse movimento seria apenas parte da história. Isso porque, nos diz
Schmitt:
quando vista a partir de seus grandes horizontes que abraçam os
séculos, a situação da ciência jurídica européia sempre esteve
determinada por duas oposições: por um lado, a da ciência jurídica à
teologia, à metafísica e à filosofia; por outro, ao mero conhecimento
normativo de fundo técnico [technischen Normenkunde]. (LeR, 420)
Se a secularização levada a cabo pelo Estado moderno implicou uma crescente
dissociação entre ordem jurídica e princípios teológicos e metafísicos,
simultaneamente ela conteria em si a possibilidade de uma conversão do direito
em mera função e instrumento do comando estatal. Para Schmitt, essa tendência
teria encontrado sua expressão mais acabada no positivismo jurídico e na
transformação do Estado em uma "uma máquina que encontra seu 'direito' e sua
'verdade' apenas em si mesma, ou seja, no desempenho [Leistung] e na função"
(LSTH, 70). Nesse contexto, a ordem jurídico-política se confunde com o mero
funcionamento de um complexo de normas legais, que só admitem um critério, o da
operacionalidade. Concebido em termos de seus aspectos exclusivamente técnicos,
o direito se vê reduzido a uma condição de total imanência, a uma objetividade
que resulta, em última análise, do abandono de toda orientação normativa. Dito
em outros termos: uma objetividade que decorre da renúncia à pergunta sobre os
fins em nome da natureza neutra dos meios e que desemboca no predomínio de uma
racionalidade despojada de todo conteúdo e centrada nos princípios do cálculo,
da eficiência e da previsibilidade. Como observa Schmitt, "o exato
funcionamento e a precisão interna da técnica moderna aparecem como qualidades
autônomas, independentes de todas considerações religiosas, metafísicas,
jurídicas ou políticas" (LSTH, 63). Transformado em uma simples expressão de
uma racionalidade instrumental, o direito já não remete para nada além do seu
próprio operar. Nesse sentido, a pura tecnicidade seria "inteiramente profana"
(ECS, 75), acabaria por reduzir a experiência à sua dimensão mais imediata e
levaria a uma anulação das escolhas na absoluta imanência da função e do
procedimento. Assim, o processo de "formalização jurídica" inaugurado com
monopólio do jus belli pelo Estado moderno termina por desembocar nas formas
vazias de um "tecnicismo legalitário" (LeR, 425)31. Com o predomínio de uma
lógica instrumental e o esvaziamento do conteúdo da legalidade, o direito é
despojado de todos os elementos que asseguravam a sua validade extra-legal. As
normas jurídicas já não valem em virtude de sua correspondência à Lei Natural,
à Justiça ou à Razão, mas pelo simples motivo de que existem como a "pura
legalidade de um dever-ser meramente positivado" (LeR, 421). Ao se converter em
um modus operandi indiferente aos fins, o direito perde a sua capacidade de
governar a vida social, tornando-se uma ferramenta à disposição de todos
aqueles que quiserem dele se servir. Para Schmitt, a mera legalidade funcional
não é capaz de oferecer qualquer resposta à pergunta sobre a legitimidade das
escolhas que presidem a instrumentalização do aparato legal. Por isso, ele
acredita que a progressiva absorção do direito em um sistema de legalidade
concebido em termos técnicos abre o caminho para a "transformação da legalidade
em uma arma da guerra civil"32.
De certa maneira, fecha-se um círculo que liga os pois pólos em relação aos
quais a ciência jurídica teria definido a sua identidade histórica: a
racionalidade substancial da teologia e a racionalidade formal da técnica. Cada
uma à sua maneira seria presa da auto-suficiência de uma normatividade que se
volta sobre si mesma, na presunção de uma correspondência não problemática
entre seus princípios e a ordem das coisas33. A polaridade entre jusnaturalismo
e positivismo jurídico ocultaria o fato de que, no fim das contas, tanto um
quanto o outro desembocariam em uma concepção abstrata do direito. Em ambos os
casos, o direito se fecha sobre si mesmo e, por assim dizer, se resolve em sua
própria idealidade ou em sua própria factualidade. Contudo, em um contexto de
esvaziamento do significado público das representações teológicas e metafísicas
da justiça, a principal ameaça viria da separação entre legalidade e
legitimidade ocasionada pela tecnificação do direito:
desde o século XIX, a situação da ciência do direito européia está
determinada pela cisão entre legalidade e legitimidade. O perigo que
atualmente ameaça o espírito da ciência jurídica da Europa não vem
mais da teologia e tampouco ocasionalmente de uma metafísica
filosófica, mas de um tecnicismo desatado, que se serve da lei
estatal como sua ferramenta. (LeR, 422)
Para Schmitt, no entanto, esse tecnicismo, ao se fechar na sua própria lógica
instrumental, não apresentaria uma resposta para o problema decisivo de como
estabelecer uma mediação entre a abstração da idéia do direito e a contingência
da existência concreta. Tal mediação, aos olhos de Schmitt, só será efetiva
caso admita que a lacuna entre racionalidade jurídica e a indeterminação da
existência a ser ordenada não pode ser eliminada; dito em outros termos, caso
reconheça que a passagem do direito à realidade não se dá ao modo de uma
transição contínua, mas implica a descontinuidade de uma violência que impõe à
experiência uma forma que ela não reconhece como sua. O direito só se revelaria
capaz de governar racionalmente a realidade ao assumir o desgoverno e a
irracionalidade que estão na origem da sua própria efetividade.
Dessa maneira, a insistência de Schmitt na guerra, no conflito, nas relações de
força e sua recusa concomitante de toda redução da ordem aos seus aspectos
puramente normativos não significam negar ao direito a capacidade de dirigir
normativamente a existência social. A seu ver, a mera afirmação da prioridade
das relações de força e de poder sobre o direito conduziria a um equívoco
simétrico ao da crença na auto-suficiência da ordem jurídica. Ou seja, o
equívoco de tentar resolver a aporia constitutiva da relação entre direito e
existência histórica acentuando unilateralmente um dos termos do problema. Com
isso, a vida social se veria reduzida aos seus aspectos puramente factuais e,
em última análise, se tornaria presa da mais completa indiferenciação niilista.
Toda tentativa de justificação normativa da existência comum assim como toda
interrogação sobre sua legitimidade se tornariam irrelevantes. Nesse sentido, a
ênfase unilateral na irredutibilidade da realidade histórica aos princípios da
ordem jurídica ou moral é, aos olhos do nosso autor, paralela à conversão,
característica do positivismo jurídico, do direito em norma legislada. Ambos
seriam tributários de uma lógica da imanência, segundo a qual a ordem das
coisas prescindiria de qualquer justificação. Tanto a reificação da legalidade
- a redução da lei a um simples fato - quanto a reificação da realidade - a
redução da experiência à sua dimensão imediata - implicariam o predomínio de um
tipo de pensamento que "se mantém absolutamente objetivo [sachlich], ou seja,
nas coisas [bei den Dingen]" (RK, 27). Em um caso como no outro, o problema da
validade e da legitimidade se resolveria no aqui-e-agora de uma efetividade
factual; ou ainda, na "tautologia de uma crua factualidade [rohe
Tatsåchlichkeit]: uma coisa vale, quando vale e porque vale" (VL, 9). Para Carl
Schmitt, no entanto, essas questões não poderiam jamais ser reduzidas à
condição de um simples fato, a algo que, no seu mutismo moral, se
"justificaria" por si mesmo, pela mera capacidade de se fazer presente no mundo
das coisas.
À luz dessas considerações, imagino que os termos em que Schmitt formula o
problema da validade da ordem jurídica se tornem um pouco mais claros. Para
ele, o direito não se resolve no puro dever-ser de uma racionalidade normativa
- seja esta a racionalidade substancial da Justiça ou a racionalidade formal da
técnica - e tampouco pode ser reduzido à mera efetividade factual das relações
de força. Ele procura, ao invés disso, pensar as condições em que ganhe
vigência uma "forma, no sentido de uma configuração da vida [Lebensgestaltung]"
(PT, 33). Para se tornar efetivo e não se perder em sua própria abstração, o
dever-ser do direito tem que se abrir para um elemento que lhe é estranho, ou
seja, para a realidade concreta em sua irredutibilidade última a toda ordem
normativa. Por isso, Schmitt considera que "todo direito é 'direito
situacional' [Situationsrecht"]"(PT, 19). Essa observação tem duas
conseqüências igualmente importantes em seu pensamento. Primeiro: a validade de
uma ordem jurídica é condicional, ela pressupõe o estabelecimento de uma
situação particular no interior da qual os princípios normativos do direito
venham a ter sentido e adquiram vigência. Essa validade requer, portanto, a
constituição de um "pedaço de ordem concreta"34, em que as normas sejam
coletivamente reconhecidas, ganhando enraizamento na vida social e densidade
histórica. A delimitação dessa porção de realidade configurada juridicamente
implica um movimento de dupla face, por meio do qual o direito vem a regular os
fatos porque a matéria da vida foi, por assim dizer, afeiçoada ao direito,
porque criou-se um estado de coisas em que os fatos se tornaram passíveis de
regulação jurídica. Em outras palavras: "todo direito é, em primeiro lugar,
ordem concreta, ao passo que normas e regras só obtém o seu significado e sua
lógica na moldura de uma ordem concreta"35. Portanto, como disse há pouco, não
está em jogo aqui a afirmação "realista" da irredutibilidade do concreto às
exigências abstratas de uma racionalidade normativa, mas a tentativa de
estabelecer uma relação entre o abstrato e o concreto, entre o dever-ser da
norma e o ser da realidade. Essa relação, em Schmitt, não é concebida
simplesmente sob a forma da subsunção de um termo no outro ou da sua exclusão
recíproca, mas como uma tensão em que os dois extremos se mostram mutuamente
referidos. Trata-se, para ele, de pensar o fundamento concreto de uma ordem
normativa abstrata. Segundo: o reconhecimento do caráter situacional da ordem
jurídica e a correspondente admissão do hiato entre idéia jurídica e realidade
histórica não permitiriam conceber o direito plenamente realizado na atualidade
imediata da ordem existente. A rigor, o processo de realização do direito
jamais se esgotaria em uma forma definitiva. Como observa Michele Nicoletti, o
direito se apresenta em Schmitt como "um processo inexaurível de ordenação da
realidade e não apenas como um sistema fechado, estático e fixo"36. A ordem
jurídica, portanto, não encontra seu princípio de validade em si, em sua
própria imediação, mas remete sempre para um "além" de sua mera identidade
consigo mesma.
O nomos e a lei
Por essa via, creio eu, entende-se o interesse especial que Carl Schmitt tem
pelas situações constituintes, ou seja, pelas situações em que está em jogo a
própria criação de uma ordem jurídica. Estas ofereceriam um ponto de vista
privilegiado para se pensar o problema do fundamento de validade dessa mesma
ordem. Em tais situações, não seria possível remeter a validade da ordem à
estabilidade e à vigência das regras e das normas. Pelo contrário, a seu ver, a
natureza originária dos processos constituintes resultaria do fato de que neles
se estaria colocada a necessidade de criar as condições concretas em que normas
se tornam aplicáveis aos fatos. Essas condições não seriam simplesmente
deriváveis de princípios normativos antecedentes. Com isso, o direito seria
obrigado a se confrontar com os aspectos extranormativos de sua própria
validade, evidenciando a impossibilidade de uma ordem normativa ter seu
fundamento em si mesma. Nas situações constituintes, portanto, o problema da
validade e da legitimidade da ordem se transferiria do plano de um juízo ético
ou jurídico - incondicionado e puramente normativo - para as mediações
concretas por meio das quais o direito ganharia a realidade histórica e social.
Aos olhos de Schmitt, essa ênfase nos processos constituintes assume uma
importância particular em uma conjuntura histórica e intelectual em que haveria
a tendência a reduzir o direito à lei constituída. Para uma perspectiva que
considera que "a legalidade moderna é acima de tudo o modo de funcionamento da
burocracia estatal" (NE, 51), aqueles processos seriam desprovidos de
significado histórico e de interesse intelectual. Em última análise, estaríamos
diante de uma "questão não jurídica" (NE, 51). Isso porque o ponto de vista da
legalidade estatal, nos diz ele, "não se interessa pelo direito da sua origem,
mas somente pela lei do seu funcionamento" (NE, 51). Com isso, acredito que já
possuímos alguns elementos para abordar o significado do conceito de nomos e
suas relações com o "realismo" da reflexão de Carl Schmitt sobre o direito e a
política internacional.
A noção de nomos é, no pensamento de Carl Schmitt, uma das figuras por meio das
quais ele procura pensar aquele "direito da origem" e o estabelecimento de uma
"ordem concreta"37. Para ele, a idéia de nomos tem um caráter espacial, já que
está associada ao modo como uma determinada ordem ganha um lugar no espaço.
Nesse sentido, o conceito procura pôr em evidência a "unidade entre ordenação e
localização [Ordnung und Ortung]" (NE, 13) que seria característica do direito.
Como observa ele,
o espaço como tal não é evidentemente uma ordem concreta. Porém, toda
ordem concreta e toda comunidade têm um conteúdo específico em termos
de lugar e de espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que toda
organização jurídica, toda instituição contêm em si suas concepções
de espaço e, portanto, também trazem consigo sua medida interna e sua
fronteira interna.38
O pensamento e a prática jurídica do século XIX, ao acreditarem ser possível
esgotar o direito na legalidade estatal, teriam perdido a consciência dessa
associação entre a ordem jurídica e o espaço. Por isso, Schmitt se recusa a
traduzir a noção de nomos pela idéia de lei e busca resgatar aqueles que, a seu
ver, seriam os significados primitivos da palavra. Tais significados
permitiriam compreender o nomos como um "ato originário que funda o direito
[rechtbegründenden Ur-Aktes]" (NE, 16). Esse ato de fundação se apresentaria
sob a forma da ordenação de um espaço específico. Mais precisamente, trata-se
de "um ato de ordenação e de localização, constituinte e espacialmente
concreto" (NE, 47). Ao enfatizar o modo como localização e ordenação estão
mutuamente referidas, como, enfim, uma ordem ganha um lugar no espaço ao
ordenar esse mesmo espaço, Schmitt procura pôr em evidência a impossibilidade
de dissociar, no momento mesmo de constituição de uma ordem jurídica, o plano
do dever-ser em relação ao do ser. Aqui, o espaço não se apresenta um elemento
neutro, no qual o direito, por assim dizer, vem a se depositar e se locomover.
Para que o direito ganhe realidade é preciso que o espaço venha a ser
juridicamente estruturado e adquira uma diferenciação interna, assumindo
fronteiras, linhas de demarcação e medidas que anteriormente desconhecia. Ou
ainda, o direito ganha realidade partir do momento em que se "eleva um pedaço
de terra a campo de força de uma ordenação" (NE, 40). Dessa forma, se
introduzem no espaço diferenciações que delimitam um lugar de vigência do
direito. Nesse sentido, observa Schmitt, "o direito e a paz repousam
originalmente em cercamentos [Hegungen] no sentido espacial" (NE, 44; grifo do
autor)39.
Ao tentar recuperar o significado original de nomos, Schmitt procura não só
resgatar sentidos da palavra que teriam se perdido em sua associação com as
idéias de lei e legalidade, mas também especificar os atos que tornariam
possível a localização de uma determinada ordem no espaço. Em "Nehmen-Teilen-
Weiden", de 1953, ele afirma que o substantivo grego nomos é, em sua acepção
primitiva, uma derivação do verbo nemein, tendo o seu sentido determinado por
esse último. Segundo ele, esse verbo teria três significados distintos e
interligados: designa, em primeiro lugar, o ato de apropriação (nehmen); em
seguida, o de divisão e partilha (teilen); e, por último, o de apascentamento,
cultivo, produção (weiden)40. Em "Nomos-Nahme-Name", de 1959, Schmitt incorpora
um quarto possível significado da palavra nomos: o ato de nomeação, por meio do
qual uma dada apropriação ganharia publicidade e visibilidade41. Uma discussão
mais detida das implicações teóricas e políticas das interpretações
etimológicas que Schmitt propõe talvez valesse um trabalho à parte. Interessa-
me, aqui, considerar como essas interpretações permitem iluminar os processos
graças aos quais localização e ordenação, espaço e direito vêm a convergir em
um nomos. Trata-se de saber, portanto, como um determinado espaço vem a ser o
lugar de uma ordem concreta. Dessa forma, os diferentes significados de nomos
permitiriam designar os Ur-Akte, os atos originários, graças aos quais ganharia
realidade "a primeira medição que funda todos os critérios de medida
subseqüentes" (NE, 36). Nesse particular, o ato de apropriação (Nahme) - e,
acima de tudo, a apropriação da terra (Landnahme)42 - desempenha um papel
decisivo. Como Schmitt observa, "no começo, não está uma norma fundamental
[Grund-Norm], mas uma apropriação fundamental [Grund-Nahme]"43. Recuperando uma
formulação há pouco citada, é o ato de apropriação que primeiramente "eleva" um
determinado espaço a "campo de força de uma ordenação". E ele o faz, ao
destacar esse espaço do restante da ordem das coisas, conferindo-lhe uma
"medida interna" (NE, 38), que anteriormente não existia. Nesse sentido, a
apropriação teria prioridade e anterioridade, conceitual e empírica, em relação
aos demais significados de nomos. Não há divisio primaeva sem occupatio ou
appropriatio primaeva44.
O ato de apropriação - e a nomeação, divisão e produção que o acompanham -
tornam possível o enraizamento do direito na realidade, graças a um processo
que não seria compreensível, contudo, pela remissão a um dever-ser anterior.
Estaríamos, portanto, diante uma de "forma imediata [unmittelbare Gestalt]"
(NE, 39), que não se estabelece por uma mediação normativa, mas resulta de um
ato que institui uma configuração no espaço. O processo de apropriação, ao
destacar um espaço específico diferenciando-o do resto, constitui "o primeiro
título jurídico que está na base de todo direito ulterior" (NE, 17). Ele cria,
portanto, "o mais radical título jurídico que existe, o radical title no
sentido pleno e abrangente da palavra" (NE, 17). A ausência de mediação
normativa, não significa, porém, que a feição constituinte de um nomos se
resuma a um ato de força, resolvendo-se e esgotando-se em sua pura
materialidade. A força de uma apropriação estaria, simultaneamente, no fato de
que ela ordena o espaço, ao gravar nele diferenciações que lhe são, em última
análise, alheias. Como Schmitt afirma, retomando uma fórmula de Kant, o nomos
seria "a lei que distribui o meu e o seu de cada qual no solo" (NE, 18)45.
Desnecessário dizer que, para ele, essa lei não pode ser compreendida a partir
de qualquer sentido normativista, mas seria a própria Landnahme, como "o núcleo
efetivo de um acontecimento histórico e político inteiramente concreto" (NE,
18). A efetividade desse acontecimento residiria, entre outras coisas, no fato
de que a separação entre o meu e o teu, instituída pela Landnahme, reúne em si,
de forma inseparável, força material e, por assim dizer, força espiritual. Ela
dá sentido ao solo, ao arrancá-lo da "ordem" na qual se encontrava
anteriormente inserido, fosse esta ordem um "regime de apropriação" prévio ou o
mero estado natural. Por isso, Schmitt refere-se à apropriação de terra e, por
conseguinte, ao nomos como "o arraigar no império de sentido da história [das
Wurzelschlagen im Sinnreich der Geschichte]" (NE, 19). Com isso, parece-me que
se torna um pouco mais clara a imagem que Schmitt propõe do nomos como uma
"forma imediata", ou ainda, como a "plena imediaticidade de uma força jurídica
não mediada por leis" (NE, 42; grifo meu). O ato de apropriação, embora tenha
um caráter imediato - ou seja, não possa ser concebido em termos de uma
mediação normativa -, se apresenta como força jurídica em razão de sua
capacidade de estabelecer uma "mediação" entre o plano do direito e da
realidade, entre dever-ser e ser. O uso das aspas, no entanto, acaba por se
fazer necessário, já que a especificidade do nomos como "ato de legitimidade"
(NE, 42) reside justamente no fato de que aqueles dois níveis não poderiam, a
rigor, ser separados no momento de origem, de tal modo que mediação e
imediação, dever-ser e ser tornam-se, no fim das contas, indistinguíveis.
Se voltarmos agora a nossa atenção, pela última vez, para as análises em O
nomos da Terra, veremos com mais clareza o papel que a noção de nomos
desempenha na narrativa de Carl Schmitt sobre a formação da ordem internacional
moderna. Segundo ele, o nomos da Terra "não [é] uma série de regras e
convenções internacionais, mas o princípio fundamental da distribuição do
espaço terrestre"46. Sendo assim, a constituição de um nomos planetário foi, a
seu ver, inseparável dos processos de apropriação, partilha e exploração que se
seguiram à descoberta do Novo Mundo e à abertura dos oceanos mundiais. Como ele
observa em Terra e mar,
toda ordenação fundamental é uma ordenação do espaço. Fala-se da
constituição de uma terra ou de uma parcela de terra como sua
ordenação fundamental, seu nomos. Portanto, a verdadeira, a autêntica
ordenação fundamental baseia-se, em seu núcleo essencial, sobre
determinadas fronteiras e demarcações espaciais, sobre determinadas
medidas e uma determinada repartição da terra. No começo de cada
grande época está, portanto, uma grande apropriação de terra. Em
particular, toda mudança e deslocamento significativos da imagem da
Terra estão ligados a mudanças políticas mundiais e a uma nova
divisão da Terra, a uma apropriação de terra. (LM, 71)
Já assinalei anteriormente que, para Schmitt, a Landnahme do solo americano e a
Seenahme das superfícies marítimas globais teriam tornado possível uma
diferenciação dos espaços planetários, sem a qual a contenção da guerra
alcançada pelo jus publicum Europaeum não teria sido possível. Talvez sequer
seja exato falar de modo tão genérico de uma contenção da guerra. Isso porque,
como vimos, a Hegung dos conflitos internacionais tem um caráter eminentemente
europeu. E não poderia ser de outra forma. Na reconstrução proposta por
Schmitt, não há como dissociar a limitação da guerra da Hegung de um espaço, ou
seja, da delimitação de um lugar no interior do qual as regras que regulam os
conflitos façam sentido. Os processos de apropriação de terra e de mar, sua
partilha entre as potências européias e a subseqüente exploração apresentam-se,
aos olhos do nosso autor, como os atos históricos constituintes de uma
"ordenação concreta do espaço". Eles traçam os limites, as fronteiras e as
medidas que acabam por tornar possível a vigência de uma certa ordem das
relações internacionais. Nesse sentido, o nomos planetário da época moderna é o
produto de uma circunstância histórica singular e de um conjunto de respostas
particulares ao desafio surgido com a transformação da imagem da Terra no
alvorecer da época moderna47. "Ele resultou", afirma Schmitt na introdução de O
Nomos da Terra,
da fabulosa, inesperada descoberta de um Novo Mundo, de um
acontecimento histórico irrepetível. Uma repetição moderna só poderia
ser concebida em termos de paralelos fantásticos, algo como os
homens, a caminho da lua, descobrirem um novo e até então
inteiramente desconhecido corpo celeste, que pudesse ser explorado e
utilizado para o desafogo das suas lutas terrestres. (NE, 6)
Com isso, reencontramos na análise do moderno nomos da Terra uma característica
que, segundo Schmitt, seria essencial ao direito, sua natureza "situacional". A
racionalização, a humanização, o progresso que a ordem internacional européia
trouxe consigo seriam, por assim dizer, duplamente situados. Temporalmente: o
nomos da Terra foi o produto de respostas particulares a questões particulares,
surgidas em um contexto particular. Como tal, ele não escapa ao destino de tudo
que é histórico, ou seja, está sujeito ao "caráter único e irrevogável do
acontecer histórico" (GS, 531) e à constatação de que "uma verdade histórica é
verdadeira uma única vez" (GS, 544). Espacialmente: a efetividade da ordem
internacional européia tem como pressuposto a sua colocação no interior de uma
moldura espacial específica. Sendo assim, seria preciso reconhecer sua natureza
necessariamente local e, por conseguinte, seu alcance circunscrito. Como
observei anteriormente, para Schmitt, a afirmação da natureza irremediavelmente
situada do direito não significa uma abdicação diante da factualidade do real e
uma renúncia à ambição de regular normativamente a vida social. Significa,
antes, a compreensão de que a vigência concreta de uma racionalidade normativa
requer a aceitação da natureza contingente de suas próprias soluções e,
portanto, a admissão da ausência de fundamento racional último da própria ordem
racional. Nesse sentido, a racionalidade do direito não residiria na natureza
incondicional dos seus princípios, mas em sua capacidade de configuração da
vida histórica. Dito em outros termos, em sua capacidade de conter - no duplo
sentido de englobar, encerrar dentro de certos limites e restringir, refrear,
deter - a indeterminação e a contingência da existência coletiva no interior de
formas concretas. Como observa Michele Nicoletti, em Schmitt "não estão dados
os conteúdos da justiça a serem aplicados na realidade (...), mas está dada uma
'forma', e é esta forma que analogicamente o direito deve repetir na tentativa
de edificar ordenamentos e condições de vida humana"48. Nesse sentido, o lugar
de uma racionalidade jurídica está definido pelo "esforço sempre precário de
realizar fragmentos de ordem pacífica"49; um esforço cuja eficácia implica
desistir da pretensão de passar do fragmento à totalidade; um esforço, enfim,
que encontra sua própria condição de possibilidade no reconhecimento da
irredutibilidade última da existência histórica aos princípios do direito. Por
isso, aos olhos de Schmitt, a ordem do jus publicum Europaeum - a grande
realização histórica da "filha primogênita (...) do racionalismo ocidental"
(LeR, 421), a ciência jurídica européia - não pode significar mais que o
estabelecimento de "um império da razão relativa" (NE, 114).