Agentes morais e a identidade da filosofia de Hume
1. Introdução
Em 2011 comemoram-se os 300 anos de nascimento do filósofo David Hume. Ao longo
desses trezentos anos não faltaram divergências entre intérpretes sobre a
natureza da filosofia humeana. A tradição interpretativa mais antiga, que
remonta a James Beattie, considerava Hume um defensor de um ceticismo radical,
alguém que viu nos argumentos céticos uma oportunidade para estabelecer um
ceticismo corrosivo que não deixaria qualquer possibilidade de justificação
racional das crenças do senso comum1. Os argumentos céticos empregados por Hume
no Tratado e na Investigação foram tomados, nessa tradição, como ferramentas
para demolir as estruturas de pensamento que originam as crenças humanas mais
fundamentais, como a crença que objetos possuem uma existência contínua no
tempo e são independentes da mente ou percepção humana, a crença que interações
causais observadas permanecerão inalteradas no futuro e a crença na existência
de um "eu" que acompanharia a transição de percepções no teatro mental.
Na metade do último século, a leitura cética deu lugar à interpretação
naturalista defendida originalmente por Norman Kemp Smith2. A principal
inovação da leitura de Kemp Smith foi considerar que o essencial da filosofia
de Hume residiria na doutrina das crenças naturais ou instintivas, de modo que
o ceticismo desempenharia no seu sistema uma função meramente instrumental e
secundária: abrir caminho para o naturalismo. Hume não seria, segundo Kemp
Smith, propriamente um filósofo cético, mas um naturalista interessado em
mostrar que a crença não é determinada por raciocínio e argumento, mas pelo
instinto natural ou sentimento.
Os avanços provocados pela interpretação naturalista de Kemp Smith originaram
novas tradições de leitura do ceticismo e naturalismo humeano. Algumas versões
mais nuançadas do ceticismo foram apresentadas3, permitindo estabelecer uma
imagem mais rica da filosofia de Hume. Esse movimento de constante retorno e
revisão das interpretações favorecidas no passado ainda está em curso, mas
algumas interpretações lentamente estão se tornando interpretações padrão ou
standard da filosofia de Hume. Nesse ensaio pretendo caracterizar aquela que
considero ser a tradição de leitura mais comum na atualidade em torno da
natureza do ceticismo e do naturalismo de Hume e indicar algumas tensões ou
aspectos dessa tradição de abordagem que, suponho, merecem um maior debate. Os
pontos que pretendo discutir são estes: a) a atribuição a Hume de um ceticismo
radical sobre a capacidade da razão humana justificar certas crenças
fundamentais do nosso "sistema de crenças"4; b) a caracterização do naturalismo
como uma doutrina causal sobre a formação da crença, o que implica em conceber
a filosofia de Hume como uma filosofia psicológico-descritiva, ao estilo do
naturalismo científico dos nossos dias5.
Contra esses dois aspectos da interpretação padrão de Hume, pretendo sustentar
que a doutrina naturalista, mais do que ser uma teoria causal da crença, é uma
estratégia metodológica geral de abordagem de problemas filosóficos adotada por
Hume, a qual resulta na incorporação de itens considerados espúrios pelas
filosofias racionalistas da época. Conforme pretendo mostrar, o naturalismo de
Hume legitima o apelo a um conjunto de dados muito mais amplo do que "as
verdades auto-evidentes da razão".6 Se esse ponto for correto, Hume não pode,
igualmente, ser tomado como um cético radical (como a interpretação padrão
apregoa), pois sua visão metodológica altera profundamente o sentido do que é
uma explicação filosófica e, portanto, igualmente das condições que tornam
plausível essa forma de ceticismo, sobretudo a ideia de uma dúvida abrangente,
que poderia ser lançada contra as fundamentos do pensamento e da ação humana.
2. A leitura padrão do ceticismo e naturalismo de Hume
Nas interpretações mais recentes de Hume, representadas, dentre outros, por
Strawson (1985), Williams (1995), Stroud (1984, 2008), ceticismo e naturalismo
não são mais tratados como posições independentes, mas complementares: Hume
seria um cético por defender a impossibilidade de uma justificação racional de
crenças básicas (causalidade, mundo exterior e "eu") e um naturalista por
afirmar que essas crenças humanas fundamentais, injustificáveis pela razão,
independem de argumento e sempre retornariam tão logo deixássemos as reflexões
próprias ao registro da epistemologia. A convivência dessas duas orientações
ampara-se na dualidade de registros em que a análise das crenças se desdobra: o
nível de análise crítico-filosófico e o nível empírico-ordinário. O ceticismo
universal imperaria no nível crítico, da reflexão filosófica extenuante, de
gabinete, e o naturalismo no nível empírico, da vida comum. No nível crítico,
como diz Strawson, "Hume nos deixa com um ceticismo irrefutado" (Strawson,
1985, p. 13). Michael Williams afirma, mais enfaticamente, que quando
refletimos sobre nossas práticas e procedimentos o naturalismo dá lugar ao
"ceticismo total, uma completa inabilidade para ver certezas cotidianas,
inferências e julgamentos como merecendo algo remotamente semelhante ao status
que nós, de outro modo, sem nenhum esforço, atribuímos a elas" (Williams, 1997,
p. 8). Esse ceticismo radical que aparece nos momentos de reflexão filosófica é
superado pelo naturalismo que garante a preservação ou sustentação instintiva
das crenças naturais. Segundo Strawson, Hume "admitiria que no nível do
pensamento filosófico-crítico nunca poderíamos oferecer nenhuma segurança
contra o ceticismo, enquanto que no nível empírico, no qual as pretensões do
pensamento são completamente supridas pela Natureza, teríamos um compromisso
inescapável com a crença natural" (Strawson, 1985, p. 13). Em suma, a filosofia
de Hume poderia ser descrita como uma filosofia naturalista e cética, onde o
naturalismo estaria contido na ideia de que por graça da Natureza somos
constantemente forçados a crer, embora, filosófica ou teoricamente, Hume
esposaria um ceticismo universal ou total, que imperaria em todas as ocasiões
em que abandonássemos as urgências da vida comum para filosofar7.
Considerada num plano de visada geral, a tradição mais recente de comentário de
Hume possui grandes vantagens em relação às interpretações sectárias que
enfatizam ora o naturalismo, ora o ceticismo. Nela ficam preservadas duas
orientações que encontram um forte suporte textual, sem, aparentemente,
originar maiores embaraços filosóficos ou interpretativos. Não obstante isso,
alguns pontos de tensão em torno do entendimento do modo pelo qual naturalismo
e ceticismo se relacionam na filosofia de Hume podem ser identificados. Isso
fica particularmente claro quando adentramos nas caracterizações mais precisas
do ceticismo e do naturalismo. Como atribuir a Hume posição filosófica do
ceticismo moderado se nos instantes de reflexão filosófica é o ceticismo
radical que governa nossas mentes e, quando não estamos no registro da
filosofia, a natureza torna-se a soberana? A solução costumeira consiste em
dizer que o ceticismo mitigado não é um conjunto de "verdades ou doutrinas": "é
algo que descobrimos estar conosco ou um estado em que descobrimos estar,
quando as reflexões levando ao ceticismo excessivo foram temperadas ou
mitigadas por nossas inclinações naturais" (Stroud, 2008, p. 180). Mas se a
natureza não atua quando exercemos nossa razão, como ela amenizará o ceticismo
excessivo a fim de tornar-nos céticos moderados em nossas investigações
filosóficas? Ainda, como não transformar, através da caracterização do
naturalismo como uma doutrina causal, Hume num irracionalista ou determinista
acerca de aspectos centrais de nosso esquema conceitual? Essas dificuldades
interpretativas se radicalizam ainda mais quando tratamos de entender o
fenômeno da evanescência da dúvida cética frente à força dos instintos
naturais, isto é, o fenômeno da flutuação de um estado de dúvida e descrença
geral para um estado de espírito caracterizado pela admissão cega daquilo mesmo
que, racionalmente, mostrou-se infundado. Na filosofia de Hume, segundo a
interpretação de Strawson e Williams, a natureza bloqueia a suspensão do juízo.
O ceticismo radical de Hume não gera um estado de suspensão do juízo, pois o
potencial destrutivo dos argumentos céticos é contrabalançado pela natureza.
Mas esse efeito supõe que ceticismo e naturalismo sejam duas forças poderosas e
de igual peso atuando sobre nós. Chamemos essa tese de tese da simetria de
forças entre ceticismo e naturalismo. Assumindo essa tese, o homem aparece como
um ser cindido ou dividido pela atuação das forças contrárias do sentimento e
da razão. A flutuação vivida em nossos espíritos é uma flutuação entre um
estado de ceticismo radical e inquestionável para um estado de crença cega,
igualmente inquestionável. Razão e natureza são iguais e, em seus registros de
atuação, anulam uma a outra. Esse tipo de caracterização do ceticismo e
naturalismo como pólos opostos, não comunicáveis e que se neutralizam em seus
domínios não parece permitir uma compreensão adequada de aspectos fundamentais
da filosofia de Hume, sobretudo da integração existente entre naturalismo e
ceticismo e do lugar que a razão desempenha no naturalismo humeano. O ponto foi
formulado com precisão por Livinstong:
Ao esboçar uma dicotomia radical entre razão e crença natural, deixa-
se pouco lugar para refinamentos no conceito de razão que devem ser
feitos se pretendemos fazer uma avaliação adequada da função que o
pirronismo desempenha na filosofia de Hume. Pois a dicotomia entre
razão e natureza tem deixado na mente de muitos a crença que, para
Hume, a razão é pirroniana e que a crença natural corre livre,
descontrolada e não monitorada por algo que poderia ser chamado de
crítica racional. Isso nos capacita a migrar da imagem de Hume como
um cético subversivo para a imagem dele como um irracionalista para
quem todo pensamento é determinado por sentimento (1984, p. 27)8.
Como a passagem revela as leituras que passaram a reconhecer e destacar a
função do sentimento na filosofia de Hume e que pretendiam, ao mesmo tempo,
superar a imagem dele como um cético corrosivo, acabaram por transformá-lo num
naturalista-irracionalista. Igualmente, ao preservar um ceticismo radical, que
apareceria como a concepção definitiva de Hume sobre os poderes da razão
humana, essas leituras impedem uma apreciação adequada do ceticismo moderado na
filosofia humeana. Como pretendo argumentar, ambos os direcionamentos
interpretativos não parecem caracterizações adequadas dos propósitos
filosóficos de Hume, pois ao mostrar que crenças humanas fundamentais
independem de argumento, Hume não pretende reduzir a crença a um processo
mecânico e inteiramente independente da reflexão racional. Ele tampouco
pretende apresentar um ceticismo radical acerca do papel da razão na
justificação de nossas crenças. Ao chamar a atenção para as crenças naturais,
ele pretende instituir um novo modelo de abordagem dos conceitos gerais
examinados pela filosofia e, por conseguinte, um novo modelo de justificação ou
entendimento desses mesmos conceitos. Esse modelo é chamado por Hume, às vezes,
de "verdadeira filosofia", "justa filosofia", em substituição à filosofia falsa
e adulterada. Segundo Livingston, a verdadeira filosofia reconhece "a
autoridade do sistema popular em seu próprio pensamento". Enquanto a filosofia
falsa pretende se emancipar inteiramente da vida comum, a filosofia verdadeira
começa dentro daestrutura da vida comum (Livingston, p. 24). Livingston também
considera que a função do naturalismo não é afirmar que "uma pessoa é forçada a
acreditar em qualquer coisa que a natureza o leve a acreditar, nem mais, nem
menos'. Sua função é, antes, iluminar a natureza da verdadeira filosofia" (p.
28). Se for plausível interpretar o naturalismo nessa direção, ou seja, na
direção de uma perspectiva de análise de nosso sistema de crenças
caracterizada, essencialmente, pela aceitação do primado da vida comum (com
seus hábitos, paixões e sentimentos) na filosofia, a representação do homem
resultante não é de "deus dotado de razão" ou de um "cérebro desencarnado", mas
de pessoas com ossos e sangue, que possuem amigos, afazeres, diversões e que,
no curso de suas vidas, podem se interessar por questões metafísicas (do tipo
que os filósofos costumam investigar), pensar em argumentos para lidar com elas
e reconhecer o espaço restrito (porém, insubstituível), que a razão ocupa em
nossas vidas. O naturalismo permite reconhecer, além da importância da razão e
raciocínio, que forças animais, como sentimentos e paixões, desempenham um
papel relevante na estruturação de nossa teoria geral do mundo e de nosso
próprio auto-entendimento. Ou seja, se a sugestão que pretendo apresentar for
correta, em vez de ser uma teoria mecanicista da crença e uma espécie de
ceticismo radical sobre os poderes da razão, é o homem e a vida comum que "a
filosofia verdadeira" de Hume pretende defender, modificando, dessa forma, a
própria fisionomia da atividade filosófica. Um bom exemplo disso é o tratamento
que Hume dá à moralidade. O sistema moral era considerado, por diferentes
contemporâneos de Hume, como uma dádiva dos céus para a salvação do homem. A
abordagem de Hume da moralidade mostra que a vida moral é um desses lugares
onde o sentimento tem um papel crucial a ser levado em conta pela teorização
filosófica. O apelo humeano a instintos e sentimentos, que constitui o ponto
nodal do naturalismo, tem o propósito, nesse sentido, de enfraquecer a imagem
da filosofia como uma disciplina justificadora e responsável por fornecer, no
domínio prático, uma fundamentação inteiramente racional e segura de nossas
crenças morais, especialmente sobre a capacidade de a razão ditar as regras que
serão obedecidas pela vontade. Hume foi o defensor de uma concepção
deflacionária do lugar da razão no nosso sistema de crenças (portanto, também
da atividade racional da filosofia) e um introdutor de princípios sensíveis
como elementos constitutivos de funções preponderantes em nossa condição, no
pensamento, mas, sobretudo, na moralidade e política. Nesse sentido, o apelo
aos princípios naturalistas ou instintivos não pretende aplacar a razão
(gerando um ceticismo radical), mas instituir um novo padrão de racionalidade
filosófica ou uma nova forma de entender o lugar da razão na filosofia. Existem
muitas maneiras de apresentar o novo padrão de racionalidade instituído por
Hume. A hipótese de leitura que pretendo perseguir consiste em afirmar que a
racionalidade instituída pela entrada em cena do naturalismo é pragmático-
operativa, isto é, é motivada por um padrão de abordagem que fixa a atividade
justificadora da filosofia como determinado pelo "esquema prático da vida", ou
seja, pelos propósitos e objetivos práticos que perseguimos na vida moral e
cognitiva9. Tal abordagem se opõe claramente as tendências que super-
intelectualizam ou buscam uma fundamentação puramente racional para nosso
sistema de crenças (Descartes), fazendo da atividade filosófica racional um
juiz da nossa imagem do mundo e de nós mesmos e também àquelas que transformam
os princípios da filosofia em princípios naturais que atuam como forças cegas
geradas causalmente (Stroud), fazendo da filosofia um mero registro e
classificação dos mecanismos causais das operações naturais.
3. O sentido do naturalismo de Hume
Na abertura da seção II, da parte IV, do livro I do Tratado, ao comentar a
crença na existência do corpo, Hume observa que o cético assentirá ao princípio
concernente à existência do corpo, embora não possa "por qualquer argumento de
filosofia" manter sua veracidade (T. 187). Na Investigação, ele manifesta,
sobre este mesmo assunto, que se trata de um "tópico em que os céticos mais
profundos e mais filósofos sempre irão triunfar." (E, 153) Com respeito a
causalidade ele diz que "nenhum argumento demonstrativo" e nenhum argumento da
experiência é capaz de "provar que o passado é semelhante ao futuro" (T, 89; E,
IV, ii)
Tais amostras de pessimismo quantos aos poderes da razão (e várias outras que
poderiam ser apresentadas) levaram muitos intérpretes de Hume a afirmar a tese
de que ele seria um defensor da impossibilidade de uma justificação racional de
nossas crenças últimas e que o ceticismo seria a resposta definitiva acerca de
sua caracterização dos conceitos mais gerais que estruturam nossa imagem do
mundo e do homem. A descrição das operações do entendimento humano que originam
crenças levou Williams a afirmar que o ceticismo "é o veredicto final e
inescapável em nossas pretensões ao conhecimento do mundo". (Williams, 1997, p.
2). A suposta defesa de Hume da invulnerabilidade teórico-filosófica do
ceticismo traz consigo ainda uma tese sobre o lugar do naturalismo no sistema
humeano. Como a passagem de abertura da parte IV do livro I sugere, o
naturalismo de Hume deixaria o ceticismo intocado e mostraria que este, ainda
que seja filosoficamente irrefutável, seria incapaz de levar-nos a repudiar
nossas crenças no nível não reflexivo, empírico-ordinário, pois somos
determinados pela Natureza a "viver, falar e agir como as outras pessoas nos
assuntos comuns da vida" (T, 269), de modo que sequer se coloca a questão da
renúncia de nossas expectativas indutivas, a suspensão da crença no mundo
externo e na identidade do "eu". A filosofia de Hume combinaria assim um
ceticismo e um naturalismo, onde o último "aparece como algo semelhante a um
refúgio de seu ceticismo" (Strawson, p. 12)10
Não é difícil reconhecer o papel central que a razão,enquanto faculdade
detentora de uma autoridade suprema sobre nossas crenças, ocupa nesse tipo de
representação da filosofia de Hume. Ela aparece como a faculdade que responde
pela análise das evidências disponíveis e pela legimitação ou condenação de
nossa imagem geral do mundo natural e da vida em sociedade. Entretanto, como o
fracasso dessa tarefa conduz diretamente ao ceticismo, que, segundo Hume, é
contrário a própria razão (EHU, p.160), a Natureza é apresentada como a força
capaz de suplantar a extinção de todo "grau de evidência" resultante da atuação
do entendimento isolado (T, 267). Contra o caráter inteiramente destrutivo do
ceticismo radical, a natureza atuaria ocupando o lugar da "inocência que, uma
vez perdida, nunca mais é retomada" (Williams, p. 9). A inocência perdida foi
revelada pelo ceticismo que ao destruir as pretensões da razão tornou patente a
falta de fundamento de nossas crenças. Assim, o naturalismo de Hume seria como
que um remédio paliativo para o ceticismo, um refúgio onde poderíamos nos
abrigar da nossa incapacidade de defender "a razão pela razão" (T, 187). A
orientação naturalista de Hume seria, em outras palavras, uma conseqüência
lógica do malogro de seu percurso de pensamento em busca de fundamentos para
crenças. Hume estaria interessado em fundamentar filosoficamente nossas crenças
naturais na razão e, ao descobrir a ausência de fundamentos, teria adotado,
como uma espécie de saída de emergência, o naturalismo.
Contra essa leitura, eu pretendo mostrar que os elementos naturalistas da
filosofia de Hume, especialmente no Tratado, não são substitutos da razão na
explicação das crenças, mas parte de um novo modelo de racionalidade, um modelo
caracterizado pela pretensão de mostrar que a fundamentação puramente
intelectual dos aspectos mais gerais do nosso esquema conceitual (aqueles
elementos que são objeto da ciência do homem de Hume) é uma exigência descabida
e falsa, que poderia, sem nenhum prejuízo para a ciência e ação, ser integrada
com princípios ligados à nossa natureza sensitiva e às nossas paixões.11
O naturalismo aparecerá aqui como parte da metodologia adequada de abordagem
filosófica das principais crenças humanas. Nessa metodologia, conceitos
centrais de nossa armação lingüística não são considerados legítimos somente se
passarem no teste racional. Motivos fortes da vida sensível humana são
equiparados com argumentos e raciocínios. Com isso, os princípios naturalistas
enfatizados por Hume deixam de serem meros mecanismos causais de formação de
crenças que ocupariam o lugar da razão e tornam-se parte da natureza de certos
conceitos.12 Essa fundamentação tem a forma de uma justificação que incorpora
elementos não-racionais presentes em nossas atividades teóricas e práticas, no
pensamento e na ação. A filosofia naturalista não é, nesse sentido, avessa a
raciocínios. Como o próprio Hume diz: "o raciocínio exato e justo é o único
remédio universal, adequada para todas as pessoas e todas as disposições e é o
único capaz de subverter a filosofia abstrusa e o jargão metafísico (E, p. 12-
13). Uma filosofia adequada aceita argumentos, mas também sentimentos suaves e
moderados. "A filosofia, ao contrário, se adequada, somente pode nos apresentar
sentimentos suaves e moderados e, se falsa e extravagante, suas opiniões serão
meramente os objetos de uma especulação fria e geral (T, 271-272). Assim,
raciocínio, argumento, juntamente com sentimentos, instintos e paixões, não
são, para Hume, forças separadas, mas integradas num todo, como uma tela que
envolve várias camadas sobrepostas, constituídas por diferentes materiais, e
onde cada uma contribui para o efeito final. O naturalismo, assim entendido, é
uma tentativa de reconhecer a autoridade filosófica que princípios irrefletidos
da vida comum têm na rede de conceitos que formulamos para pensar o mundo. A
fragilidade da razão, por sua vez, legitima um ceticismo moderado, um ceticismo
que consiste em condenar sistemas metafísicos estabelecidos por mera
consistência lógica de conceitos e admitir forças estranhas à razão (como a
história, a educação, os sentimentos). Esse ponto é claramente formulado quando
Hume indica a espécie mista de vida recomendada pela sua filosofia. Essa
espécie de vida é composta por uma mistura de reflexão e argumento com o
reconhecimento de fatos gerais, empíricos, e ligados à nossa constituição como
seres sociais e naturais.
Parece, então, que a natureza indicou uma espécie mista de vida como
a mais adequada à raça humana e intimamente admoestou-os a não
permitir nenhuma dessas tendências que atraemmuito, de modo a
incapacitá-los para outras ocupações e entretenimentos. Ceda a tuas
paixões pela ciência, ela diz, mas permita que tua ciência seja
humana e, como tal, possa ter uma referência direta à ação e
sociedade. O pensamento abstruso e as pesquisas profundas, eu os
proibirei e punirei severamente, com a melancolia triste que eles
introduzem, pela incerteza infinita que eles lhe envolvem e pela fria
recepção que suas pretensas descobertas enfrentarão quando
comunicadas. Seja um filósofo, mas, em meio à tua filosofia, seja
ainda um homem" (EHU, p. 9).
Quando razão e sentimento são chamadas para atuar juntas temos um retrato do
homem que não nega nossa natureza corpórea e sensível e não elimina
completamente a função da razão, contribuindo para uma consciência mais clara
dos princípios que atuam na natureza humana e na produção de uma reflexão
filosófica mais habilitada a promover nossos propósitos de conhecimento e
felicidade.
4. Razão e ceticismo moderado
Em T 183, Hume pergunta se ele seria "um destes céticos, que sustenta que tudo
é incerto e que nossos julgamentos não possuem nenhuma medida de verdade ou
falsidade" e responde dizendo que esta questão é inteiramente supérflua, pois
"nem ele, nem ninguém foi sincera e constantemente desta opinião". A sua
explicação é então completada indicando a razão do uso cuidadoso de argumentos
céticos em suas investigações. "Minha intenção então ao empregar cuidadosamente
os argumentos desta seita fantástica é somente para tornar o leitor sensível à
verdade de minha hipótese: que todos nossos raciocínios concernentes a causas e
efeitos derivam-se tão somente do costume e que a crença é propriamente um ato
da parte sensitiva e não da parte cogitativa de nossa natureza" (T 183). Aqui
Hume indica claramente que é a pretensão filosófica de seu trabalho mostrar que
os raciocínios causais não dependem da existência de algum fundamento de ordem
racional e, para encaminhar esta recusa da razão e apresentar a fundação dos
raciocínios de causa e efeito em nossa natureza sensitiva,são usados os
argumentos "desta seita fantástica" chamada ceticismo. Além disso, em
diferentes momentos, Hume chama atenção para o fato de que "a destruição da
razão" que o cético pretende produzir não tem nenhum propósito específico.Na
Investigação,Hume descreve os argumentos céticos como "argumentos e raciocínios
que têm tão pouca utilidade para qualquer propósito mais sério". (E, VII, 15
grifo meu). Em E VII, ii, 23, ele afirma que "a objeção mais importante e
contudendente ao ceticismo excessivo é que nenhum bem duradouro pode jamais
resultar dele enquanto gozar de sua plena força e vigor. Basta apenas perguntar
a um desses céticos o que ele tem em mente e qual é o seu propósito com todas
essas excêntricas indagações. Ele será imediatamente tomado de perplexidade e
não saberá o que responder" (E, XII,ii, 23). Ao tratar dos argumentos de
Berkeley referentes à abstração e às ideias gerais ele observa que esses
argumentos são meramente céticos, ou seja, "não admitem nenhuma resposta e não
produzem nenhuma convicção. Seu único efeito é causar aquela perplexidade,
indecisão e embaraço momentâneos que são o resultado do ceticismo" (E, XII, i,
15n).
Uma rápida análise do contexto onde essas passagens encontram-se mostra
claramente que elas fazem referência ao ceticismo radical, ao ceticismo que
Strawson e Williams afirmam ser uma das disposições fundamentais da filosofia
humeana. O ceticismo consiste aqui em argumentar que uma crença ou um conjunto
de crenças é epistemicamente injustificável e somente pode ser superado pela
força da natureza. É claro que, do ponto de vista reflexivo, essas passagens
são insuficientes para mostrar que os argumentos céticos são inválidos ou
enfrentam alguma dificuldade quanto à sua lógica interna. Haveria uma renúncia
dos efeitos de persuasão do argumento em função das urgências da vida, mas do
ponto de vista da lógica interna, suas conseqüências deveriam ser admitidas.
Contudo, é um erro pensar que Hume não reconheceu limitações sérias e
incoerências na própria lógica que leva ao ceticismo radical. Essa ideia
aparece mais claramente naquelas passagens onde Hume associa os credos do
ceticismo e dogmatismo. "A razão cética e dogmática são da mesma espécie" (T
187). O dogmático e o cético exigem que para cada proposição ou opinião
sustentada deve haver pelo menos uma razão ou fundamento. Hume recusa tanto a
razão cética que pretende expor a falta completa de fundamentos para nossas
crenças e a razão dogmática, que acredita ser capaz de oferecer argumentos para
tudo. Ambas, no entanto, são forças destruidoras da razão: a primeira por
tentar destituir a razão de sua autoridade e a segunda por alimentar sistemas
metafísicos sem sustentação na realidade. O objetivo de Hume é não é destituir
a razão, mas permitir a introdução de uma razão humilde, uma razão, ao mesmo
tempo, que combina curiosidade e desejo de conhecimento (e precisa ser freada
nos seus anseios) com a consciência de seus próprios limites. Essa perspectiva
de tratamento dos argumentos céticos encontra-se inequivocamente expressa na
Carta de um Cavalheiro ao seu amigo de Edimburgo. Como se sabe, Hume escreveu a
Carta em resposta a um panfleto, provavelmente escrito pelo reverendo Williams
Wishart, então diretor da Universidade de Edimburgo. Wishart lançava seis
acusações contra Hume, sendo a principal delas a de defender um ceticismo
universal. Hume formulou a acusação que lhe foi dirigida dizendo que autor do
Tratado sustentaria "um ceticismo universal" que duvidaria de "todas as coisas
(exceto de sua própria existência) e sustenta a loucura de fingir não acreditar
em nada com certeza" (C, 1994, p. 17). Ele responde a acusação dizendo que o
ceticismo total não é uma posição séria, defensável e que a utilização que ele
fez dos argumentos céticos teve como único propósito abater "os meros
raciocinadores humanos". Tudo o que Hume pretende "com esses escrúpulos é
abater o orgulho dos meros raciocinadores humanos, ao mostrar para eles que,
mesmo no que respeita aos princípios que parecem mais claros e que eles devem
necessariamente adotar a partir dos instintos mais fortes da natureza, eles não
são capazes de alcançar uma consistência completa e uma certeza absoluta.
Modéstia, então, e humildade com relação às operações de nossas faculdades
naturais é o resultado do ceticismo, não uma dúvida universal que é impossível
para qualquer homem sustentar e que o primeiro e mais trivial acidente na vida
deve imediatamente desconcertar e destruir" (L, 1994, p. 17, grifo meu). Ou
seja, Hume afirma que seu objetivo não foi rejeitar toda a certeza, mas apenas
mostrar a "fraqueza e incerteza da mera razão humana", renunciando as
pretensões de certos filósofos dogmáticos. A carta de Hume não parece deixar
dúvidas: os argumentos céticos tem uma finalidade pedagógica e moral; eles se
dirigem contra aqueles filósofos que sustentam haver uma certeza absoluta e uma
consistência completa na justificação dos princípios de operação das faculdades
humanas. É importante também observar que aqui, assim como no Tratado (T657),
ele diz que não é uma dúvida universal a conseqüência dos argumentos céticos.
Tanto o dogmatismo daqueles que acreditam no poder pleno da razão, quanto o
ceticismo universal ou descrença completa na razão são incompatíveis com o
ceticismo que Hume pretendeu defender13. Sendo o ceticismo universal claramente
recusado, qual a natureza do ceticismo de Hume e por que ele adotou argumentos
que poderiam levar seus leitores, como ocorreu com o reverendo Wishart, a
suspeitar de um ceticismo universal?
Um caminho de resposta possível poderia ser desenvolvido sustentando que os
argumentos céticos radicais pretendiam destruir a confiança excessiva dos
dogmáticos na razão, mas não destrui-la completamente. Entendidos nesse
sentido, os argumentos céticos radicais teriam no sistema humeano uma função
similar aquela visada por Descartes na Primeira Meditação. Na filosofia
cartesiana, os argumentos céticos servem para preparar o caminho para uma
epistemologia e uma metafísica centrada nos poderes da razão. Na filosofia de
Hume, eles também são instrumentos metodológicos, porém destinados a
enfraquecer a razão e permitir um ceticismo moderado, isto é, um ceticismo que
aceita a operação de princípios racionais na filosofia, desde que devidamente
corrigidos e educados. O enfraquecimento do ceticismo excessivo não resulta,
assim, da atuação da natureza, mas da contemplação do fracasso da própria razão
que, quando abandonada a si mesma cai em ruína (T, 225). O tipo de filosofia
que Hume pretende desenvolver não tende, como é a pretensão dos argumentos
céticos pirrônicos ou radicais, subverter os raciocínios da vida ordinária e
levar dúvidas tão longe ao ponto de aniquilar toda a especulação e ação (E, V,
ii, 2). Hume desaprova uma filosofia que não seja "humana". Na Investigação,
Hume afirma que o pirrônico "quando desperta de seu sonho, é o primeiro a rir-
se de si mesmo e a confessar que suas objeções são puro entretenimento, e só
tendem a mostrar a estranha condição da humanidade, que está obrigada a agir, a
raciocinar e a acreditar sem ser capaz, mesmo pelas mais diligentes
investigações, de convencer-se quanto às bases dessas operações..."(E, XII, ii,
p.23). Isso parece querer dizer, em primeiro lugar, que as teses do cético
radical são indicações ou orientações para mostrar nossos limites cognitivos,
porém não são teses substantivas assumidas por Hume acerca dos poderes
cognitivos humanos. Um cético moderado aceita que a razão tem limites e
reconhece que argumentos e raciocínios têm lugar na elaboração de uma filosofia
justa e verdadeira. A razão tem uma função interrogadora e na correção das
operações naturais do entendimento, é ela que nos ajuda a combater a
indolência, a arrogância e a credulidade, ao mesmo tempo em que destitui o zelo
e entusiasmo fanático resultante da atuação das paixões que contrariam as
orientações racionais e morais (T, 270, 271, E 40, 41)14. Hume distingue,
quanto a isso, dois conjuntos de princípios associados à imaginação que parecem
justamente permitir uma função limitada para a razão e que rebatem a
interpretação do naturalismo como uma teoria sobre a formação causal das
crenças: princípios universais e permanentes e os princípios mutáveis e
irregulares. Ele diz: "eu separo na imaginação os princípios que são
permanentes, irresistíveis e universais, tais como aquele da transição
costumeira das causas aos efeitos, dos princípios que são mutáveis, fracos e
irregulares.[...] Os primeiros são a fundação de todos nossos pensamentos e
ações, de modo que sua remoção produziria imediatamente a ruína e o perecimento
da natureza humana. Os últimos não são nem inevitáveis na humanidade nem
necessários ou úteis na conduta da vida.[...] Por esta razão, os primeiros são
aceitos em filosofia, e os últimos rejeitados" (T 225). Aqui, Hume afirma sua
disposição de aceitar em filosofia princípios da imaginação que podem ser
corrigidos pela reflexão. Estes princípios universais fundam "nosso pensamento
e ação". Os princípios naturais corrigidos pela razão fundam um conhecimento
empírico, informado pelas nossas necessidades e objetivos práticos. Numa carta
enviada a Stewart, Hume afirma que existem "muitas espécies diferentes de
certeza e algumas delas são satisfatórias para a mente humana mesmo não sendo
talvez tão regulares quanto a certeza de tipo demonstrativo" (Hume apudKemp
Smith,1966, p. 413). Essa certeza que não é de caráter demonstrativo é a
certeza ligada à experiência, às questões de fato, ou ainda, ao conhecimento
empírico, o qual informa a ação ordinária e permite o desenvolvimento da
ciência. Isso quer dizer que os princípios da imaginação podem ser justificados
pela sua racionalidade empírica, isto é, uma racionalidade que não é
equivalente a necessidade lógico-dedutiva, mas que exibe um grau satisfatório
de rigor e supõe, até certo grau, a atividade da razão15. É essa certeza
comparativa e suficiente para nossas finalidades que os princípios naturais
exibem que os torna não-falaciosos. Além disso, Hume fornece indícios para
pensar que a imaginação não é uma faculdade inteiramente livre. As Regras para
Julgar de Causa e Efeito são uma representação clara disto. A razão orienta o
instinto, nos conduzindo a refinar e elaborar nossos procedimentos indutivos e,
muitas vezes, nos leva a rejeitar aquilo que nos achamos inclinados a aceitar.
A pretensão da filosofia de Hume é, portanto, a de reconduzir a razão a sua
função apropriada: como uma faculdade que atua juntamente com as operações
naturais do entendimento e não como uma capacidade de julgar a experiência,
estabelecendo a legitimidade de seus fundamentos últimos, tarefa para a qual é
incapaz. Assim, preserva-se o estatuto legítimo das máximas da vida comum, sem
o apelo a uma fundamentação racional última destes princípios.
5. Conclusão
Nesse artigo procurei fornecer evidências que favoreçam uma interpretação da
filosofia de Hume como sendo uma filosofia naturalista e cética. Interpretações
tradicionais e muito comuns da filosofia humeana tendem a tomá-lo como um
filósofo cético radical e um naturalista, no sentido que a crença é um produto
da mecânica da realidade atuando sobre a inércia mental e o ceticismo uma
teoria radical que sustenta que não podemos fornecer argumentos plausíveis para
sustentar nossa visão geral da realidade. Procurei sugerir que o naturalismo de
Hume pode ser corretamente interpretado como uma orientação geral de abordagem
de problemas filosóficos que consiste em incorporar elementos sensíveis no
interior do tratamento de problemas filosóficos. A principal evidência dessa
perspectiva de tratamento encontra-se na proposta humeana de uma filosofia
verdadeira, uma filosofia que vê o homem como um animal, com corpo, identidade
histórica, história natural e que reconhece sua fraqueza no controle racional
da vontade. É essa abordagem abrangente que permite a Hume desenvolver uma
caracterização do agente moral que não se assemelha a um calculador de ações
que ajustam-se a princípios abstratos de orientação da conduta. As ações
morais, para Hume, decorrem de um caráter ou personalidade moral persistente no
tempo. A vida moral, nesse sentido mais primitivo e pessoal, consiste em
esculpir ou plasmar uma identidade ou personalidade moral. Almas virtuosos não
são dadas. Elas são construídas, mas são construídas no interior de projetos de
vida pessoais, que envolvem, não somente nossa racionalidade, mas todas nossas
energias emocionais e sentimentos de compromisso e envolvimento, bem como
sentimentos de separação e diferenciação frente aos outros seres humanos. Nesse
aspecto, o corpo, o gênero, as expectativas e compromissos interpessoais e
morais, que são parte da identidade moral de uma pessoa, contribuem para a
definição da sua personalidade moral e da nossa concepção da virtude e do
vício. Esse tipo de abordagem abrangente do agente moral representa aquele que
tomo como sendo o protótipo mais adequado da dimensão naturalista da filosofia
humeana. Fazer uma filosofia justa e adequada consiste em reconhecer esses
aspectos de nossa vida comum, como nossa posição social, identidade de gênero,
orgulho e outras paixões que atravessam nossa vida e suas funções no
entendimento da virtude e do vício16. Esse tipo de incorporação, aparentemente
injustificada por um modelo racional de entendimento da moralidade, é explicada
pelo reconhecimento dos limites do projeto de justificação racional de crenças
do livro I e conseqüências da aceitação de uma abordagem filosófico-naturalista
da moralidade nos livros II e III. Como afirma Baier (1994, p. 130, 131 e ss)
uma pessoa deixe de ser, como na parte VI do livro I, um feixe de percepções
que unem-se para formar uma vida. Uma pessoa:
"Sou eu e meus traços de caráter, eu e minhas habilidades,
incapacidades, virtudes e vícios, eu e meu cérebro, coração, nervos,
pele, poros, músculos, eu e minha vida, eu e meu feixe de percepções,
eu e minha reputação, eu e minha família, eu e meus amores, eu e
minhas ambições, eu e meu país, eu e meu local de férias favorito e
seu clima..." (Baier, 1994, p. 135)
Uma filosofia verdadeira interessa-se por entender o conceito geral ou
metafísico de pessoa, mas reconhece que tal entendimento, para uma filosofia
justa e preocupada com questões morais, deve ser ampliado, incorporando
princípios da vida comum. Ao fazer isso, Hume não faz mais do que aplicar os
preceitos indicados na Introdução do Tratado, quando diz que "os princípios
universais" obtidos por sua filosofia devem ser extraídos da "observação
cuidadosa da vida humana, tomando-s como eles aparecem no curso comum do mundo,
através do comportamento social do homem, nos seus afazeres e prazeres" (T,
xix). Esse movimento, aparentemente inofensivo, constitui uma mudança completa
no modelo de investigação filosófica adotado em seu tempo.
Eu procurei argumentar acima que a principal lição do naturalismo é
metodológica: dar cidadania a conceitos tradicionalmente expurgados da
filosofia;fazendo-nos ver que esses conceitos são centrais para uma abordagem
compreensiva e adequada dos problemas filosóficos e que essa renovação da
filosofia traz consigo inúmeras vantagens práticas (a principal delas talvez
seja eliminar de vez todo jargão obscuro e enigmático dos sistemas vazios da
metafísica, aqueles mesmos sistemas puros de pensamento que, se aplicados à
vida política e social, nos levariam a mais completa ruína pela violência e
rebelião dos fanáticos) . O naturalismo, entendido como a incorporação de itens
da vida comum no pensamento filosófico, é a tendência central de uma filosofia
purgada dos excessos metafísicos. Nessa filosofia, o intelecto humano tem uma
função crucial, a função de corrigir nossa credulidade e a trivialidade das
operações da imaginação. No entanto, esse modelo filosófico não nega a
autoridade dos princípios naturais ou a relevância que fatos empíricos
desempenham na análise filosófica de nosso sistema de crenças. É na filosofia
prática de Hume que essa vinculação se mostrará mais claramente, onde
sentimentos como o prazer e interesses práticos como a utilidade são chamados
para compor a explicação dos fundamentos da moral. A finalidade da "verdadeira
filosofia" é fazer a prática filosófica progredir metodologicamente em seu
tratamento dos aspectos centrais de nossa condição, aproximando as descrições
filosóficas da prática comum, dando realismo as suas representações e ampliando
a consciência de nós mesmos e de nosso mundo.