Hermenêutica e[m] resposta ao elogio da verdadeira filosofia da Carta Sétima de
Platão
[...] de modo que a confrontação do pensamento moderno com o pensamento grego é
para todos nós uma espécie de encontro conosco mesmos.1
[...] daí, ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com
proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas da
justiça política ou individual.2
O projeto filosófico de Platão, aliado à sua leitura da realidade de então,
levou-o a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com proclamar que é por meio
dela que se pode reconhecer as diferentes formas da justiça política ou
individual para quem não cessarão os males para o gênero humano antes de
alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem
a seriamente filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades [326
a] [grifos nossos].
Sabemos que em qualquer projeto de transformação da realidade [pessoal,
política, ambiental, etc.] com vistas ao que é melhor implica, inicialmente,
numa leitura o mais universal e completa possível sobre ela. Dito de outro
modo, uma leitura mal feita do real implica numa palavra mal-dita sobre ele;
uma leitura distorcida desemboca numa ação desastrosa, de modo que uma
fenomenologia parcial provoca uma hermenêutica da mesma proporção. No aforismo
de Heráclito, encontramos respaldada essa hipótese: "não sabendo auscultar, não
sabem falar",3 ou seja, apenas quando auscultamos o real é possível, então,
emitir uma palavra o mais possível apropriada sobre e para ele.
Com o pressuposto acima justificamos o filosofar enquanto um exercício
dialético infindável entre fenomenologia e hermenêutica à luz da Carta Sétima
de Platão,4 concedendo certa ênfase ao primeiro polo; nessa reflexão nos
ocupamos em desvelar as marcas [os traços] daqueles que não filosofam realmente
e apenas aparentam ser filósofos, corporificadas na postura de Dionísio [I e
II]. Aqui, à luz de um olhar hermenêutico, nos propusemos ler a carta novamente
para refletir, tematizar e justificar nossos elogios ao elogio da verdadeira
filosofia nela abordados. Dito de outro modo, desenvolveremos que o filosofar
se constitui também pela dimensão propositiva, projetiva e, por que não dizer,
ideal-teórica. Nesse caso, trata-se de desvelar aquilo que ela é ou deve ser, e
que encontramos corporificado nas declarações e na postura de Platão relativas
à 'verdadeira filosofia' e aos 'verdadeiros filósofos'. Enquanto lá concedemos
primazia ao olhar de Dionísio em relação à filosofia, aqui olharemos e
explicitaremos o olhar hermenêutico de Platão acerca do projeto filosófico
ideal.
Eis, pois, porque nos debruçaremos sobre os traços e objetivos daqueles que
possuem o pendor filosófico proposto por Platão, dos que realmente filosofam,
isto é, dos seus elogios à verdadeira filosofia, aos verdadeiros filósofos.
Nosso foco, aqui, não é mostrar quem não é filósofo - como fizemos no texto
citado - mas explicitar e aprofundar traços daqueles que se atém ao "saber
desinteressado" conforme linguagem de Aristóteles: "de modo que, se os homens
filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o
conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática".5
Tanto o precedente quanto o presente texto possuem pretensões similares, isto
é, justificar o modo de filosofar de Platão em nossos dias. Nossos textos
configuram uma espécie de resposta à carta em questão, dando mostras bastante
claras da nossa posição sobre o filosofar atual. Isso significa que, embora a
presente reflexão possua certa autonomia, ela se compreende mais plenamente no
horizonte de nossas investigações sobre a filosofia de Platão segundo a ótica
da hermenêutica filosófica de Gadamer.
Para levarmos a bom termo nosso propósito nossa reflexão se desenvolverá em
torno de dois momentos interconectados entre si: (1) partiremos da exposição de
alguns pressupostos hermenêuticos para leitura filosófica do texto platônico
(2) a fim de explicitar nossos elogios à verdadeira filosofia.
1. Contexto hermenêutico para ler, tirar proveitos e responder à Carta Sétima
Quando alguém escreve uma carta a outrem, ele o faz com vistas a que a leia de
modo a dela tirar proveitos propostos ou até pedidos! Ora, uma carta
filosófica, como é o caso da Carta Sétima6 de Platão, pede nossa resposta na
medida em que, tanto sua escritura quanto sua leitura possuem origem e
endereçamento universais. Lemos na carta que ela foi dirigida aos amigos e
parentes de Dião e nós, como amigos do saber, somos, portanto, também seus
destinatários, de modo que ela se torna passível de ser respondida por nós
ainda hoje. Dessa maneira, tanto o escritor quanto o leitor encontram-se
eivados de uma proposta que extrapola os âmbitos da particularidade uma vez que
nela todos se encontram espelhados e podem nela [se] refletir. Diferente de uma
epístola filosófica, as demais se assentam - de modo geral - sobre proposições
limitadas em termos temporais e espaciais como é caso de uma carta escrita para
pedir dinheiro ou comunicar o falecimento de alguém! Dizemos que a primeira é
filosófica [leia-se, universal] à medida que não apenas é endereçável a todos,
mas também a todos possibilita tirar proveitos e instaurar sentidos de sua
leitura na medida em que nos proporciona refletir sobre nossas vidas do ponto
de vista pessoal, ético, político e metafísico.
Considerando o pressuposto acima, declaramos que não nos dedicaremos à polêmica
discussão sobre a autenticidade da Carta Sétima. Nesse ponto estamos de acordo
com Irwin para quem "não podemos esperar chegar a conclusões firmes sobre quem
escreveu a Carta", mas
plausivelmente poderemos afirmar alguma coisa sobre o autor, se não
for Platão. (1) Mostra ter familiaridade com o estilo de Platão. (2)
Estava bem informado sobre a história política de Siracusa e o papel
que Platão nela desempenhou. (3) Tinha alguma razão para se entregar
ao esforço considerável exigido pela escrita desta longa defesa da
conduta de Platão. Alguém que possa ter aceite gostosamente o desafio
de escrever no estilo de Platão, ou de enganar o público leitor,
poderia ter-se esforçado menos. (4) O seu pensamento filosófico foi
formado num ambiente platônico, mas desenvolveu-se numa direção
original, ao formular a tese da inexpressabilidade. (5) Queria
salvaguardar a reputação de Platão contra os muitos que afirmavam ter
publicado descrições escritas da filosofia platônica. (6) Não estava,
porém, interessado em Sócrates, como filósofo, ou em defender Platão
como herdeiro genuíno de Sócrates, contra os muitos que se
apresentavam como herdeiros do manto socrático. (7) Embora se achasse
bem informado sobre Platão em Siracusa, não estava bem informado
sobre o julgamento e a morte de Sócrates. (8) Queria mostrar que
Platão tinha apoiado firmemente Dião e nunca tinha defendido Dionísio
contra Dião (apesar das muitas provas em contrário).7
Contudo, "o fato de Espeusipo ser um candidato plausível para a autoria da
Carta não mostra que de fato o é. Embora as semelhanças políticas e filosóficas
sejam sugestivas, nem por isso são conclusivas".8 Assumimos a posição de G.
Reale sobre esta questão: "a tentativa de negar a autenticidade da Carta VII
fracassou, e a grandíssima maioria dos estudiosos admite sua autenticidade".9
Ao lado dessas duas posições, com as quais nos alinhamos, apresentamos a seguir
a nossa compreensão filosófica relativa ao texto em questão.
Partimos do pressuposto segundo o qual, um texto muito bem escrito, como é o
caso em questão, uma vez escrito e possibilitando a instauração de sentidos,
possui certa autonomia e vida própria, de modo que se torna passível de
compreensão e projeção de [novas] realidades a-pesar ou a-favor daquele que a
escreveu. Num certo sentido, isso nos dispensa, em parte, da exclusiva obsessão
acerca da autenticidade relativa à autoria e localização temporal, embora isso
faça parte do processo compreensivo de qualquer texto filosófico. Pensamos que
o cuidado com a autenticidade do escrito - o que designamos como tarefa da
hermenêutica metodológica10 - equipara-se e é tão fundamental quanto são os
três primeiros passos do processo dialético proposto pela Carta Sétima. Porém,
em complemento a este movimento muito importante, o essencial mesmo, é sua
leitura hermenêutico-filosófica, o que, à luz da proposta dialética da carta de
Platão, equipara-se ao quarto e ao quinto instantes. Temos até a impressão de
que a primeira proposta de leitura tem ocupado maior espaço e tempo na academia
com o agravante de confundirem-na com filosofia. Nós nos posicionamos ao lado
daqueles outros que se ativeram à sua abordagem mais propriamente filosófica e,
por isso, nos são suficientes os argumentos relativos à autenticidade de T.
Irwin e G. Reale. Eis por que auscultaremos e procuraremos explicitar o que
consideramos ser o cerne da carta de Platão, ou seja, sua e nossa proposição de
um elogio da verdadeira filosofia em função da qual os personagens e os fatos
históricos participam do jogo filosófico como coadjuvantes e não como atores
principais.
O parágrafo precedente pode ser escrito e lido ainda de outros modos: ou
tomamos um texto como um objeto a ser dissecado segundo o procedimento
analítico não restando ao final senão um conjunto de cacos desconexos entre si
ou o consideramos como um parceiro no jogo11 filosófico. Segundo nossa
perspectiva hermenêutica, a epístola dirigida a todos os que amam o saber é
tomada como uma realidade com a qual nós jogamos nos jogando nela e ela nos
joga de volta ao mundo mais universais, mais unos e mais conscientes da nossa
participação na alma do mundo. Ao lê-la, não apenas adquirimos mais
informações, mas somos transtornados e instados a sermos melhores, mais justos
e verdadeiros.
Sob essa perspectiva, podemos dizer que nós nos lemos na carta filosófica: a.
porque ela é constituída pela universalidade temática e tecida pela oralidade
escriturística12; b. porque ela provoca e pede nossa posição [pessoal e social]
pela abrangência de sua emissão e, portanto, recepção13; c. por possuirmos
certa intimidade com tais coisas, pois alguém dado apenas aos prazeres do corpo
não possuirá a sensibilidade filosófica própria das almas para com as coisas
que são de muita importância14. No jogo de leitura da carta em questão o que
importa mesmo é o alargamento da nossa consciência e, consequentemente, de
nossa ação [em relação a nós mesmos, aos outros e ao mundo] segundo a lógica de
uma coerência universal. Mais importante que pretender assumir o controle do
jogo tal como se propõe o jogo totalitário, no jogo hermenêutico - mergulhamos
nas entrelinhas da carta - e também emergimos dela mais unos assumindo nossa
humanidade pela leitura dialético-tensional entre o jogar-se nela e o jogar com
ela. Desse modo, a apropriação de textos filosóficos constitui-se para todos
nós, como Gadamer sustenta, uma espécie de encontro conosco mesmosque nos
arranca da nossa particularidade e nos projeta na universalidade em crescente
sintonia com a alma do mundo. Pensamos que uma questão filosófica é aquela na
qual nós estamos sempre de alguma forma autoimplicados e que procuramos
resolver e, no caso, pelo caminho da escritura.
Nossa leitura da carta em questão se articula dialeticamente sobre três
movimentos compreensíveis conjuntamente em Platão para nossos dias: estilo
filosófico, razões para escrevê-la, sobre o processo iniciático filosófico-
político.
1.1. Sobre o ponto de vista estilístico
Do ponto de vista estilístico, estamos diante de um escrito tecido: (a) por uma
linguagem, por assim dizer, mais pessoal/subjetiva, uma vez que nela o filósofo
emite impressões pessoais e expressa sua opinião sobre sua vida: vou tentar
expor-vos do começo tudo o que houve, por parecer-me oportuna semelhante
confissão. Quando moço, aconteceu comigo o que se dá com todos [...] [324b-c];
(b) que revela o descompasso entre seu idealismo político e a realidade
política de então; (c) que expressa os percalços da prática política e os
entraves para se viver de modo virtuoso. Esse tom mais subjetivo e a confissão
pessoal sobre questões éticas, políticas, metafísicas é objeto de desconfiança
e de dúvida por parte daqueles que se aferram a um conceito universal e vazio
de filosofia ou apenas às leituras metodológicas, canônicas. Assumimos aqui
nossa preferência por este estilo epistolar de Platão - que, por sua vez,
encontra-se em consonância com a proposta hermenêutica desenvolvida por Gadamer
- visto que ele nos permite erigir e emitir argumentos filosóficos tecidos com
nossas opiniões e juízos sobre o real.
1.2. Sobre o ponto de vista das razões para Platão viajar e escrever a carta
O que se disse acima se lê na introdução da Carta Sétima, onde Platão confessa
os motivos que o levaram a escrever: escrevestes-me para que eu tenha a certeza
de que vossos projetos são iguais aos de Dião, e pedis ajuda de minha parte, na
medida do possível, por atos ou palavras. Eu, de mim, só vos digo que se vossa
maneira de pensar e vossos planos forem como os dele, disponho-vos a ajudar-vos
[323 d - 324 a] e, nessa perspectiva, com tal missão, de ajudar pela prática -
idas e vindas de Siracusa para instruir o mau tirano15 - ele decidiu não apenas
falar, mas também escrever sobre seu projeto filosófico, ou seja, sobre a ideia
de serem livres os siracusanos e se governarem de acordo com as melhores leis
assim como qual tenha sido a origem dessas ideias é o que moços e velhos
precisarão saber. Por isso, vou tentar expor-vos do começo tudo o que houve,
por parecer-me oportuna semelhante confissão [324 b]. É patente, aqui, o tom
pessoal e a declaração dos pressupostos de Platão para redigir a epístola: ele
o faz na esperança da efetivação de uma vida mais livre regida por leis justas.
Por essa razão, pareceu-lhe oportuna semelhante confissão; sua explicitação
fenomenológica visava contribuir, por meio de palavras, para a consecução do
seu projeto ético-político, precedido pela práxis, ou seja, pelas tentativas,
mesmo que aparentemente frustradas, de tornar Dionísio um bom tirano. O fato é
que Platão procurou atender a um pedido de instauração da liberdade e justiça,
por meio da exposição escrita de sua prática filosófica, supondo a empatia e a
aderência dos amigos e parentes de Dião para com seu projeto político.
Enfim, as razões para aceitar viajar - mesmo que as três viagens tenham sido,
aparentemente, fracassadas - assim como as motivações para redigir a carta,
estão eivadas com sua experiência de vida, de modo que o texto escrito se
converteu numa ajuda oportuna aos mais moços e mais velhos do seu e do nosso
tempo.
1.3. Sobre seu e nosso processo iniciático filosófico-político
Na introdução - nos deparamos ainda com outra dimensão importante que tece o
escrito epistolar, ou seja, seu idealismo político idealizado-juvenil
contrastado e confrontado com a prática política corrupta e distorcida de
Atenas que patrocinara a morte do seu mestre. A ingenuidade política e a
concomitante confissão de Platão, quanto a este ponto, remete à experiência
humana universal: aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o propósito,
tão logo me tornasse independente, de ingressar na política[324 b-c], visto que
ela parecia o meio mais apropriado para fazer com que as cidades pudessem
passar das vias da injustiça para as da justiça, porém, levando-se em conta a
minha mocidade, não é de admirar que eu tivesse ilusões [324 d]. E tamanha foi
sua desilusão com a prática política de Atenas que nos confessou sua revolta e
intenção de se manter afastado daquelas práticas odientas[325 a].
A questão a se pensar agora é por que sua desilusão se referia a Atenas e não à
Siracusa? Talvez porque, nessa última, ele tivesse vislumbrado maiores chances
e perspectivas de implantar seu projeto filosófico-político, pois nela havia um
tirano com simpatias pela filosofia e havia um amigo seu que incorporara sua
proposta política. Em todo o caso, o que é claro, aqui, é sua fenomenologia da
realidade humana com relação à política: na idade juvenil somos tomados pelo
idealismo e, de modo geral, mais tarde pela desilusão, descrédito e ignorância
política. Ele mesmo no-lo revela isso escrevendo: a tal ponto as leis escritas
e os costumes se achavam desmoralizados, que eu próprio, a princípio, tão cheio
de ardor para dedicar-me à causa pública, considerando a situação reinante e
vendo como tudo se achava na mais completa dissolução, acabei tomado de
vertigens [325 d-e]. Contudo, em Platão encontramos, em sua idade mais madura,
o esforço para efetivar, mesmo com enormes dificuldades, seu projeto
filosófico-político. O notável, aqui, é o relato de Platão, em idade avançada,
nos revelando a vivência da superação da primeira ingenuidade política e sua
insistência na prática como lemos na carta:
todavia, não desanimei de encontrar remédio para esse estado de
coisas, sempre à espera de ocasião oportuna para poder agir. Por fim,
cheguei à conclusão de que as cidades do nosso tempo são mal
governadas, por ser quase incurável sua legislação, a menos que se
tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem para
melhor[325 e - 326 a].
Na carta nos relata a cura de sua primeira ingenuidade relativa ao ideal
filosófico-político bem como sua experiência da segunda ingenuidade na qual se
sabe quão difícil é a tarefa do exercício político segundo a égide do bem, do
justo, do verdadeiro. O comum dos mortais acaba adormecendo nas vertigens da
primeira ingenuidade.
A sensibilidade de Platão, sua in-comodação com a situação política de então e
seu projeto filosófico-político motivaram-no: a) a viajar e assumir os riscos
decorrentes das três viagens à Siracusa; b) escrever sua experiência política
com o intuito de contribuir para a efetivação de uma vida mais livre e justa;
c) tecer um texto - apontando os inúmeros entraves para o exercício do
autêntico filosofar; d) e, por fim, redigir uma carta com o intuito de tecer
elogios à sua concepção de verdadeira filosofia, como veremos a seguir.
2. Elogios ao elogio da verdadeira filosofia
Na sequência do supracitado trecho da carta, Platão nos revela o que
consideramos ser o motivo central do seu escrito. Ao nos relatar a experiência
da sua vivência política, ele, agora por meio de palavras, se dispôs a
contribuir para a implantação uma vida mais livre e justa através do elogio à
verdadeira filosofia:
daí, ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com
proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes
formas da justiça política ou individual. Não cessarão os males para
o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e
autênticos filósofos ou de começarem a seriamente filosofar, por
algum favor divino, os dirigentes das cidades [326 a-b].
Ora, em nossa opinião, este é o cerne da epístola platônica, porém,
compreensível e justificável no conjunto da vivência política de Platão e do
seu processo de elaboração conceitual projetetado no texto em questão. É
considerando o tom pessoal, humano e prático da carta que convém compreender
melhor o que ele se propôs nela, ou seja, tecer e justificar o elogio da
verdadeira filosofia.
2.1. Elogio à vida justa e livre sob a égide da lei.
Em primeiro lugar, encontramos, na carta, certas pistas relativamente objetivas
que justificam as idiossincrasias da autêntica proposta filosófica contida nos
elogios da verdadeira filosofia e do bom uso do poder. Mostramos16 que não se
deve confundir amor ao saber com amor e mau uso ou subserviência ao poder, às
riquezas e aos prazeres físicos.
2 .1.1. Viver de modo temperante. Estamos de acordo com Platão na perspectiva
de que não deveríamos confundir felicidade com seus traços aparentes como lemos
na carta:
[...] não me agradou, em absoluto, a vida que por aquelas bandas dão
o nome de feliz, passada em festins o dia todo, à maneira itálica ou
siciliana, em que a gente se empanturra de comida duas vezes ao dia e
só dorme acompanhado [...] Com tais hábitos, não há debaixo do céu
quem, com semelhante regime desde moço consiga tornar-se temperante
-... - valendo para idêntico raciocínio para as demais virtudes.
Nenhuma cidade, também, tenha as leis que tiver, poderá viver
tranquila, quando os cidadãos consideram de bom aviso gastar dessa
maneira e não ocupar-se com mais nada se não for comer e beber á
farta, só pensando nos prazeres do amor [...] sem que os detentores
do poder admitam sequer ouvir o nome de um governo de justiça e
igualdade [326 b-d]
É clara a decepção de Platão para com os maus hábitos dos sicilianos. A
condição para efetivação da filosofia se faz pela clareza sobre o que é
felicidade [pautada pela temperança e exercício da virtude]. A vigência de uma
vida filosófica não depende apenas da existência de leis justas, mas de bons
hábitos. Estes implicam ainda no não apego e às riquezas, pois, o indivíduo
ávido de riquezas, porém de alma tacanha, não escuta esses discursos [335 b].
Ecos dessas advertências encontramos na proposta de Schopenhauer, para quem não
se deve confundir o comum profissional do saber [que só procura suas vantagens
com seus conhecimentos], com o verdadeiro filósofo, que ama e procura o saber
de forma desinteressada no sentido proposto pelo estagirita e que não trata a
filosofia como uma moeda de troca ou de barganha.
2 .1.2. Melhores leis: patrocínio de vida justa e livre. Além disso, podemos
dizer que, na introdução da carta de Platão, encontramos a face objetiva da sua
proposta filosófica que o levou não apenas a viajar, mas a escrevê-la: sobre
serem livres os siracusanos e se governarem de acordo com as melhores leis [324
b- grifos nossos]. Foi essa motivação objetiva que o levou a fazer o elogio da
verdadeira filosofia, pois, por meio, dela é que se pode reconhecer as
diferentes formas da justiça política ou individual [326 a].
Por aqui já depreendemos outros dados objetivos implícitos na epístola: que a
felicidade encontra-se imbricada como uma prática pessoal e cumprimento da lei
e vivência de direitos iguais. É por isso que nos diz, na carta, que a Sicília
não deve sujeitar-se a nenhum déspota, nem ela nem qualquer outra cidade - pelo
menos, é assim que eu penso - mas às leis[334 c]. Assim, também o tirano deve
reger sua vida à luz da lei justa [bom tirano] e não pode se arvorar no direito
de se considerar a própria lei [mau tirano].
A queixa de Platão relativa ao assassinato de Dião não se deveu apenas à sua
amizade a ele, mas por haverem tirado a vida a um homem que se achava no ponto
de realizar a justiça [335 b] e por seu ressentimento para com Dionísio o que
nos revela outra dimensão relativamente objetiva da sua proposta:
se a filosofia e o poder se tivessem reunido em sua pessoa, ele faria
luzir aos olhos dos helenos e dos bárbaros e gravar no espírito dos
homens a noção verdadeira de que não podem ser felizes nem as cidades
nem os indivíduos, se todos não viverem sabiamente sob o amparo da
justiça[335 d].
Platão supunha que Dião tivesse a pretensão e pudesse livrar Siracusa da
escravidão e fosse capaz de aplicar as melhores e mais convenientes leis
segundo pressuposto de que se tudo isso houvesse sido levado a cabo por um
homem justo, corajoso, temperante e filósofo, então a maior parte dos homens
teria feito da virtude a mesma ideia[336 a-b]. Contudo, segundo Platão, a
ignorância dessa proposta pôs tudo a perder. Enfim, a validade objetiva
relativa está, também atestada na defesa a Dião que, para ele, só ambicionava
implantar nova constituição e leis melhores e mais justas, com o menor número
possível de execuções ou penas de banimento [351 a]. O fato hermenêutico é que
aqui encontramos atestada a conjunção dialética entre vida justa, temperante e
livre do ponto de vista pessoal e da polis, ou seja, entre ética e política.
2 .1.3. Bom uso do poder. É clara a crítica de Platão ao mau uso do poder
realizado por Dionísio, ou seja, seu apego e sua defesa de interesses pessoais
escusos. Seu bom uso implicaria no exercício político e não demagógico onde o
poder é utilizado para controlar pessoas, obter e garantir vantagens
individuais e praticar o nepotismo. À diferença de quem apenas dita, o bom
tirano sabe coordenar atividades, projetos sem recorrer à ditadura de regras e
normas.
O bom uso do poder implica a vigência da difícil arte de respeitar, ouvir,
compreender o outro sem deixar-se determinar por aquela predisposição
totalitária, a priori, de tratá-lo como ameaça e, portanto, um perigo a ser
combatido ou até eliminado em todos os espaços e tempos. A argumentação aberta
é o meio para se justificar o que é o melhor, o mais justo, o mais apropriado.
À diferença da postura de apego obcecado ao poder em defesa de interesses
pessoais de Dionísio, Platão nos propõe seu exercício em função da coisa
pública. O filósofo, além de saber lidar bem com o poder possui a capacidade de
utilizá-lo para dirigir a cidade sob a égide da justiça e da liberdade. A busca
do controle do poder para dominar, obter e garantir vantagens individuais de
alguém que se diz filósofo implode qualquer discurso ético seu. O filósofo não
possui uma alma tacanha[335 b], servil ou dissimulada, mas possui a coragem
para debater e discutir questões que são, de fato, pertinentes ao bem público.
A liberdade no trato com os outros se arraiga na [sua] busca da verdade e do
que é o melhor e por isso não depende da bajulação dos mais fracos para
garantir o uso do poder.
2.2. Elogios à vida sábia!
Um pressuposto fundamental da verdadeira filosofia, em Platão, é a distinção
entre filósofo sábio e filósofo aparente, entre aquele que se esforça para
conhecer e viver a verdade, a unidade, a beleza e aquele que se atém apenas ao
estilo persuasivo, pomposo e petulante de seus discursos.17 Nesse sentido,
inteligência, esperteza, sagacidade não podem, a priori, serem considerados
sinônimos de sabedoria embora possam ser atributos do filósofo sábio. A
sabedoria filosófica implica não apenas o domínio e o acúmulo de conhecimento,
de informações, mas também a vivência do bem e da verdade; o filósofo aparente
até entende o real, mas o sábio é aquele que o 'compreende'.18 Vejamos três
implicações decorrentes dessa proposição.
2 .2.1. Aqueles que se atêm apenas à aquisição de informações filosóficas e se
aferram ao que julgam conhecer se assemelham aos que não são verdadeiros
filósofos e só receberam um verniz de opiniões superficiais, à maneira dos
corpos queimados pelo sol [340 d-e]. Assim como uma andorinha só não faz verão
não basta um dia ou um mês ou a aquisição de certos conceitos ou de um diploma
para alguém ser considerado filósofo, mas precisa passar pelas provas propostas
por Platão na carta [340 b - 345 c]. O filósofo que aspira à sabedoria [a viver
de modo sábio] possui uma postura que não se coaduna com a arrogância nem com o
dogmatismo. Paradoxalmente, quem mais se aproxima da raiz do real, mais
incorpora a simplicidade de vida dos grandes sábios, o que não significa
subserviência ou passividade!
Além disso, o filósofo reluta em escrever seja por sua incompetência e
finitude, seja pela limitação própria da linguagem, seja pela inesgotabilidade
do fim último do filosofar. Daí a discussão sobre a primazia da linguagem oral,
dialógica em relação à escrita. Diferente de Dionísio, Platão sabia do perigo a
que se expunha ao escrever 'sobre o bem', pois não é possível encontrar a
expressão adequada para os problemas dessa natureza, como acontece com outros
conhecimentos [341 c]. Como se vê, o cuidado do filósofo em relação à escritura
filosófica não se deve à sua preguiça, mas à sua consciência da in-competência
e incessante busca por encontrar a palavra apropriada aos contornos das coisas.
O filósofo ousa criar, segue suas intuições a partir da competente apreensão da
história da filosofia, sem esquecer, contudo, que não possui a última palavra
afinal "a essência do comportamento hermenêutico caracteriza-se em não se
guardar nunca, para si, a última palavra",19 [sobre si, sobre os outros, sobre
o real].
2 .2.2. O filósofo vive a verdade, a bondade, a unidade nas mínimas coisas.
Filosofia não é apenas uma questão de conhecimento, mas de postura, de prática
e implica uma opção de viver de modo autônomo e responsável como lemos na
carta: é nesse estado de espírito que tal homem vive; e até mesmo nas ocupações
mais triviais, a todo instante e em quaisquer circunstâncias não se despega da
filosofia [340 d - grifos nossos]. O filósofo sábio não chega em casa e tira
seu jaleco para viver um personagem diferente daquele que sua profissão lhe
exige.
2 .2.3. É relativamente aceitável que sejam considerados filósofos ainda hoje
pessoas despreocupadas em conhecer-se e cuidar-se de si mesmas. A esquizofrenia
entre estas duas polaridades - ou a identificação da filosofia à apenas um dos
polos - tem produzido verdadeiras aberrações acadêmicas e tendências
totalitárias combatidas desde os tempos de Platão como lemos na carta.
Contudo, corroboramos a opinião de Platão, segundo a qual, a filosofia se erige
sobre a imbricação dialética entre o processo de [auto]conhecimento e o ser,
isto é, o esforço de cuidar-se de si mesmo e de [re]-elaborar conceitos. Dito
de outro modo, na vida sábia o filósofo e a filosofia, o sujeito e o objeto, o
particular e o universal encontram-se e espelham-se o que, nas palavras do
prof. Porchat foi expresso assim: "ensinar a filosofar exige que se filosofe
também".20 Sabemos que o filósofo sábio não é insensível, mas aberto e capaz de
ouvir e argumentar com o outro. Além disso, ele ousa inclusive olhar para sua
própria casa ou para os seus entraves ao emitir juízos acerca do real. Enfim,
de acordo com a proposta de Platão e nossa, filosofar significa aprender a
viver conforme o que nos torna mais divinos e, portanto, mais humanos.
2.3. Elogio à escritura na alma enquanto uma vida digna de ser vivida
2 .3.1. Experiência filosófica = escritura na alma! Ao lado da reflexão
anterior, compreendemos que a efetivação do filosofar acontece enquanto uma
experiência de vida digna de ser vivida ou o que equivale a uma mensagem
escrita na alma! Nas entrelinhas da carta de Platão é possível perceber que sua
afirmação: de mim, pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre
semelhante matéria[341 c], precisa ser compreendida com o que diz na frase a
seguir: não é possível encontrar a expressão adequada para problemas dessa
natureza, como acontece com outros conhecimentos[341 c]. Transparece, aqui, a
posição platônica - com a qual estamos totalmente de acordo - segundo a qual
nem a escritura nem a oralidade são capazes de conter a largura e a
profundidade da filosofia. Esta possui uma expressão própria, distinta de
conhecimentos em geral. Quando dizemos que o real e, portanto, a filosofia, não
se deixa engessar ou açambarcar por conceitos não é porque ela é inexpressável,
mas porque não se expressa nem se esgota em palavras como outros conhecimentos.
Conhecemos o significado da palavra carro com relativa rapidez, porém, o termo
filosofia implica uma compreensão distinta, gradual e inesgotável. Enquanto que
o primeiro tipo de conhecimento restringe-se ao tipo de informação padronizada,
a filosofia instaura-se como consequência de um comércio prolongado e de uma
existência dedicada à meditação de tais problemas é que a verdade brota na alma
como a luz nascida de uma faísca instantânea, para depois crescer sozinha [341
c-d; grifos nossos]. Ela constitui uma experiência [hermenêutica] que se
efetiva, dialogicamente, em colóquios amistosos sem ressaibos de inveja, onde
perguntas e respostas visam à compreensão conjunta mais universal do real. Ora,
esta busca tensional é o que caracteriza o sábio ao passo que o profissional do
saber, normalmente, está às voltas com uma espécie de universalidade
desvencilhada da ontologia. Essa experiência inscreve-se nas almas e parece
pedir dispensa da sua escrita nos rolos de papel [ao modo de filosofar de
Sócrates], pois, o que sabemos por experiência, não esquecemos nem precisa ser,
necessariamente, impresso em textos. Porém, se o fazemos21, é apenas para nos
compreendermos mais e melhor e, quem sabe, para que outros possam disso tirar
algum proveito, como alegou Platão.
O filosofar, para além do uso de proposições lógicas, do domínio de
conhecimentos e conceitos, da habilidade no uso das palavras, ele se
caracteriza como um exercício [re]-criador de [novas] realidades, afinal, o
tempo está a nos enterrar o tempo todo! Diante disso, ao filosofar, instauramos
novas possibilidades de viver calcadas na leitura da tradição e das nossas
projeções. Desse modo, filosofar significa aspirar à sabedoria, à busca de
clareza na travessia22 mesma do real, levando em conta o passado, o futuro, no
presente, sem se aferrar a uma das faces do tempo. Sábio e não mercenário,
aquele mostra sua filosofia por sua postura, pelo cuidado com o uso das
palavras em sua fala e em sua escrita. A experiência filosófica não culmina,
pois, no silêncio ou no mutismo, mas na vivência e concomitante consciência da
limitação de todo esforço conceitual relativo à nossa hermenêutica do real. Se
a filosofia é uma postura, um modo de vida como nos propõe a leitura de Hadot23
sobre Platão, com o qual concordamos, ela é também um esforço incessante de
caminharmos das palavras ao conceito e destes àquelas24 o que tece nossa
concepção do filosofar enquanto uma experiência.
2 .3.2. Experiência da escritura filosófica. Com relação ao tema da escritura
filosófica, parece que os profissionais do saber creem, normalmente, ou na
expressabilidade total da filosofia via conceito [formalização] e consequente
dogmatismo ou na sua inexpressabilidade e consequente mergulho numa espécie de
abismo silencioso. Porém, o filósofo, enquanto um iniciado à sabedoria, tem
consciência seja da inesgotabilidade da filosofia, seja da sua concomitante
limitada expressabilidade. Daí que a re-leitura da carta em questão, corrobora
o fato de que o conceito de filosofia constitui-se em um exercício, uma troca,
um comércio prolongado e de uma existência dedicada à meditação[341 c]
configurando a experiência filosófica onde objetividade e subjetividade
encontram-se articuladas conjunta e dialeticamente. Desse modo, o saber próprio
do sábio não se limita à aquisição e repetição autômata de conceitos. Por
exemplo, uma coisa é falar sobre a finitude, o amor, os limites, a morte, outra
coisa é senti-los, vivê-los, padecê-los e outra coisa é - próprio dos sábios -
ser capaz de senti-los, percebê-los e ainda escrever sobre eles
apropriadamente. A crítica de Platão a Dionísio deveu-se, em parte, à sua
pretensão de escrever e repetir fórmulas filosóficas sem haver se esforçado por
vivê-las e por isso sua escritura era estéril.
2 .3.3. Experiência filosófica de uma vida digna de ser vivida. Com o elogio da
verdadeira filosofia - enquanto realização de uma experiência de verdade, de
beleza e de bondade - quem tiver vocação para tal empreendimento, ou seja, se
se tratar, realmente, de um amante da sabedoria e se for dotado de natureza
divina, além de revelar vocação para tais estudos, ficará maravilhado com o
caminho apontado e no mesmo instante se decidirá a enveredar por ele e a não
viver de outra maneira [340 c, grifos nossos]. Ora, de modo mais contundente
ainda, de acordo com Platão, nas palavras de Sócrates "uma vida sem pensar não
é digna de ser vivida por um homem".25 Essa vida digna de ser vivida é aquela
que nos convoca a uma constante compreensão mais verdadeira e universal de nós
mesmos e do mundo. Sábios e, portanto, felizes serão aqueles que puderem
captar, assimilar e viver isso independente do preço a pagar por isso! Enfim, a
questão que colocamos agora é: como se efetiva ou como se deve proceder ou qual
o caminho que precisa trilhar aquele que quer ser um filósofo-sábio?! Segundo
nossa hipótese investigativa, é pela postura e pelo procedimento dialético-
dialógico o que será desenvolvido mais adiante.
Ao modo de uma conclusão
Como lemos na carta, por palavras e por atos, Platão nos mostra que sua
concepção de filosofia se sustenta sobre a imbricação dialética entre um modo
de viver - pautado pela noção de unidade, verdade, beleza - e uma proposta
teórica, entre uma leitura e concomitante reflexão sobre a realidade [pessoal e
política]. A recusa, portanto, em escrever sobre os assuntos mais
importantesnão se deve ao argumento de que isso seria tarefa exclusiva de um
grupo secreto de iniciados nem à sua inexpressabilidade, mas porque o filosofar
se erige, justamente, sobre a instauração incessante de uma escritura
apropriada e dinâmica aos tempos e espaços de quem se dispõe a tal
empreendimento. Assim, de acordo com Platão, o problema daqueles que pretendem
fixar a filosofia no texto se deve ao fato de que participam do grupo de gente
de tanto valor que nem a si mesmo se conhece [341 b].26 Enfim, o encontro com
essa belíssima carta nos provoca e nos convoca continuamente a filosofarmos em
colóquios amistosos em que perguntas e respostas se formulam sem o menor
ressaibo de invejade modo que então brilhe, entre e sobre nós, sobre cada
objeto a sabedoria e o entendimento de modo que torne nossa vida ainda mais
digna de ser vivida.