Montaigne, leitor de sexto empírico: a crítica da filosofia moral
1. Nas páginas finais da "Apologia de Raimond Sebond" (Ensaios II, 12),
Montaigne avança de modo a radicalizar sua argumentação cética, que se torna
também mais claramente próxima dos Modos argumentativos pirrônicos apresentados
por Sexto Empírico nas Hipotiposes Pirronianas(doravante HP) também usados
noutros ensaios. Como se sabe, Montaigne teve contato com a tradução latina da
obra, feita em seu tempo por Henri Estienne1, e seus efeitos nos Ensaios têm
sido bastante discutidos.2 Pouco considerada tem sido, porém, a dimensão moral
de seu ceticismo, mesmo sendo esse o foco de interesse filosófico principal de
Montaigne.3 Também aqui, porém, ele seguramente se apropria do pirronismo de
Sexto, servindo-se igualmente de outras fontes céticas, sobretudo da filosofia
acadêmica tal como exposta por Cícero, bem como de Plutarco e Diógenes Laércio.
Dentre os que aí se debruçaram, Schneewind entende, todavia, que o ceticismo
moral de Montaigne se situaria na origem de uma das correntes fundamentais do
pensamento moral moderno e, sem oferecer maiores detalhes a respeito, nele
inclui suas críticas à admissão de "lei naturais" na moral.4 Pretendo, neste
artigo, contribuir para esse exame, comparando a discussão da "Apologia" em que
essas críticas explicitamente se apresentam (ao longo de uma crítica mais ampla
sobre a "vaidade da razão" em matéria moral)5, com as das discussões de Sexto
que, como veremos, Montaigne tem em vista. Penso que podemos observar, para
além de consideráveis similaridades, que ele reconstrói seu ceticismo de
maneira original, especialmente graças às suas considerações sobre a natureza,
a razão humana e o poder do costume. Sustentarei que desempenha um papel chave
nessa reconstrução do ceticismo a oposição entre "critério de verdade" e
"critério de ação", reinterpretada de maneiras diferentes conforme os
contextos. Trata-se de exibir de modos diversos o descompasso entre, de uma
parte, as exigências impostas pela dimensão prática e a experiência e, de
outra, o modo como as pretendemos conhecer.
2. Sexto formula sua crítica pirrônica sobre esse tema em dois lugares: no
final do livro III das Hipotiposes Pirronianas (capítulos 21 a 31) e no Contra
os Éticos (doravante AM XI). No âmbito da moral, sua crítica geral às
filosofias ditas "dogmáticas" (isto é, que admitem conhecimento racional de
verdades) volta-se contra a admissão de que disporíamos acerca do Bem, do Mal
ou do Indiferente. O principal argumento de que Sexto se vale concerne à
impossibilidade de decidir acerca do conflito (diaphonía) entre as diversas
posições disponíveis a esse respeito, que se observa tanto entre as pessoas
comuns quanto entre os filósofos. Como diz Sexto:
...Que o bem seja proveitoso, digno de ser escolhido [...] e promotor
de felicidade, sobre isso, sem dúvida, [os homens] estão de acordo.
Mas quando lhes perguntamos a que pertencem esses atributos, eles
recaem numa guerra incrível, uns dizendo que é a virtude, outros que
é o prazer, outros a ausência de dor, outros alguma coisa outra. E
seguramente, se o que é o bem em si fosse mostrado pelas definições
citadas acima, eles não seriam em conflito como se ignorassem sua
natureza[6].
Sexto emprega aqui o arsenal cético tradicional, particularmente o que ele
enumera como o Décimo Modo de Enesidemo, pelo qual se opõem, de vários modos,
diferentes estilos de vida, costumes, leis, crenças nos mitos e concepções
dogmáticas, assim obtendo a suspensão do juízo.7 Uma ação que parece aprovável
para determinado povo (o canibalismo, por exemplo) é reprovada por outro; não
havendo um critério de decisão isento, não há, diz ele, como julgar acerca da
"natureza dos objetos externos" ' expressão usual de Sexto que aqui parece
designar os valores (bom, mau ou indiferente) que cada uma dessas formas de
proceder possuiria "por natureza", isto é, intrinsecamente. Em vez disso,
apenas podemos relatar o modo como elas nos "aparecem" e, como Sexto explica, a
isso aderir no âmbito da vida prática.8
Na primeira parte das Hipotiposes, Sexto explica que os pirrônicos conciliam
suspensão de juízo e vida prática, distinguindo dois tipos de critério. Embora
o cético não admita nenhum dos critérios de conhecimento aceitos pelos
dogmáticos (um critério pelo qual se poderia regular as crenças na realidade ou
na irrealidade das coisas), ele adota um critério prático (pelo qual adota
algumas ações e se abstém de outras). Tal critério é o phainómenon
(literalmente "aquilo que aparece")9 e, segundo Sexto, permite ao cético viver
conforme diferentes aspectos das "observâncias cotidianas": ele se guia pela
natureza (sendo assim capaz de pensamento e sensações), pelo que impõem as
afecções inevitáveis (pelas quais se sente, por exemplo, fome e sede), pela
instrução das artes que pratica e pelos costumes e leis vigentes (aceitando,
"segundo a perspectiva cotidiana", que a piedade é um bem e a impiedade é um
mal).10
Interpretar como exatamente tal cético adotaria esse critério tem sido objeto
de controvérsias nas quais não adentrarei aqui. De modo geral, elas dizem
respeito a saber se a adoção prática das leis e costumes se daria
desacompanhada de crença.Há razões para supor que tal adesão seria diversa da
que é partilhada por dogmáticos e pelas pessoas comuns: Sexto diz, por exemplo,
que os céticos, ao suspenderem o juízo sobre a existência do bom ou do mau em
si mesmos, sofrem as perturbações inevitáveis com menos desconforto do que as
pessoas comuns.11 Por outro lado, como vimos, a suspensão sobre se algo é
intrinsecamente bom, mau ou indiferente não parece excluir a admissão de que
algo nos "aparece" como tal e é difícil admitir que isso não se deva entender
como consistindo em alguma espécie de crença. Como veremos, o pirrônico impõe
exigências particulares para caracterizá-la um bem por natureza. Assim, se a
suspensão se limita ao bem considerado nesse sentido, ela pode não ser
incompatível com aspectos de como aceitamos usualmente que algo seja bom ou
mau. O próprio Sexto, nas Hipotiposes, refere-se ao pirronismo, sem mais, como
algo bom e à filosofia dogmática como algo mau, em vista dos seus efeitos, sem
que isso lhe pareça criar nenhum conflito com a suspensão que ele propõe.12
Como se organiza a crítica cética da moral em HP III, da qual exclusivamente
parecem derivar os argumentos de Sexto usados por Montaigne acerca desse tema?
O alvo inicial de Sexto são as definições filosóficas do Bem.13 Já aqui o
argumento do conflito entre as filosofias entra em ação,14 mas o argumento
principal destina-se a sustentar que as definições apresentadas pelos filósofos
não são propriamente definições, isto é, não indicam aquilo que "pertence a
algo e somente a isso", mas apenas descrevem propriedades acidentais. O
argumento de Sexto parece assim se aproximar, em alguma medida, das discussões
socráticas sobre o tema (e essa hipótese não será irrelevante para
compreendermos a reflexão de Montaigne, como veremos). Em tal momento, Sexto
discute principalmente a moral estoica, segundo a qual o Bem é "o que é
benéfico [opséleian] ou o que é comum àquilo que é benéfico", isto é, "a
virtude e a ação virtuosa" e, por extensão, "a pessoa virtuosa e o amigo".15
Mas seu procedimento definitório revela-se ocioso: ou bem tais predicados
seriam comuns a outras coisas, e nesse caso não servem para defini-lo, ou
seriam exclusivos do bem, e nesse caso não são capazes de torná-lo conhecido a
quem não souber de antemão o que ele seja.16
É apenas num segundo momento que Sexto examina se, a despeito disso, "algo
existente" poderia corresponder a um bem, mal ou indiferente "por natureza",17
tal como ele assim o caracteriza:
O fogo que esquenta por natureza aparece a todos como escaldante e a
neve que esfria por natureza aparece como resfriante a todos. Tudo o
que age por natureza age da mesma maneira sobre todos os que estão,
como eles dizem, num estado natural. Mas nenhum dos que se chamam
bens age sobre todos como um bem, como iremos indicar...18.
Aqui ele retoma o argumento da diaphoníaque se observa entre os filósofos e as
pessoas comuns,19 para em seguida desafiar os dogmáticos com outros dilemas.20
Além disso, invoca inconsistências entre as concepções de bem dos filósofos e
outros pontos de suas próprias doutrinas: os estoicos, por exemplo, consideram
a virtude uma "arte de viver" praticada de acordo com a razão, mas definem a
virtude como "a parte diretora da alma disposta de certa maneira" e a "arte"
como um "sistema de apreensões que são exercidas conjuntamente e que concernem
à parte diretora da alma". Igualmente, advogam uma teoria da alma segundo a
qual esta é um sopro, isto é, um fluido posto integralmente em movimento a cada
nova impressão, que sempre desfaz a impressão precedente.21 Como conciliar esta
teoria da alma, pela qual só uma impressão se faz presente nela a cada vez, com
a tese de que a virtude consiste num sistema de impressões nela simultaneamente
presentes?
Adiante, Sexto considera candidatos avulsos ao título de bens naturais, como a
coragem, o prazer, o vergonhoso ou proibido, as leis, os costumes, a reverência
aos deuses, a piedade com os mortos ou a vida.22 Posteriormente à parte
crítica, ele explica como os céticos vivem sem opinar (adoxastós) e, como
vimos, moderando suas afecções inevitáveis (pathé).23 E, finalmente, retoma
suas críticas contra a existência de uma suposta "arte de viver" pela qual os
filósofos se distinguiriam dos homens comuns e da possibilidade de ela ser
ensinada.24
3. Passemos a Montaigne. Diversamente de Sexto, ele não problematiza o modo
como as filosofias deixam de oferecer definições e, ao menos, quando critica
diretamente as filosofias morais, não se concentra em nenhuma delas em
particular. A estratégia argumentativa de Montaigne se apoia, porém, em uma
versão do argumento da diaphonía. Assinalando que o desacordo sobre "[...] [B]
aquilo de que temos necessidade para nos contentar" não se observa somente
entre os homens comuns, mas também entre os filósofos, ele comenta: "[B] Não há
combate tão violento e áspero entre os filósofos quanto aquele que se dá sobre
a questão do soberano bem do homem, a partir do qual, segundo Varrão, nasceram
288 seitas..." (II, 12, 577). Contudo, a fonte precisa desta passagem são os
Acadêmicos de Cícero e o argumento da diaphonía é recorrente no Renascimento. E
tampouco se encontra em Montaigne alusão à argumentação pela qual Sexto expõe
por que não dispomos de um critério racional que resolva essa divergência
(muito embora o próprio Sexto também apresente por vezes a simples
controvérsia, sem mais explicações, como uma ocasião de suspensão do juízo).25
Porém, há já aqui um elemento que me parece atestar a presença de Sexto nesta
discussão, a saber, o modo como, ao listar concepções diversas dos filósofos a
esse respeito, ele inclui a imperturbabilidade (ataraxía) pirrônica (muito
embora hesite em situá-la na mesma controvérsia, posto que ela não seria
avançada de forma "afirmativa", e sim como resultado de uma afecção similar
àquela que leva o pirrônico a evitar os precipícios e se cobrir do sereno).26
Dito isso, os três demais momentos da crítica de Sexto têm uma repercussão
considerável no seu texto. Primeiramente, Montaigne recusa a existência de
"leis naturais", que seriam "impressas no gênero humano pela condição de sua
própria essência". (II, 12, 579A) Sua natureza controvertida, diz ele, mostra-
se de saída pelo fato de que os autores não conseguem se pôr de acordo acerca
de seu número.27 E enquanto Sexto alude ao calor do fogo para exemplificar a
ação uniforme da natureza sobre todos, Montaigne escreve:
[A] ...O que a natureza nos tivesse verdadeiramente ordenado nós
seguiríamos sem dúvida de um assentimento comum. E não apenas toda
nação, mas todo homem particular, ressentiria a força e a violência
que lhe faria aquele que o quisesse voltar contra essa lei. Que eles
me mostrem, para vermos, uma só desse tipo... (II, 12, 580)28.
Trata-se, portanto, de impor exigências idênticas para o reconhecimento dessas
leis.
Em segundo lugar, Montaigne exemplifica a diversidade extrema das leis e dos
costumes, retomando diversos exemplos que Sexto oferece para examinar aqueles a
que me referi como "candidatos avulsos" a representarem um bem natural, sejam:
o juízo de Licurgo sobre a utilidade pública do latrocínio; os juízos
filosóficos diversos de Platão e Aristipo sobre as vestes Persas; o uso de
brincos ou a admissão pública ou privada de práticas sexuais em povos diversos.
29 Montaigne se vale aqui também de Plutarco, Guy de Bruès, Heródoto ou
Diógenes Laércio, mas Sexto não apenas é certamente uma das fontes usadas ' ele
lhe fornece, como vemos, uma matriz argumentativa e conceitual para seu próprio
ceticismo.30
4. Deixarei para considerar um terceiro aspecto dessa proximidade adiante.31
Examinemos antes o sentido mais preciso da conclusão cética de Montaigne,
retomando um problema observado por Richard Bett32 acerca do pirronismo de
Sexto. Como nota o comentador, a conclusão moral cética oferecida por Sexto não
parece imediatamente compatível com a suspensão do juízo pirrônica que ele
formula no início das Hipotiposes. Sexto distingue pirrônicos de acadêmicos
dizendo que, enquanto estes afirmam que nada se pode conhecer, os pirrônicos
permanecem investigando em busca da verdade (e da renovação de sua suspensão de
juízo33). Não deveríamos igualmente esperar que, em vez de concluir que "não há
um Bem por natureza", ele concluísse que "não sabe se há ou não um Bem por
natureza"? Segundo Bett, Sexto empregaria dois modelos diferentes de ceticismo:
enquanto no Contra os Éticos sua crítica seria consistentemente articulada à
negação da existência de um bem natural, nas Hipotiposes ele teria procurado
integrar a mesma conclusão ao modelo de pirronismo proposto nessa obra, de modo
que seria finalmente inconsistente, na medida em que pretende extrair da mesma
argumentação uma conclusão relativista (como a de AM XI) e uma conclusão
cética.34
Não há lugar aqui para uma discussão adequada dessa interpretação.35 Limito-me
aqui a notar que, ao menos em HP III, há motivos para suspeitar que Sexto não
advoga ele mesmo a inexistência de bens naturais. Como vimos, ele exemplifica a
noção de "bem por natureza", referindo-se ao calor do fogo, consensualmente
admitido pelos homens. Trata-se, curiosamente, do mesmo exemplo usado no
primeiro livro das Hipotiposes para se referir ao tipo de crenças aceitas pelos
céticos. O cético, explica ele, apenas suspende suas crenças no que tange aos
"objetos obscuros da investigação filosófica", mas dá aquiescência ao que lhe
aparece: "o cético não dirá, por exemplo, quando com frio ou calor, 'eu não
estou com frio/ com calor'"36. O que é digno de nota é que aqui essa
experiência básica, compartilhada por todos, não oferece conhecimento sobre a
natureza das coisas; muito ao contrário, trata-se de caracterizar, por oposição
a isso, a mera adesão ao phainómenon.
Essa aparente incongruência poderia estar relacionada aos diferentes propósitos
argumentativos. Sexto diz, em HP I, 20, que o pirrônico às vezes argumenta
contra o phainómenon, não com o propósito de aboli-lo, mas de exibir a natureza
ardilosa da razão. Mas esta passagem não explica bem o que ocorre aqui: Sexto
não estaria argumentando contra o phainómenon, mas utilizando-o (se aceitamos
HP I, 13) para referir o conhecimento de uma coisa em si mesma (em HP III, 179)
por parte do próprio cético. Não deixa de ser estranho, ademais, que neste
último texto ele esteja aparentemente aceitando que algo pareceria corresponder
a um conhecimento por natureza.
Isso nos conduz a uma outra hipótese, que emerge de um detalhe da formulação da
crítica das leis naturais morais: "Tudo o que age por natureza ' diz Sexto '
age da mesma maneira sobre todos os que estão, como eles dizem, num estado
natural" (ibid., grifo nosso). A julgar por essa afirmação, ele não está
assumindo pessoalmente tal caracterização de um estado natural, mas reportando
uma condição aceita por outros. Mas quem seriam eles, aqui? Como diz Bett, a
admissão de que um bem natural seja admitido por todos é relativamente comum na
ética grega e talvez seja mesmo partilhado pelos homens comuns. Não seria,
todavia, improvável que ele estivesse novamente aludindo aos estoicos, para
quem o "estado natural", ao menos em sua epistemologia, é tido como uma pré-
condição da percepção adequada das representações apreensivas (razão pela qual
os argumentos céticos sobre a loucura e o sonho, por exemplo, são por eles
rejeitados como impertinentes).37 Se assim for, a exigência de consenso não
seria admitida pelo próprio Sexto como capaz de produzir, por si mesma,
conhecimento do que seja um bem natural no âmbito da moral ' o que estaria de
acordo, ademais, com sua crítica ao consenso como critério de conhecimento nas
Hipotiposes.38 Tratar-se-ia antes de uma estratégia dialética, similar às que
observamos, pela qual ele invocaria um pressuposto dogmático (eventualmente
partilhado por homens comuns) para contrapô-lo ao que se pretende admitir como
instância de um Bem natural. Ademais, do fato de que Sexto a apresente como uma
condição necessária não se segue que ele próprio a tomasse como uma condição
suficiente. Como vimos, essa exigência não é cumprida, mas ainda que fosse,
embora revelasse a inadequação do argumento da diaphonía nesse caso, não
obstaria a força das outras argumentações contra a pretensão de conhecimento
nessa área.
5. No caso de Montaigne, de todo modo, a mesma conclusão parece dever ser
entendida como transferindo o ônus da prova àquele que pretende afirmar a
existência de leis naturais na moral: "Que eles me mostrem, para vermos, uma só
desse tipo...". Todavia, ele parece admitir a possibilidade da existência de
leis naturais:
[B] É crível que haja leis naturais, como se vê nas demais criaturas,
mas em nós elas se perderam, uma vez que essa bela razão humana se
imiscui em toda a parte a comandar e controlar, embaralhando e
confundindo a face das coisas conforme sua vaidade e inconstância.
[C] Nihil itaque amplius nostrum est: quod nostrum dico, artis est.
[Nada resta que seja plenamente nosso: aquilo que chamo de nosso é
[produto] da arte...] [...] As coisas (les subjects) têm diversos
brilhos e diversas considerações. Uma nação observa uma coisa
(subject) por uma face, e nela se detém, outra, por uma outra... (II,
12, 580-581)39.
Se em nós "elas se perderam" pelo uso da razão, isso poderia talvez se ajustar
a uma perspectiva teológica, mais exatamente à "doutrina da queda", pela qual o
pecado original nos teria exilado de nossa natureza original. Isso nos
afastaria consideravelmente do esquema conceitual usado por Sexto.
Se levamos em conta, porém, o conjunto da "Apologia", vemos que a mesma
hipótese aqui admitida é recusada por Montaigne ao comparar homens e animais.
Comentando a ideia de que a natureza conduziria as outras criaturas por uma
"inclinação natural e servil", diz ele, "[...] sem pensar, nós lhes conferimos
uma enorme vantagem sobre nós, ao fazer que a natureza, por uma suavidade
maternal, os acompanhe e guie, como pela mão, a todas as comodidades da
vida..." (Ensaios II, 12, 457). Mas esta concepção de uma possível
inferioridade natural do homem (problema que Kant posteriormente iria
rediscutir40) é contraposta por Montaigne à crença em uma superioridade
essencial do homem (seu alvo principal nessa discussão), com o propósito de
recusar ambas as teses: "[A] "Disse tudo isso para manter a semelhança que há
[entre a ação dos animais e] as coisas humanas. Não estamos nem acima nem
abaixo do resto: tudo o que está sob o Céu, diz o sábio, segue uma lei e
fortuna semelhante... Há alguma diferença, há ordens e graus, mas sob a face da
mesma natureza." (II, 12, 459) E os inúmeros exemplos de comportamentos
animais, em seguida expostos para exame segundo o princípio de atribuir
faculdades semelhantes a ações semelhantes, destinam-se a manter a paradoxal
conclusão de que é mais razoável supor que eles agem por faculdades similares
às nossas do que por um instinto cego ' mesmo no que tange à posse da razão e
das mais diversas virtudes morais. (v. II, 12, 460 ss.)41
Seja qual for o sentido exato em que se deva compreender essa argumentação, o
ponto aqui relevante é que se trata de sustentar que o parentesco entre homens
e animais é maior do que tendemos a admitir em virtude do modo injustificado
com que valorizamos nossa própria racionalidade. Se em nós as leis naturais se
perderam pelo uso da razão, isso pode ser entendido, ao menos, de dois modos
diferentes. Ou bem ele está referindo-se a um uso específico (dogmático) da
razão tal que, suprimido, nos permitiria novamente reconhecer essas leis
naturais, ou bem está indicando que esse é um fato diretamente decorrente da
nossa racionalidade (em um sentido análogo ao que o problema se põe, por
exemplo, para Kant). Veremos, adiante, que a ideia de acesso às leis da
natureza para além da intervenção da razão não é desprovida de sentido para
Montaigne; mas, de todo modo, ela não pode ser confundida com a ideia de um
acesso cognitivo a tais leis. Como pode essa alternativa se materializar se não
através da exibição dessas leis em um sentido que supere os problemas céticos
aqui encetados?
Ademais, Montaigne se refere à nossa condição natural assumindo que a diferença
entre homens e animais, quanto à racionalidade e mesmo quanto à experiência
moral, seria apenas de grau. Neste caso, seria mais difícil entender um
possível acesso a leis naturais como uma espécie de retorno a uma animalidade
em nós perdida, sem que isso significasse uma espécie de supressão da
racionalidade humana (o que certamente não vem ao caso se não como ironia). De
fato, a possibilidade de acesso à verdade aparece, em outros casos, associada a
um possível abraço sobrenatural da fé que, ao invés disso, nos alçaria
milagrosamente acima da condição natural, um abraço que dependeria
exclusivamente de uma vontade divina imperscrutável por meios humanos. 42 Mas,
analogamente ao que ocorre aqui, a possibilidade da existência de leis naturais
não tem nenhum efeito restritivo à conclusão de que de fato não conhecemos leis
naturais ' nenhum efeito a não ser quanto ao estatuto dessa conclusão. Pois, se
é ao menos possível que tais leis existam (ainda que o sentido dessa
possibilidade seja indeterminado e nossa condição racional nos impeça de saber
claramente em que essa possibilidade consistiria), isso significa que a
conclusão de que não existem leis naturais não pode corresponder a um
conhecimento sobre as coisas. Na prática, a inexistência de leis naturais
impõe-se como a conclusão decorrente do exame de nossa condição humana, mas não
podemos excluir a possibilidade de que ela seja falsa. Tal hipótese teria,
noutros termos, uma espécie de efeito "pirronizante" sobre uma conclusão que
aparece como mais verossímil, suspendendo qualquer valor objetivo com que ela
pudesse ser interpretada (tal como ocorre com a a admissão da verdade revelada
sobre a imortalidade da alma faz diante da conclusão mais verossímil acerca de
sua mortalidade).43 Segundo esta hipótese de leitura, o recurso ao esquema
teológico da doutrina da queda corresponderia sobretudo a um instrumento
destinado a ajustar com precisão o alcance de sua reflexão cética sobre as leis
naturais morais (implicitamente contornando o problema levantado por Bett
acerca de HP III).
6. Como vimos acima, o eventual consenso acerca de uma lei natural não
constituiria, segundo Sexto, mais do que uma condição necessária (cuja admissão
decorreria, se nossa hipótese de leitura estiver correta, dos pressupostos
aceitos por aqueles que pretendem advogar tal posição). Qual seria, no caso de
Montaigne, o valor de tal requisito? Poder-se-ia supor que a possibilidade de
acesso a leis naturais estivesse vedada de antemão pela admissão de que "em nós
elas se perderam"? Isso seria, a meu ver, uma interpretação inadequada dessa
constatação. Segundo Montaigne, como vimos, não temos acesso a elas porque
nossa razão em tudo se imiscui (o que se harmoniza com a admissão de que a
falta de consenso entre modos de agir igualmente defensáveis pela razão deve
conduzir à suspensão). Parece mais plausível admitir que é a falta de consenso
que oferece uma base argumentativa cética ao reconhecimento de nossa condição e
não o contrário. Ademais, ao formular seu argumento, Montaigne identifica no
consenso uma condição ao menos necessária para o reconhecimento de tais leis: "
[A] A universalidade da aprovação seria o único signo (enseigne) verossímil
pelo qual se poderia argumentar pela existência de alguma lei natural..." (II,
12, 580).
Mas tampouco ela seria, para Montaigne, uma condição suficiente, como vemos
pelo tratamento que ele dá ao tema no ensaio "Do costume e de não mudar
facilmente uma lei aceita":
[B]... Parece-me que não ocorra à concepção humana nenhuma fantasia
tão louca que não encontre exemplo em algum costume público e, por
conseguinte, que nossa razão (discours) não apoie e fundamente. Há
povos onde se viram as costas àqueles que se saúda e nunca se olha
para aquele que se quer honrar. Há outros onde, quando o Rei escarra,
a dama favorita da corte lhe estende a mão [etc.] (I, 23, 111).
Notemos como esta passagem situa a esfera da ação em primeiro plano
relativamente à da reflexão: a razão humana, no seu processo de produzir
"fundamentações" das ações costumeiras, não faz senão secundar costumes que já
são admitidos. Observada a diversidade dos costumes e as razões que os
fundamentam igualmente bem (ao menos, do ponto de vista dos que os aceitam), a
razão mostra-se como um "instrumento maleável" que, buscando erigir fundamentos
na moral, o faz de modo parcial e ilusório (detendo-se em apenas um aspecto
possível das ações).44 Nessa medida, os casos em que se apresenta uma eventual
aceitação consensual de um modo de agir apenas representariam uma nova
instância de uma apreensão limitada, seja da diversidade dos costumes, seja da
capacidade da razão em secundá-los. Ainda que algum desses casos de consenso,
caso se produzisse, pudesse em princípio corresponder a tal lei, o próprio
consenso não poderia estabelecer esse ponto.
Mais ainda, o modo como o costume naturalmente age favorece o equívoco diante
dos eventuais candidatos. Pois o principal efeito de seu poder, segundo
Montaigne,
[A] é o de tomar-nos e de nos ocupar de tal modo que dificilmente
temos meios de raciocinar sobre o seu comando. Na verdade, posto que
o bebemos com o leite do nascimento e o rosto do mundo se apresenta
neste estado desde a primeira vez que o vemos, parece que tenhamos
nascido sob a condição de seguir esse andamento. E as concepções
comuns que vemos ganhar crédito à nossa volta, infundidas em nossa
alma pela semente de nossos pais, nos parecem gerais e naturais. [C]
Por isso, o que nos parece fora dos gonzos do costume nos parece fora
dos gonzos da razão e Deus sabe o quão desarrazoadamente no mais das
vezes... (I, 23, 115-116, grifo nosso) 45.
Noutros termos, o próprio acostumar-se tem o efeito de ocultar a presença dos
efeitos do costume, neles projetando uma falsa aparência de naturalidade, ainda
que o contraste adequado com práticas opostas e com as razões que as
fundamentam ofereça uma oportunidade de desfazer tal ilusão:
[B] (...) cada nação tem diversos costumes e usanças que são, não
apenas desconhecidas, mas selvagens e miraculosas para uma outra
nação... Eu digo com frequência que é pura tolice o que nos faz
correr atrás de exemplos remotos e escolásticos... Na minha opinião,
das coisas mais ordinárias, comuns e conhecidas, se soubermos
encontrar o lume, podem se formar os maiores milagres da natureza e
os mais maravilhosos exemplos, notadamente nas ações humanas... (III,
13, 1081).
Exibir os "maiores milagres da natureza" nas ações humanas que nos apareçam
como "naturais" nada mais é do que o efeito suspensivo decorrente da
argumentação cética topicamente empregada. O ceticismo, devidamente praticado,
pode exibir nossas práticas cotidianas mais familiares, razoáveis e "naturais",
como tão estranhas como nos pareceriam ser, à primeira vista, as práticas mais
opostas a elas. Parece lícito admitir, em contrapartida, que sua impressão de
naturalidade resulta do poder dogmático com que o costume conduz nossa
racionalidade.
Libertando a razão desse efeito, a argumentação cética conduz nosso juízo à
percepção de que os costumes são apenas costumes e, segundo Montaigne, a um
"estado mais seguro": 46 afinal, abandonam-se assim crenças falsas e, seja ou
não possível ou desejável transformar o modo de agir, pode-se observar
diversamente sua particularidade. Algumas passagens sugerem, porém, que essa
depuração reflexiva não pode ser integralmente executada. Não dispomos de um
critério para saber se, para além de tal exercício, aquilo que nos aparece como
natural (individual ou coletivamente) oferece conhecimento da natureza em si
mesma (isto é, do que ela por si autoriza ou exclui quanto às ações humanas):
[A] Quantas coisas dizemos nós serem miraculosas e contra a natureza?
[C] Isso se faz para cada homem e para cada nação segundo a medida da
sua ignorância. [A] Quantas propriedades ocultas e quintessências
encontramos? Pois, ir segundo a natureza, para nós, é apenas ir
segundo nossa inteligência, o tanto que ela pode avançar e o tanto
que nós aí vemos: o que está além daí é monstruoso e desordenado.
Ora, nessa medida, aos mais sábios e capazes tudo será portanto
monstruoso: pois a eles a razão humana persuadiu que não tem pé, nem
fundamento nenhum, nem para assegurar [C] que a neve é branca... [A]
ou que nós vivemos... (II, 12, 526).
Assim, ainda que a suspensão cética permita suspender, ao menos parcialmente, a
distorção cognitiva causada pelo costume, os seus resultados permanecem sendo
relativos (à ignorância insanável de outras possibilidades naturais ainda
desconhecidas). Mais ainda, ao menos segundo uma passagem tardia, embora o
costume "force as regras da natureza", ele o faz exibindo uma dimensão
paradoxal da própria natureza: "[C]... Dizemos que é contra a natureza o que é
contra o costume; [mas] tudo é segundo a natureza, seja o que for. Que esta
razão universal e natural nos livre do erro e da surpresa que a novidade nos
traz..." (II, 30, 713).
7. Na discussão sobre as filosofias morais da "Apologia", Montaigne exemplifica
a diversidade dos preceitos e a liberdade com que os filósofos abandonam
comportamentos publicamente aceitos para exibir a fraqueza dos fundamentos
racionais daqueles que reputamos corretos. Mas, se é desejável que o julgamento
se liberte do costume e desse modo reconheça a maleabilidade própria da razão,
que resultados práticos devem daí decorrer? Segundo Montaigne, ver nessa
liberdade uma razão para abandonar os costumes em voga seria ainda carecer de
uma apreensão mais adequada dos seus efeitos. Em "Do costume", comentando como
o hábito de se vestir dos franceses parece carente de razão, ele escreve:
[A] Essas considerações não desviam, entretanto, um homem de
entendimento de seguir o estilo comum; antes, ao contrário, parece-me
que todas as formas afastadas e particulares provêm antes de loucura
ou afetação que de verdadeira razão; e que o sábio deve internamente
retirar sua alma da massa e mantê-la em liberdade e em poder de
julgar livremente as coisas; mas, quanto ao exterior, que ele deve
seguir inteiramente as feições e formas recebidas. A sociedade
pública não tem o que fazer com nossos pensamentos... Pois é a regra
das regras e lei geral das leis que cada um observe aquelas do lugar
onde está... (I, 23, 118).
Em vista da "sociedade pública", os costumes coletivamente aceitos devem ser
objeto de uma adesão meramente "exterior", isto é, compatível com a liberdade
de julgá-los fracamente apoiados na razão, correspondentes a uma imagem
ilusória da natureza. Assim, ainda que a aceitação coletiva de um costume não o
torne intrinsecamente superior, ela se torna um fator relevante para a sua
aceitação de um ponto de vista prático. Embora a passagem acima se refira a
costumes relativos a "coisas indiferentes", as mesmas considerações permitem
analisar ("eis agora sob um outro ângulo") os prejuízos decorrentes do abandono
das leis aceitas; mais exatamente, as perturbações ocasionadas pelas guerras
civis, resultantes da oposição militar dos Reformistas à autoridade da Igreja
tradicional, em nome das crenças que aqueles presumem mais sólidas.47
Igualmente, na "Apologia", Montaigne ataca a presunção dos que julgam que sua
própria razão pessoal pode ser critério de verdade, seja em matéria de
religião,48 seja no que tange às leis aceitas:
[A] As leis tomam sua autoridade da posse e do uso, é perigoso
remontar à sua origem: elas crescem e se dignificam no curso, como os
nossos rios: siga-os correnteza acima até a nascente, não é mais que
um pequeno córrego quase irreconhecível, que se fortifica e ganha
vulto envelhecendo... Não é de estranhar que aqueles que tomam como
padrão a imagem primeira da natureza, na maior parte de suas
opiniões, afastem-se da via comum... (II, 12, 583, grifo nosso).
Eis, portanto, um aspecto prático da crítica à pretensão de determinar leis
naturais. De qual perigo se trataria aqui, exatamente? Enquanto no ensaio "Do
costume" Montaigne observara, de modo mais geral, que a investigação cética dos
costumes não deve conduzir ao abandono das leis vigentes, na "Apologia" o "o
conselho mais verossímil que nossa razão oferece" a esse respeito aparece sob
outro ângulo:
[A] Se é de nós que tiramos o regulamento de nossos hábitos, a que
confusão nos lançamos... Não há nada sujeito a mais contínua agitação
que as leis... [seguir] este mar revolto das opiniões de um povo ou
de um Príncipe, que me pintaria a justiça com tanto de cores e a
reformarão em tantas faces quanto nele haverá mudanças de paixões?
Não posso ter o juízo tão flexível. Qual bondade é a que eu via ontem
aceita, e amanhã não mais, [C] e que o trajeto de um rio faz crime?
(II, 12, 578-579).
Não se trata agora, a despeito das aparências, de recusar o mesmo "critério
prático" ali aconselhado, que não aparece aqui desprovido de sua
verossimilhança; trata-se de salientar a impossibilidade prática de sua
aplicação, ao menos entendido em sentido estrito, e a necessidade de
compreendê-lo mais judiciosamente. Se o que se busca é um ponto de referência
coletivo para a vida social e as leis, pelas circunstâncias políticas, são
incessantemente revogadas e substituídas por outras radicalmente opostas, elas
simplesmente deixam de oferecer essa referência. É decisivo considerar aqui,
para bem compreender o alcance dessa reflexão, o modo relativo com que se pode
levar a cabo um distanciamento crítico dos costumes vigentes. No início da
"Apologia", Montaigne oferece um discreto, mas importante esclarecimento a esse
respeito, ao comentar o juízo de Pierre Buñel acerca da Reforma:
[A]… ele previu bem, pelo discurso da razão, que esse início de
doença declinaria facilmente em ateísmo: pois o vulgo, que não tem a
capacidade de julgar as coisas por si mesmas, deixando-se levar pelo
acaso e pelas aparências, depois que lhes foi confiado o poder de
desprezar e de decidir acerca de coisas que ele até então tivera em
extrema reverência, como aquelas que dizem respeito à sua salvação, e
que se puseram em dúvida e na balança alguns artigos de sua religião,
ele igualmente lança em dúvida em seguida todas as demais partes de
sua crença, que não tinham mais autoridade e fundamento para ele do
que as que foram abaladas, e sacode como se fora um jugo tirânico
todas as impressões recebidas pela autoridade das leis ou reverência
do antigo uso... empreendendo doravante nada aceitar a que ele não
tenha interposto seu decreto e prestado particular consentimento...
(II, 12, 439) 49.
Quando a perturbação das crenças dogmáticas que a população maciçamente aceita
contribui para a contínua degradação da ordem social (como constata Montaigne
segundo sua experiência de um longo período de guerra), revela-se adequado
defender os costumes vigentes (por sua relevância igualmente religiosa e
política) ainda que sem lhe dar adesão no nível das crenças pessoais.50 Ainda
que fosse desejável ou mesmo possível, em outros contextos, criticar mais
abertamente ou se opor a costumes aceitos (e contra alguns deles, aliás,
Montaigne não deixa de se posicionar), o que interessa, de um ponto de vista
prático, não é o juízo individual sobre a solidez das crenças que ele
publicamente consolida e sim a autoridade com que elas são publicamente
aceitas. Articula-se aqui à reflexão cética uma prudência política que envolve
a consideração do peso das opiniões conforme a sua aceitação pública e conforme
à maneira como a elas se adere. Seguir o phainómenon, ao menos neste contexto
específico, independe do conteúdo daquilo que é objeto de adesão ' que pode
mesmo, como vemos, corresponder a crenças aceitas dogmaticamente. Trata-se aqui
apenas de seguir distanciadamente (neste caso, independentemente do seu próprio
juízo sobre sua veracidade) as crenças coletivamente aceitas como critério para
agir.
8. Consideremos sucintamente, agora e no próximo item, dois outros aspectos de
como o ceticismo moral de Montaigne articula e radicaliza a distinção entre
critério de verdade e critério prático. Como vimos, o sentido básico da crítica
que ele retoma de Sexto consiste em indicar que uma mesma ação pode ser
avaliada como boa ou má, a partir de razões diversas igualmente incapazes de
demonstrá-la intrinsecamente adequada e verdadeira. Mais do que isso, porém,
Montaigne entende que nada pode ser experimentado sob um único aspecto, isto é,
como inteiramente bom ou mau. Assim inicia ele um curto ensaio intitulado "Nós
não fruímos nada de puro" em um texto possivelmente contemporâneo ou pouco
posterior à "Apologia":
[A] A fraqueza da nossa condição faz com que as coisas, em sua
simplicidade e pureza naturais, não possam vir a ser de nosso uso. Os
elementos que aproveitamos são alterados, e mesmo os metais, e o
ouro: é preciso piorá-lo por algum outro material para acomodá-lo a
nosso serviço... Dos prazeres e bens que possuímos, nenhum é isento
de alguma mistura de mal e desprazer... (II, 20, 673, grifo nosso).
Desde que "nos escutemos de perto", prossegue ele, os nossos desejos são
inconstantes e a melhor bondade possui sempre alguma "tintura viciosa", de onde
conclui, posteriormente: "[C] O homem é inteiramente e em toda parte remendos e
mescla (rapiessement et bigarrure)" (II, 20, 675).
Tais observações parecem distantes do pirronismo. Dentre as fontes dos exemplos
aqui usados, segundo Villey, estão Lucrécio, Tácito e Sêneca. Embora não seja
eventualmente uma fonte precisa aqui, Plutarco julga, no seu tratado "Sobre a
Tranquilidade da Alma", que o bem e o mal estão sempre unidos e as sementes de
todas as paixões se oferecem misturadas em nosso nascimento. Mas o sentido da
observação de Montaigne é diverso: não se trata de alertar para como a vida
deve harmonizar bens e males, posto que estes não podem ser suprimidos,51 mas
sim que os bens e males não são eles próprios por nós experimentados
inteiramente como tais. Além disso, Montaigne acrescenta, em um comentário
tardio, que tal situação nos afasta do que teria proposto Pirro: "[C] Nem uma
virtude tão simples, quanto aquela que Ariston, Pirro e ainda os Estoicos
tinham como fim nas suas vidas, não pode ser útil sem mistura, nem o prazer dos
Cirenaicos e de Aristipo". (II, 30, 673C)
Seria precipitado identificar este comentário sobre Pirro, proveniente de
Diógenes Laércio, com o pirronismo de Sexto tal como interpretado e posto em
prática por Montaigne. Não apenas ele tem clareza de que essas fontes
apresentam imagens bastante diferentes dessa filosofia (especialmente acerca do
critério de ação), mas ele próprio interpreta o critério de ação cético,
proposto por Sexto, como compatível com o pleno uso de todas as nossas
faculdades espirituais e corporais, de modo "correto e regrado".52 Em vez
disso, parece-me que ainda aqui a reflexão de Montaigne, mesmo não sendo
propriamente pirrônica, estende e complementa o mesmo ceticismo. Note-se que o
comentário sobre Pirro retoma uma ideia já formulada na edição de 1588, em que
ele observa que o "excesso de pureza e perspicácia dos espíritos" faz com que
"as opiniões mais elevadas e refinadas da filosofia" sejam impróprias para o
uso e conflitem com as exigências próprias da ação:
[B] Essa vivacidade aguda, essa volubilidade flexível e inquieta da
alma atrapalha nossas negociações. É preciso conduzir as empresas
humanas mais grosseiramente e superficialmente, deixando boa e grande
parte dela ao domínio do acaso. Não há necessidade de esclarecer os
afazeres tão profundamente, tão sutilmente. Perdemo-nos pela
consideração de tantos brilhos contrários e formas diversas: [C]
volutantibus res inter se pugnantes obtorpuerant animi[As almas se
imobilizaram pela oposição de motivos contrários, Tito-Lívio,
História de Roma, XXXII, xx]. (II, 20, 675).
Parece-me que esta passagem pode ser lida como um desdobramento posterior da
mesma oposição cética entre critério de verdade e critério prático. Se nossa
experiência moral, desde que cuidadosamente considerada, revela a inexistência
de bens e males inteiramente puros, eles se apresentam como uma espécie de
ficção. As concepções claras acerca do bem e do mal que intelectualmente
erigimos, sobre as quais as filosofias morais pretendem produzir seus sistemas
e deles extrair normas de ação, produzem resultados que, segundo as exigências
cotidianamente impostas, revelam-se caricaturais. E sob esse aspecto tais
reflexões podem guardar alguma relação com as críticas de Sexto à incapacidade
dos filósofos em obter uma definição adequada de bem e sobretudo, como veremos,
com sua crítica dos resultados que obtêm na esfera prática.
Mas, além disso, mesmo a reflexão racional sobre a complexidade das ações (seus
"brilhos contrários e formas diversas") revela-se inadequada do ponto de vista
das exigências impostas pela esfera prática. Se a reflexão cética pode mostrar
o descompasso entre os sistemas filosóficos e a experiência moral efetiva, ela
mesma se revela ainda como produto de nossas faculdades cognitivas que, ao
buscar mais agudamente a verdade, melhor revelam seu descompasso com essas
exigências. Como diz Montaigne noutra ocasião, nem sempre o que se revela mais
adequado do ponto de vista da utilidade revela-se mais adequado segundo nossa
busca da verdade.53
9. Retomemos agora um terceiro aspecto da discussão de Sexto sobre o dogmatismo
moral: a crítica à pretensão dogmática de apresentar uma "arte de viver" pela
qual os filósofos estariam acima dos homens comuns. O mesmo tema é abordado por
Montaigne, mas em outro momento da "Apologia", no qual discute as pretensões da
"filosofia" em prover a felicidade humana. Segundo sua avaliação:
[A] A filosofia (doctrine), parece-me, tem lugar entre as coisas
necessárias à vida, como a glória, a nobreza, a dignidade ou, pelo
menos, como a beleza, a riqueza e essas outras qualidades que aí são
verdadeiramente úteis, mas de longe, e um pouco mais por fantasia que
por natureza. As obrigações, as regras e as leis de vida na nossa
comunidade não nos são muito mais necessárias do que os são às
formigas e às garças nas delas. E todavia vemos que elas se conduzem
de modo muito ordenado sem erudição. Se o homem fosse sábio, daria a
cada coisa o preço verdadeiro conforme fosse ela mais útil e adequada
à sua vida... (II, 12, 487).
Devemos ler isso como um juízo sobre o poder da filosofia em geral, ou
Montaigne possui aqui um alvo mais específico? A pergunta tem razão de ser na
medida que sua argumentação se volta principalmente contra filosofias de tipo
dogmático na forma de um elogio irônico da simplicidade e mesmo da ignorância:
"[A]... De que utilidade podemos estimar que tenha sido, a Varrão e
Aristóteles, esse entendimento de tantas coisas? Isso lhes isentou dos
incômodos humanos ? [...] Eu vi, em meu tempo, cem artesãos, cem trabalhadores,
mais sábios e mais felizes do que os reitores das Universidades, e com os quais
eu preferiria parecer..." (ibid.). Logo adiante, os estoicos Sêneca e Posidônio
surgem como portadores de uma sabedoria apenas aparente, orgulhosamente
fingindo ignorar a dor que sofrem como todos os demais; a eles é contraposto o
cético acadêmico Arcesilau, que pretenderia moderar a dor, restringindo-a à
parte do corpo afetada. A discussão culmina, porém, mencionando o porco que,
segundo Diógenes Laércio, Pirro apontava como exemplo da atitude do sábio,
tranquilo e indiferente ao perigo a bordo de um barco na tormenta.54
Estes exemplos não provêm de Sexto, mas do De Finibus de Cícero, e o irônico
elogio da ignorância elaborado por Montaigne parece evocar o Elogio da Loucura,
de Erasmo.55 Sexto, de sua parte, critica a "arte de viver" estoica, tanto a
partir de seus pressupostos, quanto da inexistência de um produto específico
pelo qual ela se distinguisse do modo de agir dos homens comuns.56 Enumerando
os exemplos que recolhe dos livros de Zenão e Crisipo, em defesa da pedofilia,
do incesto e do canibalismo (exemplos que, como vimos, Montaigne retoma, com
vivo interesse), ele comenta:
A maior parte dos dizeres desses filósofos são desse tipo. Mas eles
não ousariam pô-los em prática, a menos que fossem concidadãos dos
Cíclopes ou dos Lestrigãos. Mas se eles não praticam esses preceitos
e seguem aqueles que são comuns às pessoas comuns, e nenhuma ação que
seja própria daqueles que supostamente possuem a arte de viver...57.
O próprio ceticismo tem, como sabemos, uma dimensão eudaimonista, cujo exame
não cabe aqui; mas é preciso assinalar ao menos que, segundo Sexto, o cético
não se pretende totalmente isento de perturbações (pois admite a experiência
das afecções que se impõem a ele). Como antecipamos, ele diz, porém, que o
cético as experimenta com moderação (metriopatía): "Nestes casos, as pessoas
comuns são afligidas por dois conjuntos de circunstâncias: pelas próprias
afecções, e não menos pela crença de que essas circunstâncias são más por
natureza. Os céticos, suprimindo a opinião adicional de que cada uma dessas
coisas é má na sua natureza, se saem melhor mesmo nesses casos..."58 Montaigne,
como acabamos de ver, identifica a moderação de afecções no caso do acadêmico
Arcesilau, mas oferece o seguinte retrato dos resultados práticos da ignorância
pirrônica: "[A] ...A filosofia, ao fim de seus preceitos, nos remete aos
exemplos de um atleta e um cocheiro, nos quais se vê ordinariamente menos de
sentimento da morte, da dor e de outros inconvenientes, e mais firmeza do que
jamais o saber (Science) forneceu àquele que não fosse com ela nascido ou
preparado pelo hábito..." (II, 12, 491A). Se, de acordo com Sexto, o pirrônico
"luta do lado [da vida comum], assentindo sem opinar (adoxastós) ao que lhe
parece persuasivo, posicionando-se contra as ficções privadas dos
dogmáticos",59 no caso de Montaigne é o homem comum que, em sua simplicidade,
parece retratado com as tintas da metriopathía pirrônica. Criticando as
diversas teorias médicas que são formuladas acerca de males cuja existência é
ela mesma duvidosa, ele escreve:
Quando os verdadeiros males falham, a science nos empresta os seus...
Compare a vida de um homem dominado por essas ideias àquela de um
trabalhador que se deixa ir pelo apetite natural, medindo as coisas
apenas pelo sentimento presente, sem science e sem prognóstico, que
só tem o mal na hora que ele o tem. Enquanto isso o outro tem
frequentemente a pedra na alma antes de a ter no rim... (II, 12,
491A).
Parece haver razões para duvidar que Montaigne pretendesse literalmente
identificar o homem comum e o cético em suspensão de juízo, em vez de meramente
zombar da oposição estoica entre a felicidade do sábio e a loucura ignorante do
resto da humanidade. Porém, a rusticidade com que o homem comum enfrenta as
adversidades da vida é retomada mais tardiamente, de modo aparentemente
autônomo, no terceiro livro dos Ensaios, no contexto de um naturalismo moral
desenvolvido, não mais a partir de textos pirrônicos (dos quais não há traços
concretos nesse período), mas em torno à figura de Sócrates. Agora, trata-se,
segundo Montaigne, de encontrar em si mesmo a simplicidade natural e dela
Sócrates seria, a seu ver, o melhor intérprete: "[B]... Ele fez grande favor à
natureza humana de mostrar o quanto pode ela por si mesma."60 Trata-se de um
filósofo que faz sua alma mover-se de um movimento natural e comum, por
induções e analogias extraídas das mais vulgares e conhecidas ações dos homens,
que todos entendem; cuja graça reside, segundo ele, na ingenuidade e na
simplicidade, as quais "[B] [...] escapam a uma vista grosseira como a nossa:
elas têm uma beleza delicada e oculta, é preciso ter a vista clara e limpa para
descobrir essa luz secreta..." (III, 12, 1037). Um filósofo elogiado pela
uniformidade com que suporta os infortúnios diversos da vida nas mais
diferentes circunstâncias.
Esta interpretação de Sócrates é não apenas pouco usual mas bastante
desconcertante, mesmo paradoxal à luz de sua identificação entre virtude e
conhecimento (tal como a encontramos, por exemplo, no Menon). Não pretendo aqui
propor uma solução para esse paradoxo nem uma interpretação desse naturalismo
moral, mas apenas indicar que a mesma oposição entre critério de verdade e
critério de ação parecem aqui ainda se deixar entrever. As mesmas coisas que se
furtam ao conhecimento a nós se oferecem plenamente ao uso e a recusa da
pretensão de conhecimento da natureza das coisas tal como são em si mesmas vem
agora associada à admissão da natureza de um guia que se oferece para além de
nossa capacidade de conhecê-la:
[B] Eu me estudo mais do que outro assunto. É minha física e minha
metafísica...
[C] Nessa universidade, deixo-me manejar pela lei geral do mundo. Eu
a saberei quando a sentir. Meu saber (science) não saberia mudar sua
rota, ela não se tornará diferente para mim. As inquisições e
contemplações filosóficas servem apenas de alimento à nossa
curiosidade. Com grande razão, os filósofos nos remetem às regras da
Natureza; mas elas não têm nada a fazer com tal sublime conhecimento;
eles a falsificam e nos apresentam sua face em cores exageradas e
demasiado sofisticada, donde nascem tantos retratos diversos de algo
tão uniforme. Como ela nos dá pés para andar, também tem prudência
para nos guiar na vida; uma prudência não tanto engenhosa, robusta e
pomposa, como na invenção deles, mas casualmente fácil e salutar, que
faz muito bem o que diz o outro, naquele que tem a felicidade de
saber se empregar ingenuamente e ordenadamente, isto é, naturalmente.
Dar-se o mais simplesmente à natureza é dar-se o mais sabiamente. Ó,
que travesseiro macio que é a ignorância e a indiferença para
descansar uma cabeça bem formada..." (III, 13, 1072-1073).
Texto recebido em 13 de junho de 2012 e aprovado em 30 de agosto de 2012
1 Ver nota de P. Villey em Ensaios, II, 436-437. As citações e referências aos
Ensaios são feitas segundo a edição Pierre Villey (Les Essais, Paris: Quadrige/
P.U.F., 3 volumes, 1999) e por mim traduzidas. As citações e referências às
Hipotiposes Pirronianas (HP) de Sexto são indicadas por HP e feitas segundo a
paginação da edição Mutschmann-Mau (1958), retomada à margem pelas principais
traduções.
2 Ver, dentre outros, Popkin, Richard. The History of Scepticism from
Savonarola to Bayle. New York, Oxford University Press, 2003;
Brush, Craig. Montaigne and Bayle, Variations on the Theme of Skepticism.
Martinus Nijhoff, The Hague; Schiffmann, 1996; Z. S.
"Montaigne and the rise of the skepticism in early modern Europe: a
reappraisal."Journal of the History of Ideas, 45, 1984, 499-516; Brahami,
Fréderic. Le scepticisme de Montaigne. Paris, PUF, 1997. Eva,
Luiz. A Figura do Filósofo, São Paulo: Loyola, 2007.
3 Dentre os poucos trabalhos sobre o tema, ver Laursen, J. C. The Politics of
Skepticism in the Ancients, Montaigne, Hume, and Kant. Leiden: E.J. Brill,
1992; Larmore, Charles. " Un scepticisme sans
tranquilité : Montaigne et ses modèles antiques ", in Carraud, V. et
Marion, J.-L. (dir.) Montaigne : scepticisme, métaphysique, théologie. Paris :
PUF, 2004; Schneewind, Jerome."Montaigne on moral
philosophy and the good life", in The Cambridge Companion to Montaigne.
New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 207-227
4 Ver Schneewind, Jerome. "Natural Law, Skepticism and Methods of
Ethics", Journal of the History of Ideas, vol. 52, No. 2, (Apr,-Jun,
1991), pp 289-308.
5 Cf. Ensaios II, 12, 576-587
6 HP III, 135. A mesma constatação serve de base, por exemplo, à investigação
moral de Aristóteles (que procurou oferecer, é claro, outro resultado). Cf.
Aristóteles, Ética a Nicômaco1059ª1 15-25
7 HP I, 145 ss.
8 HP I, 163
9 HP I, 19-20
10 HP I, 22-24
11 HP I, 30
12 HP III, 237
13 HP III, 169-178
14 HP III, 175
15 HP III, 169
16 HP III, 173-174: Para acolhê-la, "primeiro ele deve saber qual a
natureza do bem ele próprio, entender que ele beneficia e é escolhido por si
mesmo e produz felicidade".
17 Cf. HP III, 179-237
18 HP III, 179
19 HP III, 180-182
20 V. HP III, 183-187: O bom não pode ser nem o ato de escolher nem a coisa
escolhida, pois se o ato de escolher fosse um bem por si não procuraríamos
superá-lo pela posse do bem escolhido, e as "coisas dignas de escolha por
si mesmas" não poderiam existir de modo independente, externamente a nós,
nem no corpo e nem na alma (que são aqui considerados através das diversas
concepções que os filósofos ofereceriam acerca do que é o corpo ou a alma).
21 Cf. HP III, 169-170, 188
22 HP III, 198-233
23 HP III, 235-238
24 HP III, 238-279
25 "... Se, portanto, as coisas que nos afetam por natureza afetam todos
do mesmo modo, mas os assim chamados bens não nos afetam todos do mesmo modo,
então nada é bom por natureza. Não é possível ser convencido por todas as
opiniões apresentadas acima, por causa do conflito, nem por alguma delas. Pois
aquele que diz que devemos achar convincente esta e não aquela, tem contra si
opostos os argumentos daqueles que sustentam concepções diferentes e se torna
parte da disputa. Assim, ele precisará, como os demais, antes ser julgado do
que ser juiz dos outros. Uma vez, então, que não há critério ou prova, em razão
da disputa indecidível a respeito destes, ele terminará suspendendo o juízo e
assim não será capaz de afirmar acerca do que é por natureza bom..." HP
III, 192.
26 V. Ensaios II, 12, 578A. Sexto descreve a ataraxía (imperturbabilidade) como
o fim da filosofia pirrônica em HP I, 12, 18, 25-29. Embora não haja lugar aqui
para abordar esse tema (que todavia me parece também objeto de apropriação por
Montaigne, em mais de um sentido), discutirei adiante, ainda que brevemente, um
aspecto do eudaimonismo pirrônico.
27 II, 12, 580A
28 Ibid. Cf. HP III, 179, nota 19, acima.
29 HP I, 146.
30 Para uma comparação detalhada ver Ensaios II, 062. ?
31 Refiro-me à discussão sobre a incapacidade da filosofia em prover a
felicidade humana, cf. item 9.
32 Ver Bett, Richard, "Sextus against the Ethicists: Scepticisme,
Relativisme or Both?", Apeiron 27 (1994), esp. pp. 153-61, bem como a sua introdução a Sextus Empiricus Against the Ethics, New
York, Oxford University Press, 2000.
33 HP I, 1-4.
34 Bett (1994, p. 156) nota que o problema seria particularmente agudo em HP
III, 182, onde, depois de concluir que nada é por natureza bom, mau ou
indiferente, seguir-se-ia que, portanto, (kai gar) devemos suspender o juízo
sobre se algo é bom, mau ou indiferente por natureza.
35 Para uma interpretação diversa, ver Annas, Julia; "Doing without
objective values: Ancient and Modern Strategies" in Schoefield M., Striker
G. (eds.) The Norms of Nature. Cambridge: Cambridge University Press. 1986, pp.
3-29.
36 HP I, 13.
37 Ver HP II, 54, cf. HP I, 102-103. O tema é mais amplamente tratado em
Cícero, Academica, Lucullus 19-20, 51-54.
38 Ver HP II, 43-47.
39 A origem da citação latina, Segundo Villey, é o De Finibus de Cícero (V,
xxi).
40 Ver Kant, Immanuel, Fundamentação da Metafísica dos Costumes (trad. Guido de
Almeida) São Paulo: Discurso Editorial, Barcarolla, seção I, 107-109. O
problema de Kant é, precisamente, o de mostrar que a racionalidade humana, a
despeito dessa aparente desvantagem (graças à qual os animais são
instintivamente guiados aos fins naturais de sua ação), é coerente com a
finalidade geral da natureza.
41 Como já foi observado, tal argumentação de Montaigne, embora empregue
exemplos oriundos de várias fontes, se guia, ao menos em parte, por prescrições
provenientes daquele que, segundo Sexto, é o Primeiro Tropo de Enesidemo,
acerca das diferenças entre os animais. Cf HP I, 40-79
42 Sobre isso, ver Eva, Luiz. Montaigne contra a vaidade. São Paulo: Humanitas,
2005.
43 Ver II, 12, 552-556. Mais detalhes em Eva (2005), cap. 3.
44 Cf. II, 12, 531A, nota 39 acima. Na "Apologia", os exemplos de
Sexto levam Montaigne a descrevê-la como um "pote de duas alças" (II,
12, 581B); neste ensaio ela é uma "tinta infusa de modo igual em todas as
nossas opiniões e costumes, sejam quais forem: infinita em matéria e infinita
em diversidade..." (I, 23, 112C)
45 "[A] [O costume] estabelece em nós, pouco a pouco, de modo oculto, o pé
de sua autoridade: mas por esse suave e discreto começo, tendo-a plantado e
assentado com a ajuda do tempo, ele nos mostra logo um rosto furioso e
tirânico, contra o qual não temos mais a liberdade de sequer levantar os olhos.
Nós o vemos forçar, de todos os modos, as regras da natureza..." (I, 23,
109)
46 "[A] ...Quem desejar se desfazer desse violento preconceito imposto
pelo costume, encontrará diversas coisas aceitas com uma resolução indubitável
cujo único apoio está na barba branca e nas rugas do uso que as acompanha ;
mas, arrancada essa máscara, as coisas trazidas à verdade e à razão, ele
sentirá o seu juízo como que subvertido e todavia reposto num estado bem mais
seguro..." (I, 23, 117)
47 "[A] Assim me parece, para dizer francamente, que há grande amor de si
e presunção de ter pelas próprias opiniões um tal apreço que, para estabelecê-
las, seja preciso derramar a paz pública e introduzir tantos males inevitáveis
e uma tão horrível corrupção dos costumes como a que a guerra e as mutações de
Estado trazem, e fazê-lo em seu próprio país…" (I, 23, 119 ss)
48 Ver II, 12, 448 ss.
49 Para uma análise mais detida destes pontos, ver Eva (2007), caps. 2 e 3
50 Isso não precisa ser entendido como evidência de irreligiosidade ou
insinceridade por parte de Montaigne; esta interpretação implicaria apenas em
admitir que a forma pela qual Montaigne eventualmente aceitaria o catolicismo
em nível extra-político é necessariamente diversa daquela com que o vulgo o
aceita (o que não deve, afinal, causar nenhuma surpresa se levamos em conta os
juízos de natureza teológica avançados ao longo da "Apologia").
51 Plutarque, "De la tranquilité de l'ame & repos de l'esprit",
Les Oeuvres Morales et Meslées de Plutarque, trad. Jacques Amyot, Michel
Vascosan, Paris, 1572, p. 74 A-D (fo).
52 Ver II, 12, 505A. O mesmo vale para o comentário sobre Pirro feito em II,
29, 705-706A.
53 Ver também II, 12, 511-512; II, 23, 682A; III, 10, 1006BC.
54 Ver II, 12, 489-490AC.
55 Para uma análise mais detalhada, ver Eva, Luiz (2007), cap. 4.
56 HP III, 243-244.
57 HP III, 249.
58 HP I, 29-30, grifo nosso; ver tb. HP I, 27; III, 235-237.
59 Ver HP II, 102.
60 V. III, 12, 1038B e, de modo geral, 1037-1040BC.